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CONCLUSÃO

O individualismo negativo

O núcleo da questão social hoje seria pois, novamente, a


existência de “inúteis para o mundo”, de supranumerários e,
em torno deles, de uma nebulosa de situações marcadas pela
instabilidade e pela incerteza do amanhã que atestam o cres-
cimento de uma vulnerabilidade de massa. Paradoxo, se as
relações do homem com o trabalho forem consideradas no
interior de um longo período. Foram necessários séculos de
sacrificios, de sofrimentos e de exercício da coerção — a força
da legislação e dos regulamentos, a coerção da necessidade e
também da fome — para fixar o trabalhador em sua tarefa e nela
conservá-lo através de um leque de vantagens “sociais” que vão
qualificar um status constitutivo da identidade social. É no mo-
mento em que a “civilização do trabalho” parece impor-se
definitivamente sob a hegemonia da condição de assalariado
que o edificio racha, ril‘::ondo na ordem do dia a velha obsessao
popular de ter que viver “com o que ganha em cada dia”.
Não se trata, entretanto, do eterno retorno do infortdnio
mas, sim, de uma completa metamorfose que apresenta hoje,
de forma inédita, a questio de ter que fazer face a uma vulne-
rabilidadede apds proteções. O texto que tentei construir pode
ser lido como uma histéria da passagem da Gemeinschaft a
Gesellschaft, em que as transformagdes da condição de assa-
lariado desempenharam o papel determinante. Qualquer que
possa ser a conjuntura de amanha, não estamos mais ¢ nio

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e da democracia — a histéria, justamente, da passagem da Ge-


voltaremos mais à Gemeinschaft, e este caráter irreversível da meinschaft à Gesellschaft. A vantagem dessa escolha é clarear
mudança também pode ser compreendido a partir do processo o que estd em jogo num abandono completo da heranga da
que instalouo salariado no coração da sociedade. Sem dúvida, sociedade salarial. A Franga havia levado séculos para esposar
a condição de assalariado conservou, do longínquo modelo seu século, e haviachegado a isso, aceitando, exatamente, jogar
da corvéia (cf. capitulo III), uma dimensão “heterônoma”, para o jogo da sociedade salarial. Se hoje as regras do jogo devem
falar como André Gorz, ou “alienada”, para falar como Marx, ser modificadas, a consciéncia da importancia dessa heranca
e, para dizer a verdade, como sempre pensou o bom senso merece que se tomem algumas precaugdes. Tentar pensar as
popular. Mas suas transformações até a constituição da socie- condições de uma metamorfose da sociedade salarial, mais do
dade salarial tinham consistido, de um lado, em apagar os que se resignar a sua liquidagao. >
traços mais arcaicos dessa subordinação e, por outro lado, em Para tal, é necessario esforgar-se por pensar em que podem
compensar com garantias e direitos, bem como com o acesso consistir as protegoes numa sociedade É]ue se torna cada vez
20 consumo além da satisfação das necessidades vitais. O sa- mais uma sociedade de indivíduos. A história que tentei pode,
lariado tornara-se assim, pelo menos através de várias de suas de fato, ser lida também, paralelamente a da promogao do
formas, uma condição capaz de se rivalizar, às vezes de vencer,
salariado, como a narrativa da promogao do individualismo,
com as duas outras condições que, durante muito tempo, o das dificuldades e dos riscos de existir como individuo. O fato
tinham esmagado: a do proprietário ¢ a do trabalhador inde- de existir como individuo e a possibilidade de dispor de pro-
pendente. A despeito das dificuldades atuais, esse movimento teções mantém relações complexas, pois as protecoes decor-
não esta acabado. Numerosas profissoes liberais, por exemplo,
rem da participação em coletivos. Atualmente, o desenvol-
tornam-se cada vez mais profissoes assalariadas: médicos, ad-
vimento do que Marcel Jauchet chama de “um individualismo
vogados, artistas assinam verdadeiros contratos de trabalho
de massa”, em que vé “um processo antropolégico de alcan-
com as instituições que os empregam.
Portanto, é preciso receber com muitas reservas as decla- ce geral”', submete à discussio o fragil equilibrio que a so-
ciedade salarial havia realizado entre promoção do indivi-
ragoes sobre a morte da sociedade salarial, quer para regozi-
duo e pertencimento a coletivos protetores. O que quer dizer
jar-se com o fato quer para lamentd-lo. Erro de anilise
sociolégica primeiro: a sociedade atual é ainda macicamente e o que pode significar hoje “estar protegido™?
