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ESTADO DE BEM-ESTAR, COMPROMISSO SOCIAL-DEMOCRATA E SEGUNDA

MODERNIDADE

Marco Aurélio Nogueira


Professor Titular de Teoria Política e Coordenador do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais
(NEAI) do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais-IPPRI, da Universidade Estadual
Paulista-UNESP, em São Paulo, SP.

Quando se fala em “políticas coletiva, proteger a sociedade e


públicas” no sentido de intervenções imprimir direcionamento a uma dada
governamentais destinadas a prover coletividade, mitigando as
serviços e diretrizes para uma dada consequências danosas de certos riscos,
comunidade, a primeira imagem que de certos acidentes de percurso, assim
surge é a do Estado de bem-estar como os efeitos colaterais das escolhas
social, o Welfare State, que tanta políticas ou econômicas. Poderão prover
relevância tem na história do bem-estar e melhoria das condições de
capitalismo contemporâneo e da vida vida, mas isso não necessariamente.
moderna. Têm um foco ativo nos governos e no
É bem verdade, porém, que aparelho de Estado, que em boa medida
políticas deste tipo sempre existiram respondem por sua definição e
desde que o Estado moderno execução. Mas não se limitam a eles e
despontou como tal, por volta do encontram na vida social mais ampla,
século XVII, inicialmente na Inglaterra nos diferentes atores sociais e nas
e progressivamente nos demais países sociedades civis, importantes fatores de
da Europa, até se disseminar pelo formatação e dinamização. Atravessam
mundo ocidental. Se se fizer uma e são atravessadas pelos conflitos e
incursão arqueológica que passe em contradições que cortam as sociedades,
revista as diversas épocas históricas mostrando-se como um decisivo fator
anteriores ao capitalismo, serão de distribuição de poder e também
encontrados vestígios de que como recurso de poder.
intervenções semelhantes foram Em boa parte da história, as
praticadas invariavelmente por intervenções se fizeram acompanhar
aqueles que governaram ou exerceram do uso intensivo da coerção e foram
o poder. Mesmo os senhores feudais feitas predominantemente em função
governavam: cuidavam de seus dos interesses do Estado ou dos
territórios, protegiam suas populações, poderosos, que procuravam eliminar
provinham recursos e serviços para ou ocultar aquilo que mais os
que reinos e feudos funcionassem da repugnava ou se mostrasse
melhor maneira possível, assim como particularmente disfuncional para com
buscavam reparar os efeitos de o sistema em que se vivia. Reprimiam-
guerras, acidentes e catástrofes. se os mendigos e “forçavam-se”
Esta consideração genérica pobres, desassistidos e doentes a
sugere que políticas públicas podem ser aceitar os serviços assistenciais dos
entendidas como intervenções poderes públicos. Não se levava em
governamentais dedicadas a criar vida conta qualquer dimensão de direito e
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Revista do Instituto de Políticas Públicas de Marília, Marília, v.1, n.1, p.64-84, jul./dez. 2015.
ISSN: 2447-780X - https://doi.org/10.33027/2447-780X.2015.v1.n1.04.p64
Marcos Aurélio Nogueira

nem sequer havia uma organização este movimento de centralização e


sistemática e estruturada dos próprios concentração se completou nas
serviços prestados. Eles eram definidos primeiras décadas do século XIX, ainda
e fornecidos ex parte principis e não ex que alguns Estados (Alemanha, Itália)
parte popoli. Tinham a ver com a arte tenham se atrasado e demorado um
de bem governar e com a virtù do pouco mais para nascer. Com o Estado
príncipe (Maquiavel), com suas centralizado, gradualmente a
habilidades e capacidades, e não assistência social também foi se
propriamente com a felicidade e o centralizando e se tornando mais
bem-estar substantivo dos pública e mais universalista.
governados, muito menos ainda com (KERSTENETZKY, 2012).
sua liberdade de escolha. No decorrer do século XIX,
Tais intervenções, além do sucedem-se intervenções mais
mais, também se apoiavam no que sistemáticas nos principais países
havia de formas tradicionais de europeus. Seu alvo são principalmente
solidariedade, ancoradas na família, no os pobres, os incapacitados e os
parentesco e na vizinhança. deserdados urbanos, passando pouco
Funcionavam, em boa medida, como a pouco a privilegiar os trabalhadores
extensões delas, complementando-as industriais. Na Alemanha, durante o
e dividindo responsabilidades com governo conservador e autoritário de
elas. Bismarck (1862-1890), são instituídas a
A grande guinada ocorre lei de acidentes de trabalho, o
quando do progressivo processo de reconhecimento dos sindicatos e o
mercantilização da vida e das relações seguro nacional obrigatório, destinado
sociais, ou seja, com a emergência e a a prover recursos para os afetados por
evolução do modo capitalista de doença, acidente ou invalidez.
produção e de organização de Bismarck imaginava usar tais medidas
atividades. Por um lado, este processo como forma de frear a ascensão da
foi desconstruindo as redes familiares social-democracia, que então emergia
e tradicionais de proteção social, com força, mas de algum modo
enfraquecendo-as vis-à-vis o acabou por impulsionar um novo tipo
fortalecimento do mercado. As cidades de intervenção pública que, pouco
que então emergiram, por exemplo, mais tarde, passaria a ser replicada por
atraíram as populações rurais mas não outros países: no caso da Alemanha, “a
deram a elas condições de reproduzir novidade veio a se inserir no
as formas de vida de antes, que foram experimento de unificação e
desorganizadas, jogando as famílias no construção do Estado nacional”, ao
desamparo. Por outro lado, a passo que “na Inglaterra trabalhista do
expansão progressiva do capitalismo pós-Segunda Guerra Mundial ela se
induziu à concentração territorial das seguiu ao prolongado esforço de
atividades e forçou uma organização revisão crítica das leis dos pobres e da
igualmente concentrada do mundo reconstrução nacional posterior à
institucional, fato que levou à guerra”. A nova linha de ação, assim,
formação do Estado moderno, “compromete o Estado com a
centralizado, soberano e proteção da sociedade, em especial os
constitucional. Ao menos na Europa, trabalhadores assalariados, contra
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certos riscos associados à participação ação positiva do Estado”, em suma,


