Você está na página 1de 2

Maputo , 19 de Março de 2012 Boletim Nº41

IDeIAS
Informação sobre Desenvolvimento, Instituições e Análise Social

Estado e Informalidade: Como Evitar a “Tragédia dos Comuns” em Maputo?


António Francisco
Uma sociedade que não é capaz de criar uma empurrados para uma 3ª revolta popular, se a recursos naturais (Assembleia da República
estrutura de direitos privados efectiva, sua intransigência inicial se mantivesse; uma 2004).
abrangente e inclusiva, encontra geralmente no revolta que poderia ser igual ou pior às revoltas Todavia, Maputo lidera actualmente um
intervencionismo estatal a forma de compensar de 5 de Fevereiro de 2008 e 1-3 de Setembro de importante processo de transformação afirmativa
tal incapacidade. Estabelece uma organização 2010. e efectiva da correlação de forças a favor dos
social na qual os comportamentos individuais Significa, assim, que Simango teve bom senso, direitos privados, a todos os níveis: fundiário,
são directamente regulados pelo Estado ou ou pelo menos suficiente humildade, para recuar. imobiliário e outros mercados, incluindo as
indirectamente influenciados pela educação “O princípio da cura”, como escreveu Pessoa actividades do empresariado emergente.
cívica (Alchian & Demsetz 1973; Alston & Mueller (1928), “está na consciência da doença, o da Se a maioria dos empresários emergentes são e
2005). verdade no conhecimento do erro”. Brás (2012) permanecem extralegais muito se deve à
E se o Estado não consegue implementar a referiu, recentemente, algumas das doenças da incapacidade das autoridades municipais e
alternativa, acima referida? Esta questão é urbanidade em Maputo, resultantes de traumas e centrais desenvolverem condições para que
discutida nesta nota, tendo como foco a recente patologias históricas e recentes, incluindo certas beneficiem da formalização. Enquanto isso, os
tensão entre a edilidade da Cidade de Maputo políticas implementadas após a Independência espaços urbanos chamados públicos são cada
(daqui em diante apenas Maputo) e os Nacional, imbuídas de sérios preconceitos sobre vez mais escassos, devido à urbanização e
chamados informais, em que o Presidente do as cidades moçambicanas: “bastião do dinâmicas demográficas e económicas, mas
Município chegou a dar um ultimato de 48 horas capitalismo, da burguesia, dos maus hábitos que também à transformação da estrutura de direitos
para a remoção das barracas e bancas dos o capitalismo e a burguesia trouxeram” (Brás de propriedade.
passeios da urbe. 2012).
3. A TRAGÉDIA DOS COMUNS
1 .GUERRA… QUE GUERRA? 2. DIREITOS URBANOS DE PROPRIEDADE A natureza dos bens colectivos, comunitários e
O recente conflito, entre a autoridade municipal Numa sociedade com uma estrutura de direitos sobretudo privados é muito diferente da natureza
em Maputo e os empresários urbanos privados, efectiva e inclusiva, os direitos de dos bens comuns ou de acesso livre. Os direitos
emergentes, vulgarmente chamados informais, propriedade integram-na regulando, formal e colectivos (e.g. cooperativas) e comunitários
tem sido retratado como um combate ou mesmo informalmente, a alocação dos recursos. Direitos (e.g. terra comunitária rural ou condomínio
guerra (Langa 2012; Massala 2012). de propriedade variam entre o acesso livre e o imobiliário urbano) impõem custos e benefícios