uma sociedade salarial. Mas também, amitide, a expressao de O estado de derrelição, produzido pela auséncia completa
uma escolha de natureza ideolégica: a impaciéncia de “ultra- de protegoes, foi vivido primeiro pelas populagoes situadas
passar o salariado” rumo a formas mais convivais de atividade fora dos quadros de uma sociedade de ordens e de status —
é, fregiientemente, a manifestagao de uma rejeigao da moder- uma sociedade predominantemente “holista”, no vocabuldrio
nidade, arraigada em devaneios campestres muito antigos que de Louis Dumont. “No man without a Lord”, diz o velho
evocam “o mundo encantado das relações feudais”, o tempo adigio inglés, mas também - e até tarde — na sociedade do
da predominancia da protegdo préxima, mas igualmente das “Antigo Regime”, nenhum artesão que nao extraisse sua exis-
tutelas tradicionais. Fiz aqui a escolha oposta, talvez também téncia socialdo oficio, quase nenhum burgués que não se iden-
“ideológica”, de que as dificuldades atuais não são uma opor-
tunidade para acertar contas com uma histéria que foi também
a da urbanizacio e do dominio da natureza pela técnica, da M. Gauchet, “La société d’insécurité”, loc. cit., p. 176.
promogio do mercado e do laicismo, dos direitos universais
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tificasse com o seu estado, e até mesmo quase nenhum nobre formas coletivas de enquadramento®. Apoiado pelo liberalis-
que não se definisse por sua linhagem e sua condição. Também mo, impée-se no fim do século XVIII através da dupla revo-
para a sociedade à véspera da Revolução, Alexis de Tocqueville lução industrial e politica.
recusa-se a falar de individualismo, mas no máximo de um A forga desse individualismo conquistador, assim como a
“individualismo coletivo” em que vê a identificação do indi- persisténcia do “individualismo coletivo”, ocultaram a exis-
víduo “com pequenas sociedades que só vivem para si”: téncia de uma forma de individualizagio que reúne a inde-
pendéncia completa do individuo e sua completa auséncia de
Nossos pais não tinham a palavra individualismo, que forjamos consistência . O vagabundo representa-lhe o paradigma. O
à nossa imagem, porque, de fato, no tempo deles não havia
vagabundo é um ser absolutamente desengatado (desfiliado).
indivíduo que não pertencesse a um grupo ¢ pudesse se consi-
derar absolutamente sozinho; mas cada um dos milhares de pe-
Só pertence a si mesmo e ndo é “o homem” de ninguém, nem
quenos grupos de que a sociedade francesa se compunha não pode se inserir em nenhum coletivo. É um puro individuo e,
pensava senão em si mesmo. Era, se ouso dizer, uma espécie de por isso, completamente despossuido. É individualizado a tal
individualismo coletivo, que preparava as almas para o verda- ponto, que está superexposto: desprende-se do tecido encor-
deiro individualismo que conhecemos®. pado das relagoes de dependéncia e de interdependéncia que
estruturam a sociedade. “Sunt pondus inutilae terrae”, como
Esse tipo de implicagao em coletivos assegurava, 20 mesmo
tempo, a identidade social dos individuos e o que chamei de
sua protegio proxima. Entretanto, nessa sociedade existem * A. Fox, History and Heritage, op. cit., cap. 1. Fox data do século XVI o infcio
do desenvolvimento desse imfivir:ipualimmnquimdm (e no entanto frágil, cf.,
formas de individualizagio que poderiam ser classificadas de por exemplo, o destino freqiiente desses banqueiros “lombardos™ arruinados
individualismo negativo, que são obtidas por subtracdo em depois de terem feito esperar senhores e às vezes príncipes), mas identifica-se
relagio ao encastramento em coletivos. A expressão, como esse P“FÃL de mcãª?nmrm omadmdm e ávidos desde o momento da “descon-
versão” da soci e no século XIV. Cf,, por exemplo, a person de
alids a de “individualismo coletivo”, pode chocar, à medida Jean Boinebroke, mercador de tecidos de 1a çmpgwaj ntl: fim do séc:uªlge;(nlx,
que, geralmente, se entende por individualismo a valorizagio que explorava os artesãos, fazendo-os trabalhar com um cinismo tal que eles
do sujeito e sua independéncia quanto aos pertencimentos co- esperaram sua morte e lhe moveram um processo póstumo. (G. Espinas, Les
originesdu capitalisme, t. 1, “Sire jean Boinebroke”, Lille, 1933).
letivos. O individualismo moderno, diz Louis Dumont, “apre-
* Seria necessário acrescentar uma outra formade individualismo que poderia
senta o individuo como um ser moral, independente e ser chamado de “aristocrático”, situado no ápice da pirâmide social. “Nas
auténomo e, assim (essencialmente), nao-social™. De fato, o sociedades em que o regime feudal é apenas um exemplo, pode-se dizer que
que Alan Fox chama de/individualismo de mercado)(market a individualização chega ao máximo no lado em que se exerce a soberania
e nas instâncias superiores do poder. Quanto mais a pessoa detiver poder e
individualism) comegou a desdobrar a figura de um individuo privilégios, mais marcada será, enquanto indivíduo, por rituais, discursos,
senhor de seus empreendimentos, que persegue com obstina- representações” (M. Foucault, Vigiar e punir — O nascimento da prisão, 16º
ção seu préprio interesse e é desafiador diante de todas as ed., Petrópolis, Vozes, 1997). Essa forma de individualização foi progressi-
vamente suplantada por aquela desenvolvida pelo comércio e pela indústria.