em uma economia de mercado” tanto para impedir os malefícios do
(KERSTENETZKY, 2012, p. 5). poder quanto para obter seus
benefícios. (BOBBIO, 2004, p. 26).
1. PROCESSOS E DETERMINAÇÕES Das promessas e postulações
As políticas públicas – e iluministas do século XVIII às
especialmente as políticas dedicadas à consequências da Revolução Industrial
proteção social e ao bem-estar – no século XIX, a questão da liberdade e
entraram na agenda ao final do século dos direitos só fez crescer, e não é o
XIX e se expandiram durante todo o caso de reconstruir aqui essa história.
século XX. Corresponderam, em Vale a pena, porém, frisar que durante
medida notável, ao amadurecimento este período a humanidade assistiu à
de um conjunto de fatores de variada ascensão e à crise de uma civilização
natureza, que devem ser considerados. sustentada pela transformação dos
Não caíram do céu, mas nasceram mercados isolados numa grande e
induzidas por transformações única economia de mercado, fonte
socioeconômicas decisivas, pelo geradora de uma extraordinária
amadurecimento progressivo da ideia riqueza material que se fez
de liberdade, igualdade e fraternidade, acompanhar de uma expansão sem
pela emergência de novos atores e por precedentes da miséria social. O
medidas graduais de afirmação da Estado Liberal e a vigência plena do
cidadania moderna. padrão-ouro, que organizava a
Juntamente com a consolidação do economia mundial, possibilitaram que
capitalismo, o fortalecimento do o século XIX, ao mesmo tempo em que
mercado e a corrosão das formas era revolucionado pela indústria e
tradicionais de solidariedade, houve pelas ideias derivadas da Revolução
um avanço categórico da ideia de Francesa, conhecesse um
liberdade e de contestação do poder. surpreendentemente longo período de
Ela se combinou com o surgimento de paz. O conflito social e a luta de classes
um campo próprio de explicitação de cresciam no interior das nações, mas
direitos, ligados inicialmente à as potências viviam em circunstâncias
natureza humana, ao jusnaturalismo, e de equilíbrio de poder e a arquitetura
depois a outras concepções filosóficas. do Estado liberal conseguiu se manter
No decorrer de um longo e acidentado praticamente intacta até o final do
percurso histórico, os direitos século. Como escreveu Polanyi, “a
humanos foram se convertendo na ideia de um mercado autorregulável
praia comum de diversos oceanos, implicava uma rematada utopia. Uma
ajudando a que se fixasse uma tal instituição não poderia existir em
plataforma de reivindicações voltadas qualquer tempo sem aniquilar a
à equiparação do status social e das substância humana e natural da
oportunidades das diferentes camadas sociedade; ela teria destruído
das populações. Foram crescendo fisicamente o homem e transformado
tanto como exigência de um “não-agir seu ambiente num deserto.
do Estado” – como direitos contra as Inevitavelmente, a sociedade teria que
ameaças à liberdade do indivíduo – tomar medidas para se proteger, mas,
quanto como direitos sociais, “uma quaisquer que tenham sido essas
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medidas elas prejudicariam a comerciantes ameaçados de falência,


autorregulação do mercado, seja para mitigar os efeitos mais
desorganizariam a vida industrial e, danosos dos negócios capitalistas
assim, ameaçariam a sociedade em sobre as populações, em especial os
mais de uma maneira”. O longo século trabalhadores. Uma ideia embrionária
XIX evoluiu, assim, sobre uma espécie e imperfeita de “regulação”
de impasse, que de algum modo acompanhou toda esta dinâmica
estabilizou a situação até o ponto em histórica e foi aos poucos ganhando
que um cataclisma irrompeu, forma e teorização. Por outro lado,
arrastando a civilização consigo. Um promoveu o amadurecimento gradual
progresso material até então da estrutura de classes que é própria
desconhecido pôs em ação um do capitalismo industrial: expandiu a
“moinho satânico” que triturou os classe operária, facilitou a delimitação
homens transformando-os em massa. de suas fronteiras e de sua identidade,
(POLANYI, 2000, p. 18 e 58). impulsionando assim a formação da
A devastação atingiu a cultura operária e novas formas de
população em seus próprios consciência de classe.
fundamentos existenciais: nas
moradias, na organização familiar, nas 2. COMUNISTAS E SOCIAL-
formas tradicionais de solidariedade. A DEMOCRATAS
degradação humana se tornou o A partir do século XIX, as lutas
cenário dominante, trazendo consigo a sociais, o engajamento político dos
desarticulação social e, ao mesmo trabalhadores, a formação dos
tempo, as bases de novas formas de sindicatos e dos primeiros partidos
coesão que, no entanto, demorariam políticos no sentido mais rigoroso do
para produzir seus efeitos. Durante termo (uma “máquina” administrativa
todo o século XIX, as populações acoplada a uma doutrina e a um
lutaram para conseguir de algum programa político) passaram a exercer
modo resistir aos “moinhos satânicos” forte pressão sobre os sistemas
postos em movimento pela crença políticos, os governos e o formato das
inabalável de que o progresso democracias representativas. Em um
econômico traria consigo a solução primeiro momento, tal pressão
para as mazelas sociais. Uma ideia de produziu efeito específico sobre o
“proteção social” cresceu a partir daí. sufrágio, de modo a ampliá-lo e aos
O processo mesmo de poucos universalizá-lo. Gradualmente,
reprodução ampliada do capitalismo armou-se uma estratégia de
impulsionou a construção dos democratização e de socialização dos
caminhos que levaram à adoção espaços de vida democrática, ou seja,
generalizada de políticas públicas. Fez de ocupação massiva deles. Partidos
isso, por um lado, mediante a operários começaram, então, a cogitar
exacerbação de sua natureza da chegada ao poder, seja por via
eminentemente contraditória e eleitoral, seja por movimentos de
competitiva, que levou à explicitação contestação radical e revolucionária. A
de constantes demandas por democracia foi, assim, sendo ajustada
intervenções governamentais, seja a uma sociedade que se tornava ela
para salvar empresários, banqueiros e própria de massas, preparando a
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emergência de uma nova situação, na social-democracia em seu melhor: a


