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ANO 12 / NÚMERO 144 R$ 18,00

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DOSSIÊ ESPECIAL QUAL A SUA RAÇA? ESTADO DE CHOQUE
O FUTURO DA POLÊMICAS SOBRE MORRER ANTES
INDÚSTRIA O CENSO NOS EUA DA MORTE
POR LAURA RAIM E OUTROS POR BENOÎT BRÉVILLE POR FÁBIO MALLART

LE MONDE
00144

9 771981 752004

diplomatique
BRASIL
2 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2019

ONDA VERDE?

Ecologia contra o livre-comércio


POR SERGE HALIMI*
© Alves

O
relativo sucesso dos ambienta- de monóxido de carbono na atmosfe- protecionismo nas fronteiras da União eurodeputados na União Europeia te-
listas na eleição do Parlamento ra. Senão deveríamos desligar agora Europeia”.3 As possíveis consequências rão de ratificar – ou então, esperançosa-
Europeu (eles detêm 10% dos mesmo!”.1 E, dez anos antes dele, Gary de tal mudança de curso são medidas mente, rejeitar – um acordo de liberali-
assentos) despertou um antigo Becker, outro crítico vigoroso do que tendo em vista que o livre-comércio zação comercial com quatro países
debate sobre o posicionamento políti- ainda não era chamado de “ecologia constitui o princípio histórico fundador latino-americanos, entre os quais o Bra-
co desse movimento. Ele é mais de es- punitiva”, também ele Nobel de Eco- da União Europeia e, ao mesmo tempo, sil e a Argentina (UE-Mercosul), outro
querda, como sugere a maioria das nomia, considerava que “a legislação o pulmão econômico de seu Estado com o Canadá (Ceta) e um terceiro com
alianças que estabeleceu até agora, ou trabalhista e a proteção do meio am- mais poderoso, a Alemanha. a Tunísia (Aleca). Veremos então se uma
mais liberal, como indicam a um só biente tinham se tornado excessivas A partir de agora, todos sabem que “onda verde” realmente cobriu as terras
tempo o alinhamento com Emmanuel na maioria dos países desenvolvidos”. o elogio, que se tornou consensual, aos do Velho Continente.
Macron de vários ex-líderes ecologis- Mas ele descontou isto: “O livre-co- produtores locais, aos “circuitos cur-
tas (Daniel Cohn-Bendit, Pascal Can- mércio reprimirá alguns desses exces- tos”, à reciclagem de resíduos no local *Serge Halimi é diretor do Le Monde
fin, Pascal Durand) e algumas coali- sos, forçando todos a permanecer é incompatível com um modo de pro- Diplomatique.
zões que na Alemanha já incluem a competitivos diante das importações dução e troca que multiplica as “ca-
direita e os verdes? dos países em desenvolvimento”.2 deias de valor”, isto é, organiza o inces-
A priori, o liberalismo e a proteção É compreensível, portanto, que as sante ir e vir de contêineres nos quais
do meio ambiente deveriam formar ansiedades sobre o futuro do planeta te- os componentes do mesmo produto 1 Entrevista com Henri Lepage, Politique internatio-
um casal repulsivo. Em 2003, um teóri- nham reabilitado o termo “protecionis- “atravessarão o Pacífico três ou quatro nale, n.100, Paris, verão de 2003.
co liberal tão essencial quanto Milton mo”, por tanto tempo reprovado. Na vezes antes de chegar às prateleiras de 2 Gary Becker, “Nafta: the pollution issue is just a
smokescreen” [Nafta: a questão da poluição é
Friedman concluiu: “O ambiente é um França, durante um debate sobre a uma loja”.4 apenas uma cortina de fumaça], Business Week,
problema amplamente superestima- campanha das eleições europeias, os As oportunidades para confirmar, 9 ago. 1993. Citado em Le Grand bond en arrière
do. [...] Nós poluímos assim que respi- cabeças de chapa socialista e ecológico pelos fatos, sua recusa de um livre-co- [O grande salto para trás], reedição Agone, Marse-
lha, 2012.
ramos. Não vamos fechar fábricas a chegaram a reclamar, quase nos mes- mércio ecologicamente destrutivo não 3 Raphaël Glucksmann, France 2, 22 maio 2019.
pretexto de eliminar todas as emissões mos termos que Marine Le Pen, “um vão faltar nas próximas semanas. Os 4 The New York Times, 31 maio 2019.
JULHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 3

EDITORIAL

A nova democracia
POR SILVIO CACCIA BAVA

© Daniel Kondo
A
convivência humana se funda pelas elites oculta todas as manifesta- cráticas novas,3 inspiradas na solida- apontam, por exemplo, para novas for-
em valores. São eles que pautam ções de protesto e resistência cidadã e riedade, na cooperação, na busca da mas de produção e consumo: são mi-
nosso comportamento, nossas exalta a ação de um Estado violento e equidade, no combate às discrimina- lhares de iniciativas que abrangem o
relações sociais. repressor, que ataca não só os cida- ções e na afirmação das diversidades, campo da economia solidária, dos cir-
Na fase atual de hegemonia do dãos, mas também a democracia. na emancipação das dominações, na cuitos curtos de produção e consumo
neoliberalismo, o que predomina é o É preciso que se diga que todo esse fraternidade, na autonomia dos sujei- que integram o urbano e o rural, da
individualismo, a competição, o egoís- processo autoritário e repressor não é tos, na construção dos bens comuns. agricultura familiar, dos bancos co-
mo, a meritocracia, as discriminações, uma particularidade do Brasil; ele é A nova democracia é o espaço para munitários, entre outros.
a visão de que você deve vencer os de- global e enfrenta a enorme insatisfa- discutir o futuro, em articulação com O que inspira essas iniciativas e
mais, no limite, eliminando-os. ção cidadã com as políticas públicas, o as representações coletivas da socie- lhes dá um sentido estratégico é a
Esses valores não combinam com a sistema político democrático liberal, dade civil, com os grupos de cidadãos perspectiva de submeter a economia a
democracia. Requerem uma ordem au- os partidos políticos e seus represen- que se organizam para a defesa de di- um novo projeto de sociedade. Em vez
toritária, anti-humanista, em que o ar- tantes eleitos. Mas, mesmo com tama- reitos, com os movimentos sociais. de termos uma economia voltada para
bítrio e a mentira deliberada (hoje em nha insatisfação e com os questiona- Superar a separação entre econo- a lucratividade dos grandes grupos fi-
dia, entre outros métodos, as fake news) mentos ao neoliberalismo e às suas mia e política e orientar as atividades nanceiros, passamos a uma sociedade
reavivam e atualizam as tradições de políticas de destituição de direitos e produtivas para a construção dos bens em que a economia se orienta para
ódio, discriminação e violência, ex- degradação ambiental, não há respos- comuns são objetivos que requerem atender às necessidades das maiorias.
pressas pelas elites e pelas classes mé- tas afirmativas da parte dos defenso- novas institucionalidades, em que o Dessa perspectiva, o trabalho ga-
dias brasileiras, que as disseminam na res da democracia e dos direitos hu- respeito aos direitos humanos e às di- nha outro sentido, oferece oportunida-
sociedade.1 Tudo é culpa do inimigo, manos. Propor o que para substituir o versidades seja um elemento central des para todos e torna-se uma forma de
que precisa ser combatido e, se possí- neoliberalismo? na formulação das políticas públicas. socialização direcionada para a cons-
vel, exterminado. A radicalização da di- Pela radicalidade desses governos A construção da contra-hegemonia trução de uma sociedade fundada no
reita, que não encontra correspondente autoritários que vão se espalhando pe- parte da disputa pelos territórios, físi- coletivo, na solidariedade, na sustenta-
entre os defensores dos direitos huma- lo mundo, como também podemos ver cos ou identitários, e da articulação de bilidade ambiental, na reconstrução
nos – portanto, não se trata de polariza- no Brasil, não há mais espaço para ne- redes emancipadoras entre eles. Por do comum perante a apropriação pri-
ção –, tem levado a violência para den- gociações, ao estilo da construção de meio do reconhecimento e da valoriza- vada dos bens e das riquezas naturais.
tro da sociedade civil. pactos sociais, como os que inspira- ção da cultura dos povos em cada terri- O comum é nosso novo ponto de
É com base nessas mentiras e na ram a social-democracia e a constru- tório e de suas formas de organização é partida. Designa uma nova forma de
manipulação de emoções que o gover- ção do Estado de bem-estar social. E, que se podem construir as teias da contestar o capitalismo, ou mesmo de
no de Jair Bolsonaro identifica as opo- se não há negociação, a alternativa é solidariedade. considerar sua superação. Identifica
sições como inimigos e que se dá a buscar a ruptura contra a opressão e a A construção de uma perspectiva um regime de práticas, lutas, institui-
construção de um imaginário que im- espoliação, e construir novos paradig- contra-hegemônica está em curso. Ex- ções e pesquisas que abrem as portas
pulsiona a vida pública real “na dire- mas, novas esperanças. pressa-se nas práticas de resistência e para um futuro não capitalista.4
ção da redução da vida política ao no- Para compor uma nova sociedade, autogoverno já presentes e cada vez
vo estado de guerra”.2 democrática e inclusiva, é preciso criar mais importantes em nossa socieda-
Esse imaginário se funda na cultu- novas formas de poder desde agora, de. Mas deve ir além. Como fazer dia- 1 Jessé Souza, A elite do atraso: da escravidão à
Lava Jato, Leya, Rio de Janeiro, 2017.
ra do medo, construída pela ação vio- novas formas de manifestação da von- logar as lutas identitárias e territoriais 2 Tales Ab’Sáber, Michel Temer e o fascismo co-
lenta das polícias; pela criminalização tade cidadã, novas e mais amplas redes com a construção de uma proposta co- mum, Hedra, São Paulo, 2018, p.45.
dos pobres e dos movimentos sociais; de mobilização e defesa de direitos. mum e maior? 3 Pierre Dardot e Christian Laval, Comum: ensaio
sobre a revolução do século XXI, Boitempo, São
pela política de extermínio de jovens A nova democracia será fundada É nesses espaços que encontramos Paulo, 2017, p.18.
negros e pobres. A mídia controlada em buscas coletivas por formas demo- iniciativas da maior importância, que 4 Pierre Dardot e Christian Laval, op. cit., p.16-18.
4 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2019

CAPA

A arquitetura da destruição:
versão tropical
Estávamos enganados quando acreditávamos que nosso conjunto de políticas e instituições ambientais era um
patamar a partir do qual só poderíamos avançar ou, no pior dos cenários, ficar estacionados. O governo Bolsonaro provou
que estávamos enganados. A novidade é um governo cuja agenda é destruir o meio ambiente
POR NURIT BENSUSAN*

© André Valias

N
esses 27 anos de existência do O descaso com a área ambiental Apesar de tudo isso, estávamos en- vaziadas. As unidades de conservação
Ministério do Meio Ambiente tem sido a regra no Brasil. Florestas ganados quando pensávamos já ter são ameaçadas pelo próprio ministro
(MMA), acreditávamos que tí- exuberantes e ecossistemas únicos visto de tudo. Estávamos também en- do Meio Ambiente, Ricardo Salles.
nhamos visto de tudo, de mi- são tratados como uma maldição a ser ganados quando acreditávamos que No entanto, o mais grave de todo o
nistros mais atuantes com políticas ultrapassada, atrás da qual se escon- nosso conjunto de políticas e institui- cenário talvez seja a narrativa que o
eficientes a governos pouco compro- deria um paraíso de desenvolvimento. ções ambientais era um patamar a circunda. Uma narrativa que prega o
metidos com o tema, nos quais só ha- A destruição da Mata Atlântica, bioma partir do qual só poderíamos avançar aniquilamento sem rodeios e funciona
via discurso. Estávamos enganados... do qual resta menos de 12%, é um lem- ou, no pior dos cenários, ficar estacio- como a vanguarda da destruição. A
No primeiro trimestre deste ano, a brete e uma prova para quem duvida nados. O governo Bolsonaro nos pro- sensação de que não há mais normas
maior floresta tropical do mundo, a da finitude do que parece infinito. vou que, de fato, estávamos engana- ambientais ou que, se elas forem in-
Amazônia, e o Cerrado, uma das sava- Ainda assim, o país construiu um dos. A novidade, nunca vista antes, é fringidas, a impunidade está garanti-
nas mais ricas do planeta, perderam importante conjunto de áreas protegi- um governo cuja agenda do MMA é da funciona como o motor da destrui-
algo em torno de 80 mil campos de fu- das, somando mais de 2,3 mil unida- destruir o meio ambiente. ção em âmbito local. Naturalmente, a
tebol de vegetação nativa. Desse total, des de conservação, que abrangem A estrutura de fiscalização e regu- destruição não se traduz apenas em
estima-se que mais de 90% seja fruto quase 30% do território continental. lação da área ambiental do país foi árvores derrubadas. Com elas, vidas
de desmatamento ilegal. Entre altos e Mesmo estando sempre ameaçadas de desmontada e o pouco que sobrou está humanas são ceifadas e a violência no
baixos, é isso que vem acontecendo ao desmatamento, degradação, descons- paralisado. Não há mais agenda de campo explode.
longo dos últimos anos, com exceção tituição e redução de limites, essas clima nem de combate ao desmata- Neste momento em que completa-
do período entre 2004 e 2012, quando o áreas representam um gigantesco pa- mento no Ministério nem em nenhu- mos seis meses de governo Bolsonaro,
desmatamento na Amazônia caiu sis- trimônio para o povo brasileiro. ma outra pasta. O Fundo Amazônia, não é possível mais evitar a pergunta:
tematicamente, de 27.772 km2 para A regra também tem sido uma fis- principal financiador de projetos de a que interesses serve a agenda am-
4.571 km2, resultado de um conjunto calização ambiental deficiente, por combate ao desmatamento e desen- biental do atual governo?
orquestrado de políticas públicas. falta de recursos, atenção e pessoal. O volvimento sustentável, formado prin-
As emissões brasileiras de gases de licenciamento de obras de infraestru- cipalmente por doações internacio- BRUMADINHO: A PEDAGOGIA DA LAMA
efeito estufa, majoritariamente deriva- tura enfrenta historicamente proble- nais, está em xeque. Agendas ligadas à O desastre ambiental, social, eco-
das do desmatamento e das queima- mas, como a hidrelétrica de Belo Mon- gestão ambiental de territórios indíge- nômico e emocional que foi o rompi-
das, também seguem a mesma rota. te (PA) e as barragens de rejeitos de nas, bem como aquelas relacionadas mento da barragem de dejetos mine-
Sem políticas efetivas, não há redução mineração, em Mariana e Brumadi- com extrativistas e outras comunida- rários no Vale do Córrego do Feijão, no
significativa. nho (MG), não nos deixam esquecer. des locais, desapareceram ou estão es- município de Brumadinho, no dia 25
JULHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 5

de janeiro, deveria ter sido um marco. têm terras em áreas protegidas. Além do licenciamento, o enfraquecimento sa biodiversidade, sem que houvesse
Ainda mais depois do rompimento da de essa atividade não ser permitida da fiscalização e do monitoramento, compensação possível para isso, uma
barragem de rejeitos no Rio Doce, per- pelas regras atuais do BNDES, em bem como a falta de políticas claras so- vez que o Brasil detém capacidade e
to da cidade de Mariana, também em muitos casos a posse dessas terras é bre as regras de exploração minerária, tecnologia para desenvolver tais ca-
Minas Gerais, a questão do licencia- fruto de grilagem. Tais pagamentos só prejudicam o país. Como temos deias produtivas por si só.
mento das barragens, bem como da poderiam funcionar como um convite condições de executar cada uma des-
responsabilidade pelo dano causado à ampliação do roubo de terras públi- sas ações, permanece a dúvida sobre A DIMENSÃO DAS CONSEQUÊNCIAS
por seu rompimento, deveria ter se cas. Estranhamente, esse parece ser o os benefícios que uma parceria com os Nunca antes o ditado “quem planta
tornado uma das prioridades do go- objetivo de fato. norte-americanos nos traria. vento colhe tempestade” foi mais ade-
verno federal. Além disso, há o garimpo ilegal. Há quado. Os ventos da destruição das po-
A flexibilização do licenciamento e “QUERO EXPLORAR A REGIÃO AMAZÔNICA EM estimativas que vão de 100 mil a 800 líticas ambientais brasileiras vão se
o enfraquecimento da fiscalização, tão PARCERIA COM OS ESTADOS UNIDOS” mil garimpeiros atuando de forma ile- materializar em tempestades em todos
desejados pelo presidente e por seu Não foram poucas as ocasiões nas gal no Brasil. O presidente já manifes- os lugares. Não há mais tempo a perder
ministro, equivalem a um tapa na cara quais o presidente Bolsonaro insistiu tou diversas vezes sua simpatia em re- no combate à crise climática, umbili-
dos brasileiros, que deveriam se sentir que sua intenção em relação à Amazô- lação ao garimpo e sua vontade de calmente ligada, no caso brasileiro, ao
protegidos pelo governo de desastres nia seria uma exploração em parceria flexibilizar a legislação, diminuindo as desmatamento. Eventos climáticos ex-
dessa dimensão. Em termos ambien- com os Estados Unidos. Ainda que pe- restrições ambientais e liberando a ati- tremos já vêm ocorrendo com mais fre-
tais, ambas as tragédias causaram se a tremenda estranheza que tal afir- vidade, que destrói a vegetação e os quência em diversos lugares do Brasil.
prejuízos que levarão dezenas de anos mação causa, é interessante avaliar as rios, em terras indígenas. Dados da Po- De inundações a crises hídricas, a po-
para ser mitigados. O Vale do Rio Doce possibilidades de “exploração” da re- lícia Federal apontaram, em 2018, que pulação brasileira paga o preço da ir-
é um vale morto, e os dejetos do desas- gião, a eventual contribuição dos Esta- a cada onze anos o garimpo de ouro no responsabilidade na área ambiental.
tre de Brumadinho já alcançam o Rio dos Unidos e se nós, brasileiros, tería- Pará despeja nos corpos de água deje- Não custa lembrar que a Floresta
São Francisco, levando à contamina- mos algo a ganhar com isso. tos equivalentes aos do desastre de Amazônica, ao lado da Mata Atlântica
ção de toda a sua bacia. É possível imaginar, entre outras, Mariana. E a fiscalização, em vez de ser e do Pantanal, é patrimônio nacional.
A lama de Brumadinho revela os quatro grandes frentes de “explora- reforçada, está sendo desmantelada. Não deveria ser projeto de um governo
verdadeiros contornos do atual gover- ção”. A primeira é a dos recursos ma- dilapidar o patrimônio de todos os
no: quem não toma providências sobre deireiros, que vem sendo feita de ma- brasileiros de forma irreversível. O
situações que podem ocorrer a qual- neira desordenada, mas que poderia desmonte radical da agenda ambien-
quer momento e matar centenas de ser realizada de outra forma, uma vez O potencial tal do país não deve ser tratado apenas
pessoas certamente não tem nenhu- que reunimos um conjunto relevante imenso de nossa como vicissitudes limitadas ao perío-
ma intenção de combater a crise cli- de conhecimentos sobre manejo flo- do do atual governo. Seus reflexos re-
mática ou o desmatamento, pois suas restal e ecologia tropical. Nessa área,
biodiversidade cairão sobre o país por muitas décadas
consequências podem ser ignoradas – historicamente, há uma parceria aca- de gerar riqueza e algumas das consequências nos
neste momento – com mais facilidade. dêmica com universidades estrangei- para os brasileiros acompanharão para sempre. A trans-
Neste governo, porém, não tem ras, resultando em pesquisas e desen- pode se perder de formação das paisagens pode ser drás-
bastado uma atitude negligente. A des- volvimento de novas técnicas, dentro tica e irreversível. Basta lembrar que o
truição das políticas, estratégias e ins- de uma relação bastante equilibrada.
forma irrevogável Deserto do Saara já foi uma savana en-
tituições ambientais é uma prioridade O grande avanço de que essa frente po- tremeada de bosques e cursos de
e vem sendo realizada de forma ativa e deria se beneficiar seria o aumento da água... As vidas perdidas em desastres
célere. Um exemplo é a paralisação fiscalização e de ações de controle ao Outra possibilidade de “explora- ambientais, passíveis de ser evitados, e
das atividades do Fundo Amazônia, desmatamento ilegal. Vale lembrar que ção” são as atividades agropecuárias. nos conflitos crescentes no campo são
por iniciativa do próprio MMA. Esse já houve políticas nesse sentido, com Isso já é feito em diversos locais da irrecuperáveis. O potencial imenso de
fundo, resultante do êxito do Plano de efeitos muito significativos, e que seria Amazônia. Se por um lado é um absur- nossa biodiversidade de gerar riqueza
Ação para Prevenção e Controle do possível investir em estratégias de ma- do que chega às raias da imoralidade para os brasileiros também pode se
Desmatamento na Amazônia Legal nejo florestal, já desenvolvidas e testa- desmatar uma floresta tropical, com perder de forma irrevogável.
(PPCDAm), foi criado em 2008. Sua ló- das no Brasil, criando cadeias produti- infinitas potencialidades, para plantar O vento da destruição sopra para
gica é de que, quanto mais dióxido de vas de produtos madeireiros bastante soja e outras commodities, por outro há muito além do que o aqui descrito. So-
carbono o Brasil economizar com a mais sustentáveis. O atual governo, po- um compromisso claro do governo pra na perseguição aos servidores dos
conservação da floresta, maiores se- rém, tem feito justamente o contrário, com o agronegócio. Fica a dúvida se órgãos ambientais, no favorecimento
riam as quantias depositadas a longo desmontando as estruturas de comba- essa parceria com os Estados Unidos, de setores com modos arcaicos de pro-
prazo pelos doadores. Paralelamente, te ao desmatamento e insistindo em nosso concorrente comercial, seria dução, sopra no Parque Nacional de
o Brasil comprometeu-se a realocar enfraquecer a legislação florestal. bem-vinda nesse campo. Abrolhos, quando a exploração de
esses fundos para a proteção das flo- Outra frente possível de “explora- Por fim, resta a melhor aposta na campos de petróleo à sua volta passa a
restas. O fundo é gerido pelo BNDES e ção” na Amazônia é a mineração. Não Amazônia: produtos não madeireiros ser uma possibilidade. Sopra nos par-
vem apoiando projetos de governos es- há dúvidas, porém, de que essa ativida- e potencial cosmético, farmacológico ques que o MMA quer desconstituir,
taduais da Amazônia Legal, órgãos fe- de exige cautela, pois causa grandes e para o desenvolvimento de produtos como Campos Gerais, no Paraná, e La-
derais, instituições de pesquisa e orga- impactos ambientais. Para uma mine- com inovação tecnológica, usando a goa do Peixe, no Rio Grande do Sul.
nizações da sociedade civil. Em um ração mais racional, o licenciamento, a biodiversidade como base. O investi- Mas sopra também em outras para-
primeiro momento, o ministro do fiscalização e o controle das atividades mento nessas cadeias produtivas po- gens, como na redução do gelo do Árti-
Meio Ambiente tentou acusar as orga- são fundamentais. Os desastres de Ma- deria alavancar uma nova economia co, no aumento do nível do mar e no
nizações da sociedade civil de irregu- riana e Brumadinho apenas revelam o na Amazônia. O atual governo, porém, aquecimento excessivo de diversas re-
laridades na gestão dos recursos, si- lado mais midiático dos efeitos nefas- tem desmontado as políticas de apoio giões do planeta. Não resta alternativa
mulando uma auditoria e vazando tos dessa atividade sem controle e sem aos extrativistas e outras comunida- para interpretar a agenda de destrui-
informações sobre supostos proble- monitoramento. Apesar de não estar des locais e restringido os recursos pa- ção ambiental do atual governo: ou se
mas. Esse processo paralisou a equipe claro o que significaria uma eventual ra pesquisa nas universidades. Ade- trata de uma visão excepcionalmente
do fundo, mas não foi seu único ata- parceria com os Estados Unidos, vale mais, as atividades ligadas ao acesso tacanha, ou essa destruição serve a in-
que. Agora, Salles quer diminuir a par- lembrar que já existem diversas mine- ao patrimônio genético e ao conheci- teresses que visam submeter o Brasil
ticipação dos diversos segmentos da radoras estrangeiras atuando no Bra- mento tradicional, no MMA, estão pa- definitivamente, tomando dos brasi-
sociedade no Fundo Amazônia e des- sil, seguindo, muitas vezes ainda, uma ralisadas. Uma colaboração, nesse leiros seu maior patrimônio.
viar seus recursos para outras ativida- lógica colonial: explora-se a colônia em âmbito, significaria parceria com em-
des, tais como o pagamento de indeni- benefício quase que exclusivamente da presas norte-americanas que se bene- *Nurit Bensusan é especialista em Biodi-
zação pela desapropriação aos que metrópole. Nesse caso, a flexibilização ficiariam largamente do acesso à nos- versidade do Instituto Socioambiental (ISA).
6 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2019

CAPA

A insustentável agenda
ambiental do presidente
Por que a obsessão de Jair Bolsonaro por acabar com o meio ambiente cria (mais) um problema para Paulo Guedes
POR CARLOS RITTL*

Q
uando Dilma Rousseff assumiu lhou os pés no crime de responsabili- nada mais, nada menos que o fim da desmatamento das importações fran-
a Presidência, em 2011, ela ou- dade ao gravar um vídeo ordenando a reserva legal, o que abriria uma área cesas até 2030 e vinculou o acordo co-
viu do padrinho político, o ex- suspensão da destruição de equipa- equivalente a quatro estados de São mercial à adesão ao acordo do clima.
-presidente Lula, um único mentos de bandidos que roubavam Paulo ao desmatamento. Como se pa- Embora o Brasil tenha permaneci-
conselho sobre a área ambiental: “Dil- madeira numa área protegida em Ron- ra provar uma aliança de sangue com do formalmente no Acordo de Paris, al-
ma, só não pode deixar o desmata- dônia. Salles poderia ter ficado quieto, o setor mais atrasado do ruralismo, o guém já deveria ter dito a Bolsonaro
mento subir”. Lula sabia o quanto a mas ameaçou editar uma portaria ve- senador ainda propôs – em afronta di- que também é preciso cumpri-lo – e is-
imagem internacional do Brasil e a dando a destruição. reta a pelo menos dois artigos da Cons- so vai de encontro à sua cruzada contra
avaliação do ocupante do Planalto de- Os resultados disso tudo têm sido o tituição – eliminar a função social da a floresta. Cientistas brasileiros esti-
pendiam de um controle efetivo da de- espraiamento da sensação de impuni- propriedade rural. É uma espécie de maram que um cenário de descontrole
vastação, principalmente na Amazô- dade na ponta e o franco descontrole fetiche de certa facção do ruralismo, sobre o desmatamento causaria emis-
nia. Sabia também que sua sucessora sobre o crime ambiental. O número de que nunca engoliu a Carta de 1988 e sões anuais só na Amazônia de 1,3 bi-
era provavelmente a presidente com multas por desmatamento até maio talvez ainda tenha problemas em acei- lhão de toneladas de gás carbônico, ou
menor apreço pelo meio ambiente deste ano foi o menor em uma década, tar as leis de 1888. 3% do que o mundo emite por queima
desde a redemocratização, e ele não e o número de operações do Ibama na A leitura que os mercados interna- de combustíveis. Nesse cenário, não
queria ver o próprio legado – foi no pri- Amazônia caiu 70% de janeiro a abril cionais e os clientes das commodities apenas o Brasil não cumpriria suas me-
meiro governo Lula que o desmata- deste ano em relação ao mesmo perío- brasileiras fazem disso tudo é simples: tas, como também poderia colocar fora
mento na Amazônia começou a cair – do ano passado. Bolsonaro foi eleito o agronegócio do Brasil não pode pres- de alcance o objetivo global de estabili-
atirado ao vento. prometendo “tirar o Estado do cangote cindir de desmatamento nem de acesso zar o aquecimento global em 1,5 °C,
Oito anos depois, temos uma situa- de quem produz”. O efeito real foi tirar livre a terra barata. Para quem quer im- preconizado pelo Acordo de Paris.
ção inédita na história recente do país: o Estado do cangote de quem depreda. por barreiras não tarifárias às commo- Da mesma forma, o chanceler Er-
o gabinete presidencial é ocupado por A navalha de Occam – princípio fi- dities brasileiras e adiar acordos comer- nesto Araújo vem fazendo, aparente-
uma pessoa que, mais do que desprezar losófico que afirma que, se um fenôme- ciais, trata-se de um prato cheio. Para o mente sem muita convicção, uma
a área ambiental, faz-lhe oposição ati- no tem várias explicações, a mais sim- ministro da Economia, Paulo Guedes, ofensiva de greenwashing do Brasil pa-
va, como se exercitasse contra a nature- ples costuma ser a correta – faria supor mais um motivo de preocupação. A ra acalmar a OCDE, cujos critérios de
za alguma vingança pessoal. Talvez, que tudo isso levaria a um aumento do destruição ambiental pode ser o maior compliance ambiental são rigorosos.
antes daquela multa por pesca ilegal desmatamento na Amazônia e no Cer- tiro no pé da economia nacional. Será muito difícil brandir a linha de
em Angra, tenha caído da jabuticabeira rado. De fato, é o que se verifica. Após O Brasil já teve uma amostra dos pre- defesa padrão do governo – dizer,
ou tomado picada de marimbondo; um primeiro trimestre de redução ex- juízos que crises de imagem acarretam, usando dados falsos, que “o Brasil é o
Freud há de explicar. Seja como for, Jair pressiva nos alertas de desmatamento com a suspensão das importações de país que mais preserva no mundo” –
Bolsonaro parece dormir e acordar do Instituto Nacional de Pesquisas Es- carne brasileira por alguns países na es- quando onze sistemas de alerta por sa-
com a obsessão de pôr abaixo até a últi- paciais (Inpe), provavelmente devido à teira da Operação Carne Fraca, em 2017, télite contam a história oposta.
ma árvore, extinguir até a última uni- grande cobertura de nuvens sobre a flo- que detectou corrupção na inspeção sa- Talvez os indícios mais claros de
dade de conservação e desalojar até o resta, os meses secos de maio e junho nitária. Em junho deste ano, uma rede que a situação está indo longe demais
último índio do Brasil. Cada um desses mostraram uma aceleração. Maio teve sueca de supermercados iniciou boicote sejam manifestações recentes de re-
desejos tem consequências. Para um o pior índice para o mês desde que o sis- a produtos brasileiros por conta de mais presentantes do setor agroexportador
país cuja balança comercial depende tema do Inpe passou a operar com saté- um problema de mindset do governo – a contra, por exemplo, o projeto de Flá-
da venda de produtos agrícolas e miné- lites mais precisos, em 2016. É cedo pa- liberação recorde de agrotóxicos. Dois vio Bolsonaro e outras propostas de
rios, consequências sérias. ra dizer qual será o impacto na taxa rounds importantes da luta contra o des- mudanças no Código Florestal. Mas
Os movimentos da cruzada an- oficial de 2019, que será conhecida após matamento serão travados nos próxi- defender a lei florestal e a segurança ju-
tiambiental de Bolsonaro e de seu sub- agosto. A depressão econômica pode mos meses, no acordo comercial União rídica que ela traz não vai salvar a ima-
ministro da Agricultura, Ricardo Sal- frear o desmatamento especulativo, Europeia-Mercosul e nas negociações gem – e os mercados – das commodities
les, são conhecidos. Salles seccionou a deixando o índice mais ou menos em- para a entrada do Brasil na OCDE. brasileiras. Se o agro que quer ser pop
medula da governança ambiental bra- patado com o trágico 2018, na casa dos A UE está sob pressão doméstica quer se diferenciar do ogro que não se
sileira, desarticulando políticas cons- 8 mil km2, ou, pouco provável, até redu- para barrar o acordo por conta do im- importa de não o ser, tem de levantar a
truídas cuidadosamente desde pelo zi-lo um pouco. Mas um eventual cres- pacto que o governo Bolsonaro pode ter voz contra todo o desmonte ambiental
menos a Rio-92. Acabou com as áreas cimento terá nome e sobrenome: Jair sobre a consecução das metas do Acor- de Bolsonaro. E também contra quem
de mudanças climáticas e a responsá- Messias Bolsonaro. do de Paris. Em abril, mais de seiscen- faz lobby pela terra arrasada, que não
vel pelos planos de prevenção e con- E nada indica que vá parar por aí. tos cientistas europeus e duas organi- respeita limites, que acha ser possível
trole do desmatamento. Deixou o Iba- Bolsonaro, neste momento, briga com zações indígenas brasileiras pediram à destruir leis e florestas e engabelar a
ma acéfalo na maioria dos Estados e o STF pelo direito de violar a Constitui- UE que vinculasse o acordo a salva- comunidade internacional vendendo
amarrado em Brasília, perseguindo e ção e empurrar a demarcação de ter- guardas socioambientais. Em junho, uma sustentabilidade que não existe.
desautorizando seus agentes – que ras indígenas para o Ministério da mais de 340 organizações da sociedade
acusa de “ideológicos” e “ineficientes”. Agricultura, já barrada pelo Congres- civil pediram suspensão das negocia- *Carlos Rittl é doutor em Biologia pelo Ins-
© Daniel Kondo

Ao mesmo tempo, em nenhum mo- so. Salles anuncia a revisão de todas as ções diante da deterioração do meio tituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
mento contrapôs o discurso do chefe áreas protegidas federais do Brasil. E o ambiente e dos direitos humanos no (Inpa) e secretário executivo do Observató-
de empoderar criminosos ambientais, filho 01 do presidente, o senador Flávio Brasil. O presidente da França, Emma- rio do Clima, rede de organizações da socie-
como no caso em que Bolsonaro mo- Bolsonaro, tenta aprovar no Senado nuel Macron, já prometeu eliminar o dade civil.
JULHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 7

CAPA

Água limpa para todos, um


direito humano distante no Brasil
O governo brasileiro segue na contramão das políticas públicas de água e meio ambiente que a sociedade vem
construindo desde a Constituição Cidadã de 1988. Por meio de reforma administrativa, retirou a Agência Nacional de Águas,
voltada para a condução da Política Nacional de Recursos Hídricos, do Ministério do Meio Ambiente
POR MALU RIBEIRO*