De imediato, falar de “guerra” é um exagero; mas direito privado devidamente especificado. O aos grupos elegíveis aos activos. De forma mais
pensando bem, podemos concordar que nem acesso livre significa que qualquer pessoa pode precisa, bens privados efectivos responsabilizam
todo o exagero linguístico é descabido. Não utilizar o activo, independentemente de como tal o indivíduo, tanto nos benefícios como nos
sendo maledicente, ele alerta para o risco de uso afecta os outros. O direito privado prejuízos.
certos conflitos se agravarem. Neste sentido, é completamente especificado compreende um Em contrapartida, os direitos comuns ou acesso
útil e saudável, mesmo se em nada ajuda a conjunto de direitos individuais, incluindo: uso do livre tendem a privatizar os benefícios, mas
explicar o conflito em causa. activo; exclusão dos outros do uso do mesmo comunizam ou socializam os prejuízos. A isto o
Á semelhança dos conflitos sociais que activo; captação dos seus rendimentos; e ecologista Garret Hardin (1998) chamou tragédia
degeneram em violência ou guerras, a transferência do activo, por venda, doação ou dos comuns, um conceito criado muito antes,
informalidade é também uma questão de vida ou outras formas de alienação. Entre o acesso livre mas por ele popularizado como ninguém. Este
de morte. Está em causa a sobrevivência e e o direito privado existe uma série de regras conceito tem inspirando imensa investigação, a
direitos básicos de milhares de pessoas. Por comuns, configuradoras de vários regimes de favor e contra, que não é possivel abordar aqui;
isso, num sentido figurado, de guerra se pode propriedade, como seja: comunitário ou importa apenas destacar o dilema por ele
falar, quando a natureza do desenvolvimento consuetudinário, cooperativo, público ou comum ilustrado.
urbano ameaça a economia e estabilidade de (Alchian & Demsetz 1973; Alston & Mueller 2005; A tragédia dos comuns é uma espécie de
uma força social crescentemente poderosa como Hardin 1998; Soto 2002). armadilha social resultante do conflito em que
já é, em Maputo, a força dos chamados Em Moçambique, os direitos de propriedade vários indivíduos, agindo independente e
informais: transportadores, comerciantes, reais ou de facto mais dominantes são os racionalmente, acabam por devastar o recurso
pequenos industriais e outros trabalhadores direitos comunitários, enquanto os direitos por eles compartilhado como bem comum,
liberais. privados circunscrevem-se ainda a uma porção mesmo quando não é do seu interesse que tal
Reconhecer o mérito do recente recuo de David limitada de bens económicos. Mas mais aconteça. A consequência é sinistra: sobre-
Simango, ao dar o dito pelo não dito e contrariar significante, todavia, é que todos os regimes de exploração e esgotamento do recurso. Muitos
sua anterior posição é definitivamente mais propriedade reais encontram-se subordinados, bens económicos encaixam-se no conceito de
importante do que reafirmar que perdeu a por i m pe rat i v o c o ns t i t uc i on al , ao tragédia dos comuns: pesca e abate de madeira
guerra. Mérito, porque provavelmente poupou os intervencionismo estatal. Legalmente, o Estado é descontrolados; excesso de densidade
munícipes da capital do País de serem o único e exclusivo proprietário da terra e demais desregulada nos bairros suburbanos;