Na sociedadedo “Antigo Regime”, também seria necessário assegurar um
lugar para a personagem do aventureiro, que aparece como tema literirio
? A. de Tocqueville, LAncien Régimeet la Révolution
(1º edição, 1856), Paris, no romance picaresco espanhol e se multiplica no século XVIII (cf. a perso-
Gallimard, 1942,p. 176. nagem Casanova). O aventureir
é oum individuo
que usufruide sua liberdade
? L. Dumont, Essai sur l'individualisme, Paris,Le Seuil, 1983, p. 69. Cf. nos intersticios de uma sociedade estamental em via de desconversio. Co-
também P Birnbaum,J. Leca (dir.), Sur I'ndividualisme, Paris, Presses de la nhece perfeitamente as regras tradicionais, serve-se delas desprezando-ase
FNSR 1986. ' torcendo-as para fazer triunfar seu interesse ou seu prazer de indivíduo. |

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disse no século XVI um jurista lionês anteriormente citado: aquele que os contratantes formam entre si. Também nao exis-
os vagabundos são o peso inútil da terra. te nenhuma referéncia a protegoes, salvo as garantias juridicas
Efetivamente, o vagabundo pagou muito caro por essa au- que asseguram a liberdade e a legalidaddos e contratos.
sência de lugar que o situa do outro lado do espelho das rela- Essa nova regra do jogo contratual nio vai, pois, promover
ções sociais. Mas o principal interesse de lhe desenhar a figura proteções novas e, ao contrdrio, terd por efeito destruir o que
decorre do fato de, como se viu, representar uma posição-li- restava de pertencimentos coletivos, acentuando, assim, o ca-
mite em relação a uma gama de situações cujo lugar é igual- rater anémico da individualidade “negativa™. O pauperismo
mente mal assinalado numa sociedade cadastrada. “Quarto — uma representagao-limite como o vagabundo — exemplifica
estado” que, em termos exatos, não tem estado e reúne, em essa dessocializagio completa que reduz uma parte da popu-
especial, diferentes tipos de relações salariais, ou pré-salariais, lação industrial a uma massa agregada de individuos sem qua-
antes da constituição da relação salarial moderna. Existe desde lidades.
então, sob os limites de uma sociedade de ordens, como que Entretanto, como se pôde mostrar, essa onda de choque
um rebuliço de posições individualizadas, no sentido de que da ordem contratual nao atingiu de frente senio uma parte
são desligadas em relação às regulações tradicionais e que no- limitada da populagio. Foi como que amortecida pelo peso
vas regulações ainda não estão firmemente impostas. Indivi- da cultura rural, pela persisténcia de formas pré-industriais de
dualismo “negativo”, porque se declina em termos de falta — organizagio do trabalho e pela forga dos modos de protegao
falta de consideração, falta de seguridade, falta de bens garan- préxima que lhe eram associadas’. Mas compreende-se tam-
tidos e de vínculos estáveis. bém que, para as populagoes cuja situagao dependia de um
À metamorfose que se realiza no fim do século XVIII pode contrato de trabalho, todo movimento que desemboca na so-
ser interpretada a partir do encontro entre essas duas formas ciedade salarial tenha consistido em superar a friabilidade da
de individualização. O individualismo “positivo” impoe-se a0 ordem contratual para conquistar um status, isto é, um valor
tentar recompor o conjunto da sociedade sobre uma base con- acrescentado em relação à estrutura propriamente contratual
tratual. Por meio da imposição da matriz contratual, vai ser
pedido, ou exigido, que os individuos carentes ajam como in-
divíduos autônomos. De fato, o que é um contrato? “O con- ” Lembremos que a recomposigio contratual que perturbou a arganizagio
do trabalho respeitou o niicleo tutelar da ordem familiar, Se uma legislagao
trato é uma convenção pela qual uma ou várias pessoas se liberal do tipo da Lei Le Chapelier tivesse sido imposta à familia como foi
obrigam em relação a uma ou várias outras a dar, fazer ou não para o trabalho, sem divida a ordem social nio teria resistido. Só muito
fazer algo™. É um acordo de vontade entre seres “inde- lentamente é que o Direitoda Familia incluiu aspectos contratuais, ao passo
que, inversamente, o Direito do Trabalho abarrotava-se de garantias estatu-
pendentes e autônomos”, como diz Louis Dumont, em prin- térias. Porém, no inicio do século XIX, as populagdes que forneceram o
cípio livres de seus bens e de sua pessoa. Essas prerrogativas material para as descrições do pauperismo caracterizavam-se por sua relagio
do individualismo vão, assim, se aplicar a indivíduos que, da instivel com o trabalho ¢, a0 mesmo tempo, pela decomposicio de sua
estrutura familiar: solteiros transplantados para a cidade e afastados dos
: liberdade, conhecem sobretudo a falta de vínculos e, da auto- sauddvels costumes que sio atribuidos as populações rurais, uniões entre
nomia, a ausência de suportes. Na estrutura do contrato, não operdrios e operarias das primeiras concentragoes industriais sempre des-
existe realmente nenhuma referência a um coletivo, exceto critas como frigeis ¢ imorais, rodeados de criancas de pais desconhecidos.