qual os governos precisariam dialogar resistência sistemática à dissolução
de modo mais ativo e sistemático com dos laços sociais pelos nexos
as classes e os grupos sociais, mercantis, em termos que
especialmente com seus setores mais reconheçam o status igualitário da
bem organizados. A partir dos anos cidadania” (KERSTENETZKY, 2012, p.
1920-1930, na Europa, os governos 1). Trata-se de um vínculo que auxiliou
tornam-se mais “ativos”, mais sobremaneira à difusão das políticas
responsáveis pelo atendimento das sociais pelo mundo não-europeu, onde
pressões e dos carecimentos sociais, nem sempre existiram partidos social-
assim como das postulações de democratas ativos.
direitos e das reivindicações de novos A social-democracia conseguiu,
espaços institucionais, abrindo assim a partir das primeiras décadas do
as portas para a progressiva século XX, constituir-se como uma
institucionalização das políticas opção efetiva à contestação
públicas. revolucionária do capitalismo,
A incorporação das políticas defendida pelos comunistas históricos.
públicas à estrutura institucional do Contrapôs a eles um projeto de
Estado caminhou pari passu, também, sociedade mais justa e igualitária a ser
com a conversão da social-democracia alcançada mediante avanços graduais
em partido político claramente no interior das instituições capitalistas,
comprometido com a chegada ao e não necessariamente contra elas; ao
governo, a gestão estatal e a reforma revolucionarismo muitas vezes
social. Não se tratou de uma radicalizado opôs o reformismo,
causalidade rígida, solta no espaço e fazendo das reformas e de progressos
determinada exclusivamente pela tópicos, parciais, a esteira por onde
vontade política social-democrata. correria um ajuste do capitalismo
Tratou-se muito mais do desfecho de favorável aos trabalhadores, em vez da
um conjunto de fatores e movimentos, contestação frontal do sistema.
no qual se devem inserir a evolução da Ganhou impulso, também, ao
classe operária, as transformações do pluralizar o agente da transformação,
capitalismo e o desenvolvimento da o que foi feito ao atenuar a
própria social-democracia. A entrada exclusividade da classe operária e ao
em cena desta corrente política, promover uma firme abertura política
porém, não foi fator secundário: para as classes médias e outros setores
especialmente na Europa, ela sociais. (PRZEWORSKI, 1989). Com tais
representou em boa medida uma das opções estratégicas, a social-
condições de possibilidade para que o democracia avançou politicamente,
Estado liberal se convertesse em conquistou governos e se converteu
Estado de bem-estar, em Estado social. em ator de peso, contribuindo de
Como escreve uma estudiosa do tema, modo decisivo para modelar o
“o Estado do bem-estar é uma capitalismo e impulsionar a criação do
invenção política: não é filho da Estado de bem-estar. Nem sempre,
democracia, nem da social- porém, isso implicou fortalecimento
democracia, mas é certamente a do poder político da classe operária
melhor obra desta última” – é “a como tal ou mesmo de seu poder
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sindical. Os trabalhadores, em diversos keynesianismo clássico, com a adoção


países, não permaneceram o tempo de medidas anticíclicas e políticas de
todo unidos em torno da social- pleno emprego. Quase sempre confiou
democracia, ainda que tenham dado no Estado como gestor ideal do
demonstrações sucessivas de que capitalismo e seu regulador, como
preferiam a via “reformista” à via empresário coletivo capaz de prevenir
“revolucionária”, a “justiça social” da crises econômicas e desajustes
esquerda à demagogia “nacionalista” estruturais, não necessariamente
da extrema-direita. Houve muitas contra os interesses capitalistas e sim
divisões e muitos desentendimentos como operador de um pacto informal
entre os que se propuseram a entre capital e trabalho, Estado e
representar politicamente os mercado, capitalismo e democracia,
trabalhadores, assim como muitas com o qual os empresários
tentativas de cooperação e ação preservariam suas margens de lucro,
unificada. A divisão, porém, falou mais garantiriam emprego e renda para a
alto. Além disso, os caminhos do voto população, e os trabalhadores
nem sempre contemplaram boas legitimariam o sistema por meio do
escolhas políticas ou avanços voto e da defesa de suas conquistas.
organizacionais e, com o tempo e com Tal modelo ganhou força durante os
as mudanças que se verificaram na anos que se seguiram ao fim da II
estrutura e na estratificação das Guerra Mundial e se sustentou até a
sociedades, a lealdade dos década de 1980, quando a
trabalhadores aos partidos de reorganização global do capitalismo
esquerda sofreu vários abalos. No provocou fortes modificações nos
então, o “compromisso social- Estados, nos sistemas políticos e nos
democrata”, depurado dos erros e dos sistemas de proteção social, como
pecados tantas vezes registrados no veremos mais à frente.
plano da atuação prática dos partidos, Como bem observou Esping-
ou seja, em sua forma ”pura”, tornou- Andersen, o modelo social-
se uma espécie de plataforma comum democrático foi aos poucos se
das diversas correntes da esquerda ajustando ao reconhecimento de que
democrática. Alguns partidos uma almejada socialização da
comunistas europeus, por exemplo, economia – essencial para a produção
caminharam ao lado da social- de igualdades substantivas –
democracia, compartilhando com ela dificilmente viria por via parlamentar.
coalizões governamentais e Era preciso de algum modo inverter a
assimilando boa parte de sua equação. Adotaram-se assim duas
estratégia de transformação social. premissas: “a primeira era que os
A própria ideia social- trabalhadores necessitavam de
democrática evoluiu com o tempo. recursos sociais, saúde e educação
Oscilou, por exemplo, entre esforços para participar de fato como cidadãos
de nacionalização/estatização das socialistas. A segunda era que a
empresas e de socialização da política social não somente
propriedade privada e posturas mais emancipava mas também criava
flexíveis e tolerantes com o mercado, condições para a eficácia econômica
entre o planejamento estatal e o (...) e promovia a marcha para frente
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das forças produtivas do capitalismo. hábitos de higiene e pela urbanização