1.Hardin usou como metáfora uma pastagem aberta a todos. Como a entrada é livre, ninguém individualmente pode barrar os outros. Eventualmente, o benefício é captado
individualmente, mas o custo é comunizado. De forma suicida, os usuários do pasto são estimulados a tirarem o máximo benefício possível, até que o pasto acabe. A
tragédia dos comuns resulta, assim, do que Hardin designou por “responsabilidade negativa”, a qual incentiva as pessoas a decidirem e agirem em detrimento da
preservação e valorização dos recursos.
IESE - Instituto de Estudos Sociais e Económicos; Av. Patrice Lumumba Nº178, Maputo, Moçambique
Tel: +258 21328894; Fax: +258 21328895; Email: iese@iese.ac.mz; http://www.iese.ac.mz
Isento de Registo nos termos do artigo 24 da Lei nº 18/91 de 10 de Agosto
engarrafamentos no trânsito e ocupação recente desmonstração de força social dos muito diferente do “deixa andar” que as
descontrolada dos passeios e ruas das cidades chamados informais, à qual o poder político e autoridades políticas têm aplicado, recorrendo ao
por vendedores extralegais. burocrático municipal não resistiu (Brás 2012). poder centralizador, dirigista e controlador
Não é possível, neste breve texto, debater as Obviamente, o risco das transformações na assente nos recursos públicos que controlam.
sérias implicações da gestão não estrutura da propriedade enveredarem pela Um novo tipo de “deixa andar” assente no maior
responsabilizadora dos “bens públicos”, exclusão, em vez da inclusão social, é grande, respeito e defesa dos direitos privados, tanto em
convertidos em bens comuns ou de acesso livre. por causa da forte resistência do Estado em termos de segurança pessoal e civil como da
Porém, uma ideia muito difundida merece ser reconhecer e garantir direitos privados efectivos. propriedade, quer nas zonas mais ricas, quer nas
questionada. A ideia de que a informalidade foi Voltando à questão levantada no início deste zonas suburbanas, onde a insegurança é
causada pela liberalização da economia nacional, texto. E se o Estado falha na sua aspiração de particularmente trágica.
no contexto do Programa de Reabilitação controlar a alocação dos recursos que os direitos Nas actuais condições de vida em Maputo parece
Económica (PRE) de 1987. O que o PRE fez foi de propriedade devem regular, como ficarão as que só resta esperar pela próxima vez: Quando e
expor um mercado oculto numa economia falida, cidades? qual será a próxima vez em que a dimensão do
fruto de políticas públicas implementadas desde Resta, ao Estado, uma alternativa mais pântano institucional voltará a ser testada?
a Independência e que a guerra civil agravou. Na construtiva. Reconhecer à sociedade seu direito Todavia, crescem sinais de que Maputo vem
verdade, entre os principais determinantes da de se organizar por si própria, regulando sem acumulando urbanidade suficiente, para não
informalidade urbana figuram, por exemplo, as obstruir o desenvolvimento de uma estrutura de precisar de continuar a esperar passivamente, ou
nacionalizações de 1975 e 1976; o controlo direitos de propriedade adequada ao presente e simplesmente rezar que o pior não aconteça.
administrativo do mercado, incluindo preços, futuro e, definitivamente, muito melhor do que no Maputo não pode continuar refém do “Neo-
taxas de juro, comércio, finanças e fiscalidade, passado. Não só no passado remoto, o colonial, Moçambicano” que tanto indignou o poeta José
entre outros (Francisco 2010). em que a maioria dos cidadãos suburbanos se Craveirinha. Refém, em particular, da provinciana
Desde 1990 o Estado vem tentando superar os concentrava nos arredores das cidades para “Hesitação/ Entre ser pior ou péssimo/ Da nossa
efeitos negativos das nacionalizações nos servir uma pequena elite. Também em relação ao extemporânea/ Filosofia de quem sabe pouco/ E
mercados imobiliário, laboral e financeiro. passado recente, tanto o socialista como o julga escamotear no descaro/ A urbanidade que
Contudo, o espetro das nacionalizações continua período de intervencionismo estatal, em curso. lhe escasseia” (Craveirinha 2008).
vivo, activo e agravado pelo monopólio estatal Após quase quatro décadas de independência a
fundiário. Por isso, os espaços comuns, nos legalidade constitucional continua a não 5. Referências
prédios, quintais e outros, continuam tratados reconhecer a legitimidade dos direitos de Alchian, G.A.A. & Demsetz, H., 1973. The Property
como “sem dono” ou de “ninguém”. propriedade praticados pelos cidadãos, os quais Right Paradigm. The Journal of Economic
Nas ruas e passeios, os munícepes circulam por seu turno não reconhecem a legitimidade do History, 33(1), pp.16–27.
Alston, L.J. & Mueller, B., 2005. Property Rights and the
livremente com seus veículos de todos os tipos monopólio estatal sobre os seus recursos. Nas
State. In C. Ménard & M. M. Shirley, eds. Hand-
(camiões, carros, bicicletas, carroças cidades, os munícipes procuram extrair os book of New Institutional Economics.
ambulantes, etc.); parqueia-se nos passeios, em benefícios da troca, seja de mercadorias, Netherlands: Springer, pp. 573–590.