Nem relagbes organizadas de trabalho, nem vinculos familiares forres, nem_
inscrigio em comunidades estruturadas: os principais tragos do individua-
º Código civil, artigo 1101. lismo negativo conjugam-se
para produzir uma desfiliagio de massa.

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da relação salarial. Esses acréscimos em relação a um “puro” publico e coletivo, e estaancoragem permite uma estabilizagio
contrato de trabalho atuaram como redutores dos fatores de dos modos de vida. Tal desindividualizagao pode até permitir *
individualismo negativo. A relação de trabalho escapa progres- uma desterritorializagio das proteções-.-.ª.rmedida que são ins-
sivamente da relação personalizada de subordinação do con- critas em sistemas de regulações jurídicas, essas novas prote-
trato de aluguel, e a identidade dos assalariados depende da ções não passam necessariamente pela interdependência, mas
uniformidade dos direitos que lhe são reconhecidos. “Um sta- tampouco pelas sujeições das relações personalizadas, como o
tus (coletivo) encontra-se alojado num contrato de trabalho paternalismo do patrãoou dos interconhecimentos que mo-
(autônomo e individual) pela submissão desse contrato a uma bilizam a proteção próxima. Assim, autorizam a mobilidade.
ordem pública (heterônoma e coletiva).”* O “detentor de direito”, dizíamos nós, pode, em princípio,
Em outros termos, trata-se realmente de um processo de estar assegurado tanto em Maubeuge quanto em Cholet. Em
desindividualizacdo que insere o trabalhador em regimes ge- suma, a reterritorialização pelo direito, ou fabricação de ter-
rais, convenções colefivas, regulações públicas do direito do ritórios abstratos, completamente distintos das relações de
trabalho e da proteção social. Nem tutela nem simples con- proximidade e através dos quais os individuos podem circular
trato, mas direitos e solidariedades a partir de conjuntos es- sob a égide da lei. E a desfiliação vencida pelo direito.
truturados em torno da realização de tarefas comuns. O Essa articulagio complexa dos coletivos, das protegoes e
mundo do trabalho na sociedade salarial não forma, para falar dos regimes de individualizagio está hoje em discussio, e de
em termos exatos, uma sociedade de indivíduos mas, sobretu- um modo que é, ele mesmo, muito complexo. As transforma-
do, um encaixe hierárquico de coletividades constituídas na ¢oes que se dio no sentido de maior flexibilidade, tanto no
base da divisão do trabalho e reconhecidas pelo direito. Ainda que se refere ao trabalho quanto ao extratrabalho, tém sem
mais que, sobretudo nos meios populares, a vida extratrabalho divida um carater irreversivel. A segmentagao dos empregos,
é também estruturada pela participação em espaços comuni- do mesmo modo que o irresistivel aumento dos servigos, acar-
tários, o bairro, os amigos, o boteco, o sindicato... Quanto ao reta uma individualizagio dos comportamentos no trabalho
estado de dessocialização que o pauperismo representava, a completamente distinta das regulagoes coletivas da organiza-
classe operária, sobretudo, havia “fabricado” para si formas ção “fordista”, Não basta mais saber trabalhar, é preciso saber,
de sociabilidade que podiam ser intensas e sólidas”. tanto quanto, vender e se vender. Assim, os individuos são
Desse modo, se cada um pode, sem dúvida, existir como levados a definir, eles préprios, sua identidade profissional e
indivíduo enquanto pessoa “privada”, o status profissional é a fazer com que seja reconhecida numa interagao que mobiliza
tanto um capital pessoal quanto uma competéncia técnica ge-
ral'’. Essa diluição dos enquadramentos coletivos e dos pontos
* A. Supiot, Critique du droit du travail, Paris, PUF, 1994, p. 139. Esta obra de identificagio que valem para todos não estd limitada as
expõe de modo muito preciso o papel desempenhado pelo Direito do Tra- situações de trabalho. O préprio ciclo de vida se torna flexivel
balho para passar do puro contrato de trabalho ao estatuto de assalariado.
* C£., por exemplo, as análises de E.R Thompson, The Makingof the Working
Class, op. cit., e R. Hoggar t, e du pauvre, op. cit., bem como inú-
La cultur
meros estudos sobre a sociedade operária que enfatizam, ralvez de modo um 1 Cf. as anilises de B. Perret e G. Roustang, Léconomie contre la société, op.
pouco mistificado às vezes, a força de suas solidariedades. Para maior clareza cit., cap. IL. Para uma interpretação otimista desse processo, cf. M. Crozier,
sobre a cultura popular, cf. C. Grignon, J.-C. Passeron, Le savant et le po- %W à Péconte, Paris, Le Seuil, 1994 (1º edição, Paris, Inter-éditions,
pulaire, Paris, Gallimard, 1989.