O encanto maior da estratégia social- da vida social. Oscilações na natalidade
democrática, porém, residia na e na mortalidade tiveram importante
admissão de que a política social impacto na formatação do Estado e de
também produziria mobilização de suas intervenções. Particularmente a
forças. Ao erradicar a pobreza, o partir do final da Segunda Grande
desemprego e a completa Guerra, o incremento populacional e
dependência salarial, o Estado de bem- sobretudo a elevação da expectativa
estar incrementaria as capacidades de vida e a aceleração do
políticas e diminuiria as divisões sociais envelhecimento exercerão importante
que bloqueiam a unidade política dos pressão no sentido da adoção de
trabalhadores”. A luta e a mobilização políticas de proteção e de redução dos
parlamentar das classes seria, assim, riscos sociais, gerando, em
um meio para que se realizassem os contrapartida, um expressivo aumento
ideais socialistas de igualdade, justiça, dos gastos com aposentadorias,
liberdade e solidariedade. (ESPING- pensões e serviços de saúde.
ANDERSEN, 1993, p. 29-30). As políticas de proteção
impulsionaram e modelaram essas
3. DESDOBRAMENTOS E transformações do mesmo modo que
CONSOLIDAÇÃO foram impulsionadas e modeladas por
As políticas públicas, e elas. Não representaram pura e
sobretudo as políticas sociais, fixaram- simplesmente uma vitória do amparo
se nas sociedades contemporâneas, público aos desassistidos e aos
em maior ou menor grau, a partir da desamparados, mas sim a prevalência
segunda metade do século XX. Vieram e a aceitação generalizada de que algo
junto com a aceleração da deve ser feito, pelos poderes
industrialização, a urbanização, a democraticamente constituídos, para
revolução tecnológica no campo das corrigir e enfrentar determinadas
comunicações, a expansão dos patologias e distorções sociais (a
sistemas educacionais, a secularização pobreza, a desigualdade, a
crescente da vida coletiva, a marginalização, o desemprego, o
transformação das relações entre abandono), não tanto pela cura ou
gêneros, a construção de novas pela mera assistência, mas pela oferta
identidades, a modificação no modo de oportunidades, pela prevenção,
de vida – expressando, em suma, tudo pelo tratamento equânime, pelo
aquilo que pode ser vinculado à acatamento de direitos e pela abertura
complexificação e diferenciação das de espaços de participação e
sociedades. Especialmente no que diz integração social.
respeito às políticas sociais e à O quadro institucional e o
construção do Estado de bem-estar, circuito ativador das políticas sociais –
não podem ser dissociadas daquilo seus agentes, seus ciclos, seus
que a literatura especializada chama mecanismos de definição, formatação,
de transição demográfica, provocada, execução, controle e avaliação –
grosso modo, pela revolução representaram, na história, uma
industrial, pelo desenvolvimento reconfiguração abrangente do papel
científico, pela disseminação de novos do Estado. Mas não emergiram, nem
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puderam se desenvolver, sem um nessa interação que se definirão, a


conjunto plural de atores, de origens e partir de então, as situações sociais
natureza diversa e portadores de tidas como problemáticas, bem como
interesses específicos (contraditórios as formas, os conteúdos, os meios, os
ou não). sentidos e as modalidades da
Não se tratou, portanto, tão- intervenção estatal. Passará a ser
somente de um incremento das devidamente considerado o peso de
intervenções estatais ou diferentes aspectos da economia, da
governamentais. A partir dos anos estrutura social, do modo de vida, da
1930 e sobretudo depois da Segunda cultura e das relações sociais. Em
Guerra Mundial, elas não só ganharam suma, as políticas públicas passarão a
sistematicidade e respaldo técnico e ser vistas e tratadas como “uma
político, como passaram a ser intervenção estatal, uma modalidade
modeladas por uma pluralidade de de regulação política e um expediente
atores e num ambiente impregnado de com o qual se travam lutas por direitos
direitos e prerrogativas. A própria e por distribuição” (DI GIOVANNI &
intervenção pública adquiriu grande NOGUEIRA, 2015, p. 19).
capacidade de planificação e Converteram-se, assim, em
planejamento, inexistente até então, uma forma específica de ação política.
passando a se fazer com base em Tornaram-se manifestações avançadas
estruturas administrativas pesadas e da racionalidade dialógica e
numa expressiva burocracia pública. A democrática que tipifica o mundo
ordem política se democratizou e moderno, contrastando, nesse
ganhou consistência republicana, ou particular, outras formas e estruturas,
seja, valorização da dimensão pública, que deitam raízes nas particularidades
reconhecimento e vigência de direitos históricas de cada sociedade, como é o
de cidadania, sufrágio universal, caso do mandonismo, do coronelismo,
independência dos poderes, da filantropia e do populismo, por
mecanismos explícitos de controle exemplo. Podem conviver com essas
social e incentivos à participação outras formas e até mesmo
social. Com isso, a definição das áreas combinarem-se com elas, mas são algo
de risco social, a formatação de uma particular, dotado de lógica própria.
agenda de prioridades, a alocação de No sentido rigoroso do termo,
recursos e a fixação de metas as políticas públicas avançam em
passaram a ser definidas conformidade com a existência de um
politicamente, a partir da ampliação da ambiente cívico, ético-político e
capacidade coletiva de participar das cultural que seja receptivo a elas e lhes
decisões públicas. dê sustentação. Dependem de certos
As políticas públicas e sociais, patamares de crescimento econômico,
assim, ingressaram com força no ou seja, de diretrizes capazes de
terreno em que se decide a dinâmica e planejar a expansão da economia, a
a direção do poder político: tornaram- geração de receitas fiscais e
se fatores de distribuição e de tributárias, a criação de empregos. A
exercício do poder, produtos de uma partir dos anos 1940, “a adoção de
sempre mais complexa interação entre políticas econômicas inspiradas no
Estado e sociedade. Será precisamente keynesianismo e centradas na ideia de
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pleno emprego faria com que muitos A consolidação das