O
acesso à água limpa é um direi- racional e integrada dos recursos hí- vários países que reestatizaram esses O debate em torno da privatização
to humano ainda muito distan- dricos. É fundamento da Política Na- serviços essenciais. Na Europa, a Ale- dos serviços de água se intensificou no
te da realidade no Brasil. Embo- cional de Recursos Hídricos que a água manha e a França já desfizeram mais Brasil em 2018, quando o país sediou o
ra o país detenha 12% da água é um bem público e, portanto, não po- de quinhentas concessões, privatiza- 8º Fórum Mundial da Água, evento
doce do planeta, sua distribuição é de- de ser privatizada, sendo sua gestão ções e parcerias público-privadas, as- que reuniu as principais autoridades,
sequilibrada no território nacional e as voltada aos usos múltiplos (abasteci- sim como ocorreu em países como Ca- especialistas, empresas e a sociedade
áreas mais adensadas e urbanizadas mento, energia, irrigação, indústria, nadá, Índia, Estados Unidos, Argentina, de mais de cem países. Em contrapon-
têm menor disponibilidade hídrica. A equilíbrio dos ecossistemas, lazer etc.), Moçambique e Japão. No Brasil tam- to, na mesma época organizações so-
poluição dos rios, mananciais e aquí- de forma descentralizada e com parti- bém há exemplos recentes, onde a pri- ciais se uniram no Fórum Alternativo
feros agrava essa situação e faz que a cipação da sociedade. O consumo hu- vatização levou municípios ao caos Mundial da Água (Fama). Ambos
escassez afete regiões que têm gran- mano e de animais é prioritário em si- nos serviços de abastecimento. ocorreram em Brasília (DF) com o ob-
des rios e água em abundância, mas tuações de escassez e crise hídrica. Em Itu, estância turística do interior jetivo de mobilizar instituições, gover-
imprópria para uso por conta da de- O acesso à água em qualidade e paulista, o serviço municipal de água e nos e pessoas para ações efetivas em
gradação e da precária qualidade. quantidade adequadas para a saúde e esgoto foi concedido à iniciativa priva- defesa do acesso à água de boa quali-
Grandes rios brasileiros como o atividades econômicas depende da boa da em 2005. Uma auditoria indepen- dade, e o direito humano à água foi
Iguaçu, Tietê, Paraopeba, São Francis- governança, da regulação, do cuidado e dente constatou na época que as dívi- reafirmado nesses eventos.
co, Doce, Parnaíba, Paraíba do Sul, Ja- da mobilização da sociedade. Para ga- das do Serviço Autônomo de Água e Compromissos importantes, como
guaribe, Sinos, Carioca e Maman- rantir esse direito essencial é preciso Esgoto (SAAE), companhia pública os Objetivos do Desenvolvimento Sus-
guape, entre outros, estão em estado cuidar dos rios e dos mananciais e, com 37 anos de atuação, somavam R$ tentável (ODS), e outras ações estraté-
de alerta em virtude das agressões que principalmente, tratar a gestão da água 41,5 milhões, quase um terço do orça- gicas foram apontados nesses encon-
recebem diariamente, ao atravessa- como uma questão estratégica. mento municipal daquele ano. Com o tros para minimizar os impactos das
rem regiões metropolitanas, áreas ur- A boa qualidade da água e o uso sus- argumento de falta de recursos para mudanças climáticas e combater o
banas e de intensa atividade agrícola. tentável desse bem, essencial à vida, de- quitar as dívidas e investir em obras de desperdício e a poluição, bem como
Esses rios e mananciais estão por um pendem da gestão integrada. Infeliz- saneamento, a Câmara Municipal au- para aplicar soluções baseadas na na-
triz. Esse triste retrato pode ser cons- mente, o governo brasileiro segue na torizou a concessão dos serviços à ini- tureza para garantir segurança hídri-
tatado com base nas análises da quali- contramão das políticas públicas de ciativa privada. Em 2007, a concessio- ca às populações.
dade da água realizadas pela Funda- água e meio ambiente que a sociedade nária Águas de Itu começou a operar e Apesar das recomendações, os no-
ção SOS Mata Atlântica no período de vem construindo desde a Constituição somente em 2010 o município criou vos governantes brasileiros promove-
março de 2018 a fevereiro de 2019, em Cidadã de 1988. Por meio de reforma ad- uma agência reguladora. Irregularida- ram mudanças administrativas nos
278 pontos de coleta, distribuídos em ministrativa, retirou a Agência Nacional des contratuais e de gestão foram cons- Estados e na União, assim como na
220 rios, de dezessete estados brasilei- de Águas, voltada para a condução da tatadas e a população se mobilizou em agenda política do país. Muitas delas
ros, e que revelam a precária condição Política Nacional de Recursos Hídricos, manifestações e ações judiciais. trazem ainda mais incertezas para as
do saneamento ambiental e o descaso do Ministério do Meio Ambiente. Em 2013, a Águas de Itu foi multada políticas públicas de recursos hídricos
com a gestão da água no Brasil. Em paralelo, tramita no Congresso pela Prefeitura por descumprir o cro- e meio ambiente. Ao fragmentarmos a
O maior vilão das águas nesses Nacional, por meio de um projeto de lei nograma de obras. Os problemas se gestão da água entre ministérios, afas-
grandes rios e mananciais é a falta de de iniciativa parlamentar, um novo agravaram e, em 2014, com a crise hí- tando saneamento e recursos hídricos
saneamento básico, de coleta e trata- marco regulatório para o saneamento drica que afetou a região Sudeste do do meio ambiente, retrocedemos nos
mento de esgoto. Dados do Instituto básico no país. A tramitação na Câmara país, Itu ficou dez meses em raciona- ideais defendidos nos fóruns da Água e
Trata Brasil apontam que 35 milhões Federal e no Senado abre espaço para mento, sendo necessária intervenção nos afastamos da gestão integrada,
de brasileiros não têm acesso a servi- que a sociedade possa debater, apre- do governo do estado para atendimen- princípio fundamental da Política Na-
ços de saneamento básico e 16,5% não sentar propostas e inovar, incluindo o to à população. Em 2015, por medida cional de Recursos Hídricos.
são atendidos com abastecimento de acesso à água e aos serviços de sanea- judicial, a Prefeitura afastou a diretoria A precária condição ambiental dos
água tratada. mento como direitos humanos. Essa da concessionária por descumprimen- rios brasileiros e a exclusão hídrica
A exclusão hídrica fica evidente questão extremamente estratégica e to de contratos e nomeou um interven- que deixa milhares de pessoas sem
diante desses números que reforçam a urgente para a sociedade vinha sendo tor. Finalmente, em 2017, o serviço vol- acesso à água de qualidade e causa im-
necessidade de implementação de po- tratada de forma assoberbada, por meio tou a ser público, com a criação da pacto aos ecossistemas exigem mu-
líticas públicas e ações capazes de re- de medidas provisórias que caducaram Companhia Ituana de Saneamento. Es- danças efetivas de atitude em relação à
verter esse quadro. A Lei das Águas do e foram rejeitadas no Congresso Nacio- se exemplo demonstra as dificuldades água e à vida. Água é um bem público,
Brasil, que completou 22 anos, tem co- nal, por favorecerem a privatização dos que o município e a sociedade enfren- essencial à vida.
mo princípio assegurar a disponibili- serviços de água e saneamento. taram para retomar a gestão da água e
dade de água, em padrões de qualida- A privatização dos serviços de água como a privatização do serviço não *Malu Ribeiro é assessora especialista da
de adequados, e promover a utilização e saneamento vem sendo abolida em trouxe a eficiência que alardeavam. causa Água da Fundação SOS Mata Atlântica.
8 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2019

CAPA

Uma nuvem escura de


agrotóxicos em nosso horizonte
Estamos diante de um mecanismo de inserção na economia mundializada em que nos subalternizamos
do ponto de vista da saúde ambiental, do ponto de vista da saúde humana e do ponto de vista econômico
POR LARISSA MIES BOMBARDI (TEXTO) E PABLO LUIZ MAIA NEPOMUCENO (CARTOGRAFIA E COLABORAÇÃO)*

A
semana de São João foi iniciada Esse princípio, em tese, garante que os
com a impactante notícia de interesses da saúde e do meio ambien- Quantidade anual de agrotóxicos utilizados no Brasil
que o governo havia liberado o te sejam preservados. toneladas (t)
Taxa de aumento de mais de 23 mil toneladas por ano
registro de 42 novas marcas co- Tramita hoje no Congresso um 600000
merciais de agrotóxicos. projeto de lei (PL) – na verdade, um
De fato, no Diário Oficial da União apensado de leis, sob o número 500000
de 24 de junho de 2019, o “Coordena- 6.299/2002, que ganhou a alcunha de
dor-Geral de Agrotóxicos e Afins [do “Pacote do Veneno” – que visa alterar 400000

Ministério da Agricultura] no uso de a atual Lei de Agrotóxicos (Lei n.


suas atribuições legais” concedeu o re- 7.802/1989). Um dos eixos centrais 300000

gistro de novos agrotóxicos, totalizan- proposto por esse PL é limitar a pari-


do, até o momento, 239 novos registros dade entre os ministérios no que diz 200000

dessas substâncias neste primeiro se- respeito ao registro de agrotóxicos e,


mestre. A média do registro dessas nesse sentido, atribuir um grande 100000

substâncias entre 2009 e 2015 foi de 136 poder ao Ministério da Agricultura e


novos registros anualmente. Em 2016, um caráter praticamente consultivo 0
Anos 2012 2013 2014 2015 2016 2017
esse número saltou para 277; em 2017, aos ministérios do Meio Ambiente e
para 405; e, em 2018, chegou aos 450. da Saúde. Fonte de dados: IBAMA. Elaboração: Larissa Mies Bombardi e Pablo Luiz Maia Nepomuceno
Esses números mostram claramen- Embora durante os governos Lula e
te uma nova ordem no direcionamento Dilma se tenha verificado um aumento cia dos interesses representados pelo na. Tais elementos mostram uma
da questão dos agrotóxicos que se ini- muito significativo no consumo de Ministério da Agricultura. condução clara do atual governo de
ciou a partir do impeachment da presi- agrotóxicos no Brasil, havia – ao menos No primeiro mês deste governo, o que “quem dita” as regras no que diz
denta Dilma Rousseff. Se a tendência em termos ministeriais – um tensiona- presidente da Agência Nacional de respeito ao uso de agrotóxicos é o Mi-
apresentada neste primeiro semestre mento entre as pastas, o que, de algu- Vigilância Sanitária (Anvisa) decla- nistério da Agricultura.
se concretizar, teremos ao final do ano ma maneira, poderia significar a salva- rou que o “Brasil não pode virar as O que se tem visto no país, nos últi-
um recorde na aprovação de novos guarda da saúde humana e ambiental. costas ao agronegócio”. Essa declara- mos anos, é uma escalada no cresci-
produtos comercais de agrotóxicos. É possível inferir – do momento ção, de alguma forma, deu o tom do mento do uso de agrotóxicos, a ponto
Nossa Lei de Agrotóxicos é de 1989 que estamos vivendo e das pistas da- que veríamos. Nesse mesmo sentido, de termos aumentado em 24% o con-
e estabelece que o registro de um agro- das nas declarações públicas dos re- em novembro de 2018 a imprensa no- sumo desses produtos entre 2012 e
tóxico deve passar pelo crivo do Mi- presentantes do atual governo – que, ticiou que a escolha do ministro do 2017: saímos de um patamar de cerca
nistério da Saúde, do Ministério do em que pese o fato de esse PL ainda Meio Ambiente passaria pela avalia- de 415 mil toneladas em 2012 para 515
Meio Ambiente e do Ministério da não ter sido votado, o Executivo está ção da então anunciada futura mi- mil toneladas em 2017, como é possível
Agricultura, com igual peso decisório. fazendo valer o princípio da prevalên- nistra da Agricultura, Teresa Cristi- verificar no gráfico desta página. Tal

LANÇAMENTO
JULHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 9

Tem-se, portanto, um quadro cujo


BRASIL USO DE AGROTÓXICOS horizonte apresentado naquilo que
AUMENTO DA QUANTIDADE MÉDIA UTILIZADA ANUALMENTE diz respeito ao uso de agrotóxicos no
Regiões Brasileiras (2015 - 2017) Brasil é bastante sombrio.
No que diz respeito à avaliação do
impacto desses agrotóxicos no meio
ambiente, o Ibama desenvolveu um O olhar da cidadania
critério que os classifica em quatro ní-
veis: Classe I (Altamente Perigoso),
Classe II (Muito Perigoso), Classe III
(Perigoso) e Classe IV (Pouco Perigo-
so). Para tal classificação o Ibama ado-
ta uma metodologia que envolve a ava-
liação do efeito da substância na água, Na luta
no ar e no solo (transporte, persistên-
cia e bioconcentração) e em diversos
organismos (micro-organismos, mi-
nhocas, microcrustáceos, algas, pei- pela
xes, aves, abelhas e ratos). Dos 42 no-
vos produtos comerciais de agrotóxicos

Média anual do uso de agrotóxico por


região, em tonelada (t)
aprovados na semana do São João,
pouco se tem a comemorar: 52% são
Classe II, ou seja, “muito perigosos pa-
construção
ra o meio ambiente”.

de uma
345.162 [Centro-Oeste] Do ponto de vista da saúde huma-
na, a Anvisa também classifica esses
331,145 [Sul] agrotóxicos em quatro níveis: Classe I
(Extremamente Tóxico), Classe II (Al-
270048 [Sudeste]

sociedade
tamente Tóxico), Classe III (Mediana-
100.476 [Nordeste]
mente Tóxico) e Classe IV (Pouco Tóxi-
50.716 [Norte]
co). Dos 42 produtos aprovados no
final de junho, 33%, ou seja, um terço,
Aumento da quantidade média de agrotóxicos são considerados de Classe I.
mais justa,
0 500 1.000
utilizada no período 2014 - 2017 em relação ao km
período 2012 - 2014, em porcentagem por Região Com relação ao país de origem das
(%) empresas que solicitaram o registro
> 50,01 dessas substâncias, há uma prevalên-
Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana - USP
cia da China, país que agrega 59% das

solidária e
20,01 - 50,00 Laboratório de Geografia Agrária e Laboratório de
Aerofotogeografia e Sensoriamento Remoto empresas que obtiveram os registros
10,01 - 20,00
Autores: Profª Drª Larissa Mies Bombardi dos novos produtos autorizados. A
1,01 - 10,00 e Dr Pablo Luiz Maia Nepomuceno China é também o principal destino
<1 Fonte: IBGE 2017 - Censo Agropecuário da soja exportada pelo Brasil.
2019 Estamos, portanto, diante de um
mecanismo de inserção na economia sustentável.
mundializada em que nos subalterni-
zamos do ponto de vista da saúde am-
biental, do ponto de vista da saúde hu-
mana e do ponto de vista econômico, ao
exportarmos prioritariamente produ-
tos primários. Vivemos uma geografia
= desumana do chamado Sul global, na Quartas, às 17h,
era da tecnologia e da modernidade, em Rádio USP (São Paulo: 93,7 FM
que cada vez menos a agricultura diz
Ribeirão Preto: 107,9 FM)
respeito à produção de alimentos e cada
Soja no Brasil: Pouco maior que vez mais significa produção de commo-
área plantada = o território alemão dities e agroenergia. O Brasil é, há pelo Quartas, à meia-noite
358.192 km² (102%) menos dez anos, importador de feijão.
TV Aberta SP, canais 9 da NET, 8 da
Um terço dos agrotóxicos autoriza-
Vivo Fibra e 186 da Vivo.
dos no Brasil é proibido na União Euro-
escalada, sem dúvida, está relacionada te de Rondônia. A soja consome mais peia. Permitimos níveis de resíduos de
em grande medida – embora não ape- da metade (52%) do volume comercia- agrotóxicos nos alimentos e na água
nas – ao avanço do cultivo de soja no lizado de agrotóxicos no Brasil, segui- que são dezenas, às vezes centenas e
país. A área cultivada com soja no Bra- da da cana (11%) e do milho (10%). Ou até milhares de vezes superiores aos
sil, hoje, corresponde a nada menos do seja, mais de 70% do volume dessas níveis permitidos na União Europeia.
que o equivalente ao território da Ale- substâncias tem como destino apenas Nossa inserção no mercado mun- observatorio3setor
manha (ver Mapa 1). três produtos. dial – nos moldes como tem se dado
Esse avanço da soja, que nos últi- O Mapa 2 indica que a região Nor- – coloca em risco a saúde humana e a
mos anos já ocupava uma parte muito te, em que a Amazônia prevalece, foi saúde ambiental e nos vulnerabiliza
significativa dos municípios que com- justamente onde se deu o maior au- a todos. observatorio3setor
põem o bioma do Cerrado, tem avan- mento no uso de agrotóxicos, o que
çado para o bioma da Amazônia, es- demonstra, de maneira inequívoca, *Larissa Mies Bombardi é professora; Pablo
pecialmente em áreas do norte de uma clara ameaça ambiental para es- Luiz Maia Nepomuceno é professor auxiliar www. observatorio3setor.org.br
Mato Grosso, sudeste do Pará e sudes- se bioma. do Departamento de Geografia da USP.
10 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2019

O FUTURO DA INDÚSTRIA

A contribuição da indústria na economia está dividida em duas, às vezes três, no conjunto dos países ricos a partir dos anos 1970.
Para uns, o fenômeno é uma evolução natural: como uma borboleta emerge da crisálida, a economia passaria espontaneamente
da fábrica para o escritório. Outros sugerem que a desindustrialização é uma decisão política: deslocalizar as plantas em direção
aos países do Sul, mais baratos para os empresários. Enquanto a indústria permanece sendo uma das principais fontes de emprego,
sua retomada destaca oposições ideológicas (abaixo), ambientais (págs. 12-14) e técnicas (pág. 15)

As ideias prontas
sobre a desindustrialização
POR LAURA RAIM*

“A INDÚSTRIA ACABOU, futuros trabalhadores e a pesquisa bási-


ca, enquanto a lei do mercado permiti-

D
AGORA É A HORA DOS SERVIÇOS”
e que adianta ir contra o sentido ria selecionar os atores capazes de ser
da história? A indústria simples- competitivos e inovadores o suficiente
mente seguiu o caminho percorri- para sobreviver.
do pela agricultura antes dela. Apegados a essa crença na livre
Como o desenvolvimento consiste em concorrência, erigida em princípio
passar do setor primário para o setor se- constitucional da União Europeia, su-
cundário, depois do secundário para o cessivos governos abandonaram, des-
terciário, os países do Norte se encami- de meados dos anos 1980, todas as
nhariam rumo a uma economia imate- suas alavancas de ação, assistindo à
rial, baseada nos serviços e impulsiona- erosão da base industrial nacional.
da por “empresas sem fábricas” (segundo Depois da Pechiney (alumínio), da Ar-
as palavras ditas em 2001 pelo CEO da celor (siderurgia) e da Bull (informáti-
Alcatel, Serge Tchuruk), ao passo que a ca), a França deixou cair no bolso dos
produção industrial – poluente e penosa investidores estrangeiros outras estre-
– seria deslocalizada para países com las de sua indústria, como a Lafarge
baixos salários. (cimento) e a Alcatel (telefonia). Foi
Indústria e serviços não são opos- necessário aguardar até a crise de
tos: são setores de atividade imbricados 2008, que trouxe à luz a instabilidade
e complementares. Nos últimos vinte financeira causada por grandes défi-
anos, a terceirização de funções até en- cits externos estruturais, para que a
tão realizadas no interior das empresas necessidade de recuperação produtiva
industriais (alimentação, limpeza e até voltasse, pelo menos no discurso, a fa-
contabilidade) explica, em parte, a que- zer parte das preocupações dos pode-
da do número de empregos diretos no res públicos, o que não impediu a con-
setor industrial e sua elevação no setor tinuidade do desmantelamento da
de serviços. Por outro lado, as empresas Alstom, entregue de bandeja para a
industriais oferecem cada vez mais ser- norte-americana General Electric.2
viços, como instalação e manutenção, A lista de “campeões nacionais”
além de locação. A Michelin, por exem- quanto a remuneração salarial no se- teúdo tecnológico e pouca necessidade franceses surgidos durante os Trinta
plo, oferece o aluguel de seus pneus por tor de serviços, que deveria substituir de mão de obra. Apple, General Elec- Gloriosos (1945-1975) basta para des-
quilômetro rodado. o crescimento, é 20% mais baixa do tric, Caterpillar, Lenovo e Whirpool mentir o mito liberal de uma indústria
Ocorre que, no Ocidente, ramos que na indústria.1 nem esperaram as medidas protecio- sem Estado. Ariane, Airbus, os trens
produtivos inteiros entraram em co- O caso da Alemanha, maior econo- nistas de Trump para repatriar suas Corail, o TGV, o programa de energia
lapso, sobretudo nas áreas têxtil, quí- mia da zona do euro e grande potência atividades, diante da elevação dos sa- nuclear, a cobertura telefônica nacio-
mica, de calçados, eletrodomésticos, industrial, basta para demonstrar esse lários observada nos países emergen- nal, tudo isso atesta a eficácia de um
madeira, plástico e borracha. Trinta ponto: essa evolução não é inevitável tes, os quais, por sua vez, já não se con- Estado estrategista e dirigista, que não
anos de passividade política tiveram nem desejável. Na França, as relocaliza- tentam em ser as “fábricas do mundo”, hesitou em recorrer à nacionalização,
um resultado menos alegre do que o ções (volta das plantas para o país de investindo em pesquisas e patentes. ao planejamento, ao comando público
prometido pelos poetas da feliz desin- origem) – da fabricante de esquis Ros- e ao protecionismo para reconstruir e
dustrialização. Na França, o comércio signol, da marca de chá Kusmi Tea, dos O ESTADO NÃO TEM DE SE METER NISSO modernizar o país.
exterior é deficitário desde 2004, pois fabricantes têxteis Paraboot e Le Coq Nem bom acionista nem gestor com- Alguns projetos fracassaram. O
o saldo positivo dos serviços não com- Sportif – também mostram um movi- petente, o Estado deveria abrir mão de Plano Cálculo, o Concorde e o Minitel
pensa o saldo negativo do comércio de mento inverso. Embora o fenômeno qualquer direcionamento à indústria. são frequentemente utilizados como
bens manufaturados; o fechamento permaneça minoritário na França, ele No máximo, deveria encarregar-se de exemplo pelos críticos do “colbertis-
das fábricas causou a desertificação ganha força nos Estados Unidos, em de- garantir o respeito às regras da livre con- mo tecnológico” (mercantilismo fran-
de regiões inteiras; esse mesmo pro- corrência da queda no custo da energia, corrência e de proporcionar um am- cês promovido por Jean-Baptiste Col-
© Alves

cesso significou também perda de da valorização dos circuitos curtos e da biente favorável ao crescimento, finan- bert, controlador-geral das finanças da
know-how técnico – tudo isso en- orientação para produtos de alto con- ciando a infraestrutura, a educação dos França no século XVII). O economista
JULHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 11

Jacques Sapir mostra, no entanto, que ratórios públicos. Claro que o Big gos de depois de amanhã” –, que data e média gama, nos quais a concorrência
mesmo esses dissabores carregam re- Pharma também investe em inova- de... 1974. é orientada essencialmente pelos pre-
percussões positivas em termos de ção, mas sobretudo na parte de mar- A cruzada contra o custo do traba- ços, o que incita a reduzir os custos le-
aprendizado. Apesar de seu fiasco co- keting”, explica a economista. “Como lho acabou dando resultado. Desde vando a produção para outros lugares.
mercial, o transporte supersônico per- a Pfizer e, recentemente, a Amgen, 2016, o custo por hora da mão de obra Comparativamente, a competitividade
mitiu a “difusão de conhecimentos e elas gastam mais para recomprar suas industrial francesa é 2,10 euros menor alemã é “além-preço”, isto é, baseia-se
equipamentos na indústria aeronáuti- próprias ações a fim de aumentar seu do que o da mão de obra alemã.6 É pou- na qualidade e na inovação, o que lhe
ca francesa”, fenômeno “essencial pa- preço do que para financiar pesquisa co provável, porém, que tal feito seja permite impor preços mais altos. Para o
ra o posterior sucesso do programa e desenvolvimento”.5 Embora as start- suficiente para relançar a indústria economista Gabriel Colletis, membro
Airbus”.3 -ups e o capital de risco tenham um francesa. E por uma boa razão: o custo fundador da Associação do Manifesto
papel importante, eles chegam no se- do trabalho não é o responsável pela pela Indústria (Association du Mani-
A INOVAÇÃO VEM SEMPRE DO SETOR PRIVADO gundo tempo, quinze ou vinte anos desindustrialização. Em primeiro lu- feste pour l’Industrie), a política de
Sobrecarregado pela burocracia e depois que o governo já forneceu a gar, ele é compensado pela alta produ- compressão dos salários empreendida
pela letargia dos funcionários públicos, maior parte do financiamento e assu- tividade. Se dividirmos o PIB pelo nú- durante o governo do chanceler ale-
o Estado não é capaz de estimular miu a maior parte do risco. mero total de horas trabalhadas, os mão Gerhard Schröder (1998-2002)
aquilo que o economista Joseph Schum- franceses estarão quase no mesmo ní- serviu menos para garantir a competi-
peter chamou de “espírito animal” dos COMPETITIVIDADE REQUER REDUÇÃO DO CUSTO vel que os norte-americanos e os ale- tividade do que para elevar os lucros.
criadores. Somente o mercado pode DO TRABALHO mães. Em segundo lugar, o principal Mais que o custo do trabalho, foi o
permitir o surgimento dos inovadores, De acordo com o ministro francês da fator que prejudica a competitividade custo do capital que teve um papel
bem como lhes oferecer os meios para se Economia e Finanças, Bruno Le Maire, industrial francesa desde o início dos decisivo no fenômeno da desindus-
desenvolverem. Alguém se surpreende “ainda não somos suficientemente com- anos 2000 é o euro forte. Entre 2000 e trialização na França, com os gran-
que o Vale do Silício não seja um ramo petitivos, sobretudo em comparação 2010, o custo por hora do trabalho na des grupos distribuindo uma fatia
do governo dos Estados Unidos? com nossos vizinhos alemães” (France indústria aumentou apenas 32% em cada vez maior do valor agregado aos
A história mitificada do espírito Inter, 26 nov. 2017). Segundo ele, “preci- euros, mas 90% em dólares.7 acionistas, em detrimento do investi-
pioneiro dos empreendedores califor- samos abrir o debate sobre a redução O declínio industrial francês tam- mento e da pesquisa. Trinta anos
nianos deixa de fora uma realidade: o tributária acima de 2,5 salários míni- bém pode ser explicado pela interna- atrás, os dividendos representavam
setor privado nunca se encarregou de mos”. Martelado nos últimos trinta cionalização dos grandes grupos nos menos de 5% da riqueza criada na in-
investir em pesquisas caras com resul- anos, o refrão é bem conhecido. Em últimos trinta anos. Enquanto as em- dústria; hoje, essa participação é de
tados incertos. A economista Mariana uma economia aberta, exposta à con- presas alemãs consolidaram suas ba- 25%. Para cada euro de investimento
Mazzucato4 mostrou que as inovações corrência dos países emergentes, a in- ses de produção nacional, os franceses líquido, as empresas distribuíram 50
tecnológicas mais importantes das úl- dústria francesa sofreria de excessivo privilegiaram as deslocalizações e os centavos de dividendos em 1978; em
timas décadas foram possíveis graças “custo do trabalho”, enquanto a Alema- investimentos estrangeiros diretos, 2011, eram 2 euros.8
ao financiamento ativo do Estado: a in- nha deveria seu sucesso à política de sobretudo em países emergentes com Sob a pressão dos acionistas, as
ternet recebeu subvenções de uma moderação salarial colocada em práti- forte crescimento. O exemplo do setor empresas se veem obrigadas a abrir
agência do Departamento de Defesa ca nos anos 2000. automobilístico é eloquente. A partir mão de alguns projetos de investi-
dos Estados Unidos, a Defense Advan- Esse diagnóstico está por trás da de 2006, a produção de veículos fran- mento que não trazem retorno sufi-
ced Research Projects Agency (Darpa); multiplicação dos esquemas de isen- ceses no exterior superou a realizada ciente, ou então a realizar caras ope-
o Sistema de Posicionamento Global ção de contribuições sociais desde em território nacional, a qual vem de- rações financeiras a fim de alcançar
(GPS) foi financiado pelo programa 1992, como o crédito tributário para a clinando desde 2002, enquanto a pro- os 15% de rentabilidade geralmente
militar Navstar; a tela sensível ao toque competitividade e o emprego (Crédit dução de fabricantes alemães na Ale- exigidos. “Com a rentabilidade-pa-
contou com os subsídios da CIA e da d’Impôt pour la Compétitivité et l’Em- manha tem aumento constante. Do drão da indústria girando em torno de
Fundação Nacional para a Ciência (Na- ploi, Cice). A redução do custo de pro- mesmo modo, as multinacionais fran- 6% a 8%, as empresas estão cada vez
tional Science Foundation, NSF) con- dução permitiria tanto reduzir os pre- cesas empregavam 6 milhões de pes- mais propensas a recomprar suas pró-
cedidos a dois pesquisadores da Uni- ços, a fim de ganhar participação de soas no exterior em 2014, contra 5 mi- prias ações para elevar o valor dos tí-
versidade de Delaware; o algoritmo do mercado, como restaurar as margens, lhões, 1,8 milhão e menos de 1 milhão, tulos”, explica Colletis. Muito difundi-
Google foi financiado pela NSF. incentivando o investimento na atua- respectivamente, de suas concorren- da nos Estados Unidos, essa prática
Na indústria farmacêutica, “75% lização do portfólio e na contratação. tes alemãs, italianas e espanholas. está crescendo na França: 115 bilhões
das novas entidades moleculares Encontramos aí o atemporal teorema A opção francesa pela “realocação” de euros foram dedicados a ela entre
prioritárias são na verdade financia- de Schmidt – “Os lucros de hoje são os internacional deve-se em parte ao posi- 1999 e 2015.9 Em 2018, as empresas do
das por entediantes e kafkianos labo- investimentos de amanhã e os empre- cionamento do setor nos níveis de baixa CAC 40 (as maiores da França) recom-
12 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2019

praram 10,9 bilhões de euros em mente, o protecionismo que caracteri- canadense e os painéis solares chine- 1 Jean-Christophe Le Duigou (org.), La Bourse ou
l’industrie [Ou a Bolsa, ou a indústria], Éditions de
ações. No total, é uma perda de recei- zou os Trinta Gloriosos não provocou ses, sem se preocupar com as conse- l’Atelier, Paris, 2016.
tas impossível de quantificar: “Quem conflito algum. A ideia de que o prote- quências (retaliação, ineficácia da me- 2 Cf. Frédéric Pierucci e Matthieu Aron, Le Piège amé-
pode enumerar o enorme desperdício cionismo inevitavelmente implica dida na ausência de uma política ricain [A armadilha norte-americana], JC Lattès, Pa-
ris, 2019, e Jean-Michel Quatrepoint, “Au nom de la
de riqueza jamais produzida, de em- “isolamento” nacional e fim das trocas industrial etc.). O protecionismo não é loi... américaine” [Em nome da lei... dos Estados Uni-
pregos jamais criados, de projetos co- também não resiste à análise dos fa- uma varinha mágica capaz de ressus- dos], Le Monde Diplomatique, jan. 2017.
letivos, sociais e ambientais jamais tos: “Dos anos 1890 até 1914, todos os citar todas as velhas indústrias de ou- 3 Jacques Sapir, “Politique industrielle et privatisa-
tions” [Política industrial e privatização], blog Rus-
empreendidos, apenas por causa [des- países industrializados, com exceção trora nem um programa econômico sEurope, 21 jun. 2014.
sa exigência de rentabilidade]?”, la- da Grã-Bretanha, seguiram políticas em si mesmo: ele é apenas uma ferra- 4 Mariana Mazzucato, The Entrepreneurial State. De-
menta o economista Laurent Cordon- comerciais de inspiração protecionis- menta que pode ser colocada a serviço bunking Public vs. Private Sector Myths [O Estado
empreendedor. Desmascarando os mitos do públi-
nier.10 Se Bruno Le Maire, ministro ta”, recorda o economista Gaël Giraud. tanto de uma política conservadora, co versus privado], Anthem Press, Londres, 2013.
das Finanças, quer que a França se “Isso não impediu em nada que o pe- unilateral e agressiva como de uma po- 5 Mariana Mazzucato, “TED Global 2013 talk in
torne uma “grande potência indus- ríodo fosse de uma expansão muito lítica cooperativa, ecológica e social. Edinburgh: Government – investor, risk-taker, inno-
vator” [TED Global 2013 em Edimburgo: governo
trial”, ele pode começar retirando as sustentada do comércio internacional Os defensores do “protecionismo – investidor, tomador de riscos, inovador], out.
empresas das garras das finanças. (5% de crescimento anual), a ponto de solidário” propõem, por exemplo, a 2013, on-line no YouTube.
os historiadores o descreverem como adoção de barreiras alfandegárias eu- 6 Escritório federal de estatística da Alemanha, Des-
tatis, “EU-Vergleich der Arbeitskosten 2017:
O PROTECIONISMO É INEFICIENTE E PERIGOSO ‘primeira globalização’.”12 ropeias para prejudicar importações Deutschland auf Rang sechs” [Comparação entre
Para o presidente francês Emma- O que o protecionismo significaria oriundas de países que não respeitem custos de trabalho na Europa 2017: Alemanha em
nuel Macron, “o protecionismo é a guer- hoje? Os aduladores do livre-comércio certos padrões salariais, sociais, fiscais sexto lugar], Wiesbaden, 16 maio 2018.
7 Dados do Bureau de Estatísticas do Trabalho (Bu-
ra, é uma mentira, é o isolamento” (26 adoram salientar que, graças à globa- e ambientais. O objetivo não seria subsi- reau of Labor Statistics, BLS) dos Estados Unidos.
abr. 2017). Ele constitui um dos “dois lização, as famílias pobres dos países diar um “Jurassic Park industrial”,13 mas 8 Florian Botte et al., “Le coût du capital: entre pertes
maiores riscos globais”, segundo o go- ricos puderam encher seus carrinhos proteger as indústrias nascentes indis- et détournement de richesses. Mieux saisir le capital
pour en mesurer le coût pour la société” [O custo do
vernador do Banco da França, François de compras com camisetas, brinque- pensáveis para a transição ecológica e, capital: entre perdas e desvio de riqueza. Melhor
Villeroy de Galhau:11 “O aumento do dos e telas planas a preço de banana. acima de tudo, para além da questão in- usar o capital para medir seu custo para a socieda-
preço das importações prejudica as fa- Embora seja verdade que uma política dustrial, criar uma ordem comercial de], relatório de pesquisa, Universidade Lille-I e Uni-
versidade do Littoral-Côte d’Opale, Clersé, 2017.
mílias mais desfavorecidas, que pro- protecionista elevaria o preço desses mundial mais justa e equilibrada. Isso 9 Florian Botte et al., “Le coût du capital...”, op. cit.
porcionalmente consomem mais pro- produtos importados, ela também po- porque não é o protecionismo que leva 10 Laurent Cordonnier, “Coût du capital, la question
dutos importados”. deria ajudar a sair dessa obsessão pelo à guerra. É o sistema desregulamenta- qui change tout” [Custo do capital, a questão que
muda tudo], Le Monde Diplomatique, jul. 2013.
O mito do protecionismo que leva- “custo do trabalho” que comprime os do atual que erige a competitividade 11 Carta de introdução ao relatório anual do Banque
ria diretamente à guerra e do “doce co- salários. Em outras palavras, o que em valor sagrado e coloca os trabalha- de France dirigida ao presidente da República, 20
mércio” que, ao contrário, favorece a perderíamos como consumidores, ga- dores e os sistemas fiscais nacionais jun. 2018.
12 Gäel Giraud, “L’épouvantail du protectionnisme”
paz já foi refutado pela história. Em nharíamos como trabalhadores. em concorrência, em uma corrida sem [O espantalho do protecionismo], Revue Projet,
1870, a França e a Prússia entraram em Não se trata de aplaudir o presiden- fim rumo à precarização social. n.320, La Plaine-Saint-Denis, fev.-mar. 2011.
guerra pouco depois de assinarem um te dos Estados Unidos, Donald Trump, 13 Augustin Landier e David Thesmar, “L’ère du ‘Juras-
sic Park’ industriel” [A era do “Jurassic Park” indus-
acordo de livre-comércio. Inversa- que inventa tarifas contra o alumínio *Laura Raim é jornalista. trial], Les Échos, Paris, 21 out. 2009.