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com o prolongameneto de uma “pós-adolescência” freqiien- Essa cultura do individuo não esti morta, e uma de suas
temente entregue à cultura do aleatório, às vicissitudes de uma variantes assumiu formas exacerbadas com o culto da perfor-
vida profissional mais abrupta, e de uma vida pós-profissional mance da década de 80". Porém, vé-se desenvolver-se hoje
que, amiúde, se estira de uma saída prematura do emprego até um outro individualismo, desta vez de massa, e que aparece
os confins sempre mais recuados da quarta idade"". Uma es- como uma metamorfose do individualismo “negativo”, desen-
pécie de desinstitucionalização, entendida como uma des-li- volvido nos intersticios da sociedade pré-industrial. Metamor-
gação em relação aos quadros objetivos que estruturam a fose e de modo algum reprodugio, porque é o produto do
existência dos sujeitos, atravessa o conjunto da vida social. enfraquecimento ou da perda das regulações coletivas, não de
Esse processo geral pode ter efeitos contrastantes sobre os sua extrema rigidez. Porém, conserva o trago fundamental de
diferentes grupos por ele afetados. Na esfera do trabalho, a ser um individualismo por falta de referéncias, t não por ex-
individualizaçãdas o tarefas permite a alguns que escapem das cesso de investimentos subjetivos. “Não tem muito a ver com
sujeições coletivas e expressem melhor sua identidade através um movimentode afirmação de si — não é necessariamente o
de seu emprego. Para outros, significa segmentação e fragmen- valor do indivíduo que é prioritariamente motor num processo
tação das tarefas, precariedade, isolamento e perda das prote- de individuação, talvez seja, de fato,a desagregação do enqua-
dramento coletivo”!®. Também se poderia ver, no exemplo
ções””. A mesma disparidade é encontrada na vida social. E
enunciar um lugar-comum da sociologia lembrar que alguns ideal-tipico do jovem toxicômano de subúrbio, o homélogo
grupos, que pertencem às classes médias, tém uma relação de da forma de desfiliação que o vagabundoda sociedade pré-in-
familiaridade, até mesmo uma relagao complacente, com uma dustrial encarnava. É completamente individualizado e supe-
cultura da individualidade que se traduz pelo interesse dedi- rexposto pela falta de vinculos e de suportes em relação ao
cado a si mesmo e a seus afetos e pela propensio a lhes subor- trabalho, à transmissio familiar, à possibilidade de construir
dinar todas as outras preocupagdes. É o caso da “cultura do um futuro... Seu corpo é seu único bem e seu único vinculo,
narcisismo”" ou do modo da “terapia para os normais”"* re- que ele trabalha, faz gozar e destr6i numa explosão de indivi-
presentada pela posteridade da psicanilise durante os anos 70. dualismo absoluto.
Mas, como a do vagabundo, essa imagem nao vale senão
Mas 20 mesmo tempo, era facil mostrar que essa preocupação
consigo mobilizava um tipo especifico de capital cultural e porque introduz ao máximo tragos que sio encontrados em
encontrava fortes “resisténcias” nos meios populares, simul- numerosas situacoes de inseguranca e de precariedade quese
taneamente porque estavam mal equipados para dedicar-se a traduzem através das trajetorias estremecidas, feitas de buscas
eles e também porque seus investimentos principais se dirigiam inquietas para se virar no dia-a-dia. Para muitos jovens, em
especial, é necessdrio tentar esconjurar 4 indeterminacdo de
para outros pontos.
sua posigio, isto é, escolher, decidir, encontrar um jeito e pre-
servar uma preocupagio consigo para nio se afundar. Essas
n° 61, setembro-ou-
" Xavier, Gaulier, “La murtation des âges”, Le Débat, experiéncias parecem estar nas antipodas do culto do eu, de-
tubro, 1991. senvolvido pelos adeptos da performance ou pelos explora-
12 Cf A. Supiot, Critique du droit du travail, op. cit.
13 C. Lash, The Culture of Narcissism, Nova York, W W Norton and Co., 1979. 15 Cf. A. Ehrenberg, Le culte de la performance, Paris, Calmann-Lévy, 1991.
* R. Castel, ].-F. Le Cerf, “Le phénomene psy et la société frangaise”, Le
16 M. Gauchet, “La société d'inséeurité”, loc. cit., p. 175.
Débat, nºs 1, 2 e 3, 1980.