Estados passassem a ampliar o volume democracias ocidentais também foi
de suas intervenções e seu caráter decisiva, sobretudo no que trouxe de
regulador, tanto nos aspectos ampliação do campo da representação
econômicos, como por exemplo na política, configurado na participação
produção de bens e serviços, quanto sindical e partidária, no direito de
nos aspectos sociais da vida coletiva, voto, na ativação de múltiplos
como por exemplo na movimentos sociais e em novas formas
institucionalização de sistemas de de associação voluntária. Tais
proteção social” (DI GIOVANNI & mudanças estimularam o surgimento
NOGUEIRA, 2015, p.21). Tais políticas de novas expectativas em relação à
manteriam o fôlego por várias atuação estatal. Para muitos setores
décadas, dando substância ao período sociais, o Estado verdadeiramente
que se costuma chamar de “os trinta democrático passou a ser visto não
anos dourados” (1940-1970), somente como aquele que inclui
claramente configurados em diversas mecanismos clássicos de
experiências europeias. representação (direito de votar e ser
A evolução das políticas votado; participação igualitária de
públicas também foi favorecida pela classes, categorias e interesses), mas
presença marcante de partidos também aquele que revela uma forte
políticos de inspiração comunista, capacidade de resposta
socialista ou trabalhista, bem como (responsiveness) às demandas da
pela existência, por uma via sociedade e que se abre para a
transversa, de uma conflitualidade participação social. Um sistema
internacional demarcada pela democrático de massas consolidou-se
bipolaridade Estados Unidos-União como tradução d estas expectativas e
Soviética, que criou, para o capitalismo postulações, especialmente nos países
e para as classes dominantes de vários da Europa Ocidental. Na vida
países, a imagem de que o bloco institucional e no imaginário coletivo
socialista poderia funcionar como foram assim se fixando os direitos de
efeito-demonstração de certas cidadania com seus desdobramentos,
conquistas sociais. “Vislumbrou-se, individuais, políticos e sociais. Uma
assim, a necessidade de que fossem específica cultura cívica se constituiu
estabelecidos novos princípios e novos em diversos países, passando a
pactos nas relações entre capital e funcionar como decisiva alavanca e
trabalho. A oferta de serviços na área como uma forte rede de proteção para
social, ainda que assumindo feições as políticas sociais.
diversas em cada situação particular, Com a consolidação desse
foi ampliada, e a crescente presença conjunto de fatores, assistiu-se a um
do Estado nesse campo de atividade “fantástico ritmo de crescimento do
estabeleceu a base para a constituição Estado de bem-estar em diversos
dos modernos sistemas de proteção países durante os anos de 1960 e
social, dos quais os casos mais 1970. Onde antes havia Estados
conspícuos foram os Welfare States vigilantes, Estados de lei e ordem,
europeus” (DI GIOVANNI & NOGUEIRA, Estados militaristas e até mesmo
2015, p.21). órgãos repressivos de governos
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totalitários, passou-se a ter então Não será por outro motivo que
instituições predominantemente o Welfare State passará a conhecer
preocupadas com a produção e a problemas e a correr riscos
distribuição de bem-estar”. (ESPING- precisamente quando, nas décadas
ANDERSEN, 1993, p. 17). finais do século XX, a transformação do
Formaram-se assim diferentes capitalismo e a radicalização do
modalidades de Welfare State, em moderno promoverão mudanças na
correspondência com determinações estrutura de classes, no mundo do
político-partidárias (coalizões políticas, trabalho e na organização política da
eleições, ideologias) e histórico- classe trabalhadora. A estratificação
culturais. Em todas elas – a liberal, a social se alterou, com a emergência de
conservadora e a social-democrata, na novos grupos e categorias, de novos
conhecida formulação de Esping- sujeitos (jovens, mulheres, idosos,
Andersen (1993) – evidenciou-se um migrantes) e novas demandas. A
arranjo institucional em que o sistema conflitualidade clássica, tradicional
de bem-estar de algum modo se (lutas econômicas e salariais, capital
associava a políticas de emprego, vs. trabalho), foi ultrapassada e
renda e salários, assim como a enriquecida por confrontos religiosos,
orientações “desenvolvimentistas” de batalhas culturais e postulações
caráter macroeconômico, sucessivas de direitos. A gestão de
configurando o que passou a ser conflitos ampliou-se
denominado Welfare State exponencialmente, repercutindo na
keyneasiano. estrutura mesma do Estado e das
No entanto, o fator que mais políticas públicas.
pesou no sucesso do Estado de bem- Por volta de 1980, o Welfare
estar – fazendo com que certos State passará a manifestar dificuldades
modelos se mostrassem mais de reprodução e a ser fortemente
eficientes e eficazes do que outros – atacado pelo neoliberalismo que
foi a combinação de ascende. O fim da bipolarização entre
desmercantilização, mudanças os blocos capitalista e socialista, o
induzidas na estratificação social e agravamento das dificuldades fiscais
garantia de emprego, com o que se dos Estados nacionais e as
conseguiu gerar maior integração modificações que alterarão a
social (ESPING-ANDERSEN, 1993, p. fisionomia das sociedades ocidentais
19). O sucesso, em suma, aquilo que provocarão repercussões profundas no
imprimiu o selo de identidade do plano mais imediatamente político
Welfare State, decorreu não tanto da (sistema representativo, partidos
capacidade estatal de gastar com políticos, dinâmica eleitoral) e afetarão
programas sociais, mas sim da a funcionalidade dos sistemas de
institucionalização de formas proteção e regulação.
sustentáveis de articulação entre
trabalho e bem-estar, típicas do 4. GLOBALIZAÇÃO,
modelo social-democrático, que TRANSFORMAÇÃO, SEGUNDA
recebeu assim um importante MODERNIDADE
componente de classe. No quadro histórico atual, em
que se entrecruzam imponentes
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alterações na estrutura econômica, 1970 para atenuar a desigualdade