Reconciliar indústria e natureza


Associando desenvolvimento econômico com melhora das condições de vida, as forças políticas progressistas
há muito negligenciam o impacto das atividades humanas sobre o meio ambiente. A urgência de proteger o planeta
implicaria renunciar aos benefícios da sociedade industrial? Não necessariamente
POR JEAN GADREY*

M
uitos economistas, líderes indústria e a construção, a França con- um editorial intitulado “Voltemos a caráter “produtivo”, o qual se oporia à
políticos e sindicalistas con- tinua mais industrial do que países priorizar a indústria” e assinado por “improdutividade” dos serviços.
sideram urgente reindus- que dificilmente poderíamos descre- trinta economistas, políticos e sindi- Depois, o quadro foi acrescido de
trializar a França. Entre 1974 ver como desastres do sacrossanto calistas de tendência à esquerda, pode outros postulados. Por exemplo, exi-
e 2017, a participação da indústria no crescimento: países nórdicos, Estados nos dar um bom resumo deles: “A in- bindo ganhos de produtividade mais
total de empregos – incluindo-se a Unidos, Canadá, Reino Unido, entre dústria arrasta consigo toda a ativida- elevados do que a maioria dos servi-
produção de energia e as indústrias outros. E, embora seja verdade que al- de, a pesquisa, o investimento e, em ços, a indústria foi travestida de “gali-
extrativas, mas excluindo-se a cons- gumas nações ricas exibem melhores última análise, o emprego” (Le Monde, nha dos ovos de ouro” pelo economis-
trução – caiu de 24,4% para 10,3%. A resultados na área – basicamente a 18 jan. 2017). ta Benjamin Coriat,3 uma vez que ela
participação dos serviços, comerciais Alemanha e o Japão –, neles a desin- Como pode, porém, um setor que “puxaria” todo o crescimento. Outros
ou não, chegou a 81% em 2017.1 A in- dustrialização do emprego não é me- representa entre 8% e 20% do conjunto afirmam que a indústria determina a
dústria é responsável por apenas 14% nos pronunciada do que na França: dos empregos e do valor agregado nos competitividade internacional, mui-
do valor agregado, ou seja, da riqueza entre 1991 e 2018, a participação do países ricos ser o motor que “arrasta” tas vezes sem mensurar que aquilo
econômica produzida a cada ano. Os emprego industrial no emprego total todo o resto, inclusive o emprego? Essa que ontem era verdade hoje perdeu re-
áugures da desgraça não se cansam de caiu 14 pontos percentuais na Alema- crença remonta à oposição forjada no levância: a agricultura e os serviços
repetir: isso é uma catástrofe. nha, muito mais do que na França século XIX pelos economistas clássi- não constituem as grandes questões
Seria a França diferente dos outros (que teve uma queda de 9 pontos, co- cos e por Karl Marx: a indústria cria ri- de todos os chamados acordos de li-
países? Absolutamente não. Segundo mo o Japão).2 queza; os serviços se desenvolvem nos vre-comércio? Outro argumento, tão
os dados da Organização Internacio- Quais são os argumentos dos in- excedentes que ela cria. O primado da ultrapassado quanto, postula que ape-
nal do Trabalho (OIT), que reúnem a dustrialistas? O excerto a seguir, de indústria residiria, portanto, em seu nas a inovação industrial importa...
JULHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 13

Quando se trata de explicar o declí- debate público. É o caso, único na


nio histórico do emprego industrial, França, dos quadros prospectivos
frequentemente se aponta o dedo para imaginados pelo coletivo négaWatt,10
as deslocalizações. Mas, na França, relacionados aos cenários agrícolas
elas representam, na verdade, entre Afterres2050 da associação Solagro.
10% e 15% do fenômeno.4 É importan- Um exemplo entre as dezenas ofe-
te desacelerá-las – ou até impedi-las –, recidas nessas obras (que não são uma
mas ainda ficaremos com 85% a 90% bíblia, mas um ponto de referência
do “problema” para resolver. ideal): as necessidades de mobilidade
das pessoas e a produção industrial
PRODUZIR MAIS PARA CONSUMIR MAIS capaz de atendê-las. Os estudos cita-
Entre as causas da perda de 2,2 mi- dos antecipam uma redução acentua-
lhões de empregos na França entre da na dependência de carros até 2050
1980 e 2017, as mais decisivas relacio- – ao passo que, em 2019, um em cada
nam-se a duas tendências históricas. A quatro trajetos de carro na França é
primeira delas é que a demanda das inferior a 3 quilômetros; mais da me-

© Daniel Kondo
famílias é cada vez menor em termos tade das pessoas que vive a menos de 1
de bens industriais e cada vez maior quilômetro de seu local de trabalho se
em termos de serviços, sejam eles co- desloca até ele de carro; e o transporte
merciais ou não: a participação dos público é tanto insuficiente como caro
bens duráveis (automóveis, móveis, demais. A sobriedade dos usos, por-
eletrodomésticos) e semiduráveis (rou- tanto, será mais importante do que a
pas, principalmente) no consumo efe- adoção, muito discutível do ponto de
tivo das famílias caiu de 22%, em torno 1975), produziu danos (ou “externali- lugares. Fenômeno semelhante ocorre vista ambiental, de veículos elétricos
de 1960, para 12,4%, em 2017.5 A segun- dades”) sociais, sanitários e ambientais com a industrialização do comércio, ou híbridos (prioridade única dos in-
da é que os ganhos de produtividade identificados desde a década de 1970. por meio de sua “hipermercantiliza- dustriais e dos líderes políticos). As
foram e continuam sendo mais eleva- Foi então que a pegada ecológica da hu- ção” produtivista, e com a de alguns inovações industriais não desaparece-
dos na indústria do que na maioria dos manidade começou a exceder a capaci- serviços, que se desumanizam, trans- riam, mas, em vez de servirem à “cor-
serviços. A combinação dessas duas dade da natureza de fornecer os diver- formando-se em fábricas high-tech. rida pelo poder”, elas alimentariam
longas tendências explica o essencial sos recursos renováveis englobados na Nesse contexto, industrializar para modelos mais sóbrios.
do declínio da participação da indús- produção material, e as emissões de obter ganhos de produtividade signifi- Em termos concretos, até 2050 o
tria no conjunto do emprego, tanto na carbono na atmosfera excederam o li- ca, na maioria das vezes, desumanizar número de quilômetros percorridos
França como em quase todo o resto do miar de acionamento do aquecimento a atividade e destruir o meio ambiente por habitante em carro particular cai-
mundo, incluindo o Bric (Brasil, Rús- do clima. Pode-se dizer que, a partir e o clima. Uma outra indústria é possí- ria pela metade, em favor de outros
sia, Índia e China, constituído em desse momento, os ganhos de produti- vel, no entanto – desde que aceitemos modos de transporte menos poluen-
2009),6 que se tornou Brics para inte- vidade (produzir cada vez mais com ca- que ela tenha uma participação menor tes; os veículos teriam uma vida útil
grar a África do Sul, em 2011. da vez menos trabalho) frequentemen- na economia. muito mais longa e usariam principal-
A outra explicação para a queda do te se tornaram perdas, algumas das Para pensar no futuro do setor in- mente fontes de energia renováveis;
emprego industrial conjuga três fenô- quais agora ameaçam bens comuns vi- dustrial (mas também vale para ou- para os 10% de carros que ainda usas-
menos característicos da globalização tais, como o clima e a água, ou recursos tros setores), a visão de conjunto é tão sem derivados de petróleo (contra 90%
neoliberal: 1) a intensificação do tra- não renováveis (minerais, combustí- simples de enunciar quanto difícil de da frota de carros em 2019), o consumo
balho; 2) a concorrência de países com veis fósseis e até areia), que também es- concretizar: o objetivo é produzir, de médio seria de 3 litros a cada 100 qui-
baixos salários e baixos padrões so- tão em processo de esgotamento e, em outra forma, bens que atendam a ne- lômetros. As velocidades máximas se-
ciais e ambientais, o que produz deslo- alguns casos, de colapso. cessidades sociais marcadas pela “so- riam reduzidas. O número médio de
calizações da produção e do consumo briedade material e energética justa”, pessoas por veículo passaria de 1,6 pa-
(compras de artigos produzidos em ela própria pensada em função de li- ra 2,4, graças ao compartilhamento de
outros países); 3) a financeirização das mites e limiares que não devem ser ul- viagens. A indústria automotiva usaria
empresas, o que as leva a fechar insta- A agricultura trapassados para que o mundo per- cada vez mais materiais reciclados e
lações ou a desinvestir, não porque maneça habitável. Isso certamente incorporaria atividades relacionadas à
não tenham mercado, mas porque o
e os serviços concerne ao clima, com o objetivo de reutilização e à locação. Além disso,
retorno do acionista não atinge os pa- não constituem “zero emissões líquidas”8 (ou “neutra- seu consumo de energia (descarboni-
tamares de 10% a 15%. as grandes lidade de carbono”) até 2050, mas zada, mas também não nuclear) cairia
O pensamento industrialista da es- questões de todos também à biodiversidade, cujo declí- pela metade, seu consumo de aço di-
querda, defendido por economistas ou nio é necessário reverter rapidamen- minuiria, e ela abandonaria a adição
por militantes próximos ao movimen-
os chamados acordos te, bem como à redução de alguns ti- permanente de dispositivos eletrôni-
to trabalhista, acusa, de maneira justa, de livre-comércio? pos de poluição (do ar, química, cos, na maioria das vezes inúteis, para
esses três fatores pela “quebra” de em- causada por plásticos) que se torna- se dedicar à produção de equipamen-
presas ou de tecidos industriais. A in- ram desastrosas, e, por fim, à gestão tos de transporte público, bicicletas
dustrialização contribuiu indubitavel- Os industrialistas também se es- sóbria do que resta dos recursos não (elétricas ou não), equipamentos fer-
mente para a melhoria das condições quecem de denunciar o seguinte de- renováveis, atualmente devorados pe- roviários etc.
de vida durante um longo período his- sastre humano, ambiental e sanitário: lo capitalismo termoindustrial a um Sonho acordado? Nem tanto assim,
tórico. Mas a indústria não foi a única o setor agrícola7 tinha, em 2017, apenas ritmo insustentável.9 já que os cenários imaginados apre-
atividade que contribuiu para isso: no 750 mil empregos, contra 1,88 milhão Para passar desses princípios ge- sentam orçamentos e perspectivas
século XX, os serviços públicos de em 1980 – uma queda de 60%, superior rais a perspectivas concretas, convém quantificados para todos os setores e
educação, saúde, transporte e ação so- à do emprego industrial no mesmo pe- entrar nos detalhes dos usos sustentá- produtos: da energia à construção,
cial tiveram um papel não menos im- ríodo (43%). A razão de tal esqueci- veis e, em seguida, da produção das passando pelo aquecimento, eletrodo-
portante, assim como a agricultura mento é simples: a principal causa principais categorias de bens indus- mésticos, eletrônicos e alimentação,
camponesa. desse desastre é... a industrialização triais, incluindo-se a energia em todas sempre com uma avaliação das pers-
Além disso, e acima de tudo, essa in- da agricultura, impulsionada por polí- as suas formas. Isso requer um alto ní- pectivas razoáveis ligadas à progressão
dustrialização com ganhos de produti- ticas agrícolas produtivistas e acordos vel de conhecimento técnico, bem co- da eficiência (energética e material) e
vidade muito elevados, celebrada como de “livre-comércio” que destroem o mo social e cidadão, um trabalho cole- da sobriedade, o que antigamente cha-
o cerne dos Trinta Gloriosos (1945- campesinato, na França e em outros tivo duradouro e atravessado pelo mávamos de “evitar desperdício”.
14 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2019

Para produzir outras coisas de outra Duas questões permanecem: qual sa atividade tem agora significativa- no trabalho, a questão crucial é garan-
forma e de maneira sóbria, esses qua- será a participação na economia de mente mais empregos do que a “pro- tir os percursos profissionais dos tra-
dros prospectivos propõem orientar o uma indústria assim esboçada? E de dução e distribuição de eletricidade, balhadores cujo emprego atual estaria
consumo e a produção industrial para que modo a sociedade como um todo gás, vapor e ar condicionado”, cujos ameaçado, sem impor-lhes grandes
produtos duráveis, reparáveis, reutilizá- responderá a essa nova sobriedade ma- empregos permaneceram estáveis no deslocamentos geográficos. Com este
veis e, em alguns casos, compartilháveis terial e energética, bem como à trans- período. Mas esses dois ramos da in- complemento essencial: acabar com o
– o que requer incentivos, mas princi- formação da produção e do emprego? dústria deveriam passar por um forte produtivismo e o tecnologismo frenéti-
palmente leis. Aqui se une outra corren- Sem dúvida, a participação da in- crescimento, com a expansão das ati- cos é, no fim das contas, uma perspec-
te essencial para imaginar um futuro dústria no conjunto dos empregos pas- vidades de reciclagem e despoluição tiva desejável para muitas pessoas, seja
compatível com os requisitos de prote- saria por um declínio global, mesmo (que devem estar associadas ao des- para melhorar suas condições de tra-
ção do planeta: a do low-tech, ou seja, que alguns de seus ramos tivessem, ao mantelamento da energia nuclear) e o balho, reforçar o sentido de sua ativi-
tecnologias mais sóbrias e mais sim- contrário, uma clara expansão. Mas desenvolvimento das energias reno- dade produtiva ou retomar seu futuro
ples... porém, não menos inovadoras. essa mudança seria menos dramática váveis, preferencialmente de proximi- na sociedade.
do que aquela que atravessamos há dé- dade e por fora da ação das multina-
RECUPERAR, REPARAR, REVENDER E DIVIDIR cadas. A atividade produtiva se afasta- cionais que as deturpam. *Jean Gadrey é professor honorário de Eco-
“Para reciclar melhor os recursos e ria dos processos produtivistas, des- nomia da Universidade de Lille, autor de Adieu
aumentar a vida de nossos objetos”, es- truidores do emprego na indústria e à la croissance. Bien vivre dans un monde so-
creve Philippe Bihouix, um dos princi- em toda parte; e o necessário questio- lidaire [Adeus ao crescimento. Bem viver em
pais inspiradores dessa corrente em namento do livre-comércio global em Ultrarricos um mundo solidário], Alternatives économi-
expansão, “será necessário repensá-los favor de uma relocalização parcial res- emitem trinta a ques – Les petits matins, Paris, 2010.
em profundidade, projetá-los para se- tringiria as perdas de empregos. quarenta vezes
rem simples e robustos (Ivan Illich te-
ria dito ‘agradáveis’), reparáveis e reu- EMISSÃO DE GÁS, UM ULTRAPRIVILÉGIO
mais gases de
1 Insee, contas nacionais 2017.
tilizáveis, padronizados, modulares, Para refletir sobre os setores gera- efeito estufa do 2 Banco Mundial.
baseados em materiais simples, fáceis dores de empregos da transição, pode- que os 10% 3 Conferência realizada em Lille, em 21 de novembro
de 1994.
de desmontar; utilizar com parcimô- mos tomar o quadro prospectivo néga- mais pobres 4 Cf. Michel Husson, “Plusieurs rapports analysent
nia recursos raros e insubstituíveis, co- Watt 2017, cujo exemplo-chave é a área l’impact des délocalisations sur l’emploi” [Diver-
sos relatórios analisam o impacto das deslocaliza-
mo cobre, níquel, estanho e prata; li- das energias renováveis, que agregaria ções sobre o emprego], nota para o Observatório
mitar seu conteúdo eletrônico”. E mais de 330 mil empregos até 2030. Europeu das Relações Industriais (Eiro), jun.
acrescenta: “Será necessário, por fim, Outra fonte, a Plateforme Emplois-Cli- Os estilos de vida mudariam pro- 2005. Disponível em: <http://hussonet.free.fr:
http://tinyurl.com/mqq9wbg>.
refletir sobre nossos modos de produ- mat,12 um coletivo que reúne dezesseis fundamente. Mas reivindicar a sobrie- 5 Insee, contas nacionais.
ção, privilegiar fábricas reimplantadas grandes associações e sindicatos liga- dade contra o consumismo seria insufi- 6 Cf. “Les BRIC, ateliers industriels ou agricoles du
próximo a áreas de consumo, um pou- dos a pesquisadores, publicou em ja- ciente se não esclarecêssemos quais monde, sont de plus en plus... des économies de
services” [Os Bric, considerados as fábricas ou os
co menos produtivas, porém mais in- neiro de 2017 um relatório intitulado categorias sociais seriam convidadas a celeiros do mundo, são cada vez mais... economias
tensivas em trabalho, menos mecani- Un million d’emplois pour le climat modificar mais seu comportamento em de serviços], 2 abr. 2014. Disponível em: <blogs.
zadas e robotizadas, mais eficientes [Um milhão de empregos para o cli- nome do interesse geral. São necessá- alternatives-economiques.fr>.
7 Convencionalmente, acrescentam-se aí a silvicul-
em termos de recursos e energia, arti- ma]. Entre os ramos produtivos em ex- rios esforços ligados à proteção do meio tura e a pesca.
culadas a uma rede de recuperação, re- pansão: os ecomateriais, os equipa- ambiente e também ao sistema tributá- 8 Emissões líquidas são a diferença entre as emis-
paro, revenda e compartilhamento dos mentos de transporte da mobilidade rio: eles podem ser justos ou injustos. sões de carbono e o sequestro ou captura de car-
bono, essencialmente pela natureza (florestas,
objetos do cotidiano”.11 ativa ou de baixa emissão, as indús- Quando os ultrarricos emitem trinta a solos vivos, oceanos), que faz isso muito bem – se
Nada disso se parece com o retorno trias ligadas à reabilitação térmica de quarenta vezes mais gases de efeito es- não for destruída.
a um passado industrial tão mitificado habitações e edifícios etc. tufa do que os 10% mais pobres, mas o 9 Perspectives des ressources mondiales 2019 [Pers-
pectivas sobre os recursos mundiais 2019], Progra-
quanto poluidor. A alter-indústria ca- Embora o emprego no conjunto da atual imposto sobre o carbono pesa ma das Nações Unidas para o Meio Ambiente.
paz de nos salvar do pior exigirá mui- indústria tenha caído 46% desde seu quatro vezes menos sobre a renda dos 10 “Scénario négaWatt 2017-2050” [Cenário pros-
tas inovações, mas inovações distintas recorde histórico, em 1974, até 2016, primeiros,14 a injustiça flagrante provo- pectivo négaWatt 2017-2050] (https://negawatt.
org). Ver sobretudo o relatório “Hipóteses e resul-
daquelas propostas pela hipertecnolo- há alguns ramos industriais que fize- ca a rejeição maciça das medidas im- tados”, jun. 2018.
gia – ainda que algumas tecnologias já ram mais do que resistir.13 O maior postas. A redução das desigualdades é 11 “Le mythe de la technologie salvatrice” [O mito da
existentes ou a serem aperfeiçoadas crescimento (os efetivos mais que do- uma das condições para a aceitação da tecnologia salvadora], Esprit, Paris, mar.-abr. 2017.
12 <www.emplois-climat.fr>.
possam contribuir para isso, especial- braram) foi registrado na “produção e sobriedade energética e material. 13 Séries longas do Insee sobre o emprego por ramo
mente para o componente da eficiên- distribuição de água, saneamento, Quanto à aceitabilidade das mu- produtivo.
cia no uso de energia e materiais. gestão de resíduos e despoluição”. Es- danças a serem operadas no emprego e 14 Blog de Jean Gadrey, 20 nov. 2018.

DISTRIBUIÇÃO APOIO

DO DIRETOR DE UMA FAMÍLIA DE DOIS


FRANÇOIS CIVIL
C
JOSÉPHINE JAPY MELHOR ATOR
M
MELHOR FILME

CM

MY

CY

CMY

K
UM FILME DE
HUGO GÉLIN

11 DE JULHO NOS CINEMAS


JULHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 15

O FUTURO DA INDÚSTRIA

O mito da “burguesia nacional”


Basta ao Estado incentivar o empresariado nacional para desenvolver o setor industrial?
Durante os anos 1960 e 1970, diversos países latino-americanos, asiáticos e do Oriente Médio optaram
por essa estratégia, enfrentando a cada nova tentativa as mesmas dificuldades
POR VIVEK CHIBBER*

A
análise das estratégias de desen- sua missão principal: desviar o fluxo riam à consolidação do Estado, uma ções os protegia da concorrência es-
volvimento adotadas após a Se- de investimentos públicos e privados vez que tal abordagem entravaria seu trangeira. Em muitos setores, os
gunda Guerra Mundial em al- dos setores que geram grandes lucros, próprio desenvolvimento. Além do mercados locais foram rapidamente
guns países da América Latina, porém com um retorno social frágil, a mais, os teóricos da década de 1950 não dominados por um punhado de in-
da Ásia e do Oriente Médio organiza- fim de reorientá-los para áreas de alto esperavam por isso: a literatura teórica dustriais: a realização de economias
-se, de forma geral, em torno de três desempenho social. da época descarta essa possibilidade. de escala implicava investimentos
ideias bastante consolidadas. Primei- Na América do Sul, no Oriente Mé- Os defensores da tradição marxis- pesados nos meios de produção, o
ro, fala-se em uma industrialização rá- dio e na Ásia Meridional, as estratégias ta atribuem o papel de mau a outra que beneficiou quem chegou primei-
pida, realizada por meio do empreen- de desenvolvimento lideradas pelo Es- parte da burguesia, a dos comprado- ro. Vantagem reforçada por outro as-
dimento de enormes esforços com o tado transformaram o conjunto da res. Esses capitalistas locais – que pecto da industrialização por substi-
objetivo de alcançar os países desen- economia na direção desejada. Mas mantinham estreitos laços com a me- tuição das importações: a limitação
volvidos. No centro de tal estratégia essa mudança efetuou-se de maneira trópole, muitas vezes por meio de ati- deliberada, por meios administrati-
está o mecanismo da industrialização caótica, à custa de gastos públicos co- vidades comerciais ou especulativas vos, do número de produtores em de-
por substituição das importações, cuja lossais, resultando em setores priva- relacionadas ou não à exportação de terminado setor, pois o pequeno por-
finalidade é favorecer o crescimento dos ineficientes. O custo desses proje- produtos agrícolas – eram suspeitos te do mercado fazia que os dirigentes
das indústrias por meio de um proces- tos é claramente refletido na crescente de não se engajar no desenvolvimento temessem uma concorrência excessi-
so em duas etapas: primeiro, limitar a pressão orçamentária que o processo nacional. Claro que os industriais na- va ou destrutiva.
chegada de importações, instauran- colocou sobre os países. Estes teriam cionais não eram vistos como aliados Uma vez protegidos da concorrên-
do-se tarifas alfandegárias e controles ao mesmo tempo de absorver grande nas questões sociais, mas considera- cia estrangeira, os capitalistas locais
de qualidade, de modo a abrir um mer- parte das perdas incorridas pelo setor va-se ser possível contar com eles para adquiriram um quase monopólio em
cado para a indústria local; segundo, privado, continuar a subsidiá-lo e ad- trabalhar na construção de um mode- seus respectivos mercados: eles não
apoiar o rápido crescimento dessas ministrar o crescente desequilíbrio na lo burguês de desenvolvimento. Mais eram mais instados a inovar, a investir
empresas por meio de subsídios con- balança comercial, uma vez que a im- que isso: eles seriam essenciais para a e a se modernizar. Em tal regime de
sequentes. Dessa forma, os empreen- portação de bens de capital não foi emergência deste. produção, não há necessidade de usar
dedores nacionais teriam à sua dispo- compensada por um fluxo de investi- Após a Segunda Guerra Mundial, subsídios para melhorar o aparato
sição dois importantes instrumentos mento para setores de atividade favo- as elites políticas da América do Sul, da existente – mais vale lançar atividades
– subsídios e tarifas alfandegárias – ráveis à exportação. Se o Estado estava Índia e de algumas regiões do Oriente em outros setores a fim de obter uma
para criar um espaço propício ao seu realmente no comando, como explicar Médio desejaram industrializar suas vantagem de “pioneiro”. Para as bur-
crescimento, protegidos da concor- que ele tenha tido tantas dificuldades, economias o mais rápido possível. Di- guesias nacionais, a industrialização
rência dos países mais avançados. as quais precipitaram o colapso do versas experiências anteriores mostra- por substituição de importações re-
A segunda dessas ideias muito di- episódio “desenvolvimentista” e a vi- vam que, entregues a si mesmos, os in- presentava, assim, um maná de lucros,
fundidas sugere que a industrialização rada neoliberal? dustriais relutam em investir em com a condição, no entanto, de que es-
foi concebida como um “projeto co- Para muitos, a resposta mais con- setores que prometem crescimento sa política se limitasse à distribuição
mum” entre as elites políticas, os altos vincente consiste em destacar a in- apenas a longo prazo. Na maioria dos de subsídios, sem a possibilidade de os
funcionários públicos e o patronato competência dos líderes políticos. casos, os produtos que geram lucros dirigentes políticos controlarem seu
nacionais. Embora haja quem (timida- Uma avalanche de estudos realizados rápidos e elevados têm um retorno so- uso. A seus olhos, o componente disci-
mente) inclua os trabalhadores nesse nos últimos quinze anos mostra que a cial pequeno, ou até inexistente. A po- plinar da industrialização por substi-
grupo, os verdadeiros protagonistas maioria dos países desenvolvimentis- lítica de planejamento industrial vi- tuição das importações constituía um
são em primeiro lugar os industriais e tas do Sul não dispunha da capacidade sou, portanto, conduzir as empresas a entrave intolerável.
as elites políticas então emergentes. institucional necessária para executar uma direção que favorecesse simulta- O conflito entre a burguesia nacio-
A terceira ideia, que não se ques- suas políticas industriais. Daí esta ou- neamente os dois tipos de desempe- nal e os planejadores econômicos nem
tiona mais, é a de que o Estado teria tra questão: se o dirigismo requer cer- nho: o econômico e o social. Os plane- sempre foi aparente. Os industriais che-
tido um status privilegiado no contex- ta dose de consolidação do Estado, por jadores, de maneira geral, adotaram garam a pedir ao Estado que trabalhas-
to de sua aliança com o mundo em- que as elites políticas não criaram as métodos gentis para convencer seus se pelo desenvolvimento. Mas o que eles
presarial. Isso explica que o processo instituições adequadas? Talvez por parceiros: subsídios, empréstimos a desejavam era que o dinheiro público
de industrialização rápida seja apre- causa da oposição de seu principal juros baixos, benefícios fiscais etc. fosse colocado à sua disposição, não
sentado como um conjunto de proje- “parceiro” durante esse processo: a Apesar de tudo isso, a política indus- que se instaurasse um elemento de pla-
tos de desenvolvimento “dirigidos pe- “burguesia nacional”. trial manteve a perspectiva de um ele- nejamento econômico – em resumo:
lo Estado”, cuja história é a seguinte: A expressão é aqui entendida no mento coercitivo em caso de resistên- socialização do risco sem ameaça à
em razão de sua juventude e do pe- sentido que lhe dão seus criadores, os cia, a fim de assegurar que o dinheiro apropriação privada do lucro.
queno porte do setor industrial local marxistas da Segunda e especialmente público fosse efetivamente emprega-
nos países em questão, do desenvolvi- da Terceira Internacional. Ela designa do para os fins desejados. Em suma, *Vivek Chibber é professor associado do
mento desigual e desconforme dos os capitalistas locais que apostam no uma vez que oferecia ajuda, o governo Departamento de Sociologia da Universida-
mercados e das deficiências dos mer- mercado nacional, procuram emanci- considerava que os industriais não po- de de Nova York. Autor de La Théorie post-
cados financeiros, foi necessário que par-se do domínio da potência “cen- diam fazer o que quisessem, do jeito coloniale et le spectre du capital [A teoria
os líderes políticos se encarregassem tral” e unem forças com o Estado em que quisessem. pós-colonial e o espectro do capital], Les
da industrialização. Mas essa imagem nome da industrialização. Diante dessa Os capitalistas, por sua vez, viam Éditions de l’Asymétrie, Toulouse, 2018. Uma
não explica as dificuldades encontra- definição, parece paradoxal a hipótese as coisas de outro modo. A industria- versão deste texto foi publicada na edição de
das pelos Estados no cumprimento de de capitalistas nacionais que se opo- lização por substituição das importa- 2005 da revista Socialist Register.
16 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2019

POLÊMICAS SOBRE O CENSO NORTE-AMERICANO

“Qual é sua raça?”


Você é “negro”, “branco”, “ameríndio”, “asiático”? Há dois séculos, os habitantes dos Estados Unidos devem declarar sua
“raça” aos agentes do censo. Instrumento de políticas contra a discriminação, as estatísticas étnicas assim obtidas terminaram
reforçando o sentimento de pertencimento identitário, sob o risco de legitimar as divisões que elas supostamente combateriam
POR BENOÎT BRÉVILLE*

H
á cerca de dez anos, a adminis- gem” e “ascendência”,6 enquanto ou-
tração norte-americana se pre- tras contestam as categorias propos-
para e multiplica estudos, pes- tas pela administração. Em vez de se
quisas, audiências, relatórios. declararem “brancos”, como lhes era
Em 2020, pela 23ª vez em sua história, solicitado, quase 50% dos residentes
os Estados Unidos vão recensear seus de origem hispânica preferiram, em
habitantes. Centenas de agentes per- 2010, se dizer de “outra raça” (ou seja,
correrão o país a fim de registrar aque- 17 milhões de pessoas e 97% daquelas
les que não o fizeram pela internet. que escolheram essa opção). Habitan-
Aviso aos recalcitrantes: quem se sub- tes de origem árabe e iraniana tam-
trair ao procedimento incorrerá em bém não se declaram “brancos”, uma
uma multa de US$ 5 mil:1 até 1976, o categoria que não reflete as discrimi-
infrator podia até ir para a prisão. nações de que são vítimas. À seme-
O recenseamento norte-america- lhança dos residentes latinos, eles re-
no é uma obrigação decenal inscrita já clamam sua própria categoria. “Não
no primeiro artigo da Constituição.2 sermos contabilizados no recensea-
Pilar do federalismo, ele permite fixar mento significa que o Estado é incapaz

© Daniel Kondo
o número de eleitos que cada estado de fornecer à nossa comunidade os re-
enviará à Câmara dos Representantes cursos e serviços que fornecem aos
e serve de base para a reorganização grupos corretamente identificados”,7
das circunscrições eleitorais. Deter- alega o American-Arab Anti-Discrimi-
mina a partilha dos fundos federais nation Committee [Comitê Antidiscri-
entre os estados (um filão de US$ 800 minação Árabo-Americano].
bilhões em 2018) e, desde os anos 1960,
orienta as políticas de ação afirmativa. à detenção de residentes de origem ja- outra asiática...), ameríndia e autócto- CINCO ESCRAVOS VALEM TRÊS HABITANTES
Embora não desperte grande interesse ponesa. Mais recentemente, após os ne do Alasca, autóctone do Havaí e das Em vez de tentarem se subtrair à
– “Pronuncie a palavra recenseamento atentados de 11 de setembro, indicou ilhas do Pacífico. Depois de escolhe- categoria majoritária, as minorias,
e todo mundo adormece”,3 observou aos serviços de informação os bairros rem sua categoria segundo um princí- bem ao contrário, por muito tempo
certa vez Aaron Sorkin, criador da sé- que concentravam grande número de pio de autodeclaração instaurado em procuraram integrar-se a ela. Quando
rie Nos bastidores do poder –, o assunto moradores de origem iraquiana e egíp- 1970 – a tarefa cabia antes aos agentes começaram a se instalar nos Estados
tem lá sua importância. É bom que to- cia.4 Cerca de quinze estados, várias ci- do censo –, os entrevistados devem in- Unidos, na virada do século XX, os
dos sejam meticulosamente contados. dades e associações iniciaram uma ba- dicar seu subgrupo, conforme os imigrantes do Oriente Médio eram
Pouca coisa, porém, basta para talha jurídica contra a pergunta de exemplos fornecidos pela administra- considerados “asiáticos”, uma catego-
comprometer os resultados. Uma per- Trump. O caso está agora nas mãos da ção. Assim, os residentes de origem ria que lhes vedava solicitar a nacio-
gunta acrescentada, uma opção supri- Suprema Corte, cuja decisão, ansiosa- alemã, italiana e irlandesa, mas tam- nalidade norte-americana. Só conse-
mida, uma formulação ambígua... e a mente esperada, deverá sair nas próxi- bém egípcia e libanesa, são instados a guiram integrar o grupo “branco” em
contagem é falseada. Para a edição de mas semanas. se registrar como “brancos”. Já os 1915, ao fim de um árduo combate em
2020, a administração de Donald Assim, o recenseamento nem sem- ameríndios têm de especificar sua tri- que apresentaram provas “científicas”
Trump decidiu inserir uma pergunta pre funciona como soporífero. “Espe- bo. Já os habitantes hispânicos não são de suas origens caucasianas.8 Quando
que não vem sendo feita há setenta lho no qual se contemplam as nações”, enquadrados em uma “raça”, mas em a administração acrescentou, em
anos: “Você tem nacionalidade norte- segundo o historiador Paul Schor, ele uma “origem étnica”, e dispõem de sua 1930, uma “raça mexicana” ao formu-
-americana?”. Segundo o Centro Sho- esclarece “os processos pelos quais as própria pergunta (“Você é de origem lário do censo, os residentes hispâni-
renstein da Universidade Harvard, es- elites objetivam as outras classes da hispânica, latina ou espanhola?”). A cos também se mobilizaram para re-
sa única pergunta poderia levar mais população”.5 Há dois séculos, o recen- isso se junta outra pergunta destinada integrar o grupo majoritário – o que
de 6 milhões de imigrantes hispânicos seamento norte-americano é alvo de a todos: “Qual é sua ascendência ou conseguiram em 1940. Essa reviravol-
a não se registrar, sobretudo nas cida- controvérsias apaixonadas, que gi- origem étnica?”. Aqui, os jamaicanos, ta não se pode entender sem um retor-
des e estados democratas, que seriam ram com frequência em torno de uma ucranianos, nigerianos e também no às raízes das estatísticas étnicas
assim prejudicados. No contexto da ca- interrogação: “Qual é sua raça?”, feita quebequenses ou afro-americanos norte-americanas.
ça aos imigrantes lançada pelo presi- sem descontinuidade, sob uma for- são instruídos a se declarar como tais. Na primeira vez em que os Estados
dente, alguns moradores sem dúvida ma ou outra, desde a primeira conta- Os habitantes sofrem para se posi- Unidos repertoriaram a cor da pele de
recearão que essas informações sejam gem, em 1790. cionar nesse quebra-cabeça que mis- seus habitantes, em 1790, os agentes do
utilizadas para fins perversos, notada- Como seus dois predecessores, o tura considerações sobre cor da pele, censo podiam escolher entre três cate-
mente sua transmissão aos serviços de recenseamento de 2020 distinguirá origens geográficas e nacionais, filia- gorias: branca livre, outra pessoa livre e
polícia ou imigração. Com efeito, o De- cinco “raças primárias” (às quais se ção tribal ou grupo linguístico. Além escrava. Essa classificação serviria para
partamento do Censo já infringiu a re- acrescentará uma categoria “outra ra- disso, segundo um estudo do próprio aplicar a regra dita dos “três quintos”,
gra da confidencialidade. Durante a ça”): branca, negra e afro-americana, Departamento do Censo, muitas pes- definida pela Convenção Constitucio-
Segunda Guerra Mundial, comunicou asiática (seção desmembrada em vá- soas julgam pouco clara a diferença nal Americana de 1787, em uma época
a outros setores dados que conduziram rios tipos – chinesa, japonesa, filipina, entre os termos “etnia”, “raça”, “ori- na qual, segundo James Madison, um
JULHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 17