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dores dos arcanos da subjetividade. Não deixam de ser aven- muitos choques, a passagem da sociedade industrial para a
turas de alto risco de indivíduos que, antes de tudo, se tornaram sociedade salarial.
tais por subtração. Esse novo individualismo não é uma imi- Esse modo de articulagio individuo-coletivo, que nao deve
tação da cultura psicológica das categorias cultas, ainda que ser mistificado mas que, apesar de tudo, manteve o “compro-
possa tomar emprestados alguns de seus traços /. Individuali- misso social” até o inicio dos anos 70, é colocado numa situa-
dade de certo modo superexposta, e mais colocada à frente, à ção dificil pelo desenvolvimento do individualismo e pela
medida que é mais frágil e ameaçada de decomposição. Corre, formagio de novos modos de individualizagio. Porém, tal pro-
portanto, o risco de ser carregada como um fardo. cesso apresenta efeitos contrastantes, pois reforga o individua-
Essa bipolaridade do individualismo moderno propõe um lismo “positivo” e, ao mesmo tempo, dá origem a um
esquema para compreender o desafio com que hoje se defronta individualismo de massa minado pela nao-seguridade e pela
a sociedade salarial. A aquisição fundamental desta formação auséncia de protegoes.
social consistiu, para dizer uma última vez, em construir um Em semelhante conjuntura, as formas de administragao do
continuum de posições sociais não iguais mas comparáveis, social sio profundamente transformadas e o recurso ao con-
isto é, compativeis entre si e interdependentes. Maneira, e única trato e o tratamento localizado dos problemas voltam maciga-
maneira que encontrei, pelo menos até hoje, de atualizar a mente. Isso não se dá por acaso. A contratualizagio traduz, e
idéia teorizada sob a III República de uma “sociedade de se- a0 mesmo tempo impulsiona, uma recomposigio da troca so-
melhantes”, isto é, de uma democracia moderna, para torná-la cial de modo cada vez mais individualista. Paralelamente, a
compatível com as exigências crescentes da divisão do trabalho localizagio das intervengdes encontra uma relagao de proxi-
e a complexização da estratificação social. À construção de midade, entre os parceiros diretamente concernidos, que as
uma nova ordem de proteções, inscrevendo os indivíduos em regulagoes universalistas do direito tinham diluido. Mas, no
coletivos abstratos, cortados das antigas relações de tutela e sentido préprio do termo, essa recomposigao é ambigua, por-
dos pertencimentos comunitários diretos, pôde assegurar, sem que se presta a uma dupla leitura.
Esse novo regime das politicas sociais pode, de fato, ser
interpretado parcialmente a partir da situação de antes das
proteções, quando os individuos, inclusive os mais carentes,
1 É assim que uma referéncia muito particular ao “cultural” ocupa, amiúde,
um lugar importante nessas vidas entregues ao aleatório — não a cultura dos
deviam enfrentar com seus préprios meios os sobressaltos de-
que fregiientam os museus ou concertos para melémanos, mas uma busca vidos ao nascimentoda sociedade industrial. “Faga um projeto,
continua para montarum espetdculo ou formarum grupo musical, por exem- envolva-se na busca de um emprego, de uma moradia, em suas
plo, perpassada pela esperanga meio fantasiosa de um dia ser reconhecido,
tendo, no fundo, sem dúvida, uma vaga identificacio com a boemia eplst‘idlca combinagdes para criar uma associagio ou langar um grupo
que alguns dentre os maiores artistas experimentaram antes que um dia, de de rap, e o ajudaremos”, é o que se diz hoje. Esta injungao
repente, a glória os imortalizasse. Seguramente bem poucos jovens sairão perpassa todas as politicas de inserção e assumiu, com o con-
vitoriosos desses “espaços intermediários”, mas há aí um exemplo dessas
aventuras “subjetivas” acalentadas primeiro no vazio de uma falta (de uma
trato de inser¢io do RMI, sua formulagio mais explicita: um
falta de trabalho em primeiro lugar, porque, há vinte anos, a maior parte subsidio e um acompanhamento contra um projeto. Mas não
desses jovens de origem popular teria ido diretamente aprender uma pro- serd necessario se perguntar, como no caso das primeiras for-
fissio ou para a fibrica) que, entretanto, não são desprovidas de coragem
e, algumas vezes, de grandeza. Sobre a noção de “espagos intermedidrios”, mas de contrato de trabalho no inicio da industrializagao, se
cf. L. Rouleau-Berger, La ville intervalle, op. cit. a imposição dessa matriz contratual não equivale a exigir dos

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indivíduos mais desestabilizados que se conduzam como su- } tutelares, cuja figura limite Karl Polanyi descreveu sob o nome
jeitos autônomos? Porque “montar um projeto profissional”, de “servidio paroquial” (parish serfdom) das poor laws ingle-
ou, mais ainda, construir um “itinerario de vida”, nio é uma sas. Que garantias se tem de que os novos dispositivos “trans-
coisa evidente quandose está, por exemplo, desempregado ou versais”, “de parcerias”, “globais” etc. não dardo origem a
ameacado de ser expulso da moradia. Na realidade, H
é uma . formas de neopaternalismo? Evidentemente, “o eleito local”
exigência que muitos sujeitos bem integrados teriam muita raramente é um déspota local, e o “chefe de projeto” nao é
dificuldade em assumir, porque sempre seguiram trajetórias uma senhora patrocinadora. Mas o desvio histérico ensina
balizadas'. É verdade que esse tipo de contrato em geral é que, até hoje, sempre existiram “pobres bons” e “pobres
ficticio, porque o impetrante dificilmente esta i altura de se- maus”, e que tal distingio é baseada em critérios morais e
melhante exigéncia. Mas entao o agente social é que é juiz da pslcologlcus. Sem a mediagio de direitos coletivos, a indivi-
legitimidade do que funciona como contrato e concede, ou dualizagio das ajudas e o poder de decisao fundado sobre in-
nao, asubvencao financeira em fungao dessa avaliagao. Exerce, terconhecimentos, tendo em vista as instancias locais, correm
assim, uma verdadeira magistratura moral (porque se trata, sempre o risco de encontrar a velha l6gica da filantropia: jure
em ultima andlise, de avaliar se o solicitador “merece” de fato fidelidade e será socorrido.