nas relações sociais, na cultura e no foram inviabilizadas, com o que a
modo de vida, uma questão candente desigualdade voltou a crescer a partir
se impõe: as políticas sociais de 1980.
universalistas e o compromisso social- Em meados da década de 1980,
democrata podem sobreviver e a social-democracia alemã – do alto de
continuar a pautar as expectativas de sua história e de sua força política – já
justiça social e de melhoria das diagnosticava a uma mudança nas
condições existenciais dos cidadãos do circunstâncias: “a esquerda europeia
mundo? Se uma crise do Welfare State encontra-se diante de uma situação
vem sendo anunciada há décadas e se totalmente nova. O conflito de classe
medidas efetivas de cortes e supressão assumiu uma forma diversa. Assistimos
de programas sociais têm sido hoje à cisão social da sociedade. O
adotadas, também é verdade que os peso da crise está sendo descarregado
modelos de bem-estar mostram nas costas de um terço da sociedade:
expressiva resiliência, como que a os desempregados e suas famílias, os
comprovar a hipótese de que as aposentados mais despossuídos, os
instituições do Welfare State foram jovens em busca do primeiro emprego,
“absorvidas como um aspecto os imigrantes. A maioria dos dois
permanente do ambiente terços de nossas sociedades industriais
socioeconômico das sociedades – a mão de obra com emprego
contemporâneas” (KERSTENETZKY, garantido – continua, em vez disto, a
2012, p. 64). Mas o ambiente geral em viver de modo tranquilo e socialmente
que os sistemas de bem-estar tutelado. O perigo mais ameaçador
passaram a se reproduzir sofreu para a esquerda é hoje o da ‘ruptura
alterações drásticas e não da solidariedade’. As diferenças no
propriamente favoráveis. interior da classe operária jamais
O neoliberalismo, ao se tornar foram tão acentuadas. A esquerda
vitorioso em muitos países e se europeia mostra-se completamente
disseminar como uma espécie de despreparada diante desta ameaça”.
parâmetro ideológico universal, pôs (GLOTZ, 1985, p. 8). Depois de décadas
em xeque a social-democracia e o seguidas de crescimento político a
reformismo social. Mediante a adoção, partir da classe operária e dos
por governos variados, de suas sindicatos, os partidos social-
orientações de ajuste e austeridade, democráticos pareciam não estar
comprometeu a continuidade de suficientemente fortes para defender
programas destinados a prover os mais fracos. A internacionalização
recursos coletivos para uma dos mercados financeiros e dos meios
reprodução social adequada. Fez com de comunicação comprimia a atuação
que níveis de igualdade social ou de dos Estados nacionais e exigia uma
distribuição de renda regredissem, na reformulação supranacional da
mesma proporção em que foram política, para a qual a esquerda não se
reduzidos os investimentos em áreas mostrava preparada. O
estratégicas das políticas públicas. neoconservadorismo se expandia a
Experiências postas em prática por partir daí, e a esquerda precisava
países capitalistas ricos entre 1920 e mostrar que estava em condições de
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“ancorar as ideias da democracia social “segunda modernidade” (Beck) – pós-


como programa europeu, visto que há industrial, tecnológica, dinâmica,
sessenta anos procura com dificuldade movida a mudanças incessantes --
vincular socialismo e democracia”. surgia gradualmente sobre os
(GLOTZ, 1985, p. 11). escombros da primeira. É a este
O final do século e as primeiras processo, que inclui a globalização
décadas do século XXI só fizeram capitalista mas vai além dela, que se
agravar esse diagnóstico. A “sociedade deve remeter a discussão sobre as
dos dois terços” antevista por Glotz chances de reiteração do compromisso
como tranquila e protegida social-democrata. (MEYR; HINCHMAN,
aproximou-se do terço inferior em 2008).
termos de incerteza, insegurança e A globalização não expressa
renda. As perdas passaram a ser somente uma nova articulação dos
comuns ao conjunto dos europeus. mercados nacionais e da criação de
Turbinadas pela concorrência que se uma economia mundial financeirizada:
exacerbou, pelo desemprego e pela ela vem junto com uma forte
individualização crescente – e mais reorganização do modo como se vive,
recentemente pela instabilidade se pensa e se organiza a vida. Deve ser
internacional, pela crise da União tratada como parte de um processo
Europeia e pelos intensos abrangente de transformação social.
deslocamentos populacionais O fato é, nas últimas décadas
(imigrantes, refugiados) – as perdas do século XX, formou-se uma espécie
fizeram com que crescesse o risco de de “tempestade perfeita” que desabou
“dessolidarização” e cisão social. Os sobre o conjunto dos países, ainda que
partidos social-democráticos sentiram de forma não homogênea e não
na pela o problema, assim como os simultânea. A tormenta combinou
comunistas, que praticamente aceleração do progresso técnico e
desapareceram como força política tecnológico, robotização, mudanças no
expressiva. O neoliberalismo impôs-se mercado global de trabalho, adoção de
gradualmente, ameaçou os serviços políticas mais favoráveis aos ricos,
sociais e criou incentivos para a desaparecimento do comunismo como
reprodução ampliada de um processo “bloco” na política internacional e
real que corria na base das sociedades, como ideologia, declínio dos sindicatos
aumentando a problematização da e enfraquecimento expressivo dos
solidariedade, a concorrência partidos ligados à reforma social e aos
selvagem e o antiprogressismo. trabalhadores (comunistas, social-
O neoliberalismo, porém, era democratas, trabalhistas, socialistas).
somente parte do problema: O tema tem sido objeto de
respondia a um processo estrutural ampla discussão desde ao menos os
que o ultrapassava. Tratava-se bem anos 1990, e não é certamente o caso
mais da reorganização global das de retomá-lo aqui. É suficiente tão-
sociedades capitalistas e da nova fase somente reter o que parece ser, hoje,
da reprodução do capital, que se o núcleo consensual de variadas
impunha sobre as estruturas sociais e interpretações.
criava condições para a afirmação de Aumentou a interdependência entre
reações como a neoliberal. Uma povos e regiões, mas as consequências
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disso são multifacetadas e desiguais. separam as pessoas. (BAUMAN, 2000,