total desrespeito pelos traseuntes, excepto nos incluindo a terra, seja de ideias e outras relações Assembleia da República, 2004. Constituição, assin.
locais cirurgicamente seleccionados por agentes sociais; os trabalhadores laboram e circulam em 16 de Novembro de 2004. BR no 051, I
municipais interessados em extorquir os livremente; mas ocupam os espaços comuns e Série, de 22 de Dezembro de 2004, pág. 543 a
cidadãos. Simultaneamente, os vendedores públicos, a título precário. Uma rápida visita aos 573, www.atneia.com.
extralegais conquistaram plena liberdade de bairros suburbanos de Maputo mostra uma Brás, E., 2012. David Simango Tentou Desafiar uma
Força Muito Poderosa. Expresso Moz, No 37,
acção fora dos mercados convencionais, realidade caótica confrangedora, em múltiplos
Março 13, pp.12–13.
incluindo à porta de estabelecimentos comerciais, aspectos: laboral, fontes de renda, salubridade e Couto, M., 2012. Os Chapas e a Tirania do
legalmente reconhecidos. Ou ainda, nas praias e condições sociais, entre outros. Conformismo. Savana, No 948, Março 09, pp.28
ruas, existe liberdade plena e impune para deitar É amplamente reconhecido, no domínio científico –29.
lixo, coisa que não é feita em casa. e também político, que o tipo de informalidade Craveirinha, J., 2008. “Boletim da República” - Neo-
prevalecente em Moçambique é uma péssima Moçambicano. In Naguib, ed. Não Matem a
4.Por Um Novo “Deixa Andar” opção de desenvolvimento, em vários sentidos: Cultura. Não Matem o Craveirinha. Maputo:
O fenómeno da informalidade tem inspirado 1) A maioria dos informais permanece precária, a Spectrum Graphics Limitada, p. 63.
Francisco, A., 2010. Moçambique: Protecção Social no
reflexões sociológicas e culturais, por vezes curto prazo, e empobrecida, a longo prazo; 2)
Contexto de um Estado Falido mas não
interessantes e bonitas, mas nem sempre Para alguns informais é compensadora, mas Falhado. In L. de Brito et al., eds. Protecção
esclarecedoras (e.g. o conceito obscuro de insegura, frágil e dispendiosa; 3) Um pequeno, Social: Abordagens, Desafios e Expectativas
“construção do inevitável” de Couto (2012)). A talvez muito pequeno mas relevante grupo usa a para Moçambique. Maputo: IESE, pp. 37–95.
razão principal é circunscreverem-se às informalidade como trampolim para actividades www.iese.ac.mz.
aparências e manifestações superficiais dos delituosas e criminosas, muito prejudiciais à Francisco, A. & Paulo, M., 2006. Impacto da Economia
fenómenos, ignorando a estrutura de propriedade sociedade. Nestas circunstâncias, a almejada Informal na Protecção Social, Pobreza e
em que se alicerçam. melhoria do ambiente de negócios dificilmente Exclusão: A dimensão oculta da informalidade
em Moçambique. www.iid.org.mz/
Em Maputo as políticas estatais de expropriação poderá ser alcançada, porque o problema está
impacto_da_economia_informal.pdf.
e violação dos direitos privados são cada vez no ambiente de mercado mau e obstruido. Hardin, G., 1998. Extension of The Tragedy of the
menos toleradas pelos citadinos. Isto reflecte a (Francisco & Paulo 2006; Soto 2002). Commons. The Garrett Hardin Society.
crescente transformação em curso na estrutura Seria um sinal de grande maturidade urbana e w w w . g ar r et t h ar d in s o c i et y . o r g/ ar t ic l es /
de direitos de propriedade e maior valorização cívica se os empresários emergentes passassem art_extension_tragedy_commons.html.
desta enorme invenção humana chamada da contestação ou reacção impulsiva (sobretudo Langa, J., 2012. Por que Simango perdeu a guerra com
cidade. o tipo de revoltas populares destrutivas já os informais? O País Online, p.20.
A correlação de forças a favor do reconhecimento observadas), para uma afirmação efectiva de Massala, Z., 2012. Informais Derrotam Simango.
Savana No. 948, Março 09, p.2.
dos direitos privados é inquestionável e não seus direitos. O reconhecimento de direitos de
Pessoa, F., 1928. O Provincianismo Português. Arquivo
beneficia somente os mais ricos, poderosos e propriedade, legal e formalmente garantidos, em
Pessoa. http://arquivopessoa.net/textos/2978.
previlegiados. Também os empresariados vez de meros direitos de posse, mobilidade e Soto, H. de, 2002. O Mistério do Capital: Porque Triunfa
emergentes e generalidade dos consumidores inquilinato fundiário, poderá conduzir ao tipo de o Capitalismo no Ocidente e Fracassa no Resto
estão a tornar-se social e economicamente mais empoderamento necessário para se evitar a do Mundo 1a Edição., Lisboa: Editorial Notícias.
soberanos e capazes de imporem seus direitos, tragédia dos comuns em Maputo.
em prol de políticas mais efectivas, no lugar de Se tal afirmação activa acontecer, significará que
meros jogos políticos.Testemunham-no as os munícipes de Maputo passarão a desenvolver
revoltas populares, acima referidas, bem como a um novo tipo de “deixa andar”. Um “deixa andar”

IESE - Instituto de Estudos Sociais e Económicos; Av. Patrice Lumumba Nº178, Maputo, Moçambique
Tel: +2581 328894; Fax: +2581 328895; Email: iese@iese.ac.mz; http://www.iese.ac.mz
Isento de Registo nos termos do artigo 24 da Lei nº 18/91 de 10 de Agosto

Você também pode gostar