dos pais fundadores da República nor- na-se fácil estabelecer cotas (de alunos no Daniel K. Akaka, na vanguarda do de 300 mil euros –, alguns gostariam
te-americana, “os estados estavam divi- nas universidades, de trabalhadores combate vitorioso para conseguir a de importar o modelo norte-america-
didos em diferentes interesses, não pela nas administrações...) para evitar sua criação da categoria racial “Autóctone no. Nicolas Sarkozy, durante sua presi-
diferença de tamanho [...], mas princi- sub-representação. “Quando empu- das ilhas do Pacífico”. Esse registro foi dência, pensou em autorizar esses da-
palmente pelo fato de possuírem ou não nhamos um martelo, todos os proble- também o que mobilizou os militantes dos, antes de desistir. Em seguida, a
escravos”. Durante essa convenção, os mas se parecem com um prego”,11 iro- do “movimento multirracial” nos anos ideia voltou repetidamente à baila, de-
delegados dos estados abolicionistas do niza Kenneth Prewitt, retomando um 1990, defensores da possibilidade de fendida por associações como o Con-
norte queriam excluir os escravos do provérbio famoso. Segundo esse pro- escolher várias categorias, autorizada selho Representativo das Associações
cálculo para a repartição das cadeiras fessor de Direito e ex-diretor do De- a partir do censo de 2000. Cofundadora Negras da França, think tanks como o
no Congresso. “Eu jamais encorajaria partamento do Censo (1998-2001), os do projeto Race (Reclassify All Chil- Instituto Montaigne e intelectuais e
o comércio de escravos [...] autorizan- arquitetos das ações afirmativas fize- dren Equally [Reclassifiquem Todas as militantes que veem aí uma ferramen-
do [os estados do sul] a ter uma repre- ram o contrário. Em vez de se pergun- Crianças Igualmente]), ela própria ta de aferição indispensável para a luta
sentação para seus negros”, justificava tarem sobre a política mais eficaz para mãe de um filho mestiço, Susan Grah- contra as desigualdades. As diversas
hipocritamente o delegado da Pensil- combater as desigualdades e, em se- am afirmou durante seu testemunho pesquisas, conduzidas principalmen-
vânia, o governador Morris.9 Em troca guida, se proverem de instrumentos perante o Congresso, em 1996: “Não te pelo Instituto Nacional de Estudos
de sua entrada na União, os delegados adaptados à tarefa, eles utilizaram fer- sou universitária, advogada ou legisla- Demográficos, sobre as discrimina-
do sul negociaram então este compro- ramentas já existentes para delas ex- dora. Sou apenas mãe. [...] E, quer isso ções que envolvem alojamento, polí-
misso: cinco escravos valeriam ape- trair uma política, com risco de refor- me agrade ou não, percebo que a au- cia, justiça, emprego e escola, mos-
nas três habitantes. Já os ameríndios, çar o sentimento de adesão identitária toestima está diretamente ligada a tram, no entanto, ser possível produzir
com os quais ninguém se preocupava, e legitimar as divisões raciais que pre- uma identidade racial pertinente. Dia medidas precisas a respeito das discri-
valiam zero. tendiam combater. após dia, pais vão inculcando um or- minações, sem recorrer à institucio-
Ao longo de todo o século XIX, as gulho novo em nossas crianças multir- nalização de categorias raciais. Uma
estatísticas étnicas alimentaram a ob- raciais”.14 William Keating, democrata institucionalização que, nos Estados
sessão racial dos Estados Unidos. Peri- então eleito para o Senado de Massa- Unidos, transformou o recenseamen-
tos dos mais variados gêneros invoca- A administração de chusetts, achava mesmo que a opção to em alvo para as reivindicações iden-
vam a forte mortalidade dos negros Trump decidiu inserir multirracial permitia às famílias mis- titárias e para competições comunitá-
para provar não seu mau tratamento, tas se sentirem unidas e serem reco- rias – uma fonte de debates sem fim
mas sua degenerescência. Valiam-se uma pergunta que nhecidas como tais pela sociedade. em troca de resultados medíocres.
dos resultados do censo para demons- não vem sendo feita
trar, ao mesmo tempo, a impossibilida- há setenta anos: DEBATES INTERMINÁVEIS, RESULTADOS MEDÍOCRES *Benoît Bréville é jornalista do Le Monde
de de assimilar os novos imigrantes, o “Você tem nacionalidade Agora, também as minorias sexuais Diplomatique.
“suicídio da raça anglo-saxônica”, os exigem seu reconhecimento no censo.
efeitos deletérios da mestiçagem e até a norte-americana?” Há alguns anos, associações e perso- 1 A título de comparação, na França, a recusa a res-
desvantagem da liberdade para os ne- nalidades políticas reclamam que se ponder ao recenseamento acarreta uma multa de
38 euros.
gros – o censo de 1840 registrava, por inclua uma pergunta sobre a orienta- 2 “O recenseamento será realizado três anos após a
exemplo, muitos “loucos ou idiotas” Meio século depois, esse método ção sexual e a identidade de gênero dos primeira reunião do Congresso dos Estados Uni-
entre os negros livres.10 A cláusula dos está longe de dar frutos. No plano esta- indivíduos, numa argumentação que dos e, depois, a cada dez anos, do modo a ser fixa-
do por lei.”
três quintos vigorou até a abolição da tístico, malgrado a emergência de pe- mistura a luta contra as discrimina- 3 Citado em Christopher Bigsby, Viewing America.
escravatura, em 1865, mas as estatísti- quenas classes média e superior ne- ções e o desafio identitário. “Se o go- Twenty-First-Century Television Drama [Assistin-
cas étnicas persistiram e continuaram, gras, todos os indicadores continuam verno não sabe quantas pessoas LGBTI do à América. Drama televisivo do século XXI],
Cambridge University Press, 2014.
notadamente, a determinar quem po- no vermelho para o grupo como um vivem num bairro, como fará seu tra- 4 Katy Steinmetz, “The debate over a new citizenship
deria pedir a nacionalidade norte-a- todo: taxas de desemprego e encarce- balho e nos garantirá um acesso justo question isn’t the first census fight” [O debate em
mericana. A partir de 1870, a adminis- ramento, disparidade de renda, segre- aos direitos, proteções e serviços de torno de uma nova pergunta sobre cidadania não é
a primeira luta do censo], Time, 27 mar. 2018.
tração acrescentou as categorias gação urbana, violência policial, aces- que precisamos?”, indaga Meghan 5 Paul Schor, Compter et Classer. Histoire des Re-
“chinesa” e “indiana” (no sentido de so aos cuidados... Paralelamente, as Maury, da organização nacional LGB- censements Américains [Contar e classificar. His-
“ameríndia”), a fim de distinguir as políticas de discriminação positiva ali- TQ Task Force [Força-Tarefa LGBTQ]. tória dos recenseamentos norte-americanos], Édi-
tions de l’Ehess, Paris, 2009.
pessoas de raça amarela e vermelha, mentaram um sentimento de injustiça “Durante décadas, nossa luta consistiu 6 Nicholas A. Jones, “Update on the US Census Bu-
conforme a taxinomia em vigor na entre os brancos pobres, excluídos dos em não sermos mais invisíveis. Quan- reau’s race and ethnic research for the 2020 Cen-
época. Em 1890, os agentes do recen- programas de tratamento preferencial, do não há dados sobre uma comunida- sus” [Atualização da pesquisa sobre raça e etnia do
Departamento do Censo dos EUA para o recen-
seamento precisaram se transformar doravante menos bem representados de, pode parecer que essa comunidade seamento de 2020], US Census Bureau, abr. 2015.
em “virtuoses da pele”, capazes de re- que os negros nas universidades e pre- não existe”, opina Scott Wiener, eleito 7 “Census and identity” [Censo e identidade], Ame-
conhecer se os entrevistados eram sos na base da escala social: enquanto para o Senado da Califórnia e ardente rican-Arab Anti-Discrimination Committee. Dispo-
nível em: <www.adc.org>.
brancos ou negros, mas também “mu- as minorias seriam objeto de todas as defensor do acréscimo dessa pergunta. 8 Elena Filippova e France Guérin-Pace, “Les statisti-
latos”, quadroons (um quarto de san- atenções, eles não atrairiam o interes- Aplicado a todas as “comunidades” do ques raciales aux USA: un legs empoisonné” [As
gue negro) ou octoroons (um oitavo). se de mais ninguém.12 Os republicanos país, o raciocínio corre o risco de alon- estatísticas raciais nos Estados Unidos: uma heran-
ça envenenada]. In: Diviser pour unir? France, Rus-
Na primeira metade do século XX, as manipulam esse sentimento há cin- gar consideravelmente o formulário do sie, Brésil, États-Unis face aux comptages ethniques
raças (mexicana, “hindu”...) aparece- quenta anos, a fim de arrancar os bran- recenseamento. [Dividir para unir? França, Rússia, Brasil, Estados
ram e desapareceram ao sabor das cos pobres das mãos dos democratas. A discriminação positiva vem sen- Unidos diante das contagens étnicas], Éditions de la
Maison des Sciences de l’Homme, Paris, 2018.
prioridades políticas, das ondas migra- “Você precisa de um emprego e é o do cada vez mais criticada nos Estados 9 Paul Finkelman, Slavery and the Founders. Race
tórias e dos contra-ataques militantes, mais qualificado. Mas eles o oferecem Unidos, mas ninguém – ou quase nin- and Liberty in the Age of Jefferson [A escravidão e
mas sempre com o mesmo objetivo: le- a uma pessoa de cor por causa da cota guém – contesta as estatísticas étni- os Fundadores. Raça e liberdade na era de Jeffer-
son], Routledge, 1999.
gitimar a divisão racial da população. racial. Isso é realmente justo?”, per- cas. Utilizadas por hospitais, escolas, 10 Paul Schor, op. cit.
A instauração das políticas de guntava sem sutileza um cartaz eleito- programas habitacionais, agências de 11 Kenneth Prewitt, What Is Your Race? The Census
ações afirmativas, na esteira do movi- ral do partido na campanha legislativa emprego, mídias, dirigentes políticos e and Our Flawed Efforts to Classify Americans
[Qual é sua raça? O censo e nossos falhos esfor-
mento dos direitos civis, operou uma de 1990 na Carolina do Norte. universidades, as categorias raciais já ços para classificar norte-americanos], Princeton
completa inversão de perspectiva. Indo além da mera questão das dis- estão enraizadas no cotidiano do país. University Press, 2013.
Concebidas para preservar a segrega- criminações, as estatísticas étnicas se Pode ser fácil adotar seu princípio, 12 Arlie Hochschild, “Anatomie d’une colère de droite”
[Anatomia de uma cólera de direita], Le Monde Di-
ção, as estatísticas étnicas se transfor- tornaram aos poucos um desafio para mas depois será difícil eliminá-lo. Na plomatique, ago. 2018.
maram subitamente em instrumento o reconhecimento identitário. “A clas- França, onde a coleta de informações 13 Citado em Kenneth Prewitt, op. cit.
de luta contra as discriminações. Co- sificação atual do Estado federal nega relativas à origem étnica é (por en- 14 Jon M. Spencer, The new colored people: the mi-
xed-race movement in America [O novo povo de
nhecendo-se exatamente a proporção nossa identidade de povo indígena”,13 quanto) proibida – e mesmo passível cor: o movimento da raça miscigenada na Améri-
de negros em um bairro ou cidade, tor- lamentava em 1997 o senador havaia- de cinco anos de prisão, além de multa ca], New York University Press, 1997.
18 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2019

O NÃO PROCESSO CONTRA A VIOLÊNCIA NAZISTA

A tolerância diante da violência


da extrema direita na Alemanha
Uma célula neonazista, mortes em série, uma polícia que observa: esses são os ingredientes de um drama que assombra
a Alemanha desde o fim dos anos 2000. Instruído entre 2013 e 2018 em Munique, processo revelou por suas carências
a ambiguidade dos serviços de segurança e do Judiciário diante da violência da extrema direita
POR MASSIMO PERINELLI E CHRISTOPHER POLLMANN*

E
m 11 de julho de 2018, Ismail Yo- são de investigação da Assembleia
zgat, abatido, recita salmos, joga Parlamentar de Turíngia evoca um
água no rosto. O pai de Halit Yo- “desastre generalizado que permite a
zgat, assassinado doze anos an- suspeita de sabotagem deliberada”.5
tes pela célula Clandestinidade Nacio- Como se existisse na Alemanha uma
nal-Socialista (NSU, na sigla em tolerância institucional em relação à
alemão), acaba de ouvir o juiz penal do criminalidade da extrema direita,
Tribunal Regional Superior de Muni- mesmo considerando que as agres-
que (Oberlandesgericht) pronunciar a sões racistas e antissemitas aumenta-
sentença contra os cinco réus: severa ram quase 20% em 2018, em compara-
contra a acusada principal, mas cle- ção a 2017, após já terem atingido um
mente com seus quatro cúmplices. pico nos anos anteriores.6
Assim terminou o inquérito públi- Durante todo o processo, os ma-
co da maior série de crimes neonazis- gistrados tentaram circunscrever os
tas na Alemanha desde a Segunda debates aos cinco réus sem estender a
Guerra Mundial. Entre setembro de problemática ao contexto, uma técni-
2000 e abril de 2007, nove pessoas de © Tulipa Ruiz ca de individualização corrente nas
origem estrangeira, principalmente ações penais com origens e implica-
turcas, e uma policial foram assassina- ções sociais e políticas. Nunca foram
das em diferentes cidades alemãs, levadas em consideração as investi-
sempre com a mesma pistola. No iní- gações independentes sugerindo que
cio, a polícia acreditou se tratar de um os três fundadores da célula NSU e
acerto de contas dentro da comunida- seus quatro cúmplices não poderiam
de. Após os assassinatos, as investiga- ter cometido todos aqueles crimes,
ções voltaram-se essencialmente para em toda a Alemanha, sozinhos, e ain-
as famílias, a vizinhança e o círculo de raros jornalistas, as suspeitas contra os até 2011, prolongou-se diante do tri- da se manterem na clandestinidade
relações das vítimas, procurando até setores de extrema direita se reforça- bunal de Munique e em seu julgamen- durante quase catorze anos7. Zschäpe
abalar sua confiança em relação ao ram e se tornaram cada vez mais audí- to. Ao fim do processo, que, entre maio manteve silêncio e se recusou a cola-
morto com falsas afirmações.1 As duas veis. Tudo mudou no início de novem- de 2013 e julho de 2018, mobilizou 540 borar. Dois de seus comparsas, que
comissões de investigação criminal fo- bro de 2011, quando Beate Zschäpe se testemunhas, 56 especialistas, 600 não mostraram nenhum arrependi-
ram batizadas de Bósforo e Halbmond entregou à polícia. Os investigadores mil páginas de dossiê e teve um custo mento por seus atos, mas reivindica-
(“quarto crescente”, em alusão à ban- retomaram o fio de uma história até entre 30 milhões e 37 milhões de eu- ram sua orientação nacional-socia-
deira turca). A mídia incriminou um então cuidadosamente negligenciada. ros, Zschäpe foi condenada à prisão lista, são hoje celebrados como heróis
“sombrio mundo paralelo”, entre dro- Em 1998, após vários pequenos atenta- perpétua. Porém, sob os aplausos de por seus camaradas.
gas e extorsão turca, para esses “assas- dos, Uwe Böhnhardt, Uwe Mundlos e uma dúzia de militantes neonazistas E ainda há as incoerências da in-
sinatos do döner”2 – referência a um tí- Zschäpe criaram a célula NSU. Entre presentes no dia da sentença, seus vestigação. Em 6 de abril de 2006, em
pico prato turco. Na comissão Bósforo, 1998 e 2011, eles conseguiram cerca de quatro cúmplices foram condenados Kassel, Halit Yozgat foi assassinado no
uma das maiores da história criminal 600 mil euros assaltando um super- a penas de dois anos e meio a dez anos cibercafé gerido por sua família. No
alemã, 160 agentes de polícia seguiram mercado e catorze ou quinze bancos, de detenção. Todos foram liberados, local, um cliente, Andreas Temme,
pistas falsas. Quando uma policial foi deixando inúmeros feridos. Durante levando-se em conta o tempo da pri- consultava um site de encontros. Seu
morta, em 2007, em sua viatura e seu mais de catorze anos, os três fundado- são provisória. perfil poderia intrigar: chamado de
colega ficou gravemente ferido com res da NSU viveram na clandestinida- A leveza das penas contrasta com a “pequeno Hitler” em sua juventude –
uma bala na cabeça, os investigadores de na Saxônia, mantidos e protegidos severidade da justiça contra alguns apelido que ele diz não compreender,
foram buscar entre os ciganos o “fan- por uma importante rede de apoio. manifestantes do G20 de julho de 2017 embora tenha admitido ter copiado
tasma de Heilbron” (cidade onde ocor- Após um malsucedido assalto à mão em Hamburgo, condenados a até 39 Mein Kampf, de Hitler, quando era
reu o ataque). Segundo os psicólogos armada e a morte dos dois homens do meses de prisão. Mas o problema não adolescente.8 Ele ocupava então um
da polícia, nessa comunidade “a men- grupo, que se suicidaram ou foram é esse: o processo não dissipou a im- posto de supervisor do serviço de in-
tira é um elemento essencial da socia- mortos por um desconhecido em 4 de pressão de uma “cegueira, chegando a teligência (Verfassungsschutz, serviço
lização”.3 Três atentados à bomba con- novembro de 2011, Zschäpe ateou fogo uma cumplicidade das instituições de proteção da Constituição) no esta-
tra alvos ligados à imigração não ao apartamento em que viviam, en- públicas de segurança e de proteção” do de Hesse, onde chefiava os infor-
fizeram as autoridades voltar seus viou vários vídeos comprometedores à em relação ao movimento neonazista, mantes que supostamente observa-
olhos para o movimento nazista, ape- imprensa e se entregou à polícia. segundo o escritor Ralph Giordano.4 vam os neonazistas. Quando da
sar dos 24 feridos. Em contrapartida, A lógica da não inculpação dos Resumindo o tratamento da NSU pe- investigação, em abril de 2006, Tem-
do lado das vítimas, de seu círculo e de grupos neonazistas, que prevaleceu las autoridades, o relatório da comis- me, que nunca se apresentou como
JULHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 19

testemunha, procurou, durante seu contribuiu amplamente para a cria- No dia do veredicto, 5 mil pessoas
primeiro interrogatório, negar sua ção das redes neonazistas nos novos se reuniram em Munique e cerca de 7
presença no local e na hora do crime. Länders: muitos dirigentes e membros mil em outras dezenas de cidades para
Mas a recuperação de seus dados de desse movimento eram remunerados exigir uma investigação oficial sobre
conexão e o testemunho visual de ou- como informantes pelas agências e os conluios institucionais na crimina-
tro cliente presente no momento dos imunes às investigações penais.13 A lidade racista. E para compartilhar a
fatos indicaram o contrário. Embora descoberta recente de uma rede de declaração de Ismail Yozgat: “Nós não
ele próprio fosse, como admitiu, um oficiais, policiais, agentes do Verfas- reconhecemos esse veredicto!”.
especialista em armas de fogo, disse sungsschutz, magistrados e outros No entanto, o caso não estava ter-
não ter ouvido os dois disparos de pis- funcionários que sonham com um minado. De um lado, Zschäpe, seus
tola, abafados por um silenciador, golpe de Estado e com a execução dos cúmplices e o procurador federal, por
nem ter sentido o odor de pólvora, opositores de esquerda demonstra motivos diferentes, recorreram à Cor-
nem ter percebido, ao deixar o local, o que o verme está profundamente ins- te Federal de Justiça em Karlsruhe.
corpo estendido em um mar de san- talado no fruto.14 Sem dúvida, a decisão demorará vá-
gue entre a bancada da recepção e a rios anos. De outra parte, três famílias
saída.9 Se os juízes qualificaram essas de vítimas entraram com uma ação
afirmações e o próprio testemunho contra o Estado, responsabilizando-o
como críveis, o renomado instituto Três atentados por essas falsas acusações e suas fa-
londrino Forensic Architecture, en- à bomba contra lhas nas investigações junto ao Tribu-
carregado de uma contraperícia pela nal de Nuremberg e pediram indeni-
família Yozgat e por seus apoiadores,
alvos ligados à zações por perdas e danos.
demonstrou que Andreas Temme de- imigração não fizeram Por mais espetacular e midiático
veria ter percebido o assassinato nos as autoridades voltar que seja, o processo de Munique não
planos auditivo, olfativo e visual. seus olhos para o teve, na verdade, nada de excepcional.
Esse caso ilustra as zonas obscuras Ele desempenhou o papel que cabia
que envolveram a ação dos escritórios
movimento nazista ao processo criminal: individualizar e
regionais e federal do Verfassungss- despolitizar problemas sociais, con-
chutz, que, com seus bons trinta agen- centrando-se em fenômenos de des-
tes e informantes, seguiam o trio da Diante das falsas acusações da po- vio, de criminalidade e de culpabili-
NSU.10 Alguns policiais consciencio- lícia e das mídias, e das várias omis- dade individual.
sos se queixaram desde o início: ao sões e falhas das investigações ofi-
longo de 2001, o comissário Sven ciais, as famílias das vítimas e seus *Massimo Perinelli é doutor em História
Wunderlich constatou e criticou, por apoiadores se organizaram. Após os Contemporânea e colaborador da Fundação
várias vezes, oralmente e por escrito, assassinatos de Mehmet Kubasik, em Rosa Luxemburgo; Christopher Pollmann
os entraves praticados pelo Verfas- Dortmund, e de Halit Yozgat, em Kas- é professor de Direito Público da Universida-
sungsschutz do estado de Turíngia, sel, em abril de 2006, eles reuniram de de Lorraine e pesquisador associado do
impedindo que os três fugitivos fos- milhares de pessoas nas duas cidades. Collège d’études mondiales, em Paris.
sem encontrados.11 No entanto, du- Instalou-se uma importante rede de
rante o processo em Munique, os ma- observação e de análise críticas, de 1 “Spuren der Reid-Methode: Erzwungene Ges-
gistrados se recusaram a considerar realizações culturais e artísticas, de tändnisse und institutioneller Rassismus”, Bürger-
rechte & Polizei – CILIP, n.115, Berlim, abr. 2018.
qualquer indício ou prova referentes mobilização política e jurídica, em Disponível em: <www.cilip.de>.
às implicações de diversos colabora- particular após a abertura do proces- 2 Ver Der Spiegel, Hamburgo, 21 fev. 2011, e, sobre
dores do Verfassungsschutz nos cri- so penal da NSU em 2013. Com suas o termo meurtres döner, 4 jul. 2012.
3 Die Zeit online, Hamburgo, 4 fev. 2014.
mes da NSU. Após as revelações de Zs- sete unidades regionais ou temáticas, 4 Discurso de recebimento do prêmio Bertini, em 27
chäpe, em novembro de 2011, seus o grupo NSU-Watch examinou minu- de janeiro de 2014, em Hamburgo. Disponível em:
relatos sobre a NSU foram, aliás, ou ciosamente o trabalho de investiga- <https://bertini-preis.hamburg.de>.
5 Relatório da comissão de investigação da Assem-
destruídos ou classificados como se- ção das treze comissões parlamenta- bleia Parlamentar de Turíngia, Terrorisme de droite
cretos por 120 anos. Assim sendo, o res e cada um dos 438 dias do processo et activités des administrations publiques [Terroris-
dossiê sobre Andreas Temme encon- de Munique.15 mo de direita e atividades das administrações pú-
blicas], 16 jul. 2014 (em alemão). Disponível em:
tra-se imune às investigações parla- Essa mobilização culminou, em <www.thueringer-landtag.de>.
mentares e à instrução criminal até maio de 2017, com uma concentra- 6 Bundesministerium des Innern, Politisch motivierte
2137! Além disso, vários colaborado- ção de 3 mil pessoas em Colônia. O Kriminalität im Jahr 2018, 14 maio 2019. Disponí-
vel em: <www.bmi.bund.de>.
res dos serviços de inteligência se júri popular batizado “Dissolver o 7 Stefan Aust e Dirk Laabs, Heimatschutz. Der Staat
apresentaram às audiências sob nome complexo NSU: nós acusamos”16 re- und die Mordserie des NSU, Pantheon, Munique,
falso e mentiram deliberadamente. uniu ali, durante cinco dias, perso- 2014.
8 Die Welt, Berlim, 6 jun. 2016. Disponível em:
“Não se devem divulgar segredos de nalidades e coletivos críticos ao de- <www.welt.de>.
Estado que minem a ação governa- senrolar da investigação na presença 9 Lutz Bucklitsch, “Kassel: Der Mord an Halit Yozgat
mental”, justificou previamente o res- de vários advogados das partes civis. – die Lügenwelt des Andreas Temme”, 22 jun.
2014. Disponível em: <https://hajofunke.wor-
ponsável federal pelo conjunto dos Considerando que nem os juízes de dpress.com>, assim como Die Welt, 1º mar. 2015.
serviços de inteligência e de seguran- Munique nem as comissões parla- Disponível em: <www.welt.de>.
ça interna, o secretário de Estado mentares esclareceriam o caso ou 10 Hans-Joachim Funke, Sicherheitsrisiko Verfas-
sungsschutz. Staatsaffäre NSU: das V-Mann-De-
Klaus-Dieter Fritsche, em 19 de outu- fariam justiça, os participantes redi- saster und was daraus gelernt werden muss, VSA,
bro de 2012, diante da primeira comis- giram atos de acusação contra uma Hamburgo, 2017.
são parlamentar federal.12 centena de pessoas: não apenas neo- 11 Relatório da comissão de investigação em Turín-
gia, op. cit.
Professor emérito de Ciências Polí- nazistas e outros indivíduos impli- 12 Citado por Hans-Joachim Funke, em: <https://ha-
ticas da Universidade Livre de Berlim cados na organização e execução jofunke.wordpress.com>.
e especialista na célula NSU, Hans- dos crimes, mas também policiais, 13 Relatório da comissão de investigação em Turíngia,
op. cit., assim como Hans-Joachim Funke, op. cit.
-Joachim Funke foi ouvido por várias procuradores, jornalistas e políticos 14 Die Tageszeitung, Berlim, 16 nov. 2018.
comissões parlamentares. Suas pes- que, entre 1999 e 2011, transforma- 15 <www.nsu-watch.info> (em alemão, inglês e turco).
quisas mostram que, após o desapare- ram em culpadas as famílias das ví- 16 Tribunal NSU-Komplex auflösen: Wir klagen an.
Disponível em: <www.nsu-tribunal.de>. Esse pro-
cimento da República Democrática timas e contribuíram para descul- cesso de acusação estendeu-se de 22 a 25 de
Alemã (RDA), o Verfassungsschutz par os setores de extrema direita. novembro de 2018, em Mannheim.
20 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2019

DOSSIÊ ESTADO DE CHOQUE

Morrer antes da morte


No interior das instituições prisionais, deparei-me com alguns espaços cujas dinâmicas de funcionamento destoam dos
pavilhões onde se aglomera o grosso da massa encarcerada. Espaços por vezes sepultados atrás de chapas de aço e de
outros pavilhões, em que a sensação é a de que tudo é possível. Confira o sexto e último artigo do dossiê “Estado de choque”
POR FÁBIO MALLART*

Pessoas executadas pela Polícia Militar que portam réplicas de armamentos, os chama- aceitável, como também há vidas que valem menos do que outras. Em tempos sombrios
dos simulacros. Espaços escondidos no interior das prisões, atrás de placas de aço ou – de dissolução de direitos adquiridos, de propostas autoritárias para a resolução de con-
paredes duplicadas, evidenciando que o segredo é uma das formas estratégicas do poder flitos sociais, de utilização das Forças Armadas para os mais diversos fins –, o presente
político. Corpos desaparecidos, que envolvem ações das forças policiais, as quais mobili- dossiê visa lançar um pouco de luz acerca do horror, do segredo e do abominável que
zam técnicas de fazer sumir, parte integrante de uma ampla maquinaria de produção de marcam as dinâmicas de funcionamento de distintos aparelhos estatais.
morte. Sujeitos que, ao mobilizarem a greve de fome como estratégia política na luta por
direitos, evidenciam que, nos tempos atuais, a defesa da morte não só é publicamente Organização: Fábio Mallart e Luís Brasilino.

S
oldados que invadem favelas conservadora que ganhou força depois
com o rosto coberto por másca- do golpe de 2016, nos impede de descor-
ras, as quais refletem imagens tinar os contornos tenebrosos dos tem-
de caveiras. Blindados chama- pos que correm, nos quais a matança
dos de “Caveirão”, que, enquanto tran- se torna referência normativa do Esta-
sitam pelos mesmos territórios, alter- do, um “Estado policial que ganha for-
nam a chuva de balas, por meio de ma por entre os protocolos de uma su-
buracos adaptados para o cano das ar- posta normalidade democrática”.7
mas, com mensagens anunciando que Se a linha do extermínio é uma
vieram buscar almas. Ossos de um fi- constante em nossa história, é impor-
lho desaparecido deixados na porta da tante salientar que ela se desdobra em
residência de sua mãe por milicianos, diferentes técnicas de produção da
como prova de quem manda na região. morte. É desse modo que Fábio Araújo,
Sepultado como indigente, somente na edição de maio de 2019, nos apre-
depois de um ano sua mãe conseguiria senta uma dessas técnicas que com-
identificar o túmulo onde fora enterra- põe a vasta maquinaria de fabricação
do, no exato dia em que o jovem faria de cadáveres, a saber, o desapareci-
aniversário. Veículos metralhados com mento forçado de pessoas, largamente
dezenas de tiros – podem ser 80, 111 –, utilizado durante o período da ditadu-
fuzilados por pertencerem a certos ra militar, e ainda atuante. Na lógica
corpos, por transitarem por determi- do “fazer sumir”, como nos mostra o
nados territórios. Execuções perpetra- autor, corpos podem ser incinerados,
das pelas forças policiais, envolvendo oferecidos a leões ou porcos, empare-
simulacros de armas de fogo, indiví- dados. Muitos deles evaporam depois
duos desarmados ou pessoas mortas mo –, são pedaços minúsculos, abo- Vidas que são consideradas como ten- de abordagens policiais e nunca mais
por “engano”, que podem ser trucida- mináveis e brutais de nossas políticas do menos valor, passíveis de luto par- aparecem. Se alguns casos se torna-
das por carregarem um canguru para de extermínio, que, como bem sabe- cial e esporádico, que seguem, para ram emblemáticos, como o do pedrei-
transportar bebês e um guarda-chuva, mos, são direcionadas às populações e nos lembrarmos do artigo de Adriana ro Amarildo, desaparecido na favela
“confundidos”, respectivamente, com aos territórios negros, pobres e perifé- Vianna, sem nome e sem rosto, anôni- da Rocinha após a abordagem de poli-
um colete à prova de balas e um fuzil.1 ricos. Vale dizer que foram pinçados mas, capturadas por categorias como ciais da UPP, outros seguem invisíveis;
Autoridades governamentais que rei- dos artigos anteriores que compõem o “traficante”, “suspeito” e “envolvido”, quando muito, convertem-se em re-
vindicam e legitimam a política do dossiê “Estado de choque”, o qual se termos que, juntamente com “con- gistros de ocorrência de desapareci-
abate: Wilson Witzel (PSL), atual go- encerra nas linhas a seguir. Fosse para fronto” ou “auto de resistência”, fazem mentos.8 Em outra chave, Carolina
vernador do Rio de Janeiro, e a narra- estabelecer um traço que conecta tais parte do processo de apagamento des- Grillo e Rafael Godoi oferecem pistas
tiva de que a polícia deve “mirar na textos, que os corta ao meio e que, em sas vidas e mortes.6 valiosas acerca de mais uma dinâmica
cabecinha e... fogo!”;2 João Doria (PS- certo sentido, nos deixa em choque, Evidentemente, as políticas de ex- de produção da morte, as então cha-
DB), governador de São Paulo, e a afir- diria que esses escritos, de tamanho termínio, direcionadas às favelas e às madas ocorrências de resistência se-
mação de que, caso haja enfrenta- reduzido e potência amplificada, lan- periferias pobres das cidades, há muito guida de morte, casos em que as forças
mento, a polícia tem de atirar para çam luz sobre o fato de que o terror e a fazem parte de nossa história, afinal policiais, em supostos confrontos, ma-
matar;3 Jair Bolsonaro (PSL) e a defesa matança estatais figuram como políti- não se deve esquecer dos massacres da tam pessoas alegando resistência à
de que o policial, “se matar dez, quin- cas de gestão de determinadas popu- escravidão e dos povos indígenas, os prisão e legítima defesa. Dentro de um
ze ou vinte, com dez ou trinta tiros ca- lações e espaços urbanos. Populações quais ressoam até os dias de hoje, como amplo espectro de ocorrências, tais
da um, ele tem que ser condecorado, e expostas à precariedade ou, para mo- que compondo um filme macabro, autores dedicam especial atenção aos
não processado”.4 bilizar as palavras de Judith Butler, à transmitido e repetido à exaustão. Po- eventos em que foram apreendidos si-
Esses fragmentos, os quais pode- “distribuição diferencial da condição rém, como observa Vera Telles no pri- mulacros de arma de fogo junto aos
riam ser estendidos e conectados a ou- precária”, submetidas distintivamente meiro artigo do dossiê, aceitar a fórmu- mortos – por exemplo, armas de brin-
© Cau Gomez

tros tantos – corpos que desaparecem à pobreza, à fome, às remoções, às vio- la do “sempre foi assim”, como se quedo, sem desconsiderar as situações
no interior dos presídios, helicópteros lências do Estado, aos danos e – o pon- estivéssemos diante de algo que apenas em que nem sequer havia armas. O
que sobrevoam favelas e atiram a es- to que gostaria de ressaltar – à morte.5 se intensificou desde a virada punitiva e ponto não é a capacidade de um objeto
JULHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 21