Impulsionada pela interpenetração de p. 13).
diferentes capitais e por uma A competição generalizada, a
internacionalização que promove rapidez das mudanças e o progresso
concentração do capital e formação de técnico desafiaram as velhas
grandes oligopólios mundiais, hierarquias e geraram novas
excluindo muitos países dos eventuais desigualdades. A nova divisão do
benefícios do progresso econômico. A trabalho, a flexibilização dos processos
rápida disseminação de informações e produtivos, a dispersão geográfica da
contatos fixou no mundo uma produção, a robotização desabaram
tendência à uniformização cultural e à como lava vulcânica sobre o mundo do
diluição das fronteiras territoriais e trabalho, precarizando e dissolvendo o
culturais. A transnacionalização dos que havia de estabilidade e, em
conflitos, a dinâmica errática da decorrência, contribuindo
política, a quebra das redes de decisivamente para embaralhar as
solidariedade e o enfraquecimento das relações sociais, as identidades, a
modalidades “clássicas” de consciência de classe, o
organização das classes (associações, associacionismo e as formas de
partidos, sindicatos) contribuíram, com organização política, especialmente as
peso diferenciado conforme o país, que se propunham a representar
para a criação de um clima de caos interesses vinculados ao mundo do
político e social. Em um quadro de trabalho. Massas de trabalhadores
soberanias em declínio, parte da ficaram, assim, sem condições de agir
reação dos poderes constituídos se de modo organizado no universo da
voltou para o recrudescimento de política instituída: tornaram-se de
“fronteiras seletivas” e de muros algum modo “sem representação”,
(BROWN, 2013). As funções, o poder e passando a flutuar por nichos
as instituições dos governos nacionais ideológicos estranhos à sua condição.
foram postas em questão, fazendo A desorganização do trabalho
com que ficasse mais difícil reproduzir produziu, por extensão,
a vida nos espaços fechados e enfraquecimento da vida familiar e
delimitados dos Estados nacionais e de “confusão” social. Alteraram-se em
suas respectivas sociedades. Em um profundidade os fundamentos da
mundo sem limites territoriais claros, a ordem social.
sensação de desproteção e Tal situação provoca um
insegurança só poderia crescer. “Num gradual processo de “perda dos
mundo que se globaliza rapidamente, marcadores de certeza” (MONEDERO,
em que grande parte do poder – a 2013, p. 28-34): crise das verdades,
parte mais importante – foi retirada da das ideologias e das utopias. O
política, as instituições existentes não impacto disso não pode,
podem fazer muito para fornecer evidentemente, ser subestimado, em
segurança ou garantias”. Conseguem, particular quando se deseja pensar as
quando muito, agitar bandeiras de possibilidades de reprodução do
segurança que criam novas e maiores Estado de bem-estar e as políticas
divisões, semeiam a desconfiança e públicas, na medida em que o campo
público-estatal fica desprovido de
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alguns sustentáculos e sujeitos que lhe amplamente. O poder político é


dão (ou deram) porosidade social. forçado a ceder a pressões externas e
Formou-se assim uma “sociedade internas, tendo de responder a
mundial do risco” (BECK, 2001), na demandas das mais variadas
qual diversas globalizações – do crime, extrações. Sua própria capacidade de
do tráfico, da corrupção, do perigo definir, formular, executar e controlar
ecológico, das finanças – produzem políticas declina.
turbulência, instabilidade e incerteza. A globalização confunde-se,
Os Estados nacionais se reorganizaram assim, com a formação de estruturas
como parte de uma dinâmica pós- políticas e sociais decentradas:
nacional criada por eles mesmos mas movidas a redes, informações,
que os ultrapassou, pondo em xeque comunicação e conexões em tempo
sua soberania, suas redes de real. A explicitação progressiva e a
comunicação e seu poder, que consolidação do ciberespaço, assim
passaram a ser sempre mais como a difusão maciça de artefatos
condicionadas pela interferência digitais, fazem com que surja uma
cruzada de atores transnacionais. A “cultura da virtualidade real, onde o
globalização fez com que os Estados faz-de-conta vai se tornando
nacionais perdessem poder, dando realidade”. (Castells). Alteram-se as
curso à constituição de uma noções de tempo e espaço, com uma
“sociedade mundial sem Estado inédita aceleração do tempo e um
mundial e sem governo mundial” aumento da mobilidade espacial. As
(BECK, 1999, p . 33), ou seja, de uma pessoas se “soltam” dos lugares.
sociedade internacional politicamente A variável “tempo” – com a
desorganizada e na qual novas qual também se pensa o espaço e,
oportunidades de poder e de portanto, o “estar no mundo” – sofre
intervenção surgem para atores particular e profundo deslocamento na
transnacionais desprovidos da devida nova fase da modernidade capitalista:
legitimidade democrática. E desde que “A questão da vida que desejamos
não existe um governo global, “o risco levar implica a questão da maneira
do mercado global não pode ser como desejamos passar nosso tempo,
regulamentado como os mercados mas as qualidades do ‘nosso’ tempo,
nacionais, e nem esses últimos podem seus horizontes e suas estruturas, seus
resistir impunemente a ele”. O ritmos, não estão sob nosso controle,
mercado evolui assim como um novo ou somente o estão em uma pequena
gênero de “irresponsabilidade medida. As estruturas temporais têm
organizada”. (BECK, 2001, p. 16 e 167). uma natureza coletiva e um caráter
A estrutura da economia se separa da social: impõem-se aos indivíduos em
estrutura política do mundo, sua robusta facticidade” (ROSA, 2010,
sobrepujando-a. p. 11).
Dentro de cada Estado É que estas estruturas estão
nacional, por sua vez, o poder se essencialmente postas sob o signo da
separa da política: no seu componente aceleração. Os protagonistas da
propriamente político, submete-se ao sociedade “são confrontados não
poder econômico, perdendo somente com um, mas com três tipos
capacidade de interagir mais diferentes de aceleração. Em primeiro
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lugar, têm de lidar com a aceleração Como tem sido observado por
técnica que deveria ter por diversos estudiosos (Giddens, Beck,
consequência a redução do ritmo de Bauman, Castells, Lipovetsky), a
vida. Mas a aceleração do ritmo de dimensão espaço-temporal sofre abalo
vida representa, tendo em conta a profundo com a “segunda
aceleração técnica, uma forma social modernidade”, a “hipermodernidade”.
de aceleração paradoxal que pode Espaço de fluxos e tempo intemporal
estar em relação com uma terceira passam a estruturar as dinâmicas
manifestação da aceleração social: a sociais: “A tendência predominante de
aceleração da velocidade das nossa sociedade mostra a vingança
transformações sociais e culturais”. histórica do espaço, estruturando a
Donde o desdobramento mais temporalidade em lógicas diferentes e
impactante: “Os complexos efeitos até contraditórias de acordo com a
combinados destas três formas de dinâmica espacial. O espaço de fluxos
aceleração explicam que, em vez do dissolve o tempo desordenando a
sonho de um tempo abundante, as sequencia dos eventos e tornando-os
sociedades ocidentais são simultâneos, dessa forma instalando a
confrontadas com uma penúria de sociedade na efemeridade eterna. O
tempo, uma verdadeira crise do espaço de lugares múltiplos,
tempo, que põe em questão as formas espalhados, fragmentados e
e as possibilidades de organização desconectados exibe temporalidades
individual e política; uma crise do diversas, desde o domínio mais
tempo que leva à percepção primitivo dos ritmos naturais até a
largamente consolidada de um tempo estrita tirania do tempo cronológico”.
de crise, no qual, paradoxalmente, se Nem tudo, porém, é sugado pela
dissemina o sentimento de que, por tendência voraz de suplantar o tempo
trás da transformação dinâmica e como sequencia ordenada de eventos:
permanente das estruturas sociais, “A intemporalidade navega em um
materiais e culturais da ‘sociedade da oceano cercado por praias ligas ao
aceleração’ se ocultaria, na realidade, tempo, de onde ainda se podem ouvir
um imobilismo estrutural e cultural os lamentos das criaturas a ele
profundo, uma petrificação da história, acorrentadas” (CASTELLS, 1999, p.
na qual nada mais de essencial 490)
mudará, seja qual for a rapidez das A mesma situação pode ser
transformações na superfície. Diante vista pelo ângulo do “peso”: a vida se
desta situação, novos modos de miniaturiza, se torna mais leve e ágil
identidade, novos arranjos graças aos artefatos nano, tudo passa
sociopolíticos, adaptados às novas a girar em torno do que pesa pouco,
estruturas temporais, são da magreza, do que facilita a
perfeitamente pensáveis – mas ao mobilidade, a ponto de se poder falar
preço de uma renúncia às convicções que se vive “uma imensa revolução
éticas e políticas profundas da que impulsiona pela primeira vez uma
modernidade, ao preço do abandono civilização do leve”. A leveza invade as
(e consequentemente do fracasso) do práticas corriqueiras e remodela
‘projeto da modernidade’.” (ROSA, imaginários: torna-se um “fato social
2010, p. 12). total”, um valor, um ideal, um
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imperativo. (LIPOVETSKY, 2015). Vive- processo amplo, que reorganiza os