o RMI), muito diferente da atribuição de uma subvengio para Mas o préprio direito social se particulariza, se individua-
coletivos detentores de direito, anénimos certamente, mas ao liza, pelo menos a medida que uma regra geral pode indivi-
menos garantindo a automaticidade da distribuigao. dualizar-se. Assim, o direito do trabalho, por exemplo, se
Os mesmos riscos de que a individualizagio dos procedi- fragmenta, recontratualizando-se ele préprio. Aquém das re-
mentos é portadora ameagam a outra transformagio decisiva gulações gerais que dio um estatuto ¢ uma identidade forte
dos dispositivos da intervengdo social, representada por sua aos coletivos de assalariados, a multiplicagao das formas par-
territorializagao. Este movimento vai muito além da descen- ticulares de contratos de trabalho ratifica a balcanizagao dos
tralização, visto que se delega poder as instâncias locais para tipos de relagio com o emprego: contratos de trabalho por
priorizarem os objetivos, definirem projetos e negociarem sua tempo determinado, interino, de tempo parcial etc. As situa-
realização com os parceiros concernidos. Em último caso, o goes intermedidrias entre emprego ¢ ndo-emprego também
local torna-se também global. Mas a novidade dessas politicas constituem objeto de novas formas de contratualizagio: con-
não exclui algumas homologias com a estrutura tradicional da tratos de volta ao emprego, contratos emprego- -solidariedade,
protegao proxima. Esta forma mais antiga da assisténcia, da contratos de reinser¢ao em alternancia... Estas últimas medi-
qual foram examinadas varias modalidades histéricas, já pas- das sao particularmente significativas da ambigiiidade dos pro-
sava pelo que teria sido possivel chamar de negociagao, se a cessos de individualizagio do direito e das protegoes. Por
palavra entao existisse. Realmente, aquele que pedia um so- exemplo, o contrato de retorno ao emprego concerne “as pes-
corro sempre tinha que fazer reconhecer seu pertencimento soas que encontram dificuldades particulares de acesso ao em-
comunitario. Masa qualidade de préximo (cf. capitulo I, “Meu prego” (artigo 1. 322-4-2 do Cédigo do Trabalho). E, portanto,
préximo é o préximo”) insere-o num sistema de dependéncias a especificidade de algumas situações pessoais que abre o aces-
so a esse tipo de contrato'’. Essa abertura de um direito é assim
"% Cf. ].-F. Noêl, “Linsertion en attente d'une politique”, in J. Donzelot,
Face à l'exclusion, op. cit. Y CE A. Supior, Critique du droit du travail, op. cit., p. 97.
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AS METAMORFOSES NA QUESTÃO SOCIAL O INDIVIDUALISMO NEGATIVO

subordinada à constatação de uma deficiência, de “dificulda- dar: vive-se mais à vontade a própria individualidade a medida
des particulares”, de natureza pessoal ou psicossocial. Ambi- que esta se apóia em recursos objetivos e protegdes coletivas.
giiidade profunda, porque o exercicio de uma discriminação Af se situa o cerne da questio suscitada pelo desmorona-
positiva em relação a pessoas em dificuldadeé absolutamente mento da sociedade salarial, pelo menos de seu modelo do
defensável: podem ter necessidade de uma requalificação antes inicio dos anos 70. É o cerne da questio social hoje.