enganar as forças policiais, e sim as si- como “mortes naturais”.13 Ora, em pri- do seguro”, sobrevivia uma mulher termínio, parece sugerir um processo
tuações em que esses artefatos são sões superlotadas, com racionamento trancada, pelada e medicada.15 ainda mais atroz, em que os próprios
mobilizados e produzem efeitos, até de água, repletas de insetos e roedores, Nesses espaços, que por vezes res- vivos se convertem numa zona de in-
porque o simulacro é um agenciamen- torturas de toda ordem, alimentação e tam sepultados atrás de chapas de aço distinção, evidenciando que a morte
to que transcende os objetos, compon- atendimentos médicos precários, ine- e de outros pavilhões, demonstrando pode ter início antes mesmo da morte
do-se “de um corpo, sobretudo, negro ficácia e indiferença dos atores do sis- que o segredo é uma das armas do corporal; que é possível morrer antes
e de um território, sobretudo, pobre”. tema de justiça, uma pergunta, que exercício do poder político, a sensação, da morte.
Ademais, esses simulacros de arma de prescinde de respostas, se impõe: em quando se consegue acessá-los, é a de
fogo se enredam com outros – simula- condições mortíferas, o que significa que tudo é possível. São neles, os quais *Fábio Mallart é doutorando em Sociologia
cros de bandido e de justiça –, produ- “morte natural”? conjugam o mínimo de condições de pela USP (bolsista Fapesp/Capes), autor de
zindo “a legitimação institucional dos Longe de esmiuçar essas diferentes existir e o máximo de destruição, que Cadeias dominadas: a Fundação Casa, suas
homicídios cometidos por policiais”.9 técnicas de matar, gostaria de posicio- se concentram os olhos vitrificados, dinâmicas e as trajetórias de jovens internos
Em São Paulo, somente para ter- nar outra peça no tabuleiro em que se paralisados e brilhantes; os corpos es- (Terceiro Nome/Fapesp, 2014) e coorganiza-
mos uma ideia da velocidade com que joga a gestão da vida e da morte. Entre táticos e travados; as cicatrizes e feri- dor de BR 111: a rota das prisões brasileiras
se executa, tomando como base ape- 2012 e 2016, como agente da Pastoral das ainda frescas, resultantes das auto- (Veneta/Le Monde Diplomatique Brasil, 2017).
nas as ocorrências envolvendo poli- Carcerária, transitei por diversas uni- mutilações; o adensamento dos restos
ciais em serviço ou de folga, dados pu- dades prisionais da capital e do inte- de lixo e do cheiro; os internos e as in-
blicizados pela Ouvidoria das Polícias rior de São Paulo, além de visitar, por ternas pelados e excessivamente medi-
demonstram que o número de cadá- dois anos, os três Hospitais de Custó- cados; as imagens que remetem às an- 1 Carolina Moura, “PM confunde guarda-chuva com
fuzil e mata garçom no Rio, afirmam testemunhas”,
veres em supostos confrontos com a dia e Tratamento Psiquiátrico (HCTPs) tigas masmorras; as cenas que nos El País (Ponte), 19 set. 2018.
Polícia Militar, em março deste ano, do estado, conhecidos como manicô- fazem virar o rosto; os sujeitos que ca- 2 Roberta Pennafort, “‘A polícia vai mirar na cabeci-
atingiu a marca de 76 corpos, aumen- mios judiciários.14 Ao longo desse pe- lam; os corpos que babam. Vale dizer nha e... fogo’, diz novo governador do Rio”, O Esta-
do de S. Paulo, 1º nov. 2018.
to de 46% em relação aos números de ríodo, deparei-me com alguns espa- que eles não existem apenas em outra 3 Arthur Rodrigues, “A partir de janeiro, polícia vai
março do ano anterior, quando 52 ços, no interior dessas instituições, prisão, em um dos hospitais de custó- atirar para matar, afirma João Doria”, Folha de S.
“suspeitos” foram executados. Se a cujas dinâmicas de funcionamento dia, mas são engrenagens constitutivas Paulo, 2 out. 2018.
4 Jussara Soares, “Bolsonaro diz que policial que
comparação é por trimestre, também destoam dos pavilhões onde se aglo- das instituições de controle, incluindo, mata ‘10, 15 ou 20’ deve ser condecorado”, O Glo-
se constata uma aceleração no volu- mera o grosso da massa encarcerada, por exemplo, unidades de internação bo, 28 ago. 2018.
me de mortos. Enquanto nos primei- o que não significa, logicamente, que da Fundação Casa. São como que in- 5 Judith Butler, Corpos em aliança e a política das
ruas: notas para uma teoria performativa de assem-
ros três meses de 2018 193 pessoas fo- estes não estejam interligados. tervalos internos, espaços intersticiais bleia, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2018.
ram mortas, em 2019 o número pulou que possibilitam a operação do con- 6 Adriana Vianna, “Políticas da morte e seus fantas-
para a casa dos 203, crescimento de junto. Por um lado, acentuam a dor, o mas”, Le Monde Diplomatique Brasil, mar. 2019.
No que se refere ao valor da vida e, consequente-
5,18%.10 No caso do Rio de Janeiro, a si- frio ou o calor, o cheiro, os psicofárma- mente, ao seu não valor, destaca-se o artigo de
tuação é ainda mais dramática. Sob a Quando se submetem cos, a angústia, o terror. Por outro, e de Roberto Efrem Filho, publicado na edição de abril
de 2019. Nele, ao analisar a greve de fome de
gestão Witzel, o defensor da política homens e mulheres modo complementar, reduzem a luz, o
membros de movimentos sociais ligados à Via
do abate, entre janeiro e maio de 2019, ar, a água, no limite, a fala dos que ago-
em “confrontos” com forças policiais,
a tamanha degradação, nizam em suas dependências, espe-
Campesina em frente ao Superior Tribunal Federal
(STF), incluindo o Movimento dos Trabalhadores
nada menos do que 731 indivíduos o que se ergue na lhando um processo de aniquilação da Rurais Sem Terra (MST), em nome do ex-presiden-
te Luiz Inácio Lula da Silva, o autor nos mostra
tombaram ao chão, aproximadamen- frente de nossos olhos aniquilação, e isso ao infinito, afinal como a resposta do Estado foi a indiferença, acei-
te cinco cadáveres por dia, aumento é uma zona de sombra sempre é possível se deparar com outra tando que tais mortes poderiam acontecer.
7 Vera Telles, “A violência como forma de governo”,
de 12% em relação aos dados de 2018 porta ou outra passagem, as quais de-
referentes ao mesmo período.11
entre a vida e a morte sembocam em um “buraco” ainda
Le Monde Diplomatique Brasil, fev. 2019.
8 Fábio Araújo, “Fazer sumir: o desaparecimento
Ressalta-se que essas políticas de mais invisível do que o anterior.16 como tecnologia de poder”, Le Monde Diplomati-
extermínio operam em estreita corre- Quando se submetem homens e que Brasil, maio 2019.
9 Carolina Grillo e Rafael Godoi, “Simulacros: a hi-
lação com as políticas de encarcera- Locais como a “clínica” do HCTP I mulheres a tamanha degradação, em per-realidade do extermínio”, Le Monde Diplomati-
mento, e isso de diferentes perspecti- de Franco da Rocha, uma estrutura de que o frio ou o calor excessivos, a au- que Brasil, jun. 2019.
vas. Primeiramente, porque o perfil da concreto com poucas celas, leitos e sência de água potável, a falta de lumi- 10 Dados disponíveis em: <https://g1.globo.com/sp/
sao-paulo/noticia/2019/04/02/numero-de-mortes-
população carcerária é o mesmo exe- consultórios médicos, escondida atrás nosidade, a redução da circulação de -em-confrontos-com-policiais-militares-cresce-46per-
cutado pelas ruas da cidade. Em se- de um dos pavilhões do manicômio, ar, entre outras tantas crueldades, pa- cent-em-marco-mostra-estudo-da-ouvidoria.ghtml>.
gundo lugar – e aqui me refiro ao cru- na qual, para utilizar as palavras de recem conformar existências insupor- 11 Igor Melo, “Com Witzel, RJ tem recorde de mortos
em confrontos com a polícia”, UOL Rio de Janeiro,
zamento entre encarceramento e um de meus interlocutores, “a gente táveis, o que se ergue na frente de nos- 18 jun. 2019.
letalidade apenas em solo paulista –, urina e caga num saco, e toma remé- sos olhos é uma zona de sombra entre 12 Fábio Mallart e Rafael Godoi, “Vidas matáveis”. In:
nota-se a existência de casos nos quais dio”. Espaços como o “castigo do casti- a vida e a morte. Em vez de uma linha BR 111: a rota das prisões brasileiras, Veneta/Le
Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, 2017.
as execuções perpetradas por policiais go”, situado no interior da Penitenciá- que separa zonas distintas, confor- 13 Caio Spechoto, “Aumenta número de presos mor-
encapuzados que atuam nas periferias ria Masculina de Lucélia, que emerge mando um limite fixo (morto ou vivo), tos nas cadeias de São Paulo”, Terra, 6 ago. 2018.
– outra dinâmica de morte – se ba- como um corredor camuflado atrás de um pêndulo que oscila livremente 14 Em linhas gerais, trata-se de espaços institucionais,
ligados à Secretaria de Administração Penitenciária,
seiam em indícios de passagem pelo uma chapa de aço, espécie de anexo do (morto-vivo). Portanto, outra econo- nos quais se encontram homens e mulheres em
sistema prisional, tais como antece- “castigo”, setor onde os detentos cum- mia de destruição, distinta das execu- cumprimento de medida de segurança, aplicada aos
dentes criminais e tatuagens feitas no prem sanções disciplinares. Na práti- ções sumárias. Aqui, o que ganha des- sujeitos que foram considerados inimputáveis ou se-
mi-imputáveis, ou seja, que no momento em que pra-
interior das prisões. Em termos práti- ca, um “buraco” fétido, calorento, taque não são os corpos crivados de ticaram um ato previsto pela legislação criminal não
cos, como mostrado em outro traba- composto por um grude no chão, onde balas, os tiros na nuca, os rastros de se encontravam em condições de entender a ilicitu-
lho, a simples passagem pela cadeia dentro de uma das cerca de seis celas sangue, mas a produção lenta e pro- de desse ato, lembrando que, para constatar a inim-
putabilidade, realiza-se uma perícia psiquiátrica.
opera como critério de produção de – sem água, sem visitas e sem banho gressiva de um estado de decomposi- 15 Os “seguros” são espaços institucionais mantidos
morte.12 Por fim, se a detenção produz de sol – subsistia um homem solitário, ção – em síntese, uma política do defi- fora dos pavilhões – estes, por sua vez, conhecidos
vidas potencialmente matáveis do la- que não conseguia falar. Lugares co- nhamento, cuja imagem que a ilustra é como “convívio”. Ao mesmo tempo, essa categoria
se refere aos presos e presas que cometeram atos
do de fora dos muros, não se deve olvi- mo o “seguro” do Centro de Detenção a baba que escorre pela boca. Mais do considerados inaceitáveis por seus companheiros
dar que no interior das muralhas o Provisória Feminino de Franco da Ro- que a morte súbita ou, para recordar- de detenção, como estupro, alcaguetagem e des-
cárcere também aniquila. Levando cha, que, em meados de 2014, possuía mos os desaparecimentos forçados, respeito às visitas.
16 Essas questões, trabalhadas aqui de maneira um
em consideração apenas o ano de 2017, uma das paredes de seu corredor, com “fazer sumir”, trata-se de “fazer ba- tanto rápida, constituem parte importante de minha
532 pessoas faleceram dentro do siste- aproximadamente oito celas, forrada bar”. Em certa medida, nem a produ- tese de doutorado, intitulada Findas linhas: circula-
ma carcerário paulista, e 484 desses de fezes dos pombos. Ao fundo dele, ção da morte nem a manutenção da ções e confinamentos pelos subterrâneos de São
Paulo, que será defendida em agosto de 2019 no
casos foram classificados pela Secre- apartadas por uma grade, mais celas. vida, mas a fabricação do morto-vivo, Departamento de Sociologia da Universidade de
taria de Administração Penitenciária Em uma delas, uma espécie de “seguro que, por mais que se cruze com o ex- São Paulo (USP).
22 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2019

DE BUENOS AIRES A BOGOTÁ, A OFENSIVA CONSERVADORA

A geopolítica da crise venezuelana


A ofensiva de Washington contra o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, está apoiada no consentimento
dos dirigentes conservadores da região, cada vez mais majoritários. Graças a eles, o intervencionismo norte-americano
pôde maquiar-se com uma preocupação humanitária
POR ALEXANDRE MAIN*

N
o início, a Venezuela não figu-
rava na lista de preocupações
do presidente norte-america-
no, Donald Trump. Durante a
campanha presidencial, ele raras vezes
pronunciou o nome do país e jamais su-
geriu a possibilidade de intervenção.
No primeiro semestre de 2017, con-
tudo, o cenário mudou, após uma série
de encontros entre Trump e seu ex-ri-
val das primárias republicanas, Marco
Rubio, um senador da Flórida de ori-
gem cubana. Próximo de doadores e
eleitores hostis a Havana e Caracas
instalados em Miami, Rubio pareceu
convencer seu interlocutor sobre o in-
teresse eleitoral de adotar uma linha

© Wikimedia Commons
dura em relação à Venezuela: segundo
ele, uma mudança no regime do país
latino-americano garantiria a vitória
nesse estado, peça-chave para as elei-
ções presidenciais.
O presidente Trump proclamou
então sua intenção de rever a política Trump frisou que uma “solução militar” estava sobre a mesa, antes de impor uma bateria
de normalização com Cuba, introdu- de sanções devastadoras a Caracas
zida por seu predecessor, Barack Oba-
ma. Quanto à Venezuela, ele frisou que
uma “solução militar” estava sobre a tentado por Washington apareceu: a Apesar de os Estados Unidos não 2018. Em coordenação com Montevi-
mesa, antes de impor uma bateria de Aliança Pacífica, cujos membros (Chi- integrarem oficialmente o Grupo de déu, onde há também progressistas en-
sanções devastadoras a Caracas. Em le, Colômbia, México e Peru) firma- Lima, representantes norte-america- volvidos no caso, o México propõe um
uma situação inimaginável há dez ram acordo de livre-comércio com os nos do alto escalão estão sempre pre- “mecanismo de diálogo” com o objetivo
anos, as principais capitais da região Estados Unidos. Abertamente hostil à sentes nas reuniões. Se de um lado a de ajudar a Venezuela a sair da crise.
se somaram aos esforços de Washing- Unasul, a Caracas e a Havana, o novo administração Obama se manifestou O Grupo de Lima representa, as-
ton de acabar com o governo do presi- conjunto retomou o porta-estandarte positivamente à criação da Aliança do sim, um apoio determinante à admi-
dente Nicolás Maduro. neoliberal e as mesmas políticas que Pacífico, por outro se mostrou discreta nistração Trump. Contudo, apesar da
conduziram o continente a duas déca- quanto ao papel que desempenharia disposição confortável de seus aliados
TECTÔNICA DOS BLOCOS das de estagnação econômica e agu- em sua gênese. A equipe de Trump do Sul no contexto regional mais favo-
A América Latina mudou. Quando dização das desigualdades nos anos adota uma atitude oposta: não perde rável aos Estados Unidos desde a déca-
Obama assumiu, em janeiro de 2009, a 1980 e 1990. uma oportunidade de citar as declara- da de 1990, Washington tem se mos-
maior parte dos países tinha governos O alinhamento se revelou ideal pa- ções do Grupo de Lima com o objetivo trado tão agressivo que pouco a pouco
à esquerda. Dirigentes políticos defen- ra Washington, que lançou então sua de sugerir um consenso regional sobre afasta seus apoiadores. Quando Guai-
diam a independência da região, ape- operação contra a Venezuela. Em a questão venezuelana – um esforço dó evocou a possibilidade de uma in-
sar dos esforços das administrações agosto de 2017, os representantes de acompanhado por grandes meios de tervenção militar estrangeira, os inte-
republicanas precedentes de impedir uma dezena de países latino-america- comunicação, aparentemente cegos à grantes do Grupo de Lima condenaram
o avanço da “onda vermelha” que se nos governados pela direita1 se reuni- uniformidade ideológica da coalizão. severamente “qualquer ameaça impli-
espalhava pelo Sul do continente no ram no Peru, onde assinaram a Decla- Quando o dirigente da oposição cando uma ação armada na Venezue-
início do século XXI. ração de Lima, que denunciava uma Juan Guaidó decidiu se autoprocla- la” (15 abr. 2019). E ainda reiteraram a
Quando, no fim de seu segundo “ruptura da ordem democrática” e vio- mar presidente interino, em janeiro de posição quando Trump mencionou
mandato, o primeiro presidente negro lações de direitos humanos na Vene- 2019,2 os Estados Unidos e o Grupo de um deslocamento das Forças Armadas
dos Estados Unidos fez suas malas, a zuela. Engajado em isolar o governo Lima o apoiaram imediatamente. Eles norte-americanas.
América Latina dobrou à direita. Im- Maduro, o “Grupo de Lima” se reuniu convidam as Forças Armadas a tirar
portantes organizações de integração diversas vezes na sequência com uma Maduro do poder, reeleito nas eleições “PARCEIRO ALINHADO A NÓS EM
regional criadas pela esquerda, como ordem do dia: a Venezuela. As amea- contestadas de maio de 2018. O único MUITOS ASPECTOS”
a União das Nações Sul-Americanas ças que pesam sobre a democracia e os país a tomar certa distância em rela- Apesar de a situação parecer blo-
(Unasul) e a Comunidade de Estados direitos humanos em Honduras ou na ção às posições oficiais do grupo é o Mé- queada em Caracas, o Grupo de Lima
Latino-Americanos e Caribenhos (Ce- Colômbia (dois países-membros do xico, cujo nome de esquerda Andrés se fia à ideia de uma solução política
lac), foram paralisadas e ameaçadas grupo) não parecem, por outro lado, Manuel López Obrador assumiu as fun- negociada, posição que os Estados
pelo abandono. Um novo bloco sus- preocupar muito o mesmo grupo. ções presidenciais em dezembro de Unidos rejeitam em nome de seu pro-
JULHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 23

jeto de mudança de regime. O fiasco nômico se as companhias norte-ame- ta dura do país, o presidente colombia- ga).8 A organização mais recente ga-
do levante popular que Guaidó tentou ricanas pudessem explorar os recur- no, Iván Duque, não teria “feito nada” nhou o nome de Fórum para o Progres-
articular no dia 30 de abril conduziu o sos desse país” (24 jan. 2019). para combater a indústria da cocaína, so e Desenvolvimento da América do
grupo a solicitar o apoio de Cuba no Essas divergências geopolíticas às conforme explicou no dia 29 de março, Sul, ou Prosul. Fundada em março de
âmbito das negociações. A ideia fez as vezes englobam outras, de natureza suscitando o temor de grandes figuras 2019 por Argentina, Brasil, Equador,
equipes de Trump entrarem em pol- econômica. Quando chegaram ao po- da diplomacia norte-americana que Guiana, Paraguai e Peru, todos com
vorosa, entre as quais se encontra um der, alguns dos novos dirigentes con- consideram a Colômbia um aliado po- governos à direita, a estrutura veio à
certo Elliott Abrams, que defendeu os servadores latino-americanos expres- lítico e militar de primeiro escalão.6 luz com o principal objetivo de descre-
esquadrões da morte na América Lati- saram aberta e amplamente o desejo A equipe de Trump tem se empe- ditar ainda mais a Unasul.
na ao longo dos anos 1980 e mentiu de assinar acordos de livre-comércio nhado em atenuar as tensões, deslo- No entanto, a oposição às políticas
em seu sermão diante do Congresso com os Estados Unidos. A chegada de cando-se sem hesitar. Pence esteve na econômicas, sociais e geopolíticas da
sobre sua implicação no escândalo um republicano com inclinações mer- região cinco vezes. Já Mike Pompeo esquerda basta para constituir um pro-
Irã-Contras.3 cantilistas5 à Casa Branca pode ser um colocou os pés na Colômbia e no Méxi- grama de governo? Paradoxalmente, a
Abrams defende a ideia de que Ha- entrave. Rapidamente, a ideia de livre- co como diretor da CIA, antes de reali- crise venezuelana parece ser o único
vana implantou milhares de soldados -comércio desapareceu da ordem do zar seis outras viagens durante seu elemento de coerência da aliança de
e agentes de informação na Venezuela dia dos encontros bilaterais. primeiro ano como secretário de Esta- conservadores de ambos os lados do Rio
para apoiar Maduro. As agências de do. Bolton igualmente percorreu a re- Bravo. O que será dessa união quando a
informação norte-americanas não gião, notadamente passando pelo Bra- questão da Venezuela se resolver?
têm nenhum elemento concreto que sil para felicitar o “parceiro alinhado a
valide essa tese, mas pouco importa: A oposição às nós em muitos aspectos”, referindo-se *Alexander Main é diretor de política inter-
desde que o primeiro-ministro cana- políticas econômicas, ao presidente de extrema direita Jair nacional do Center for Economic and Policy
dense, Justin Trudeau, contatou as au- sociais e geopolíticas Bolsonaro.7 Research (CEPR), em Washington, Estados
toridades cubanas em nome do Grupo Tais esforços, finalmente, contam Unidos.
de Lima, ele recebeu um chamado irri-
da esquerda basta pouco: o desdém de Trump pela Amé-
tado do vice-presidente norte-ameri- para constituir rica Latina complica ainda mais o po-
cano, Mike Pence, preocupado com a um programa sicionamento geopolítico de dirigen-
edificação da “influência nefasta” de de governo? tes conservadores, incapazes de
Cuba em Caracas.4 desenvolver uma visão de mundo que 1 Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa
Enquanto os países do Grupo de não repouse em uma “liderança” nor- Rica, Guatemala, Honduras, Panamá, Paraguai e
Lima se recusam a colocar em prática te-americana para a qual eles enten- Peru.
2 Ler Julia Buxton, “Où va l’opposition à Nicolás Ma-
as sanções econômicas contra a Vene- A administração Trump parece se dem contribuir, na esperança de co- duro” [Para onde vai a oposição a Nicolás Madu-
zuela exigidas pelos Estados Unidos, preocupar pouco com seus aliados na lher qualquer benefício. ro], Le Monde Diplomatique, mar. 2019.
as fissuras se aprofundam, pois até os região, menos ainda em cultivá-los. O Não há melhor ilustração desse im- 3 Ler Eric Alterman, “Le retour du ‘secrétaire d’État
aux sales guerres’” [O retorno do “secretário de
mais dóceis conservadores latino-a- presidente norte-americano tem anu- passe que os resultados medíocres al- Estado das guerras sujas”], Le Monde Diplomati-
mericanos se incomodam com o inter- lado diversas viagens à região, entre as cançados pelas organizações regionais que, mar. 2019.
vencionismo reivindicado pela admi- quais duas à Colômbia e uma para a 8ª forjadas pela direita. Em oito anos de 4 “Pence calls on Canada to do more to engage
Cuba over Venezuelan crisis” [Pence convoca o
nistração Trump. E o conselheiro de Cúpula das Américas, organizada no existência, a Aliança do Pacífico não foi Canadá para expor a influência de Cuba sobre a
Segurança Nacional, John Bolton, não Peru, apesar de a agenda do encontro além da integração dos mercados fi- Venezuela], Reuters, 30 maio 2019.
ameniza os temores do grupo na me- – como acabar com Maduro – parecer nanceiros de seus próprios membros, 5 Ler Alain Bihr, “Une autre histoire du mercantilis-
me” [Outra história do mercantilismo], Le Monde
dida em que celebra os méritos da ter sido concebida para seduzir o De- sem que a operação contribuísse para Diplomatique, maio 2019.
Doutrina Monroe (uma visão de mun- partamento de Estado norte-america- incrementar as economias. O mais im- 6 “How Trump undermined Washington’s best friend
do velha, de dois séculos atrás, que no. Enquanto estas linhas estavam portante bloco conservador, o Grupo in Latin America” [Como Trump desdenhou seu
melhor amigo latino-americano], 11 abr. 2019. Dis-
justificava o imperialismo norte-ame- sendo escritas, a única viagem do pre- de Lima, foi um golpe de fuzil, imagi- ponível em: <www.worldpoliticsreview.com>.
ricano nos demais países das Améri- sidente para a América Latina se resu- nado no âmbito da crise venezuelana: 7 “Bolton praises Brazil’s Bolsonaro as a ‘like-min-
cas), ou que explica em rede mundial, miu ao comparecimento na reunião encurralado entre seu apoio a uma ló- ded’ partner” [Bolton exalta Bolsonaro como par-
ceiro de “mentalidade”], 11 nov. 2018. Disponível
no canal Fox Business, que as reservas do G20, em Buenos Aires, em dezem- gica de mudança de regime e o extre- em: <www.politico.com>.
petrolíferas venezuelanas são as prin- bro de 2018. mismo intervencionista de Washing- 8 Em maio de 2019, representantes do governo de
cipais motivações norte-americanas, E, quando interage com seus alia- ton, ele permanece isolado dos esforços Maduro e da oposição venezuelana estiveram em
Oslo para negociações mediadas pelo país anfi-
já que “as coisas mudariam bastante dos, Trump bajula-os tanto quanto mais promissores para chegar a uma trião. São as primeiras negociações de alto esca-
para os Estados Unidos no plano eco- seus adversários. Encarnando a direi- solução negociada (como os da Norue- lão desde o fim de 2017.
24 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2019

DEMOCRATIZAÇÃO DA MÍDIA

Na América Latina,
a volta dos polvos midiáticos
Argentina, Equador, Brasil: por todo lado, o mesmo cenário. Dirigentes conservadores chegam ao poder após um
longo período de governos de esquerda. Mal são eleitos, todos parecem premidos por uma urgência: anular as medidas de
regulamentação da imprensa instauradas por seus predecessores a fim de controlar o poder político das mídias privadas
POR ANNE-DOMINIQUE CORREA*

M
enos de um ano após sua posse, em maio de 2017,
o presidente equatoriano, Lenín Moreno, assi-
nou a Declaração de Chapultepec sobre a liber-
dade de expressão. Esse texto provém de uma
conferência regional organizada em 1994 pela Sociedade
Interamericana de Imprensa (SIP, na sigla em espanhol),
ONG que reúne os principais donos de veículos de comuni-
cação da América Latina. Ratificada por mais de setenta
chefes de Estado, a declaração estabelece dez princípios
“indispensáveis” a uma imprensa livre. Seu lema? “Nenhu-
ma lei, nenhum poder deve limitar a liberdade de expres-
são.” Sediada em Miami – terra sagrada do conservadoris-
mo latino-americano –, a SIP não deixou de saudar a
“reconciliação” tão esperada entre as mídias equatorianas
e o governo de Quito, após um longo período de confronto
sob a presidência de Rafael Correa (2007-2017).
A cerimônia oficial, organizada por Moreno, festejava
igualmente uma medida bem mais concreta: o sepulta-
mento da Lei Orgânica de Comunicação de 2013, uma das
primeiras que o novo presidente se empenhou em esvaziar
de sentido. O mesmo fenômeno ocorreu um pouco mais ao
sul: apenas algumas semanas após o início de seu manda-
to, em dezembro de 2015, o presidente conservador argen-
tino, Mauricio Macri, já se apressava em modificar a Lei de
Serviços de Comunicação Audiovisual, concebida em
2009 pela equipe da presidenta Cristina Kirchner (2007-
2015). Como explicar tanta pressa?
Elaborados para substituir normas obsoletas e embrio-
nárias, criadas na época das ditaduras militares, os dois
textos considerados problemáticos pelos novos presiden-
tes conservadores passaram a vigorar em 2013. Tinham
em mira redistribuir o espaço midiático: um terço do es-
pectro radielétrico para o setor privado, um terço para o
setor público e um terço para o setor sem fins lucrativos.
Na Argentina, o grupo Clarín possuía então cerca de
250 órgãos de imprensa, isto é, 60% do setor midiático. Da
mesma forma, no Equador, mais ou menos 90%1 dos veí-
culos pertenciam a um punhado de famílias ricas. Esses
textos vinham com outros dispositivos anticoncentração:
limitação do número de licenças audiovisuais autoriza-
das; limitação da duração das concessões a dez anos (con-
tra quinze antes) para a Argentina e a quinze para o Equa-
dor (onde não havia nenhum limite) e proibição de
renová-las mais de uma vez. Principal diferença entre os
dois textos: a lei argentina contempla unicamente o rádio
e a televisão, ao passo que a equatoriana se aplica igual-
mente à imprensa escrita.
Os textos definem a comunicação como uma atividade
“de interesse público” (Argentina) e de “serviço público”
© Rafael Correa

(Equador). Daí a necessidade, para as mídias, de se eman-


cipar de sua tutela econômica: “A informação não é mais
uma mercadoria, mas um direito”, proclamou o presidente
Correa na inauguração da primeira Reunião de Cúpula pa-
JULHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 25

ra um Jornalismo Responsável nos No- as leis, qualificadas de “mordaças”. lucrativos. Uma única conquista so- quem essa concepção das coisas na
vos Tempos, organizada em 19 de ju- Outros críticos, menos caricaturais, breviveu nos dois países: 60% do con- verdade causou prejuízo aos recém-
nho de 2013 em Guayaquil. O grupo também se manifestaram. Segundo o teúdo das mídias devem sempre ser -chegados. Em sua opinião, as mídias
Egas teve então de se desfazer o canal universitário argentino Martín Becer- produção nacional. Entretanto, a es- públicas não foram além de “respon-
de televisão Teleamazonas para con- ra, algumas resoluções do poder ar- trutura capaz de assegurar o respeito à der às agressões das mídias priva-
servar o banco que possui (Banco del gentino fazem duvidar de sua impar- lei foi desmantelada. das”, sob o pretexto de esperar uma
Pichincha), pois a lei equatoriana proí- cialidade. Ele cita, por exemplo, sua Há progressos no âmbito das mí- “situação sem conflito” para chegar
be que um estabelecimento financeiro recusa do plano de reestruturação dias públicas, mas elas não conse- ao pluralismo: uma condição utópica
detenha mais de 6% do capital de um apresentado pelo Clarín para respon- guem exercer influência decisiva. Em que todos sabem inatingível, ele
órgão de imprensa.2 der às exigências da lei... enquanto o 2007, Correa criou por decreto a Ecua- completa. Segundo Lasso, as mídias
do grupo Telefe, kirchnerista, era apro- dorTV, primeira rede de televisão pú- públicas são “crianças que mal
vado, embora fosse muito mais proble- blica da história do país. Em 2008, am- aprenderam a ficar de pé e a quem se
mático. Aos olhos de Becerra, essa po- pliou o setor audiovisual público com pede que saiam correndo”.
Mal são eleitos,
lítica de “dois pesos, duas medidas” veículos tomados de proprietários fali- O desmantelamento das mídias
dirigentes desperta suspeitas: a vingança contra dos (poderosos banqueiros em dívida públicas suscita tão poucas reações
conservadores o Clarín passou adiante do desejo de com o Estado e envolvidos na crise fi- por causa de seu fracasso? Talvez, por
têm urgência em fomentar mais pluralismo? nanceira que golpeou duramente o nascerem mortas, não tenham tido a
No Equador, a controvérsia gira em país em 1999). No Brasil, o governo de chance de amadurecer...
anular as medidas de
torno da noção de “linchamento mi- Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) De dentro, os novos eleitos conser-
regulamentação da diático”, contemplada no artigo 26. criou em 2007 a Empresa Brasil de Co- vadores orquestram uma caça às bru-
imprensa instauradas Pesquisadora da Universidade de Pa- municação (EBC), uma sociedade que xas destinada a “liberar” as redações
por seus predecessores ris 8, Erica Guevara se diz preocupada agrupava novas mídias públicas. da influência “esquerdista”. À seme-
com as “formulações excessivamente Nos dois casos, as mídias públicas lhança de seus colegas argentino e
vagas, que dão muita margem à inter- são financiadas pelo Estado e pela pu- equatoriano, o ex-presidente brasileiro
Os patrões do setor encaram a sa- pretação”. O artigo em questão proíbe blicidade oriunda deste. A EBC mon- Michel Temer não perdeu tempo para
crossanta “liberdade de imprensa” “a difusão de informações [...] com o tou um conselho, o Conselho Curador, substituir os diretores dos veículos pú-
principalmente como licença, para objetivo de denegrir uma pessoa física com 22 membros, dos quais quinze blicos por personalidades do setor pri-
eles, de dizer o que bem entenderem. E ou jurídica a fim de prejudicar sua cre- não são profissionais e representam a vado, franco inimigos dos governos
isso a tal ponto de, diante das sucessi- dibilidade política”. Ora, para Becerra, sociedade como um todo. Sua missão: progressistas do período anterior.
vas vitórias da esquerda nas urnas, as “a diferença entre informação e opi- garantir a autonomia da rede. Na Ar- Está em curso também uma estra-
mídias privadas se tornarem “uma nião é uma zona cinzenta, onde as coi- gentina e no Equador, criou-se tam- tégia de estrangulamento financeiro.
máquina que substituiu os partidos sas não são nem brancas nem pretas”. bém a função de defensor do público,6 “Os liberais descrevem a comunicação
políticos tradicionais enfraquecidos e Daí o risco de desvios. encarregada de “receber e canalizar pública como um ‘elefante branco’,
que dirige a oposição com o fim de de- Na prática, as autoridades equato- as perguntas, reclamações e denún- criado por seus predecessores”, expli-
sestabilizar os governos”, explica o in- rianas rejeitaram diversas acusações cias” dos cidadãos (Argentina) e “pro- ca Pedro Brieger, ex-apresentador da
telectual brasileiro Emir Sader.3 de “linchamento midiático” contra mover o diálogo entre o público e as rede pública Canal 7 obrigado a demi-
Na Argentina, a sabedoria popular veículos privados, que consideraram mídias” (Equador). tir-se. Macri pôs na rua 40% da equipe
afirma que nenhum poder resiste a infundadas, mas não pouparam a Te- da Telam, a agência de notícias argen-
mais de cinco “primeiras páginas” do leamazonas, que durante seis meses, tina, enquanto Moreno eliminava das
jornal Clarín. Após um período de cal- em 2016, acusou o Serviço Nacional de mídias públicas duzentos funcioná-
ma relativa, em seguida à eleição de Contratos Públicos de adquirir medi- As mídias públicas, rios. “Na prática, a mídia pública desa-
Néstor Kirchner em 2003, as máscaras camentos genéricos sem certificação contudo, vestiram pareceu”, conclui Brieger.
caíram quando sua esposa, Cristina sanitária: a acusação era falsa. A Te- Em 29 de junho de 2018, Macri
Kirchner, decidiu taxar as exportações leamazonas precisou se desculpar pu-
a imagem de aprovou a fusão do Clarín com a Tele-
de soja para redistribuir a renda do blicamente, já que a lei só prevê multas serviçais do poder com, uma empresa de telefonia. O pol-
país.4 O periódico tomou ferozmente em caso de reincidência. e só atingem vo midiático chega finalmente aonde o
posição em favor dos grandes proprie- As “mordaças” argentina e equato- uma audiência kirchnerismo o impedia de chegar: es-
tários de terras e lançou uma violenta riana parecem tão relativas quanto as tende seus tentáculos às telecomuni-
campanha antikirchnerista. Cristina reformas previstas, que permanece-
restrita cações, propondo pacotes quadruple
tentou replicar com cartazes onde se lia ram o mais das vezes inacabadas. play (telefonia fixa e móvel, internet e
“Clarín mente”, mas sua popularidade Uma disputa jurídica iniciada pelo televisão por cabo). “A derradeira etapa
desabou, passando de 56% para 20% de grupo Clarín – que contesta a constitu- As mídias públicas, contudo, vesti- da concentração”, segundo Becerra.
opiniões favoráveis em cinco meses. cionalidade da lei – retardou sua apli- ram a imagem de serviçais do poder e
Correa e as mídias privadas nunca cação em quatro anos. Já o governo só atingem uma audiência restrita. No *Anne-Dominique Correa é jornalista, filha
se entenderam. O jornal El Universo parece inerte justamente quando está Brasil, a TV Brasil foi chamada de “TV do ex-presidente equatoriano Rafael Correa.
insinuou, por exemplo, que o ex-presi- em condições de aplicá-la: por exem- Lula”. Apenas as mídias públicas da
dente teria ordenado atirar contra um plo, o leilão que deveria acontecer para Argentina – país pioneiro em sua cria-
hospital cheio de civis por ocasião da a redistribuição das frequências ja- ção, em 1953 – conseguem pontos de
tentativa de golpe de Estado contra ele, mais ocorreu. Aconteceu no Equador, audiência elevados, sobretudo graças 1 Resumen Ejecutivo [Resumo executivo], Superin-
em 30 de setembro de 20105 – uma mas foi tão mal organizado que o pro- ao programa Futebol para Todos, uma tendencia de Comunicación, Quito, 2018.
mentira deslavada. De seu lado, Cor- curador da República o invalidou: parceria entre os governos Kirchner e 2 Descobriu-se mais tarde que a venda foi simulada
por meio de diversas acrobacias financeiras. Em
rea não acalmou a situação ao rasgar “Um tremendo fracasso”, lamentou a Associação de Futebol Argentina 2019, Egas ainda dirige a rede.
jornais em público, ainda que houves- Carlos Ochoa, último diretor da Supe- que transmite gratuitamente os jogos 3 Emir Sader, O Brasil que queremos, Laboratório
se agraciado sistematicamente donos rintendência da Informação e Comu- da primeira divisão pela rede pública de Políticas Públicas, Rio de Janeiro, 2016.
4 Ver Renaud Lambert, En finir avec le pendule ar-
de veículos de comunicação condena- nicação (Supercom), a autoridade ad- Canal 7.7 gentin [Acabar com o pêndulo argentino], Le Mon-
dos pela justiça. A seus olhos, “se as ministrativa criada por lei a fim de Para Xavier Lasso, ex-diretor edi- de Diplomatique, jan. 2019.
mídias agissem como militantes polí- garantir sua aplicação. Diante de nós, torial da EcuadorTV demitido pelo 5 Ver Maurice Lemoine, État d’exception en Équateur
[Estado de exceção no Equador], La Valise Diplo-
ticos, se exporiam a respostas de natu- ele evoca uma “letra morta”. Já Moreno governo de Moreno, “o mais impor- matique, 1º out. 2010. Disponível em: <www.mon-
reza política”. apressou-se em modificar a repartição tante era que, graças às mídias públi- de-diplomatique.fr>.
De ambos os lados dos Andes, rios do espectro radielétrico: 56% para o cas, existia um relato diferente do 6 Cargo único, ocupado por nomeação na Argenti-
na. No Equador, é selecionado um defensor para
de tinta logo começaram a correr na setor privado e 10% para o setor públi- apresentado pela imprensa privada”. cada mídia nacional, por concurso.
imprensa dominante para denunciar co, indo o resto para as mídias sem fins “Não basta!”, retruca Becerra, para 7 Macri encerrou essa parceria em 20 de julho de 2016.
26 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2019

IDENTIDADE E SEGURANÇA, AS RECEITAS VENCEDORAS DO NACIONALISMO HINDU

Quando a Índia
se radicaliza
Logo após sua vitória nas eleições de
2014, o primeiro-ministro Narendra Modi
convidou para a posse seu homólogo
paquistanês, abrindo as portas para
negociações de paz. Cinco anos depois,
o convite não se renovou. Durante a
campanha legislativa, Modi apostou no
medo em relação ao inimigo tradicional,
assim como no nacionalismo hindu
POR CHRISTOPHE JAFFRELOT*

© Daniel Kondo
P
olítica abertamente discrimi- seu programa eleitoral, em 2019 Modi denúncia da corrupção e do capitalis- não suficiente, para ganhar –, além de,
natória em relação às minorias abraçou o tema da segurança, compro- mo de conluio.3 e acima de tudo, ajudar a financiar a
muçulmanas e cristãs. Balanço metendo-se, por exemplo, a expulsar Sem interesse em aparecer como propaganda eleitoral.
econômico e social mais que os migrantes de Bangladesh em situa- responsável por seus próprios fracas-
decepcionante. O alinhamento de pla- ção irregular. Oportunista, aprovei- sos nessa área, o primeiro-ministro re- O RETORNO DAS ALTAS CASTAS
netas não era dos mais favoráveis... No tou-se do atentado ocorrido em feve- correu ao fantasma das ameaças ex- Nessa área, a Índia segue a tendên-
entanto, o primeiro-ministro naciona- reiro em Pulwama (em Jammu e ternas, tema que conseguiu impor ao cia geral de transformar as redes so-
lista hindu acaba de ser reeleito com Caxemira), que custou a vida de 41 sol- longo de toda a campanha. A manobra ciais no mais importante vetor da co-
uma confortável maioria. Nas eleições dados indianos e foi reivindicado por funcionou ainda melhor porque Modi municação política: embora os líderes
parlamentares da qual foram convida- um grupo jihadista com base no Pa- se recusou a participar de debates e políticos ainda façam comícios, nada
dos a participar os 900 milhões de elei- quistão. O primeiro-ministro ordenou coletivas de imprensa. Ele apenas con- supera o WhatsApp, o Twitter, o Face-
tores indianos (cerca de um décimo da ataques aéreos sobre o território de seu cedeu entrevistas preparadas por veí- book etc. para saturar o espaço públi-
população mundial), Narendra Modi e vizinho, contra os quais Islamabad culos normalmente pertencentes a co.7 Por isso, há um grande investi-
seu partido, o Bharatiya Janata Party respondeu abatendo um aparelho in- empresários ansiosos por manter boas mento em mão de obra multilíngue
(BJP, Partido do Povo Indiano), con- diano. Assim, Modi conseguiu erigir-se relações com o poder. para difundir a boa palavra, na forma
quistaram 303 dos 543 assentos. Não em protetor do país, exaltando a incrí- O outro grande jogador dessa elei- de desinformação e “trolagem”. Assim,
há necessidade de apoio das outras or- vel ousadia de sua ação. Nunca uma ção foi o dinheiro. Foram as eleições Rahul Gandhi foi apresentado por seu
ganizações de sua coalizão, a Aliança campanha eleitoral foi tão dominada mais caras de toda a história das de- oponente como muçulmano, pois
Democrática Nacional (NDA, National pela retórica patriótica e guerreira. A mocracias, com os partidos gastando uma fotografia de infância o exibia
Democratic Alliance), para governar tal ponto que mais de 150 veteranos,1 quase US$ 9 bilhões, segundo uma es- orando em uma mesquita – era, na ver-
(ver boxe). entre eles generais e almirantes, pedi- timativa confiável.4 Nunca antes tan- dade, o enterro de Khan Abdul Ghaffar
Muito hábil, o primeiro-ministro ram que o primeiro-ministro não poli- tas quantias foram apreendidas pela Khan (o grande líder pashtun discípu-
simplesmente evitou os assuntos in- tizasse a instituição militar. polícia a pedido da comissão eleitoral lo de Mahatma Gandhi), em 1988, em
convenientes. Sua campanha conse- Do outro lado, Rahul Gandhi, do nas casas dos candidatos a deputados Cabul, no qual o líder opositor estivera
guiu desviar a atenção de uma econo- Partido do Congresso, já derrotado em ou na sede dos partidos. Nesse quesito, em companhia do pai.
mia que atravessa uma turbulência eleições anteriores, não teve grande o BJP bateu todos os recordes.5 Em Por fim, e não se trata de um aspec-
sem precedentes desde os anos 1990: peso, apesar de seu programa amplo: 2016, o governo de Modi aprovou uma to de pouca importância, o primeiro-
taxa de desemprego mais elevada das da renda mínima garantida para os lei autorizando empresas e indivíduos -ministro e seu partido instrumentali-
últimas quatro décadas, crise do setor mais desfavorecidos às medidas de a fazer doações anônimas aos partidos zaram à exaustão a religião hindu. O
agrícola, queda das exportações – ape- combate à poluição – um flagelo que o – uma “oficialização do capitalismo de presidente do BJP, Amit Shah, zombou
sar do preço instável da rúpia –, declí- governo se contentou em negar2 –, conluio”,6 conforme denuncia o ex- de Gandhi porque este se apresentava
nio do investimento, queda vertigino- passando pela proposta de questionar -chefe da comissão eleitoral Shahabu- por um distrito de maioria muçulma-
sa do investimento estrangeiro direto, as leis de exceção que permitem ao ddin Yaqoob Quraishi. Imensas, as so- na – o que é mentira –, que ele compa-
consumo em queda etc. Exército reprimir impunemente a Ca- mas foram usadas para comprar votos rou ao Paquistão, chegando a dizer
Enquanto em 2014 o desenvolvi- xemira. Ele tomou o mesmo cavalo de – dar presentes na véspera do dia de que, vendo as carreatas de apoiadores
mento econômico estava no centro de batalha que Modi montara em 2014: a votação é uma condição necessária, se de seu oponente, era difícil saber se es-
JULHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 27

BJP. Em segundo lugar, as minorias


poderiam se ver acuadas de um modo
DOMÍNIO DO PARLAMENTO
mais crítico: com a direita do BJP em

A 17ª eleição parlamentar da Índia confirmou a hegemonia do


Bharatiya Janata Party (BJP, Partido do Povo Indiano) em
termos de cadeiras no Parlamento. Ele passou de 282 deputa-
do Bahujan Samaj Party (BSP), a formação predileta dos dáli-
tes (outrora ditos intocáveis) do norte da Índia, que ganhou dez
lugares. Mas isso é uma decepção, uma vez que o BSP estava
peso no Parlamento, a legislatura deve
pôr fim a uma novela que dura quase
trinta anos, a de Babri Masjid, mesqui-
dos para 303, graças ao sistema de votação em turno único e à confiante em sua aliança com o Samajwadi Party (SP) em Uttar ta demolida em 1992 por militantes
concentração de suas forças nas porções norte e oeste do país, Pradesh para se tornar o terceiro maior partido da Índia. O fra- nacionalistas hindus. Nos próximos
que têm o efeito de amplificar uma pontuação mais modesta (o casso foi ainda mais amargo para o SP, que só ganhou cinco
meses, a Suprema Corte deve dizer se
BJP passou de 31% para 37,5% dos votos). Tendo conquistado assentos – tão pouco quanto em 2014.
autoriza ou não os nacionalistas hin-
a maioria absoluta na casa – que é de 272 assentos –, o BJP Embora os partidos regionais tenham experimentado certa
não precisa de seus aliados igualmente membros da Aliança erosão, o BJP fez avanços notáveis em alguns de seus bastiões, dus a construir um templo nesse local,
Democrática Nacional (NDA, National Democratic Alliance), como Bengala Ocidental e Odisha (ex-Orissa), no leste. O único que eles consideram ser do deus Ram.
coalizão formada em 1999 e que ficou, no total, com 353 as- partido regional de fora da NDA que teve claro sucesso foi a Em caso de resposta negativa, devem
sentos (com 45% dos votos). Do outro lado, o Partido do Con- Federação Dravidiana de Progresso (DMK, Dravida Munnetra organizar grandes manifestações, que
gresso cresceu pouco – de 44 para 52 assentos (sempre com Kazhagam), que venceu no Tamil Nadu com 23 assentos. podem ser perigosas para as minorias;
9,5% dos votos) –, e a coalizão liderada por ele, a Aliança Pro- Quanto ao Partido do Congresso, os dois únicos estados em se a resposta for positiva, os jovens
gressista Nacional (UPA, United Progressive Alliance), passou que ele progrediu significativamente foram Punjab e Kerala, on- muçulmanos, até o momento subme-
de 60 assentos (com 23% dos votos) para 91 (com 26%), ape- de superou os comunistas, que conquistaram, em escala nacio- tidos a todo tipo de discriminação, po-
sar da derrota de alguns parceiros regionais do Congresso. nal, cinco assentos de 542, três para o Partido Comunista da dem erguer a cabeça.
Os partidos regionais que não participam da NDA foram víti- Índia (Marxista) (CPI(M)) e dois para o Partido Comunista da
mas colaterais dessa eleição, apesar do retorno ao Parlamento Índia (CPI) – a pior pontuação da história. (C.J.)
*Christophe Jaffrelot é diretor de pesquisa
do Centre de Recherches Internationales
(Ceri), unidade mista de pesquisa da Scien-
ces Po e do Centre National de la Recherche
tavam “na Índia ou no Paquistão”.8 BJP. Dos 147 candidatos do partido nos MINORIAS COM AS COSTAS NA PAREDE Scientifique (CNRS), França, e autor, entre
Além disso, o BJP admitiu a candida- distritos da área de língua hindi,9 que O quadro não estaria completo se outros livros, de L’Inde de Modi: national-po-
tura de Pragya Singh Thakur, acusada equivale a quase metade dos parla- não destacássemos a crescente pro- pulisme et démocratie ethnique [A Índia de
de terrorismo ligado ao movimento mentares da Lok Sabha, 88 pertenciam porção de parlamentares eleitos que Modi: nacional-populismo e democracia étni-
Abhinav Bharat, o qual é suspeito de a altas castas, que representam, no en- carregam acusações na Justiça ou uma ca] e Le syndrome pakistanais [A síndrome
fomentar ataques antimuçulmanos tanto, apenas 12% da população. Fo- gorda ficha criminal. A tendência se paquistanesa], Fayard, Paris, respectivamen-
que fizeram dezenas de mortos em ram eleitos oitenta parlamentares, dos explica pelo papel cada vez maior do te 2019 e 2013.
2008. Libertada sob fiança por motivos quais 33 brâmanes (a casta mais alta) e dinheiro e pela busca de proteção polí-
de saúde, durante a campanha ela elo- 27 rajaputros (casta guerreira que vem tica por parte de muitos criminosos. 1 “Over 150 veterans write to President on ‘politicisa-
giou o assassino de Mahatma Gandhi, logo abaixo na hierarquia social).10 Dos 539 deputados examinados pela tion’ of armed forces” [Mais de 150 veteranos escre-
vem ao presidente sobre “politização” das Forças
que sempre foi visto pelos nacionalis- A nova assembleia também é mar- Association for Democratic Reform Armadas], The Hindu, Nova Délhi, 12 abr. 2019.
tas hindus como um inimigo, por cau- cada pela grande presença de herdei- [Associação para a Reforma Democrá- 2 “Environment Minister rejects global reports clai-
sa de sua doutrina não violenta e de ros pertencentes a velhas famílias po- tica], uma ONG de reconhecida serie- ming 1.2 million deaths in India due to pollution”
[Ministro do Meio Ambiente rejeita relatório que
seu ecumenismo religioso. líticas. Esses “dinastas”, para usarmos dade, 43% enfrentam processos na fala em 1,2 milhão de mortes na Índia em razão da
Muitos eleitores votaram em Modi a expressão consagrada na Índia, pas- Justiça (contra 34% em 2014). Onze são poluição], The Hindu, 5 maio 2019.
não pelo nacionalismo hindu, mas pa- saram de 25% dos eleitos, em 2014, pa- acusados de homicídio (entre os quais 3 Cf. “Le capitalisme de connivence en Inde sous
Narendra Modi” [Na Índia, capitalismo de conluio
ra manter um homem forte no poder, ra 30%, com alguns estados superan- cinco do BJP), trinta de tentativa de sob o governo de Narendra Modi], Les Études du
ou por inércia, porque a oposição não do essa média, como Karnataka (39%), homicídio e dezenove de violência CERI, n.237, Ceri, Paris, 18 set. 2018.
inspirou confiança. No entanto, é sig- Maharashtra (42%), Bihar (43%) e contra mulheres. No total do grupo, 4 Bibhudatta Pradhan e Shivani Kumaresan, “Indian
elections become world’s most expensive: This is
nificativo que essa ideologia não os te- Punjab (62%). A situação é especial- 116 pertencem ao BJP e 29 ao Partido how much they cost” [Eleições indianas se tornam
nha dissuadido. Nos últimos cinco mente aguda nos partidos regionais, do Congresso.11 as mais caras do mundo: esse é seu preço], Busi-
anos, ela resultou em ataques contra que muitas vezes são uma proprieda- Em tais circunstâncias, o capítulo ness Standard, Nova Délhi, 4 jun. 2019.
5 “In 2019, is BJP riding a Modi wave or a Money
minorias cristãs e muçulmanas, in- de familiar passada de pai para filho. aberto pela reeleição de Modi à frente wave?” [Em 2019, BJP surfa na onda Modi ou na
cluindo o linchamento de cerca de Mas os partidos nacionais não ficam do governo não pode ser uma cópia fiel onda do dinheiro?], The Wire, Nova Délhi, 6 maio
quarenta pessoas acusadas de consu- de fora: 31% de candidatos dinastas do anterior. Claro que a continuidade 2019, e “BJP flush with poll cash, no questions as-
ked in this elections” [BJP nada em dinheiro de
mir carne bovina ou de levar vacas pa- para o Congresso, 22% pelo BJP, ape- prevalecerá em pontos essenciais, co- campanha, sem perguntas nesta eleição], The Te-
ra o matadouro. E essas minorias terão sar de este ter empreendido uma cam- mo a concentração de poder nas mãos legraph, Nova Délhi, 2 maio 2019.
muita dificuldade em se fazer ouvir panha “contra as dinastias que gover- do primeiro-ministro, mas a amplitude 6 Adil Rashid, “Electoral Bonds have legalised crony
capitalism: ex-chief of Election Commissioner SY
em uma Lok Sabha – a câmara baixa nam a Índia”, especialmente contra a da crise econômica exige decisões for- Quraishi” [Ligações eleitorais legalizaram o capitalis-
do Parlamento – dominada pelo BJP, mais importante delas, a dos Nehru- tes. As mais urgentes tocam o setor mo de conluio, afirma ex-chefe da Comissão Eleitoral
que só apresentou meia dúzia de can- -Gandhi. Essa proporção é ainda mais agrícola, que, além de já enfrentar pro- SY Quraishi], Outlook, Nova Délhi, 7 abr. 2019.
7 Madhumita Murgia, Stephanie Findlay e Andres
didatos delas oriundos. surpreendente pelo fato de que o BJP blemas, está na iminência de arcar com Schipani, “India: The WhatsApp election” [Índia: a
No total, apenas 25 representantes teve o cuidado de renovar seus candi- as consequências de uma má monção. eleição do WhatsApp], Financial Times, Londres,
eleitos são muçulmanos, o equivalen- datos para trazer sangue novo. Uma O governo terá de se resignar a elevar os 5 maio 2019.
8 “‘Can’t make out if it’s India or Pakistan’: Amit Shah
te a 4,6% da assembleia, enquanto as centena de deputados que chegaram preços agrícolas, mesmo que isso signi- on Rahul Gandhi’s Wayanad roadshow” [“Não dá
pessoas que declaram essa religião re- ao fim de seu mandato foram substi- fique aguçar a inflação e desagradar à para saber se é a Índia ou o Paquistão”, comenta
presentam 14,6% da população do tuídos por outros – de sangue novo, sua base eleitoral urbana. Essas duas Amit Shah sobre carreata de Rahul Gandhi em
Wayanad], The News Minute, 10 abr. 2019.
país. As mulheres também continuam porém azul. Ocorre que a candidatura variáveis, no entanto, limitarão a mar- 9 Região constituída por Uttar Pradesh, Uttara-
marginalizadas, embora tenham feito desses filhos de famílias políticas é gem de manobra do governo. khand, Bihar, Jharkhand, Chhattisgarh, Madhya
um grande avanço: 78 eleitas (14,3%), garantia de sucesso. E, se a feminiza- No plano político, dois tipos de ten- Pradesh, Rajastão, Délhi, Haryana, Himachal Pra-
desh e Chandigarh.
contra dez há cinco anos. Pela primei- ção da lista de candidatos é indispen- são devem se exacerbar nos próximos 10 Esses dados, bem como os do próximo parágrafo,
ra vez, sua taxa de participação nas sável, então que se candidatem as es- cinco anos. Em primeiro lugar, as rela- foram extraídos das pesquisas do Social Profile of
eleições foi a mesma dos homens. posas, viúvas ou filhas de líderes ções entre o governo de Modi e os go- Indian National and Provincial Elected Representa-
tives (Spinper), laboratório internacional associado
Do ponto de vista sociológico, as políticos, para maximizar as chances vernos dos estados liderados por parti- do CNRS e constituído pela Universidade de
eleições de 2019 confirmam o retorno de sucesso. Esse é o caso de 54% das dos da oposição estão se tornando Ashoka, na Índia, e pela Sciences Po, na França.
das altas castas ao Parlamento, fenô- mulheres que se candidataram ao mais tensas. O exemplo mais marcan- 11 “43% of Newly Elected MPs Face Criminal Char-
ges: ADR Report” [43% dos deputados recém-
meno iniciado há dez anos que tem re- Congresso e de 53% daquelas que o fi- te é o de Mamata Banerjee, governado- -eleitos enfrentam acusações criminais: Relatório
lação com a composição elitista do zeram pelo BJP. ra de Bengala Ocidental, atacada pelo da ADR], The Wire, 27 maio 2019.
28 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2019

TEERÃ PODERIA RESISTIR A UM ATAQUE NORTE-AMERICANO?

O Irã e seus dois corpos de defesa


A escalada de tensões entre os Estados Unidos e o Irã poderia anunciar uma intervenção militar norte-americana.
Incapaz de se proteger fora de seu país, o Exército regular da república islâmica volta-se inteiramente para impedir uma
invasão estrangeira. Já a Guarda Revolucionária é capaz de realizar operações de envergadura em toda a região
POR AKRAM KHARIEF*

N
o dia 5 de maio de 2019, os Esta- pasdarans os conduziu a seguir o com-
dos Unidos anunciaram o en- bate para derrubar Saddam Hussein. A
vio do porta-aviões USS Abrah- ofensiva generalizada contra o Iraque
am Lincoln e de uma frota da produziu resultados desastrosos, com
Força Aérea para as águas do Golfo centenas de milhares de mortos e uma
Pérsico. Evocando uma “resposta a si- guerra que acabou em 20 de agosto de
nais e alertas inquietantes que engen- 1988 sem nenhum vencedor.
draram uma escalada”, John Bolton, Desde esse conflito, as forças mili-
conselheiro de Segurança Nacional, tares iranianas repousam sobre dois
advertiu o Irã contra qualquer ataque pilares com papéis bem definidos. Se-
visando os interesses norte-america- gundo o artigo 143 da Constituição de
nos na região. A tensão não parou de 1979 (emendada em 1989), o Exército
aumentar na região desde o comuni- regular é “a garantia de independência
cado, enquanto a Arábia Saudita e os e integridade territorial do país, assim
Emirados Árabes Unidos, aliados de como da ordem da República Islâmi-
Washington, atribuem de maneira ca”. O artigo 150 ressalta que o contin-
mais ou menos explícita ao Irã a res- gente de pasdarans “deve ser mantido
ponsabilidade pela sabotagem de pe- para que possa seguir desempenhan-
troleiros próximos ao Estreito de Or- do seu papel de guarda da revolução e
muz e pela retomada das atividades suas realizações [...] em uma coopera-
dos rebeldes huthis no Iêmen. “Os Es- ção fraternal [com outros braços das
tados Unidos não querem guerra com Forças Armadas]”. Na prática, o Artesh
o regime iraniano, mas estamos pre- é pensado como um exército defensivo
parados para responder a qualquer clássico, com quatro frentes: infanta-
ataque, seja ele vindo por procuração ria, aviação, marinha e, desde 2007,
de terceiros, guardas da revolução ou defesa aérea. Sua missão principal é
pelas Forças Armadas iranianas”, proteger as fronteiras e se concentrar
completou o conselheiro do presiden- na segurança do território.
te Donald Trump. De seu lado, os pasdarans, passa-
Apesar de ainda hipotético, não se dos do estatuto de milícia popular ao
© Flavia Bomfim

pode excluir a possibilidade de um en- de Exército de fato em 1985, têm como


frentamento armado opondo Estados vocação servir à ideologia da repúbli-
Unidos, seus aliados no Golfo e Israel ca islâmica. Diretamente subordina-
contra o Irã – dada a saída belicosa op- dos ao guia da revolução e dirigidos
tada por Bolton. De forma indireta, a desde abril de 2019 por Hossein Sala-
medida também coloca em evidência a mi, seus batalhões têm acesso aos me-
estrutura de dois corpos militares ira- lás – como são chamados alguns cléri- meio após a instalação da república is- lhores recrutas e adotam ao extremo a
nianos, que qualquer um que ataque a gos muçulmanos, considerados os lâmica – ofereceu uma chance ao Arte- teoria da guerra assimétrica perma-
república islâmica terá de confrontar. guardas da Revolução Islâmica, cha- sh de provar sua lealdade ao regime. nente. Por meio da força Al-Qods (“Je-
Para entender a natureza dual e anali- mados também pasdarans. Constituí- Ex-oficiais aposentados foram chama- rusalém”, em árabe e persa), essa enti-
sar a capacidade de enfrentar o que dos originalmente por milícias popu- dos, enquanto outros, presos, foram dade forte, com 150 mil homens, tem
constituiria uma nova intervenção lares que apoiavam o aiatolá Ruhollah liberados e integrados às unidades uma capacidade de projeção sobre
norte-americana na região, é necessá- Khomeini, guia supremo da revolu- combatentes – como foi o caso de vá- palcos de guerra estrangeiros, como a
rio remontar aos dias que se seguiram ção, os pasdarans funcionam, desde rios pilotos que tinham sido julgados Síria (ao lado do regime de Bashar al-
à queda do xá, há quarenta anos. então, como um contrapeso do Exér- suspeitos por sua formação nos Esta- -Assad), o Líbano (em apoio ao Hez-
No dia 12 de fevereiro de 1979, ape- cito oficial e uma ferramenta eficaz de dos Unidos. A contraofensiva vitoriosa bollah) e o Iraque (junto às milícias
sar de o Exército imperial ter procla- dissuasão contra qualquer tentativa do Exército oficial contra as tropas ira- xiitas). Inversamente, o Exército ofi-
mado sua neutralidade, os novos líde- de golpe de Estado. A história da repú- quianas conduziu à retomada do por- cial não possui meios logísticos sufi-
res de Teerã operavam sob uma blica islâmica é de fato marcada, em to de Khorramshahr, em maio de 1982, cientes para atuar além das fronteiras.
pressão brutal, notadamente entre os particular em seu início, por complôs e marcou uma virada decisiva na guer- Assim, em caso de contraofensiva ini-
oficiais superiores, pela desconfiança militares mais ou menos reais, des- ra: no verão do mesmo ano, o Irã con- miga, não pode proteger suas tropas
de que as Forças Armadas ainda per- mobilizados pelos pasdarans e segui- seguiu recuperar o conjunto dos terri- nem controlar o espaço aéreo. Contu-
maneciam leais ao soberano destituí- dos de lutas sangrentas. tórios conquistados pelo Iraque. Ainda do, seu efetivo de 350 mil homens, dos
do, exilado no Marrocos. Rebatizadas assim, o regime dos mulás rapidamen- quais 200 mil são convocados que
de Exército da República Islâmica do PASDARANS, UM VERDADEIRO EXÉRCITO te relegou o Artesh ao segundo plano cumprem o serviço militar obrigató-
Irã (Artesh), elas foram colocadas sob A invasão do território iraniano pe- das operações para permitir que os rio entre um e 24 meses, fornece uma
tutela direta de uma organização polí- lo Exército iraquiano em 22 de setem- guardas da revolução adquirissem le- sólida base territorial. Não existe do-
tica rígida a serviço do regime dos mu- bro de 1980 – ou seja, apenas um ano e gitimidade militar. O fanatismo dos cumento oficial que resuma sua dou-
JULHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 29

trina, mas os discursos pronunciados mas do mundo em matéria de defesa mísseis foram utilizados pelos rebel- US$ 60 bilhões. Além disso, as sanções
pelos dirigentes iranianos durante as aérea do território, notadamente com des huthis para rajadas em todo o Iê- norte-americanas, europeias e das Na-
comemorações oficiais da “vitória” o radar além do horizonte russo Rezo- men.1 O uso de meios de destruição ções Unidas tornaram o Irã um pária
contra o Iraque insistem sobre sua ca- nans e os sistemas passivos Avtobaza, com disparo por enxame para deso- do mercado mundial de armamentos.
pacidade de resiliência. O que funda sem mencionar diversos radares clás- rientar o inimigo faz parte do setor na- Seus principais fornecedores são a
sua identidade é o controle do ataque sicos russos e chineses. Ainda mais val. A Marinha norte-americana já sa- China, a Coreia do Norte e a Rússia,
iraquiano em 1980 e a capacidade de importante, o Irã, que em tese é capaz be que, em caso de conflito, deverá embora esta última oscile em função
normalizar a situação após apenas al- de detectar aviões furtivos, adquiriu enfrentar uma enxurrada de lanchas da conjuntura. Assim, em 2016, Mos-
guns meses de terríveis combates. em 2016 o sistema de defesa antiaéreo rápidas, submarinos de fabricação lo- cou se recusou a entregar duzentos ca-
russo S300, que permite defender pon- cal e aviões planadores (Ekranoplans), ças multifunções pesados Su30 e atra-
tos estratégicos em um raio de 200 concebidos para voar em pouca altura sou o fornecimento de mísseis S300
quilômetros. De seu lado, os pasda- e sobre a água. Finalmente, os drones por pressões de Washington e Tel Aviv.
Uma invasão rans também têm como missão desen- de observação iranianos foram regis- Esse cenário explica o subequipa-
estrangeira teria volver seus recursos bélicos para dis- trados várias vezes sobrevoando as mento crônico do Artesh. Por exemplo,
de confrontar um suadir qualquer ataque. Nesse sentido, embarcações da US Navy cruzando o seu tanque de combate mais potente é
Exército oficial o inventário de mísseis iranianos per- Golfo, e mesmo porta-aviões, entre o T22 russo, concebido no início dos
manece difícil, mas sabe-se que a 2010 e 2017.2 anos 1970 (e modernizado localmen-
imbuído da ideia de Guarda Revolucionária dispõe de pelo te), e o grosso de seu arsenal blindado é
se manter firme em menos trezentos mísseis Shahab 1 e 2, formado por tanques Patton e Chief-
suas posições, de alcance máximo de 500 quilôme- tain, que datam das guerras da Coreia
custe o que custar tros. Concebidos durante a década de Em 2016, (1950-1953) e do Vietnã (1955-1975).
1980 e de fabricação norte-coreana, al- o orçamento Construída sobre os escombros do am-
guns foram até modernizados local- de defesa era bicioso projeto de complexo militar-in-
Sem nem sequer mencionar a mo- mente, com alcance que ameaça dire- dustrial ocidental vislumbrado pelo xá,
bilização patriótica que inevitavel- tamente as bases norte-americanas na
de US$ 15,9 bilhões, a indústria militar nacional pena para
mente provocaria no seio da popula- periferia do Irã (Golfo, Iraque, Afega- 42% dos quais compensar as sanções internacionais.
ção, uma invasão estrangeira teria, nistão). De acordo com o Instituto In- destinados aos A atividade incessante e a presença mi-
portanto, de confrontar um Exército ternacional de Pesquisa pela Paz, em pasdarans litar iraniana fora do país se devem, as-
oficial imbuído da ideia de se manter Estocolmo, Teerã dispõe também de sim, aos batalhões de guardas revolu-
firme em suas posições, custe o que uma centena de mísseis cujo raio ul- cionários, que desempenham o papel
custar. Ela também teria de enfrentar os trapassa mil quilômetros (Shahab 3/ motor de inovação nesse campo. Seu
pasdarans, treinados para levar ao exte- Ghadr), podendo chegar até 2,5 mil SUBEQUIPAMENTO CRÔNICO programa de mísseis, apesar de herdei-
rior uma guerra de perseguição contra quilômetros (Sumar/Sajjil), o que co- Apesar de tudo, é preciso ter cuida- ro das tecnologias norte-coreanas, é o
as forças superiores em nome de uma loca em área de fogo a Arábia Saudita, do para não exagerar o potencial mili- exemplo mais acabado.
ameaça permanente sobre os adversá- Israel, o interior da China, a Rússia e o tar iraniano, recordando, por exemplo,
rios e seus interesses econômicos. As Leste Europeu. que em 1991 o Exército iraquiano foi *Akram Kharief é jornalista e diretor de pu-
águas do Golfo oferecem, assim, uma Em um país ainda marcado por es- qualificado como “o quinto exército do blicações do site <www.menadefense.net>.
ampla gama de alvos nevrálgicos: pe- tragos causados – em particular nas mundo”, antes de ser desfeito pelos
troleiros, estações de dessalinização, cidades – pelos cerca de quatrocentos bombardeios da coalizão internacio-
navios de guerra estrangeiros etc. mísseis iraquianos atirados entre 1982 nal. Sem dúvida, o Artesh e os guardas
Essa dualidade Exército oficial/ e 1988, esse potencial de fogo oferece a da revolução dispõem de recursos fi-
pasdarans e defesa/ataque também possibilidade de melhor preparar uma nanceiros não desprezíveis. Em 2016, o
está presente no espaço aéreo. Sem réplica, ou um primeiro ataque, de for- orçamento de defesa era de US$ 15,9 1 “Yémen: les rebelles houthis lancent une salve de
dúvida, a Força Aérea, que dispõe de ma a paralisar os meios de resposta do bilhões, 42% dos quais destinados aos missiles sur l’Arabie saoudite” [Iêmen: os rebeldes
huthis lançam rajada de mísseis na Arábia Saudi-
apenas 65 aparelhos, dos quais alguns inimigo. Além desse conjunto, as for- pasdarans. Esses números se aproxi-
ta], 26 mar. 2018. Disponível em: <www.rfi.fr>.
datam da época do xá (aviões de caça ças aeroespaciais dos pasdarans dis- mam dos da Turquia e Israel, mas per- 2 Cf. “Iranian drone approaches Navy aircraft carrier
F-5 e caças-bombardeiros F-4), é o pri- põem de centenas de drones, que ser- manecem muito abaixo de outro rival in second dangerous encounter in a week” [Drone
iraniano aproxima-se de porta-aviões da Marinha
mo pobre do Artesh. Ainda assim, o vem para saturar o espaço aéreo e os regional, a Arábia Saudita, cujas inces-
no segundo encontro perigoso em uma semana],
Artesh possui um dos melhores siste- radares dos inimigos. Portadores de santes despesas militares chegam a The Washington Post, 14 ago. 2017.

Ensaios filosóficos Além do carnaval Escândalos


Em um momento em que o interesse pelo Nesta obra pioneira, o brasilianista James Green da tradução
pensamento liberal está de volta, um retorno examina a realidade social e cultural da “Traduttore, traditore” [tradutor,
aos princípios é homossexualidade traidor] diz a velha máxima. Ela é
particularmente masculina no Brasil ao aqui retomada, questionada e
bem-vindo. Princípios longo do século XX, matizada, pelo tradutor e pesquisador
entendidos não apenas questionando a visão norte-americano Lawrence Venuti,
como início – e a obra de estereotipada de que a que analisa a relação entre a tradução
Adam Smith é, expressão desinibida e e as instâncias – corporações,
indiscutivelmente, um dos licenciosa do governos, organizações religiosas,
pontos inaugurais do comportamento editores – que precisam do trabalho
liberalismo econômico –, homossexual durante o do tradutor, mas que eventualmente
mas, especialmente, como carnaval comprova a ainda marginalizam essa função.
elementos de base, asserção de que a
fundamentos: é a própria sociedade brasileira tolera Produzir conteúdo
filosofia de Smith que o a homossexualidade e a Compartilhar conhecimento.
leitor tem em mãos. bissexualidade na vida Desde 1987.
cotidiana. www.editoraunesp.com.br
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30 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2019

POBREZA, TRABALHO E POLÍTICAS SOCIAIS NO SERTÃO BAIANO

As sertanejas são,
antes de tudo, fortes
Em fevereiro saímos em uma viagem de carro pelo sertão da Bahia. Tínhamos a intenção de conversar
com mulheres sobre suas experiências com políticas sociais. Depois de quinze dias e 2.400 km rodados havíamos
conhecido paisagens inóspitas, lugares deslumbrantes e pessoas, em particular mulheres, fortes e generosas
POR TERESA SACCHET E JULIA SPATUZZI FELMANAS*

S
ão 4 horas da manhã e Jucélia1 cial, tem três filhos pequenos e, além
acorda embaixo de uma grande da roça, faz artesanato com o sisal, que
tenda de plástico, em uma roça vende ocasionalmente na feira local. “A
de sisal na região de Lage dos falta de oportunidades faz com que ta-
Negros, pensando que, se tivesse feito lentos sejam desperdiçados”, diz So-
faculdade, talvez não precisasse en- corro, e complementa: “Tem dois artis-
frentar doze horas de trabalho por dia. tas aqui que fazem coisas lindas. Um é
Com 21 anos, ela tem os braços e as pintor; o outro, desenhista. Mas eles
mãos marcadas pelo fio cortante da não têm como progredir aqui, não”.
planta. O acampamento onde dorme Há poucas e disputadas oportuni-
abriga também seu pai, sua mãe e ou- dades de trabalho mais especializado
tros trabalhadores, e será sua morada na região. Conceição, que tem pós-
por cinco dias da semana. Não há água -graduação e é líder comunitária, con-
tratada nem banheiro. Os banhos tou-nos que “os postos mais qualifica-
acontecem em dias alternados, pois a dos são quase sempre ocupados por
água é insuficiente. Sua cama é feita de pessoas da cidade”, e, segundo Maria,
sisal, e as refeições, ela mesma tem de “profissionais como assistentes so-
providenciar. ciais e pedagogas são normalmente
Se trabalhasse a semana inteira, Ju- indicados pelo grupo político que es-
célia receberia em torno de R$ 50. Po- tiver no poder”. Assim, se a questão for
rém, ela cortou dois dias de trabalho melhorar de vida, ter ou não feito fa-
para fazer um curso de corte e costura culdade parece fazer pouca diferença
em uma associação de mulheres local, na localidade.
e seu ganho semanal caiu para menos
de R$ 30. Jucélia nos conta que às vezes PERDA E RESILIÊNCIA
nem recebe. Foi o que aconteceu umas Apesar da incerteza da colheita, a
semanas antes do nosso encontro. Se- roça é a principal atividade produtiva.
gundo ela, o patrão disse que não tinha “Se chove, vai todo mundo plantar, aí
recebido nada na venda da palha, pois vem a seca e morre tudo. Choveu, a
sua qualidade era muito baixa, e ficou gente planta de novo. Se chovesse hoje
por isso mesmo. Ela demonstra certa vocês iam ver, ia todo mundo pra roça”,
indignação e afirma: “É humilhante diz Solange. “Não tem ninguém pre-
trabalhar a semana inteira e não rece- guiçoso aqui, não”, afirma ela, olhando
ber nada. Isso é trabalho escravo”. para nós como que a confrontar o este-
Essas e outras histórias nos foram reótipo do nordestino para os sulistas.
narradas em encontros que estabele- Esse plantar e não colher nos foi re-
cemos com mulheres quando, em fe- latado em muitas ocasiões. A mesma
vereiro deste ano, saímos em uma via- sina de morte com a seca é frequente
gem de carro pelo sertão da Bahia. Mãe e filho na frente de casa, em vila do município de Campo Formoso (BA) entre os animais. O sertanejo tenta evi-
Tínhamos um roteiro minimamente tar a perda dos bichos utilizando-se de
definido com a ajuda de amigos, que artifícios desenvolvidos localmente.
incluía lugares de luta como Canudos tes e generosas, que nos ofereceram de. Nenhuma das duas, porém, traba- No canto de um terreno árido, sob um
e Uauá, o Quilombo de Lage dos Ne- comida e bebida e dividiram conosco lha em suas áreas de formação. Vivem telhadinho de Brasilit, vimos uma vaca
gros, o Rio São Francisco e a intenção suas histórias e experiências de vida e do BF, da roça, quando a chuva permite amarrada, presa entre varas, e susten-
de conversar com mulheres sobre suas luta, as quais contamos aqui. plantar e colher, e de outras poucas ati- tada de pé por uma cangalha encaixa-
experiências com políticas sociais. A O anseio por melhores tempos é co- vidades de rendimento baixo e incerto. da à sua barriga. Com a fome, se não
própria viagem, alguns contatos ini- letivo no Quilombo de Laje dos Negros. Solange, que fez Pedagogia, tem uma fosse mantida erguida, ela cairia de
ciais e outros estabelecidos no cami- Solange e Maria, moradoras da Vila pequena venda onde se podem encon- fraqueza, não conseguiria mais se le-
nho foram definindo o rumo trilhado. Alagadiço onde criamos uma espécie trar uns poucos mantimentos secos, vantar e morreria. Transtornado pela
© Teresa Sacchet