de voltar para o regime comum. Porém, ao mesmo tempo, Nio se pode haver denunciado a hegemonia do Estado
esses procedimentos reativam a lógica da assistência tradicio- sobre a sociedade civil, o funcionamento burocritico e a ine-
nal que o direito do trabalho havia combatido, isto é, para ser ficicia de seus aparelhos, a abstração do direito social e sua
assistido, é necessário manifestar os sinais de incapacidade, impoténcia para suscitar solidariedades concretas e, depois,
uma deficiência em relação ao regime comum do trabalho. condenar transformagées que levam em conta a particularida-
Como no caso do RMI e das políticas locais, esse tipo de re- de das situagbes e que, para isso, fazem apelo a mobilizagio
curso ao contrato ameaga trair a impoténcia do Estado para dos sujeitos. Alids, seria initil, pois esse movimento de indi-
controlar uma sociedade cada vez mais complexa e heterogê- vidualizagio é sem dúvida irreversivel. Porém nio se pode
nea através de adiamento, por artifícios singulares, de tudo o mais, por achar que não será necessario enfrentar o problema,
que as regulações coletivas não podem mais comandar. negligenciar o estudo do custo dessas transformagées para al-
Essa ambigiiidade atravessa a recomposição das politicas gumas categorias da populagio. Quem nio pode pagar de ou-
sociais e das politicas do emprego que está em curso há majs tro modo deve, continuamente, pagar com sua pessoa, o que
ou menos 15 anos. Para além da “crise”, se enraiza num pro- é um exercicio extenuante. Vé-se muito esse mecanismo nos
fundo processo de individualizagao que também afeta os prin- procedimentos de contratualizagio do RMI: o solicitador não
cipais setores da existéncia social. Assim, seria possivel fazer tem nada mais a apresentar senão o relato de sua vida, com
o mesmo tipo de andlise a propósito das transformagoes da seus fracassos e suas privagoes: escruta-se este pobre material
estrutura familiar. A familia “moderna” se fecha em torno de para identificar uma perspectiva de reabilitagio a fim de “cons-
sua rede relacional, as relagdes entre seus membros, desde esses truir um projeto”, de definir um “contrato de inser;fio”z’. Os
últimos anos, estio contratualizadas sobre uma base pessoal. fragmentos de uma biografia esfacelada constituem a única
Porém, como observa Iréne Théry™, essa “libertagao” da fa- moeda de troca para o acesso a um direito. Não é verdade que
milia no que diz respeito às tutelas tradicionais produz efeitos esse tratamento do individuo convenha a um cidadio pleno.
diferentes conforme os tipos de familia, e os membros das Assim, a contradição que atravessa o processo atual de
familias economicamente mais precdrias e socialmente mais individualizagio é profunda. Ameaga a sociedade de uma frag-
carentes podem fazer a experiéncia negativa da liberdade mentação, que a tornaria ingovernavel, ou de uma polarizagio
quando ocorre, por exemplo, uma ruptura conjugal, uma se- entre os que podem associar individualismo e independéncia, —
paragioou uma degradagao do status social. O fato, aqui como porque sua posigao social estd assegurada, e os que carregam
alhures, de existir como individuo nio é um dado imediato
da consciéncia. Paradoxo cuja profundidade é necessirio son-
M Cf, 1. Astier, Revenu minimum et souci d’insertion: entre le travail, le
domestique et lintimité, tese de doutorado em Sociologia, Paris, EHESS,
20 Cf. 1. Théry, Le démariage, op. cit. 1994,

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sua individualidade como uma cruz, porque significa falta de tencimento de todos a uma mesma sociedade. Realmente,
vinculos e auséncia de protegoes. quando o navio faz dgua, cada um tem que despejar a dgua
Sera possivel aceitar esse desafio? Ninguém pode afirmar pelo vertedouro. Mas, em meio às incertezas que hoje são
com absoluta certeza. Mas cada um poderia convir quanto a muito numerosas, pelo menos uma coisa é clara: ninguém pode
via que é necessdrio trabalhar. O poder público é a única ins- substituir o Estado em sua função fundamental que é comandar
tancia capaz de construir pontes entre os dois pólos do indi- a manobra e evitar o naufragio.
vidualismo e impor um minimo de coesio a sociedade. As
coerções impiedosas da economia exercem uma crescente
pressão centrifuga. As antigas formas de solidariedade estao
esgotadas demais para reconstituir bases consistentes de resis-
téncia. O que a incerteza dos tempos parece exigir não € menos
Estado — salvo para se entregar completamente as “leis” do
mercado. Também não é, sem dúvida, mais Estado —salvo para
querer reconstruir à força o edificio do inicio da década de
70, definitivamente minado pela decomposicao dos antigos
coletivos e pelo crescimento do individualismo de massa. O .
recurso ¢ um Estado estrategista que estenda amplamente suas
intervencdes para acompanhar esse processo de individualiza-
ção, desarmar seus pontos de tensdo, evitar suas rupturas ¢
reconciliar os que cairam aquém da linha de flutuagao. Um
Estado até mesmo protetor porque, numa sociedade hiperdi-
versificada e corrofda pelo individualismo negativo, não hd
coesdo social sem protecdo social. Mas esse Estado deveria
ajustar o melhor possivel suas intcrvengdes, acompanhando
as nervuras do processo de individualizagao.
Apresentar essa exigéncia não € esperar que uma nova
forma de regulagio estatal desca pronta do céu, porque, como
também se sublinhou, partes da ação piiblica tentaram trans-
formar-se nesse sentido há mais ou menos 15 anos. Mas tudo
se passa como se o Estado social oscilasse entre tentativas de
expansio para fazer face a0 que a situação atual comporta de
inédito e a tentagio de abandonar a outras instincias — a em-
presa, à mobilizagdo local, a uma filantropia bizarramente co-
berta de novos ouropéis e, inclusive, aos recursos que os
proprios órfãos da sociedade salarial deveriam desenvolver —
a responsabilidade de realizar seu mandato de fiador do per-

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