Depois de quinze dias e 2.400 km ro- de grupo focal com recebedoras do como farinha, biscoitos e balas. Mas, imobilidade e pelo calor escaldante, o
dados havíamos conhecido paisagens Bolsa Família (BF), poderiam ser ali em uma comunidade de tão baixa ren- animal se debatia. Estava sendo ali-
inóspitas, lugares deslumbrantes e consideradas privilegiadas, pois tive- da, seu estabelecimento quase não dá mentado ali por quase um mês, mas o
pessoas, em particular mulheres, for- ram oportunidade de cursar faculda- retorno. Maria, que cursou Serviço So- destino de sua vida ainda era incerto.
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Em Vidas secas, Graciliano Ramos nidade, senão eles cancelam. Eu sei fa- mos sobre a violência de gênero, um ja condizente com a (nova) formação
fala de desesperança, de falta de recur- zer isso, mas para muitas é difícil lidar tema sensível para ser discutido com da população, evidenciou-se para nós
sos, de como o próprio vocábulo é es- com a burocracia, e aí ficam meses pessoas desconhecidas, as mulheres como um dos problemas mais graves.
casso no sertão, tornando-se um dese- sem receber; isso quando ele não é to- relataram não ser esse um problema Quando saímos para a viagem pelo
jo entre pessoas que, sem educação talmente cancelado”, diz. Mônica, comum. Mas, durante as conversas, sertão baiano, não sabíamos aonde ela
formal, não encontram palavras para uma gestora do BF de um dos municí- essa questão vinha à tona. Fátima, a nos levaria. Encontramos pelo cami-
expressar seus sentimentos e denun- pios que visitamos, confirma essa in- coordenadora de uma associação de nho pessoas generosas, que nos rece-
ciar a humilhação que sofrem. No ser- formação e vê com preocupação mu- mulheres, onde é realizado o curso de beram de braços abertos, nos oferece-
tão de hoje, as pessoas parecem mais danças recentes. Segundo ela, as corte e costura que Jucélia faz, disse ram o que tinham, dividiram conosco
“empoderadas”. As mulheres com pessoas estão apreensivas, pois, se an- que as atividades dessa organização suas experiências, percepções e co-
quem conversamos contaram suas tes podiam sair e retornar ao progra- “possibilitam às mulheres sair de casa, nhecimentos; nos encantamos com o
histórias com palavras que expressa- ma facilmente desde que no prazo de se distrair, conversar com as outras e sertão, sua paisagem e sua gente. Essa
vam entendimentos claros e capazes dois anos, agora as coisas estão incer- se esquecer por um momento da experiência foi de profundo aprendi-
de refletir dimensões profundas de tas, e elas são informadas por corres- opressão dos homens, que frequente- zado. Voltamos com muitas perguntas
suas experiências de vida. Aquelas com pondência do MDS que o retorno exige mente tentam colocá-las para baixo”. e poucas respostas. Porém, uma certe-
maior nível de escolaridade conside- atualização do cadastro, o que gera in- As mulheres relatam que há pouco za temos: as políticas públicas são es-
ram os “benefícios” que recebem como segurança. Quando o benefício é can- trabalho também para os homens, senciais, e os cortes planejados para o
um direito, e não como uma benesse. celado ou bloqueado, elas dependem mas que, quando há, eles costumam BF, o BPC e outros programas, como
No entanto, como na época do roman- da ajuda de familiares e vizinhos. So- ganhar mais. Por exemplo, no sisal, também a reforma da Previdência, vão
ce, ainda há poucas possibilidades de lange diz que já tem gente voltando a eles desempenham tarefas mais espe- impactar particularmente os mais
fuga das condições de pobreza. Essas viver do lixão. “Eu mesma fazia muito cializadas e rentáveis. A colheita da pa- vulneráveis, as pessoas com deficiên-
mulheres trabalham duro, são resi- disso antes. Catava osso de animal pa- lha é atividade das mulheres, enquan- cia, os idosos e, principalmente, as
lientes e querem melhorar de vida co- ra vender. Era muito duro”. to os homens operam as máquinas. A mulheres, que são, em sua maioria,
mo qualquer um de nós. Mas sem água Como em outros lugares, as mulhe- falta de trabalho estimula o alcoolismo suas cuidadoras.
não é possível plantar e colher, e sem res dessa região carregam o peso da entre eles, e são as mulheres que, além Neste momento em que as aten-
comércio ou indústria não há perspec- responsabilidade e da preocupação de de se ocuparem dos filhos, parentes e ções se voltam para a reforma da Pre-
tiva de outras ocupações rentáveis. cuidar da família, que se torna ainda pais, cuidam deles, tendo de lidar com vidência e seus defensores a promo-
maior quando há pessoas com defi- as consequências do vício. vem como a solução para todos os
PROGRAMAS SOCIAIS E MÚLTIPLAS JORNADAS ciência entre os seus. Firmina teve cin- Os homens saem com mais fre- problemas do país, faz-se necessário
Programas sociais como o BF, o Be- co filhos, quatro com deficiência, três quência, em uma migração que pode não só questionar o discurso do défi-
nefício de Prestação Continuada (BPC) deles faleceram. Ela contou-nos que a ser sazonal ou permanente. Na época cit, mas também promover uma pers-
e as aposentadorias em geral são fun- filha sobrevivente de 22 anos está aca- das safras do café, da laranja e da ca- pectiva mais ampla que leve em conta
damentais no sertão. Em Juazeiro dos mada desde os 8, quando começou a na-de-açúcar, alguns vão para São o impacto dessa reforma na experiên-
Capotes, outro quilombo, no municí- ter crises frequentes de epilepsia e foi Paulo e Minas Gerais, retornando de- cia de vida das pessoas mais vulnerá-
pio de Jeremoabo, Tavira, presidenta perdendo seus movimentos e sua ca- pois da colheita. Na visita ao Rose, um veis. Nos moldes propostos pelo atual
da Associação de Quilombolas local, pacidade cognitiva. Com 62 anos, ela assentamento de quase trinta anos do governo, a reforma nos parece pouco
conta o que o Bolsa Família represen- cuida da filha sozinha: a alimenta, MST no município de Santaluz, as mu- eficaz para solucionar os supostos pro-
tou em sua vida: “As coisas mudaram carrega para o banho, troca a fralda e lheres cantaram para nós um samba blemas econômicos estruturais do
muito com a Bolsa Família. Antes, a vi- desempenha todas as tarefas da casa. de roda que haviam composto e que país e gerar equilíbrio nas contas pú-
da era muito difícil, nem roupa tinha. Sobre o marido, ela diz: “Ele é mais pa- relata essa ida e vinda dos migrantes: blicas. Não cabe aqui explorar esses
As pessoas hoje pensam que eu sou ra companhia mesmo, não ajuda, “A seca na Bahia castigou até demais, argumentos, já tantas vezes explicita-
doida, mas as crianças andavam nuas, não”. Apesar das imensas dificulda- foi uns agricultores pra Minas Gerais. dos alhures, inclusive no próprio Le
só tinham uma roupa, só pra ir às fes- des, Firmina sempre trabalhou fora de Que eles vá e voltem em paz, Deus Monde Diplomatique Brasil, nas edi-
tas. Só usavam mesmo quando come- casa como “professora leiga”, até se abençoe quando vier lá de Minas Ge- ções de abril e maio de 2019. O impor-
çavam a ‘empenar’. Quando chegava aposentar recentemente. rais depois da safra do café”. tante é ressaltar que essa reforma, se
gente, elas corriam para se esconder, Em Lage dos Negros encontramos O dinheiro ganho fora do estado é aprovada, não representará a “salva-
pareciam bicho. Arroz, ninguém sabia muitas famílias que têm membros com utilizado para fazer melhorias nas ca- ção da pátria” do ponto de vista finan-
o que era, só na Semana Santa... Car- deficiência física e mental. O BPC é sas e nos estabelecimentos comerciais ceiro e, quando somada à reforma tra-
ne, só se pegava uma cacinha no ma- fundamental para elas lidarem com as por meio de mutirões. Vimos constru- balhista, à terceirização e aos cortes
to... Se os bois dos fazendeiro onde a dificuldades e os custos que o cuidado ções sendo erguidas por grupos gran- previstos em políticas sociais como o
gente trabalhava de diarista saíam e exigido por pessoas com deficiência re- des de vizinhos e ouvimos que o mate- BPC, aprofundará a miséria, a exclu-
comiam a nossa roça, a gente ficava quer. Mas o acesso a certa renda de rial e o serviço de alicerçamento eram são e a indignidade social, em um país
sem nada e nem podia reclamar. Me- programas sociais como o BPC e o BF pagos com recursos vindos do traba- que ainda se encontra entre os mais
nina, mas depois dessa Bolsa Família a não necessariamente assegura às mu- lho dos migrantes. desiguais e injustos do mundo.
gente ficou tão chique que nem se sabe lheres maior independência ou auto- As políticas sociais implantadas
quem é rico e quem é pobre. Hoje, é nomia, traduzindo-se, frequentemen- trouxeram mudanças importantes para *Teresa Sacchet é doutora em Ciência Polí-
farto de tudo, é arroz, é macarrão...”. te, em mais responsabilidade. Elas são o sertão baiano. Nas comunidades por tica pela Universidade de Essex, no Reino
Se o BF aliviou um pouco as difi- as responsáveis por resolver eventuais que passamos, vimos escolas, postos de Unido, e professora do Programa de Pós-
culdades da luta pela sobrevivência, problemas de cancelamento ou corte saúde, luz elétrica e muitas cisternas -Graduação em Estudos Interdisciplinares
há também a constante preocupação de benefícios, como os narrados aqui, para consumo e plantação. Porém, es- sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da Uni-
com os cortes. As mulheres de Alaga- o que significa custos elevados e tempo sas medidas não foram suficientes para versidade Federal da Bahia. Está coorgani-
diço relatam que, se não informam so- utilizado entre transportes e trâmites solucionar problemas mais complexos zando um livro sobre mulheres, gênero e o
bre eventuais mudanças, o benefício é burocráticos. Elas também se preocu- da região. Vimos um elevado número Bolsa Família para a editora Routledge, a ser
bloqueado ou mesmo cancelado. Por pam em garantir as condicionalidades de pessoas mais jovens com ensino lançado no início de 2020 nos Estados Uni-
três meses seguidos, Sônia, que recebe do programa BF, às vezes sem as condi- médio ou mesmo superior completo. dos; Julia Spatuzzi Felmanas é mestra em
pouco mais de R$ 60 mensais, teve de ções objetivas para tanto. Pessoas formadas em Assistência Téc- Políticas Públicas pela Metropolitan Univer-
pagar R$ 35 em transporte para ir de Os homens pouco aparecem nas nica Agrícola, mas também em Letras, sity, no Reino Unido, e tradutora.
Lage dos Negros (em torno de 100 km falas dessas mulheres, talvez por não Pedagogia, Serviço Social e outras
em estrada de chão) a Campo Formo- fazerem parte de suas rotinas, já que é áreas de conhecimento. Poucas exer-
so, sede do município, tentar resolver alto o número de mães solo que rece- ciam sua profissão. A falta de emprego
1 Todos os nomes utilizados são fictícios para
sua situação: “Tem que bloquear o be- bem benefícios sociais do governo co- formal, ou mesmo de qualquer empre- preservar a identidade das pessoas com quem
nefício para receber o salário-mater- mo o Bolsa Família. Quando indaga- go que pague um salário razoável e se- conversamos.
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MULHERES DA COMUNA DE PARIS

As Louises em insurreição
Lavadeiras, encadernadoras, vivandeiras, jornalistas... as mulheres participaram de forma esplêndida dos
combates da Comuna de Paris. Elas foram privadas do direito de votar, mas se fizeram entender nas associações de bairro,
demandando igualdade de salário e creches. A Comuna foi exterminada; suas ideias e ideais sobrevivem
POR ELOI VALAT*
© Laura Erber

N
o dia 26 de março de 1871, Uns dez dias antes, na noite de 17 vamente aos oficiais do 88º de linha. momento em que, pela terceira vez,
229.167 eleitores parisienses fo- para 18 de março de 1871, Adolphe Donas de casa tomaram as rédeas dos comandava o fogo, foi conduzido para
ram às urnas para escolher o Thiers, chefe do Executivo da Repúbli- cavalos, cortaram os arreios, gritaram a Rue des Rosiers, onde se uniu a ele
conselho comunal de “Paris, ca francesa, ordenou a retirada dos ca- “Não atirem no povo!”, “Viva a linha!”. Clément Thomas, reconhecido quan-
cidade livre”. Uma maioria revolucio- nhões da Guarda Nacional dos parques O 88º fraternizou com a multidão. do, vestido como civil, estudava as
nária ganhou. Socialistas, blanquis- de artilharia dos Buttes-Chaumont, de Louise Michel se precipitou, com a ca- barricadas de Montmartre. Seguindo
tas, republicanos radicais ou modera- Batignolles, de Montmartre... prudên- rabina debaixo do casaco: “Subíamos as leis da guerra, eles deviam perecer.
dos compunham essa nova assembleia cia governamental. Mas esses canhões a passo apertado, sabendo que no to- [...] Na noite de 18 de março, os oficiais
onde os trabalhadores manuais eram tinham sido pagos pelos parisienses. A po havia um exército enfileirado em que tinham sido feitos prisioneiros
mais numerosos, ao lado de funcioná- Guarda recusou. Às 5h30, a tropa se es- posição de batalha. Pensávamos em com Lecomte e Clément Thomas fo-
rios públicos, patrões artesãos, jorna- palhou pelas ruas de Paris. As ordens morrer pela liberdade. Éramos como ram postos em liberdade”.4
listas e profissionais liberais, em sua militares se sucederam. “10h20. Muita que levantados da terra. Nós, mortos, Gaston Da Costa, então ao lado dos
grande maioria homens jovens. Priva- efervescência no XIIe [arrondisse- Paris se levantou. As multidões, a cer- insurgidos, tentará em suas memórias
das do direito ao voto, as mulheres es- ment]. Os guardas nacionais bloquea- tas horas, são a vanguarda do oceano separar o joio do trigo: “Até o momento
tavam ausentes. Não havia cidadãs pa- ram a Rue de la Roquette com duas humano. A colina estava coberta por em que a tropa perdeu a mão, eram as
ra legislar “A Social”. No entanto, elas barricadas; outros descem para a Bas- uma luz branca, uma aurora esplêndi- mulheres que dominavam. Na Rue des
eram ativas e engajadas – e, como diz tilha. 10h30. Péssimas notícias de da de libertação. [...] Não era a morte Rosiers, na hora do assassinato, elas ti-
Jules Vallès, “Grande sinal! Quando as Montmartre. A tropa não quis agir. Os que nos esperava nas colinas [...], mas nham desaparecido, em sua maioria”.
mulheres se envolvem, quando a dona Buttes, as peças e os prisioneiros foram a surpresa de uma vitória popular”.3 Mas ele não recua, ele, o homem da
de casa incentiva seu homem, quando recuperados pelos insurgidos, que pa- Os generais Lecomte e Thomas, pri- Comuna, diante da evocação de ima-
ela arranca a bandeira preta que cobre recem não retroceder”.2 O toque de sioneiros dos soldados insurgidos, são gens frequentes para os adversários da
a marmita para plantá-la entre duas alarme agitou os bairros populares, de fuzilados na Rue des Rosiers. Para Comuna: “No entanto, às esposas, às
pedras no chão, é que o sol vai se le- Belleville a d’Enfer. Em Montmartre, as Louise Michel, a revolução tinha mães, sucedeu, nessa multidão muito
vantar sobre uma cidade em revolta”.1 mulheres e as crianças se opuseram vi- acontecido. Lecomte, impedido no misturada, que escoltou até as colinas
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os prisioneiros do Château-Rouge, a grande princípio proclamando a eli- gloriava, inclusive, como se fosse um ciam viver. [...] Bandeira vermelha na
horrível falange das moças submissas minação de todos os privilégios, de título de glória. [...] A Trindade, Clube frente, as mulheres passaram; elas ti-
e insubmissas [...], saídas dos hotéis, todas as desigualdades – por isso da Libertação – [...] Apenas mulheres. nham sua barricada na Place Blanche,
dos cafés e dos prostíbulos [...]. De mesmo, ela se engaja a levar em con- A ordem do dia dizia: ‘Medidas a to- ali estavam Élisabeth Dmitrieff, ma-
braços dados com os homens da li- sideração as justas reclamações de to- mar para regenerar a sociedade’. Uma dame Le Mel, Malvina Poulain, Blan-
nha, acompanhadas pela legião dos da a população, sem distinção de sexo mulher de cerca de 30 anos: ‘A praga che Lefebvre, Excoffon. André Léo
apoiadores, elas surgiram como a –, distinção criada e mantida pela ne- social, que é preciso antes de mais na- [pseudônimo da jornalista Victoire
triste espuma da prostituição sobre a cessidade de antagonismo sobre a da curar, é a dos patrões que exploram Léodine Béra] estava na de Batignol-
onda revolucionária, e lá estavam se qual repousam os privilégios das clas- os operários e enriquecem graças ao les. Mais de 10 mil mulheres nos dias
embebedando em todos os balcões, ses governantes”. seu suor. Chega dos patrões que consi- de maio, esparsas ou juntas, combate-
berrando sua alegria porca por essa Ainda em 12 de abril, mas dessa vez deram o operário uma máquina de ram pela liberdade. [...] As lendas mais
derrota. [...] Acrescente-se a isso algu- em O Grito do Povo: “Que a Comuna produzir! Que os trabalhadores se as- loucas correram sobre elas, acusadas
mas pobretonas desmoralizadas pe- abra então imediatamente às mulhe- sociem entre si, que coloquem seu tra- de causar incêndios – as mulheres lu-
los ataques nocivos da miséria, que, res três registros sob estes títulos: Ação balho em comum e serão felizes. Ou- taram como leoas, mas só vi a mim
na esquina da Rue Houdon, despeda- armada, Postos de socorro aos feridos, tro vício da sociedade atual são os gritando fogo! O fogo diante desses
çavam a carne, ainda quente, do cava- Fornos ambulantes. Elas se inscreve- ricos, que só bebem e se divertem sem monstros! Não as lutadoras, mas as in-
lo de um oficial morto alguns instan- ram aos montes, felizes de usar a santa nenhuma dificuldade. É preciso extir- felizes mães de família, que nos bair-
tes antes. Todas se espalhariam em febre que queima os corações”. pá-los, assim como aos padres e às re- ros invadidos acreditavam estar prote-
Montmartre, passeando sua bebedei- ligiosas. Nós só seremos felizes quan- gidas por qualquer utensílio que
ra, sua loucura cheia de ódio, e fariam do não tivermos mais nem patrões, demonstrasse que estavam indo bus-
uma abominável escolta do infeliz Le- nem ricos, nem padres’. Clube Saint- car comida para seus filhos (uma lata
comte e seus oficiais, quando eles su- “Mais de 10 mil -Sulpice – [...] Uma tal de Gabrielle, fi- de leite, por exemplo), eram olhadas
biram o Calvário dos Buttes”.5 mulheres nos dias lha de uma mulher submissa: ‘Os pa- como incendiárias, carregadoras de
Dez dias depois, em 28 de março, de maio, esparsas ou dres devem ser fuzilados; são eles que petróleo e empurradas contra as pare-
na Place de l’Hôtel-de-Ville, a Comuna nos impedem de viver como quere- des! [...] Versalhes estendeu sobre Paris
foi proclamada “em nome do povo”. A juntas, combateram mos. As mulheres estão erradas em se um enorme lençol vermelho de san-
festa foi grandiosa. O canhão soou pa- pela liberdade. As lendas confessar, eu bem sei. Peço então a to- gue; apenas um pedaço não tinha ain-
ra saudar o acontecimento, o toque de mais loucas correram das as mulheres que peguem todos os da sido dobrado sobre o cadáver. As
alarme estava mudo. Victorine Bro- sobre elas” padres e queimem a cara deles. Quan- metralhadoras não paravam nas ca-
cher escreveu: “Dessa vez nós tínha- do eles deixarem de existir, nós sere- sernas. Mata-se como na caça; é um
mos a Comuna! [...] Depois de tantas mos felizes’. [...] Louise Michel, a mais matadouro humano: aqueles que,
derrotas, de misérias e de luto, houve exaltada, a mais violenta de todas: ‘O quando morrem, permanecem de pé
um relaxamento, todos estavam feli- Nos clubes, abertos nas igrejas e, grande dia chegou’, gritava ela no en- ou correm contra as paredes, são aba-
zes. [...] Na frente dos batalhões em re- por vezes, exclusivamente femininos, contro do dia 17, ‘o dia decisivo para a tidos por diversão. [...] Atraídas pela
pouso, as mulheres da cantina do regi- a palavra estava liberada. Qualquer libertação ou a servidão do proletaria- carnificina e seguindo o exército regu-
mento com fantasias diferentes se coisa era assunto para falas e debates: do. Mas coragem, cidadãos, energia, lar, vimos, quando a Comuna morreu,
acotovelavam às metralhadoras. [...] a defesa da revolução, a educação das cidadãs, e Paris será nossa, sim, eu ju- aparecer, um pouco antes das moscas
Um membro da Comuna proclamou meninas, a paridade dos salários, as ro, Paris será nossa, ou Paris não exis- de sepultura, as vampiras, elas tam-
os nomes dos eleitos do povo, um grito leis sociais, a união livre, a covardia tirá mais. Para o povo, isso é uma bém vindas de um passado longínquo,
surgiu unânime: viva a Comuna!”.6 dos homens, o fim da exploração do questão de vida ou de morte’”.8 talvez simplesmente loucas, com raiva
As mulheres não tinham cadeiras trabalho. Em 3 de maio, na abertura Em 21 de maio de 1871, com a entra- e embebedadas de sangue. Vestidas
na assembleia comunal. Elas se arti- do Clube da Revolução Social, na igreja da de Versalhes em Paris, começou a com elegância, passeavam pela carni-
culavam, organizavam seus comitês de Saint-Michel Comble, em Batignol- Semana Sangrenta, “essas noites trági- ficina, passando em revista os mortos,
(de bairro e de vigilância), redigiam les, “sentia-se que, ao partirem para cas que sete vezes soaram”, segundo que elas fuçavam com a ponta da som-
textos e manifestos, trabalhavam em lutar pela Comuna, os maridos tinham Victorine Brocher. “Sábado, 27. Uma fu- brinha e os olhos sangrentos. Algu-
ambulâncias e cantinas no seio dos deixado no lar um germe sólido das zilada das mais intensas nos assaltou, mas, confundidas com as incendiá-
batalhões de federados para a defesa ideias revolucionárias”. A reunião ter- um pânico se espalhou, a multidão rias, foram fuziladas aos montes com
dos fortes de Issy e de Vanves, e logo minou com o Canto da Partida e a chegou gritando: ‘Parte de Belleville foi os outros”.10
nas barricadas da semana sangrenta. Marselhesa, e como ordem do dia do tomada, a prefeitura está abandonada,
Em 12 de abril, no Jornal Oficial – próximo encontro: “A mulher pela há mortos e feridos no meio das ruas, *Eloi Valat é pintor e desenhista. Última obra
da Comuna – foi publicado o chamado Igreja e pela revolução”.7 estão atirando em nós por todos os la- publicada: Louises, les femmes de la Commu-
de um “‘Grupo de cidadãs’: Paris está Paul de Fontoulieu, com uma plu- dos; os federados e os voluntários lu- ne [Louises, as mulheres da Comuna], prefá-
bloqueada, Paris é bombardeada. [...] ma mordaz molhada na água benta de tam como leões. Nossa bandeira na cio de Sarah Al-Matary, Bleu autour, Saint-
É o estrangeiro que volta para invadir a Versalhes, descreve baseado no que frente, nos agrupamos para o combate -Pourçain-sur-Sioule, 2019.
França? Não, esses inimigos, esses as- ele ouviu falar: “Clube Éloi – Entre as supremo; havia destroços em todos os
sassinos do povo e da liberdade são oradoras, perdão pela palavra, [...] a ci- batalhões. [...] Dia 28, à meia-noite, o úl- 1 Jules Vallès, “L’Insurgé” [O insurgido]. In: Œuvres
franceses! Eles viram o povo se levan- dadã Valentin, moça pública que em timo tiro de canhão federado partiu do [Obras], Gallimard, Paris, 1990.
tar gritando: ‘Nada de deveres sem di- 22 de maio queimou o cérebro de seu alto da Rua de Paris; o canhão entupido 2 Ordens dos generais Vinoy e Valentin ao chefe do
poder executivo. In: Marc-André Fabre, Vie et mort
reitos, nada de direitos sem deveres! cafetão porque ele não queria ir para com carga dupla exalou o último suspi- de la Commune [Vida e morte da Comuna], Librai-
Nós queremos trabalho, mas também as barricadas. E a cidadã Morel, que ti- ro da Comuna expirante. O sonho aca- rie Hachette, Paris, 1939.
o produto do trabalho... Chega de ex- nha cinco condenações na ficha: ‘Pe- bado, a caça ao homem começou! Pri- 3 Louise Michel, La Commune [A Comuna], Stock,
Paris, 1898.
ploradores, chega de senhores! O tra- ço, para concluir, que se joguem no Rio sões! Massacres!”9 4 Idem.
balho e o bem-estar para todos, o go- Sena todas as freiras, nos hospitais E Louise Michel conclui: “Eu parto 5 Gaston Da Costa, La Commune vécue [A Comu-
verno do povo por ele mesmo, a elas dão veneno para os federados’. com a indiferença do 61º cemitério de na vivida], Ancienne Maison Quantin, Paris,1909.
6 Victorine B. (Brocher), Souvenirs d’une morte vi-
Comuna, viver livre e trabalhando ou Igreja Saint-Lambert em Vaugirard, Montmartre, tomamos nossas posi- vante [Lembranças de uma morta-viva], Librairie
morrer lutando’”. Clube das Mulheres Patriotas – A reu- ções. [...] A noite caiu, éramos um pu- Lapie, Lausanne, 1909.
No dia 12 de abril, ainda no Jornal nião de Vaugirard foi presidida por nhado, bem decididos. Algumas bom- 7 Journal officiel de la République française [Jornal
oficial da República francesa], Partie non officielle,
Oficial, a União das Mulheres pela De- uma austríaca, de sobrenome Reide- bas caíam a intervalos regulares; 5 maio 1871.
fesa de Paris e os Cuidados aos Feridos nhreth, [...] uma espécie de sabichona pareciam as badaladas de um relógio, 8 Paul de Fontoulieu, Les églises de Paris sous la
ressalta: “É dever e direito de todos lu- revolucionária que tinha sido conde- o relógio da morte. Nessa noite clara, Commune [As igrejas de Paris sob a Comuna],
E. Dentu, Paris, 1873.
tar pela grande causa do povo, pela re- nada em Viena por delitos de ultraje toda embalsamada pelo perfume das 9 Victorine B. (Brocher), op. cit.
volução. [...] A Comuna representa o aos costumes, fato do qual ela se van- flores, as estátuas de mármore pare- 10 Louise Michel, op. cit.
34 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2019

IDEIAS

A arte de deturpar
George Orwell
As referências ao autor de 1984 multiplicaram-se nos últimos vinte anos.
Enquanto seu engajamento político o ancora à esquerda, é cada vez mais um pensamento neoconservador
que reivindica sua obra. Recuperação de ambiguidades plausível ou deturpação?
POR THIERRY DISCEPOLO*

T
udo e o contrário dele foi dito so- em 1937, teve um olhar crítico sobre o
bre George Orwell. Sobretudo o jovem esnobe que ele era ao sair do
contrário. Condenar o colonia- Eton. Quanto às relações de Orwell
lismo britânico e dar testemu- com o Partido Conservador britânico,
nho da vida dos trabalhadores pobres ele se recusou a se tornar membro dele
e dos vagabundos; converter-se a um até mesmo para lutar contra o stalinis-
socialismo radicalmente igualitário mo: “Sou de esquerda e devo trabalhar
após uma pesquisa sobre os operários entre ela, qualquer que seja meu ódio
ingleses; abandonar a negligência so- do totalitarismo russo e de sua in-
cial-democrata e ser internacionalista fluência nefasta sobre nosso país”.1
até combater durante a guerra da Es- Fica claro, em Michéa, que o rótulo
panha nas fileiras do Partido Operário de “anarquista tory” serve de antino-
de Unificação Marxista (Poum); dese- mia, se não de antídoto, para o “liberal
jar que a resistência do povo britânico libertário” e outros “progressistas” da
à Alemanha nazista desencadeasse burguesia letrada que ele combate –
uma revolução; juntar-se à ala esquer- © Columbia Pictures os mesmos para os quais Orwell ja-
da do Partido Trabalhista; e, enfim, mais usou palavras tão duras. Mas vê-
morrer cedo para ser paparicado pelo -se também muito bem que esse
sucesso de Nineteen Eighty-Four rótulo pode incitar uma recuperação
(1984): não só tudo isso não foi sufi- pela direita.
ciente para que uma parte da esquerda A ideia de que Orwell seria, por
o considere um dos seus, como tam- Para Orwell é preciso fazer a revolução para abolir a divisão em “temperamento político”, um anar-
classes que impede a instauração de uma ordem social justa
bém não impediu seu apoderamento quista conservador já tinha sido suge-
pelos neoconservadores. Como isso rida por Simon Leys, autor de um en-
aconteceu? saio determinante, Orwell ou l’horreur
Sucesso popular no Reino Unido e mente o release do editor. No entanto, dos “republicanos” legitimou uma de la politique [Orwell ou o horror da
nos Estados Unidos desde sua publica- Orwell não é mais o autor cuja morte confusão entre esquerda e direita, fa- política] (1984). Leys toma todos os
ção, em 1949, Nineteen Eighty-Four é foi noticiada apenas no Le Monde, em cilitando a tarefa para os neoconser- cuidados – falando da “profundidade e
amplamente exaltado pela imprensa. 51 palavras. vadores, como Alain Finkielkraut. da sinceridade do engajamento de Or-
Mas Orwell (1903-1950) desde aquela Em meados dos anos 1950, seus Desde então, é o Le Figaro que men- well no ideal socialista” e do fato de
época era muitas vezes mal compreen- principais livros foram todos (mais ciona Orwell com mais frequência; e seu “apoderamento pela nova direita
dido, particularmente na América, on- ou menos mal) traduzidos, umas vin- ele é muito apreciado por uma im- refletir menos o potencial conservador
de seu itinerário de homem de esquer- te edições de 1984 foram vendidas, prensa pouco ligada ao socialismo de seu pensamento que a persistente
da é pouco conhecido e seu romance mas lhe consagraram apenas dois revolucionário, de Limite a Causeur, estupidez [da] esquerda”.2 Mas seu tí-
é lido como uma crítica ao socialismo ensaios e a imprensa fez relativamen- passando por Marianne e até pelo tulo obscurece as pistas. Orwell, que
– a ponto de ele se sentir obrigado a te poucas referências a eles. Mais tar- Journal de Béziers, cidade cujo prefei- se preocupou “em fazer da escrita polí-
esclarecer suas intenções para o sin- de, tudo mudou: dos anos 1980 aos to, Robert Ménard, foi eleito com o tica uma arte”,3 não expressa um “des-
dicato dos trabalhadores norte-ame- 2000, Orwell foi alvo de uns quarenta apoio da Frente Nacional. Como essa gosto da política”, mas uma crítica da
ricanos da indústria automobilística. ensaios, e sua obra (exceto 1984) foi esfera de influência adotou um autor política autoritária e, em particular, da
Na França, ainda em dezembro de retraduzida pelas Éditions Champ cuja vida e obra lhe foram tão hostis? política imperial da União Soviética.
1949, o colunista do Le Monde, Robert Libre, incluindo nove textos inéditos. A “redescoberta” de Orwell é atri- Enfim, é a noção de common de-
Escarpit, qualificou o romance de “di- O Le Monde (o que mais fez referên- buída a Jean-Claude Michéa, filósofo cency [decência universal], a honesti-
vertido, mas simples caricatura do re- cias à sua obra) escreveu tanto sobre que se prevalece do marxismo e autor, dade habitual defendida outrora por
gime soviético”. Em junho de 1950, Orwell, em 1982 e 1983, quanto du- em 1995, de Orwell, anarchiste tory Charles Dickens, que teria levado à
quando publicada a tradução france- rante os trinta anos anteriores. O rit- [Orwell, anarquista do Partido Con- adoção de Orwell pela nova direita.
sa, o escritor Marcel Brion a saudou mo diminuiu durante um tempo, servador], fadado ao sucesso. A ex- Emblemática de valores associados à
como uma história “escrita em grande mas a partir de 1995 ele foi novamen- pressão “anarquista tory” só foi utili- classe operária, retidão moral, genero-
estilo e na melhor linguagem dos me- te citado de forma abundante pela zada por Orwell a respeito de Jonathan sidade, senso de solidariedade, ódio
lhores romancistas ingleses”. Sessenta imprensa – e mais do que nunca a Swift, que ele admirava como escritor dos privilégios, sede de igualdade e li-
e oito anos depois, para a recepção da partir dos anos 2010. Muitas coisas e satírico do mesmo modo que criticou gação à ideia de uma verdade objetiva,
segunda tradução francesa, a impren- mudaram então: o “bloco do Leste” sua personalidade e suas posições po- o conjunto de disposições que consti-
sa literária navegou entre banalidades não existe mais, e a alternância entre líticas. E, se falou de si próprio em ter- tuem a common decency é, para Or-
e contrassensos, ao reproduzir docil- o neoliberalismo dos “socialistas” e mos análogos, foi somente quando, well, herdado do cristianismo e da Re-
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volução Francesa. Se essa “moral dão moral” e “cristianismo”. Afirme flige uma lição de “pensamento du- com a qual seus habitantes são fada-
social e econômica” perdura mais na que o operário (branco) pertence às plo”, técnica de ajuste ao consenso do dos a falar e a (não mais poder) pen-
relação de pessoas de condição mo- classes médias pauperizadas pela che- momento. Essa “competência” não é sar. No impulso, a polícia do pensa-
desta com a vida e com os outros, não gada de um subproletariado insensível apanágio apenas dos “totalitarismos”; mento tornou-se mentopolice, e o
seria por ser inata, mas por terem um à “nossa” common decency. E pronto. ela se encontra também em Donald crime de pensamento, mentocrime.
tipo de vida que facilita sua perenida- E isso ainda mais porque, junto aos Trump e suas “verdades alternativas”: De onde vêm “liberdades” como
de e transmissão. Assim, todas as intelectuais de esquerda, a common “Tento dizer a verdade sempre, e quero essas? Do direito de cada um de cons-
classes sociais abrigam mais ou me- decency é muito malvista: qualificada sempre dizer a verdade. Mas, às vezes, truir em cada leitura, em cada tradu-
nos esses valores. Mas as relações de de moral “burguesa” ou “idealista” e acontece algo e há uma mudança, mas ção, o sentido de um texto, afirma a
dominação que estruturam nossas até mesmo “de direita”, ela é suspeita quero sempre ser sincero”.7 tradutora. Mas não é justamente desse
sociedades as ultrajam permanente- de descartar a política e de alimentar relativismo que o panfleto satírico de
mente. Por isso, segundo Orwell, é o anti-intelectualismo. Reação que é Orwell revela os perigos? Para seu he-
preciso fazer a revolução: para abolir possível compreender, Orwell conce- rói, é a existência de uma verdade ex-
a divisão em classes que impede a bia a common decency como uma vir- Segundo Orwell, terna que torna a liberdade individual
instauração de uma ordem social jus- tude deficitária da “intelligentsia mo- é preciso fazer a possível: limitando nosso privilégio e,
ta, da qual a common decency se tor- derna”: desprovido do fundamento sobretudo, o do poder, de decidir o que
naria o fundamento moral comum.4 histórico e relacional que lhe teria
revolução para abolir é. Não é o último subterfúgio da novi-
Isso ecoa na análise do historiador permitido ter valores da honestidade a divisão em classes língua nada mais que seguir as vias da
inglês Edward P. Thompson sobre as universal, o intelectual seria, mais que impede a literatura para substituir termos preci-
mobilizações populares relacionadas que qualquer outro ator social, per- instauração de uma sos por “novas palavras” vazias?
à “economia moral” das multidões meável aos desvios autoritários de
punindo as elites que transgridem as uma ordem que garante sua posição –
ordem social justa *Thierry Discepolo fundou as Éditions Ago-
normas comuns não escritas; e na do mesmo quando ele mantém um dis- ne, que deu origem à nova tradução de 1984
cientista político norte-americano curso de emancipação. publicada pelas Éditions de la rue Dorion
Barrington Moore, concernente à A blasfêmia de “anti-intelectualis- Uma vez que as referências à crí- (Montreal).
ideia de que os dominados se revol- ta” poderia muito bem ter sido menos tica do totalitarismo, feita por Or-
tam quando o poder despreza o “pac- perdoada do que o engajamento pós- well, estão mais associadas desde
to social implícito” e suas “obriga- tumo e injusto de Orwell na cruzada 1995 à internet e à vigilância de mas-
ções morais”. anticomunista, ardente a invocar o sa, sua inteligência política é, por as-
stalinismo para desqualificar os ideais sim dizer, vivificada, o que não foi
socialistas do movimento operário: se útil para a nova edição de 1984 lan-
lermos bem 1984, nele encontraremos çada pela Gallimard.
Sucesso popular no menos uma “caricatura do regime so- A primeira tradução padecia de 1 “Lettre à la duchesse d’Atholl” [Carta à duquesa de
Atholl], 15 nov. 1945. In: George Orwell, Essais,
Reino Unido e nos viético” que a sátira da utopia que ele certa falta de precisão, de escolhas articles et lettres [Ensaios, artigos e cartas], v.IV,
Estados Unidos atribui aos intelectuais. que envelheceram, de faltas de deta- Ivrea/Encyclopédie des nuisances, Paris, 2001.
2 Simon Leys, Orwell ou l’horreur de la politique
Essa utopia, “paródia das conse- lhes, de alguns contrassensos impor-
desde sua publicação, quências intelectuais do totalitaris- tantes e de um grande número de fra-
[Orwell ou o horror da política] [1984], Plon, Pa-
ris, 2006.
em 1949, 1984 é mo”,5 é revelada por uma cena de tor- ses ausentes. No entanto, ela 3 George Orwell, “Pourquoi j’écris?” [Por que escre-
amplamente exaltado tura conduzida por um filósofo e implementou suas principais noções vo?], 1946. In: Essais, articles et lettres [Ensaios,
artigos e cartas], v.I, Ivrea/Encyclopédie des nui-
pela imprensa dirigente do partido, que discute a na- na língua francesa. Em 2018, para sances, Paris, 1995.
tureza da verdade, defendendo con- “fazer justiça [a 1984] de um ponto de 4 Jean-Jacques Rosat, Chroniques orwelliennes
cepções bem menos marxistas6 que vista literário”, a nova versão tradu- [Crônicas relativas a Orwell], Collège de France,
Paris, 2013.
pós-modernas. Na filosofia do partido, ziu no presente uma narrativa escrita 5 “Lettre à Roger Senhouse” [Carta a Roger Se-
Como os neoconservadores po- assim como na filosofia pós-moderna, no passado, o que diz mais sobre a nhouse], 26 dez. 1948. In: George Orwell, Essais,
dem, então, se prevalecer da common a verdade, resultado de um consenso consideração da obra pelo editor do articles et lettres, v.IV, op. cit.
6 James Conant, Orwell ou le pouvoir de la vérité
decency? É simples. Retire “generosi- social, é construída, é relativa a um pe- que sobre a “justiça”. E porque News- [Orwell ou o poder da verdade], Agone, Marselha,
dade, senso de solidariedade, ódio de ríodo, a uma cultura. O torturador não peak não seria uma língua, novilín- 2012.
privilégios, sede de igualdade”. Esque- impõe tanto à sua vítima que ela reco- gua tornou-se neofalar. No entanto, o 7 Donald Trump’s wacky approach to truth, explai-
ned in 7 words [Abordagem excêntrica de Donald
ça a Revolução Francesa e a “abolição nheça que “dois mais dois são cinco” romance dá a estrutura e a etimolo- Trump sobre a verdade, explicada em sete pala-
da divisão em classes”. Guarde “reti- como uma verdade quanto ele lhe in- gia da “língua oficial da Oceania” vras], CNN, 1º nov. 2018.
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PATRIMÔNIO DA UNESCO, OS EFEITOS INESPERADOS DE UM RÓTULO

O presente envenenado
do turismo cultural
Todo ano, uns cinquenta lugares naturais ou culturais se candidatam à inclusão na lista do patrimônio mundial para
se verem honrados com uma proteção em benefício de toda a humanidade. Ao conferir esse título, a Unesco orienta
fortemente os fluxos turísticos – um respiro do ponto de vista financeiro, mas que pode se mostrar devastador
POR GENEVIÈVE CLASTRES*

“D
e repente, Albi começou a exis- turais ou científicos e personalidades Para os habitantes, em particular de um grande número de restaurações.
tir no mapa do mundo. A inser- qualificadas, mas também os profis- os dos velhos bairros, povoados prin- Além do patrimônio material, é preciso
ção da cidade episcopal no pa- sionais do turismo e os habitantes. “A cipalmente pelos naxi – um povo tibe- observar a influência do turismo sobre
trimônio mundial da Unesco cidade episcopal não deseja privile- to-birmanês –, as consequências são o povo naxi e a cultura dongba, dos
ocorreu em 31 de julho de 2010. Na ma- giar apenas uma abordagem ‘de patri- devastadoras: desde o início dos anos quais diversos conhecimentos foram
nhã seguinte, havia uma multidão na mônio’. Tratamos também o ser hu- 2000, o centro da cidade, com seu pa- incluídos na lista do patrimônio cultu-
cidade: as pessoas se desviaram de seu mano, a economia e suas interações. trimônio arquitetônico excepcional, ral imaterial entre 2006 e 2014. Os don-
caminho para virem ver.” Diretora dos Além disso, pilotamos as ações da zo- tornou-se um enclave turístico onde gba, xamãs naxi conhecidos por sua
assuntos culturais, do patrimônio e na de proteção com o mesmo grau de proliferam hotéis, restaurantes, bares escrita pictográfica, fascinam os visi-
das relações internacionais de Albi, qualidade e exigência”, garante Cor- e lojas. Os habitantes locais preferem tantes. Embora a China não tenha pre-
Marie-Ève Cortés se lembra muito tés. Todo ano, as assembleias dos albi- alugar suas habitações para comer- visto esse maná para molestar essa po-
bem desse dia que mudou a vida da ci- genses conseguem reunir os habitan- ciantes provenientes de províncias vi- pulação, a evolução atual pode ter
dade de tijolinhos e de seus 52 mil ha- tes para trabalhar em temas bem zinhas... e ir morar na cidade nova. Em efeitos inesperados, entre os piores e os
bitantes. A partir de então, o número variados, como o estacionamento na poucos anos, Lijiang tornou-se um melhores. “É difícil ganhar sua vida
de turistas mais que dobrou, passando cidade, os pequenos comércios, o mo- ambiente em parte sacrificado no altar apenas com a atividade de dongba”, ex-
de 700 mil por ano para 1 milhão em biliário urbano etc. do turismo. Deparamos também com plica Emmanuelle Laurent. Segundo
2011 e, depois, para 1,5 milhão em 2016 mulheres naxi que vão fazer comércio ela, “alguns, em sua maioria da jovem
– um pouco menos em 2017. ou figuração, mas os turistas ocupam geração, acham trabalho no setor tu-
A inclusão na lista do patrimônio o meio das ruas. Em 2008, a Unesco rístico, no qual se beneficiam de seus
mundial sempre consagra lugares já Albi teve de elaborar acabou advertindo a municipalidade, conhecimentos para ganhar um pouco
muito frequentados. Todavia, existe um plano de gestão intimando-a a retomar a gestão do de dinheiro. Outros os denunciam, ale-
um real “efeito Unesco”. “A inclusão para integrar todas bem, sob pena de ser incluída na lista gando não serem ‘verdadeiros dongba’,
é garantia de qualidade do bem, seja do patrimônio em risco. mas muitos adotam uma abordagem
ele natural ou cultural. Para os pos- as partes interessadas Lá, vivenciamos a ambivalência do menos conservadora da transmissão
síveis visitantes, ela representa um a longo prazo, a fim turismo, evocado, estimulado por ser de seus conhecimentos”. Apesar dos
reconhecimento”, especifica Maria de não transformar portador de divisas, de crescimento, desvios e de um folclore às vezes bei-
Gravari-Barbas, diretora da cadeira a cidade em museu de esperança, mas ameaçador se o rando o ridículo, o turismo provocou
Unesco – Cultura, Turismo, Desen- equilíbrio for rompido. Os visitantes uma recuperação da cultura dongba,
volvimento da Universidade Paris I destroem os lugares que veneram – com a multiplicação de centros cultu-
Panthéon-Sorbonne. descalçamento dos menires de Car- rais e de pesquisa, a retomada de al-
Um ou dois lugares são incluídos Em 2014, Albi tornou-se cidade gê- nac, estragos dos espaços naturais do guns rituais e uma volta das vocações.
anualmente, e a França já conta com mea de Lijiang. Essa cidade da Provín- Puy-de-Dôme, degradações das caver- O governo estimula inclusive os naxi a
44 na lista do patrimônio mundial: 39 cia de Yunnan encontra-se na antiga nas de Lascaux, barulheira em Machu se reapropriarem de sua língua.
lugares culturais, quatro naturais e estrada das caravanas que liga o Tibe- Picchu – e deixam exasperados os ha-
um misto. Para antecipar os efeitos te à China, a 2.400 metros de altitude. bitantes que os esperam.
de seu prestígio, Albi teve de elaborar Em 1986, após a classificação de sua Com os anos, algumas medidas fo-
um plano de gestão. Objetivo: garan- velha cidade, Dayan, no tesouro nacio- ram tomadas em Lijiang, mas é impos-
tir a manutenção do valor universal nal chinês, a reputação de suas vielas sível devolver a cidade aos habitantes.
Em Lijiang, o número
excepcional do bem, mas também in- de paralelepípedos às margens de ca- Nesse ponto, a Unesco baixou a guar- de turistas passou de
tegrar todas as partes interessadas a nais e de sua arquitetura excepcional da. O cerne da cidade naxi se organi- apenas 200 mil em 1992
longo prazo, a fim de não transfor- aumentou. Apesar de diversos tremo- zou para fugir de seu centro, que aco- para mais de 4 milhões
mar a cidade em museu. “Às vezes, é res de terra, o último em 3 de fevereiro lheu 46 milhões de visitantes no ano
por excesso de boa vontade que a in- de 1996, o patrimônio imaterial e as passado! “Eu me lembro do dia, no ano
em 2005 e para 5,3
clusão pode se mostrar problemáti- residências tradicionais da cidade fo- passado, em que havia tantos turistas milhões em 2008
ca”, explica Gravari-Barbas. E prosse- ram preservados, o que a Unesco reco- na cidade velha que os residentes lo-
gue: “Em várias cidades, a restauração nheceu ao incluí-la em sua lista em cais foram avisados pelas redes sociais
optou por um ‘integrismo cronológi- 1997. Em poucos anos, a cidade viveu para evitar essa zona”, testemunha
co’ ou um ‘fundamentalismo tempo- uma mudança sem precedentes. O nú- Emmanuelle Laurent, doutoranda em Delegações de Albi e de Lijiang se
ral’ que acabaram congelando as ci- mero de turistas passou de apenas 200 Antropologia do Mundo Chinês no visitam regularmente, para favorecer
dades numa época”. mil em 1992 para 1,7 milhão em 1997, Instituto Nacional de Línguas e Civili- a troca de experiências. A gestão do
Para evitar essa armadilha, o comi- depois para 2,6 milhões em 1999, para zações Orientais (Inalco), em Paris.2 bem é muito diferente nos dois países:
tê que administra o lugar reuniu, des- mais de 4 milhões em 2005 e para 5,3 Todavia, o balanço merece ser ma- na França, privilegia-se a orquestra-
de o início, instituições, parceiros cul- milhões em 2008.1 tizado.3 Lijiang também se beneficiou ção e o bem-estar dos habitantes, en-
JULHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 37

chados por muros, muralhas ou for-


tificações, são mais difíceis de prote-
ger do que outros. “Às vezes, os que
vivem do turismo militam ativa-
mente por uma política de não inter-
vir nos fluxos de entrada, e até mes-
mo fazem dumping turístico”,
confirma Gravari-Barbas. E conti-
nua: “Mas a inclusão na lista da
Unesco dá às cidades os meios de
exercer pressão local chamando a
atenção para a ameaça de inclusão
no patrimônio mundial em risco, ou
até mesmo de ser retirada da lista.
Liverpool foi, desse modo, incluída
na lista do patrimônio mundial em
risco fundamentalmente por causa
© Frédéric Lemaire/Pixabay

dos projetos imobiliários que preju-


dicavam o valor universal excepcio-
nal do bem. O projeto de construção
de uma torre no hotel Intercontinen-
tal deu o mesmo destino a Viena,
pois ele alterava consideravelmente
a ‘perspectiva de Canalleto’, repre-
Albi, cidade Medieval no Sul da França é Patrimônio Mundial da Unesco e trabalha para fazer uma gestão adequada do sentada em um famoso quadro de
turismo e não transformar a cidade em um museu Bernardo Bellotto [1758-1761]”.
Tendo optado pelo turismo de mas-
sa a baixo preço, Barcelona é, a partir
de então, vítima de seu êxito. A China
quanto na China estes últimos ainda uma taxa de três euros. No entanto, FERRAMENTAS PARA A GESTÃO vê nessa atividade uma vitrine ideal
têm muito pouca voz na deliberação. essa limitação quantitativa não é a Na França, a rede dos Grands Sites para mostrar sua força e sua capacida-
Os chineses buscam se inspirar no solução ideal, esclarece Gravari-Bar- de France (GSF) trabalha desde os de de inovação permanente. Se, por
que funciona na França, conta Cortés: bas: “A política de cotas é problemáti- anos 1980 para adaptar a capacidade um lado, a França soube valorizar seu
“Todas as vezes que recebemos dele- ca, pois tende a transformar as cida- de recepção. “Realizamos estudos a patrimônio, por outro, o turismo não
gações de Lijiang, elas estavam muito des em museus ou parques urbanos, fim de determinar a capacidade de ca- tem mais ministério em pleno exercí-
interessadas na maneira como geren- cuja entrada é regulamentada, con- da lugar, relativa à frequência e à pre- cio desde 1995 e a dimensão econômi-
ciamos o patrimônio, na escolha dos trolada e até mesmo cobrada”. servação do ambiente, zelando tam- ca prevalece mais do que nunca. Essa
materiais, na cor, na noção de autenti- bém para que os habitantes não se visão reducionista dificulta a tarefa da-
cidade ligada à experiência. Na China, sintam espoliados e que o turismo não queles que trabalham por um equilí-
o que mais conta é o valor de uso. Nos- se torne a única atividade de um terri- brio harmonioso e sustentável entre o
sa regulamentação também as dei- O turismo provocou tório”, explica Soline Archambault, econômico, o ecológico e o humano.
xou muito impressionadas. A França uma recuperação sua diretora. A gestão dos fluxos, desde
possui o dispositivo que protege me- da cultura dongba, as portas de entrada, ou o aumento do *Geneviève Clastres é jornalista. Organizou
lhor o patrimônio, mas também o perímetro da área em questão, limita a a obra coletiva Dix ans de tourisme durable
meio ambiente. Por exemplo, somos
com a multiplicação saturação. Um grande número de me- [Dez anos de turismo sustentável], Éditions
muito atentos à proteção da biodiver- de centros culturais didas e soluções é providenciado e Voyageons-Autrement.com, Bourg-lès-Valen-
sidade das margens do Rio Tarn, que e a retomada de adaptado a cada situação: colocação ce, 2018.
passa ao longo de nosso bem. Isso os alguns rituais de observatórios de frequência,
impressionou”. maior distanciamento de estaciona-
Muitos outros lugares distintos mentos, serviço de transportes regu-
pela Unesco se debatem com o turis- lares, bicicletas elétricas, mobiliza-
mo de massa. Em Dubrovnik, na Em várias cidades europeias, co- ção dos comerciantes para aumentar 1 Geneviève Clastres, “Tourisme et identité en Chine
du Sud. Le cas des Naxi de Lijiang” [Turismo e
Croácia, um projeto imobiliário in- mo Barcelona, Saint-Sébastien e o preço dos produtos vendidos etc. identidade no sul da China. O caso dos naxi de Li-
cluindo também um campo de golfe Amsterdã, houve manifestações hos- Último lugar incluído na lista do pa- jiang]. In: Jean-Marie Furt e Franck Michel (orgs.),
nas montanhas que dão para a cida- tis às hordas de turistas que invadi- trimônio mundial (dia 2 de julho de Tourismes et identités [Turismos e identidades],
L’Harmattan, Paris, 2006.
de corre o risco de desnaturalizar ram suas ruas, gerando atividades 2018), a cadeia de montanhas dos 2 Emmanuelle Laurent, “Autour de la préservation de
uma parte ao lado da Dalmácia. Sob a ensurdecedoras e acentuando seu Puys-Faille de Limagne criou, assim, la culture des Naxi de Lijiang” [Em torno da preser-
ameaça de ver a cidadela entrar na aburguesamento. A inclusão no pa- áreas de estacionamento integradas vação da cultura dos naxi de Lijiang], Le Carreau
de la Bulac [local de troca de informações entre
lista do patrimônio em risco4, a cida- trimônio mundial da Unesco pode à paisagem, um trem com cremalhei- pesquisadores, professores, estudantes e bibliote-
de acabou limitando os visitantes a 8 dar uma resposta às torrentes do tu- ra, assim como balizas informativas cários] na Bulac – Biblioteca Universitária de Lín-
mil, depois a 4 mil por dia. Ela res- rismo quando ela é considerada um e preventivas resultantes de reflexões guas e Civilizações, 10 nov. 2015. Disponível em:
<http://bulac.hypotheses.org>.
tringiu fundamentalmente o número impulso, um ponto de partida para a e decisões locais. 3 Heather Peters, “Dancing in the market: Reconfi-
de pessoas que participam de cruzei- elaboração de uma estratégia de pre- A rede dos GSF também estimula guring commerce and heritage in Lijiang” [A dança
ros, negociando com a Associação In- servação eficaz. Segundo Cortés, “Al- uma formação em francês para os no mercado: reconfiguração do comércio e da he-
rança em Lijiang]. In: Tami Blumenfield e Helaine
ternacional de Companhias de Cru- bi se muniu do primeiro plano de gerentes de lugares do mundo intei- Silverman (orgs.), Cultural Heritage Politics in Chi-
zeiros uma melhor distribuição das gestão quando ele se tornou uma ro, com o apoio da Unesco. Ela per- na [Políticas de patrimônio cultural na China],
chegadas de embarcações. Da mes- obrigação, depois nos serviu de refe- mite uma troca de experiências com Springer, Nova York, 2013.
4 “Report on the Unesco-Icomos reactive monitoring
ma maneira, desde 2018, Veneza limi- rência. Nós nos orgulhamos de ter mais de 35 países com a gestão inte- mission to old city of Dubrovnik, Croatia” [Relatório
ta a 20 mil pessoas o acesso à Praça inspirado outros bens, como a Bassin grada dos lugares e a sensibilização sobre a missão de monitoração reativa da Unesco-
São Marcos na cerimônia de abertura Minier [Bacia de Mineração], a Grotte dos habitantes, que permanecem no -Icomos para a antiga cidade de Dubrovnik, Croá-
cia], Unesco-Conseil international des monuments
do Carnaval. Além disso, a partir de Chauvet [Gruta Chauvet] e a Chaîne centro do processo. Evidentemente, et des sites, nov. 2015. Disponível em: <http://
2019, todos os turistas deverão pagar des Puys [Cordilheira dos Puys]”. alguns locais, tais como aqueles fe- whc.unesco.org>.
38 Le Monde Diplomatique Brasil JULHO 2019

MISCELÂNEA

livros internet
NOVAS NARRATIVAS DA WEB
Sites e projetos que merecem o seu tempo

CADÊ O AMARILDO? TEMPOS DE DIZER,


O DESAPARECIMENTO TEMPOS DE ESCUTAR: MAPA QUEER
DO PEDREIRO TESTEMUNHOS DE Mapeamentos ajudam a dar visibilidade: se
E O CASO DAS MULHERES NO BRASIL não está no mapa, talvez não exista. Mapas
UPPS E NA ARGENTINA que georreferenciam histórias buscam inserir
Leandro Resende, Danielle Tega, no mundo concreto – naquela rua, naquela es-
Baioneta Editora Intermeios/Fapesp quina – coisas que aconteceram com pessoas,
memórias, afetos. O projeto Queering the Map
insere depoimentos colaborativos em regiões
do mundo todo, com maior número de partici-
pações na Europa e nos Estados Unidos. “A

N o meio de tantas obras que buscam interpretar


a situação penosa de nossos dias, o livro se dis-
tingue pela profundidade e clareza na demonstração
D esafiando a história recente e persistente, Da-
nielle Tega nos brinda com uma pesquisa acerca
dos testemunhos de mulheres militantes que vivencia-
intenção do projeto é documentar espaços de
memória queer, de parque a garagens, esta-
cionamentos, momentos queer, onde quer que
de uma situação de completa normalização da violên- ram os horrores das ditaduras militares no Brasil e na tenham ocorrido.”
cia institucional. A selvageria habitual, como forma de Argentina. Obra sensível e perturbadora, dura como <https://queeringthemap.com>
controle, ocorre no Brasil por meio de diversos dispo- aço e delicada como asas de borboleta, tal como afir-
sitivos, dos quais o mais conhecido é a militarização mava Diego Rivera sobre as pinturas de Frida Kahlo,
da polícia, apontada no livro. O jornalista e sociólogo Tempos de dizer, tempos de escutar costura memória, TINDER DE MONSTROS
Leandro Resende não só desmistifica o consenso gênero e subjetividade em sua narrativa comparativa Algoritmos discriminam – não há outra forma
acrítico que se formou em torno das UPPs, como ain- e triangular. Com recursos teóricos da sociologia crí- de eles funcionarem senão separando con-
da demonstra a ruptura e quebra desse consenso a tica, do pensamento feminista e da psicanálise, o livro teúdos de acordo com o que pensam que te
partir do desaparecimento de Amarildo. leva o leitor a uma espécie de “experiência do cho- interessa mais, ou seja, discriminando conte-
Resende revela, com um passo a passo interes- que”, como poderia dizer Walter Benjamin, um silêncio údos. Monstermatch é uma espécie de Tinder
sante, os desdobramentos do caso na sequência da demasiadamente ruidoso, que, no entanto, reeduca e (o famoso app de encontrar pessoas) com
quebra de sua singularização, isto é, quando o caso recoloca subjetividades silenciadas em condição de monstros que te mostra, no jogo, como o algo-
deixa de ser apenas o de mais um pobre desapare- atuar na transformação política da história. ritmo funciona. Por exemplo: se você escolhe
cido para tornar-se a simbolização de uma luta que Não há nesse livro um estudo com base em en- mais pessoas de determinado tipo, é esse tipo
ultrapassaria as fronteiras do Rio de Janeiro. Um dos trevistas; na realidade, sua matéria-prima são as que mais vai aparecer para você. O que você
motivos cruciais, sem dúvida, foram os levantes de ju- agentes sociais de carne e osso que escolheram conversa no app também é monitorado, com
nho de 2013, que colocaram em xeque as diversas tornar públicos seus testemunhos e, assim, transmi- o pretexto de te conhecer melhor e te colocar
pós-políticas administrativas e gestionárias do perío- tir e reinterpretar suas experiências biográficas, seja em contato com perfis similares, ou que topam
do que chegava ao fim, o que, por sua vez, colocaria em espaços de escrita (livros e autobiografias), seja seu tipo de cantada.
em xeque as próprias UPPs. mediante a criação fílmica (ficção e documentário). <https://monstermatch.hiddenswitch.com>
Respondendo à pergunta “Contra quem, de que Nas narrativas estudadas, a autora examina o signi-
forma e onde”, o autor nos dá indícios da maneira pela ficado do conjunto de vozes, posições e motivações
qual o caso se tornou central na discussão dos limi- das enunciadoras, os tempos verbais adotados, o BTS WORLD
tes da política de pacificação. Para tanto, mobiliza a estilo e as estratégias de cada registro, e ampara-se A banda mais famosa do mundo – talvez você
própria forma como se expõem os variados discursos metodologicamente na dialética entre forma e con- não saiba – é a sul-coreana BTS (Bangtan
e como as narrativas sobre o caso ganham a sensi- teúdo. Ao longo do doloroso e necessário processo Boys), surgida em 2013, sucesso mundial
bilidade da insensível ordem midiática, mantendo em de transmissão, situado no limiar da “repetição trau- absoluto entre jovens que ouvem k-pop. Al-
seu cerne a violência institucional. A controvérsia, res- mática” e do “imperativo da sobrevivência”, é possível guns de seus vídeos têm quase 1 bilhão de
gatada pelo autor, é só um dos meios pelos quais a escutar alguns elementos da reconstituição subjetiva views no YouTube. Um bilhão, isso mesmo.
violência radical se expressa ideologicamente. de quem recorda: solidão, violência sexual, sofrimen- Eles lançaram um game para celular em que
Para além do próprio caso, o livro marca-se pela ten- to, humilhação, afeto, acolhimento e, por fim, a relação você pode ser o gerente da banda no início da
tativa de esmiuçar os diversos argumentos e contra-ar- com o corpo e com os filhos e filhas. carreira deles, tomando decisões que levem
gumentos lançados na construção e desdobramento Em um momento em que detratores da memória ao sucesso do grupo. Fizeram, para isso, con-
do acontecimento em torno de Amarildo. Com isso, o social festejam regimes autoritários com nostalgia, teúdo original, como músicas, imagens e até
autor não apenas evidencia os pressupostos político- exaltam torturadores sem nenhum constrangimento mesmo simulações de conversas com os sete
-ideológicos dos atores, como ainda torna claros os e atacam diuturnamente o movimento feminista, a integrantes da banda. Uma forma criativa de
mecanismos utilizados por eles para diminuir o proble- obra aparece como uma afronta aos discursos dos apresentar novos conteúdos, com uma narra-
ma e isentar o poder governamental, ao naturalizar a vencedores. Como afirmava Rosa Luxemburgo, não tiva envolvente.
violência no país. Ambos os polos em choque são sus- somos nada sem derrotas, “pois cada uma contribuiu <https://btsw.netmarble.com>
tentados pela brutalidade da vida militarizada imposta para nossa força e nosso entendimento”. Nessa escu-
aos mais pobres por meio da ideologia do trabalho. ta e nessa análise do passado encontra-se, portanto,
uma promessa de (re)construção do presente.
[Douglas Rodrigues Barros] Escritor e estudante [Andre Deak] Diretor do Liquid Media Lab,
de Filosofia, acabou de publicar, pela Editora Hedra, [Deni Alfaro Rubbo] Professor de Ciência Políti- professor de Jornalismo na ESPM, mestre em
Lugar de negro, lugar de branco? Esboço para uma ca da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul Teoria da Comunicação pela ECA-USP e dou-
crítica à metafísica racial. (UEMS). torando em Design na FAU-USP.
JULHO 2019 Le Monde Diplomatique Brasil 39

CANAL DIRETO SUMÁRIO


LE MONDE

diplomatique
BRASIL

Capa – Tire seu preconceito do caminho


Que editoria de arte! Que jornal! Que jornalismo de Ano 12 – Número 144 – Julho 2019
ponta! Parabéns a todos vocês! Sou muito fã! www.diplomatique.org.br

Raphael Duarte DIRETORIA


Diretor da edição brasileira e editor-chefe
Silvio Caccia Bava
Obrigado a todos que engrossam nossa luta. Por
nossas vidas! Pelo direito de ser quem se é! 2 ONDA VERDE?
Ecologia contra o livre-comércio
Diretores
Anna Luiza Salles Souto, Maria Elizabeth Grimberg e
Rubens Naves
Angelo Nunes Por Serge Halimi
Editor

Que capa incrível! Obrigado, Le Monde Diplomati- 3 EDITORIAL


A nova democracia
Luís Brasilino

que Brasil. É de extrema importância essa represen- Por Silvio Caccia Bava Editora-web
Bianca Pyl
tatividade. Realmente, essas e esses heróis na capa
salvaram meu dia nestes tempos sombrios.
Bruno Ferreira
4 CAPA
A arquitetura da destruição: versão tropical
Editores de Arte
Adriana Fernandes e Daniel Kondo
Por Nurit Bensusan Coordenador multimídia
A insustentável agenda ambiental do presidente Henrique Santana
Em tempos tão sombrios, isso precisa ser reverencia- Por Carlos Rittl
do! Muito obrigado, Le Monde Diplomatique Brasil. Água limpa para todos, um direito Estagiária
Gabriela Bonin
Diêgo Lôbo humano distante no Brasil
Por Malu Ribeiro Revisão
Uma nuvem escura de agrotóxicos em nosso horizonte Lara Milani e Maitê Ribeiro
Capa icônica! Como muitos outros ótimos trabalhos
Por Larissa Mies Bombardi e
em técnicas de edição, matérias e críticas do jornal. Pablo Luiz Maia Nepomuceno
Gestão Administrativa e Financeira
Arlete Martins
Tiago Licariao

Nosso povo é diverso, colorido e alegre. Não pode-


10 O FUTURO DA INDÚSTRIA
As ideias prontas sobre a desindustrialização
Assinaturas
Viviane Alves

mos ser reduzidos ao ódio, à intolerância e à gro- Por Laura Raim Tradutores desta edição
Reconciliar indústria e natureza Carolina M. de Paula, Frank de Oliveira,
tesca falta de amor do governo Bolsonaro, que ho- Por Jean Gadrey Lívia Chede Almendary, Rita Grillo e Wanda Brant
je afunda o país numa crise política, jurídica e O mito da “burguesia nacional”
Conselho Editorial
econômica. Mas, acima de tudo, uma política de Por Vivek Chibber Adauto Novaes, Amâncio Friaça, Anna Luiza Salles
retrocessos civilizatórios e de liberdade. Souto, Ariovaldo Ramos, Betty Mindlin, Claudius

16 POLÊMICAS SOBRE O CENSO NORTE-AMERICANO Ceccon, Eduardo Fagnani, Heródoto Barbeiro, Igor
André Marinho Fuser, Ivan Giannini, Jacques Pena, Jorge Eduardo S.
“Qual é sua raça?” Durão, Jorge Romano, José Luis Goldfarb, Ladislau
Por Benoît Bréville Dowbor, Maria Elizabeth Grimberg, Nabil Bonduki,
Raquel Rolnik, Ricardo Musse, Rubens Naves, Sebastião
Editorial de junho
18 O NÃO PROCESSO CONTRA A VIOLÊNCIA NAZISTA Salgado, Tania Bacelar de Araújo e Vera da Silva Telles.

O que há de mais interessante nas trapaças do gover- A tolerância diante da violência da Assessoria Jurídica
no é a falação sobre o resultado delas. O assunto deve extrema-direita na Alemanha Rubens Naves, Santos Jr. Advogados
Por Massimo Perinelli e Christopher Pollmann
focar a necessidade de uma nova cultura na qual o Escritório Comercial Brasília
governo atue observando a finalidade para a qual Marketing 10:José Hevaldo Rabello Mendes Junior

existe: aplicar a riqueza pública em benefício do po- 20 DOSSIÊ ESTADO DE CHOQUE


Morrer antes da morte
Tel.: 61. 3326-0110 / 3964-2110 – jh@marketing10.com.br

vo, em vez de a si próprio e de seus apaniguados. Por Fábio Mallart Le Monde Diplomatique Brasil é uma publicação
da associação Palavra Livre, em parceria com o
José Mário Ferraz Instituto Pólis.
22 DE BUENOS AIRES A BOGOTÁ, A OFENSIVA
CONSERVADORA Rua Araújo, 124 2º andar – Vila Buarque
Capa – Tribunais de exceção A geopolítica da crise venezuelana São Paulo/SP – 01220-020 – Brasil – Tel.: 55 11 2174-2005
Uma das melhores capas dos últimos tempos! Por Alexandre Main diplomatique@diplomatique.org.br
www.diplomatique.org.br
Lilian Ferreira de Sousa

A melhor capa da história.


24 DEMOCRATIZAÇÃO DA MÍDIA
Na América Latina, a volta dos polvos midiáticos
Assinaturas
assinaturas@diplomatique.org.br
Tel.: 55 11 2174-2015
Por Anne-Dominique Correa
Luiz Henrique Assunção Ramos
Impressão

26 IDENTIDADE E SEGURANÇA, AS RECEITAS


VENCEDORAS DO NACIONALISMO HINDU
Plural Indústria Gráfica Ltda.
Av. Marcos Penteado de Ulhôa
Rodrigues, 700 – Santana de Parnaíba/SP – 06543-001
Edição de maio – Por que não se fala de benesses Quando a Índia se radicaliza
fiscais quando o assunto é ajuste econômico? Por Christophe Jaffrelot MISTO

Felicito o articulista pela clareza e demonstração de


que, entre impostos, suas renúncias e discursos im- 28 TEERÃ PODERIA RESISTIR A UM ATAQUE NORTE-
AMERICANO?
postores, há muito por que se indignar e sair às ruas O Irã e seus dois corpos de defesa
em protestos, para desmascarar essa derrama sobre POR AKRAM KHARIEF Distribuição nacional
DINAP – Distribuidora Nacional de Publicações Ltda.
a grande massa de nossa população sacrificada. Av. Dr. Kenkiti Shimomoto, 1678 – Jd. Belmonte –
José Teógenes Abreu 30 POBREZA, TRABALHO E POLÍTICAS SOCIAIS NO
SERTÃO BAIANO
Osasco/SP – 06045-390 – Tel .: 11. 3789-1624

As sertanejas são, antes de tudo, fortes LE MONDE DIPLOMATIQUE (FRANÇA)


Parabéns pelo excelente trabalho! Os dados apre- Por Teresa Sacchet e Julia Spatuzzi Felmanas Fundador
sentados nos ajudarão a denunciar a impertinência Hubert BEUVE-MÉRY

da reforma pretendida por Paulo Guedes – além de


sua crueldade!
32 MULHERES DA COMUNA DE PARIS
As Louises em insurreição
Presidente, Diretor da Publicação
Serge HALIMI
Por Eloi Valat
Bernardo Mendes Ribeiro Redator-Chefe
Philippe DESCAMPS

Participe de Le Monde Diplomatique Brasil: envie suas


34 IDEIAS
A arte de deturpar George Orwell
Diretora de Relações e das Edições Internacionais
Anne-Cécile ROBERT
críticas e sugestões para diplomatique@diplomatique.org.br Por Thierry Discepolo
Le Monde diplomatique
As cartas são publicadas por ordem de recebimento e, 1 avenue Stephen-Pichon, 75013 Paris, France
se necessário, resumidas para a publicação.
36 PATRIMÔNIO DA UNESCO
O presente envenenado do turismo cultural
secretariat@monde-diplomatique.fr
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Os artigos assinados refletem o ponto de vista de seus
Por Geneviéve Clastres
autores. E não, necessariamente, a opinião da coordenação Em julho de 2015, o Le Monde diplomatique contava
do periódico. com 37 edições internacionais em 20 línguas:

Capa: © Vitor Flynn


38 MISCELÂNEA 32 edições impressas e 5 eletrônicas.
ISSN: 1981-7525
A MUDANÇA
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É POSSÍVEL.
É POSSÍVEL.
JUNTE-SE A NÓS
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PARA VENCER
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A POBREZA!
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