se, porém, sob um paradoxo: a busca termos da vida. Formas de
infrene por leveza -- os princípios organização, cálculos, convicções e
mesmos da “leveza-mundo” utopias alteraram sua incidência na
(mobilidade, flexibilidade, magreza, vida prática e particularmente na
consumo, ideal de felicidade) -- política. Os cidadãos são mais
alimenta uma sensação de peso, que “indignados” que “radicais”, posto que
produz desconforto e ansiedade, se desinteressaram de totalizações.
sobrecarrega o viver. São mais imediatistas e suas “utopias”
Tal civilização da leveza produz não se estendem em direção a visões
incerteza e insegurança, facilita abrangentes de futuro. O
atentados e transgressões, ainda que desencantamento com o socialismo e
também contribui para consolidar o o comunismo se fixou, seja como
mundo da liberdade democrática e efeito da individualização, seja como
construir um universo mais aberto e derivação das revelações do que havia
individualizado. Seu impacto sobre as de autoritário e burocrático nas
formas instituídas do político, porém, é experiências do “socialismo realmente
problematizador. “Ela se concretiza na existente”.
expansão do Estado-espetáculo, que O impacto que este quadro,
privilegia A imagem, as frases curtas, o visto pelo ângulo que se desejar, tem
espetáculo midiático da proximidade. sobre as estruturas do Estado, sobre as
Como agravante, por meio do políticas de bem-estar, é imenso: ele
consumismo de massa, os grandes funciona como fator de
referenciais que orquestravam a vida desorganização e fragilização, ao
pública – a nação, a revolução, o contribuir para o enfraquecimento de
socialismo, etc. – perderam sua tudo aquilo que funcionou como
substância. Os cidadãos não querem barreira de proteção e eixo de
mais morrer por alguma coisa; tornam- sustentação. O “compromisso social-
se cada vez mais voláteis, flutuantes, democrata”, assim, perde parte
‘despolitizados’, desconfiados das expressiva de suas condições de
responsabilidades políticas”. As possibilidade, arrastando consigo o
próprias utopias se tornam light. Não conjunto das esquerdas.
há propriamente “apatia política”, já O novo contexto enfraquece o
que as associações se multiplicam, que havia sido conectado ao longo do
impulsionadas por uma sensibilidade processo de organização do
mais pragmática, emancipada de capitalismo industrial: economia e
partidos, que funciona mediante política, Estados e sociedades
engajamentos pontuais e intervenções nacionais, economia de mercado,
diretas, desinteressadas da conquista bem-estar e democracia. O Estado de
do poder. “A política torna-se assim bem-estar não desaparece, nem
um anexo, útil para a regulação, mas conhece crise terminal, mas,
não mais carrega consigo a ruptura, o despojado dos fatores, dos sujeitos e
sonho”. (LIPOVETSKY, 2015). das utopias que lhe deram animação, é
As alterações em termos de forçado a se reajustar. Passa a se
“tempo” e “peso” precisam ser confrontar com circunstâncias
consideradas como parte de um sombrias, que criam demandas por
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bem-estar muito mais complexas do 5. CONCLUSÃO


que as dos “trinta anos dourados” e Se a democracia, mais que um
tornam mais difícil a sua “método” para que se tomem decisões
operacionalidade. Ao ingressar na coletivas e mais que um sistema de
“idade da razão”, o Welfare State vê representação baseado em normas e
sua existência ser posta em dúvida procedimentos, também é um sistema
mas, ao mesmo tempo, se torna mais de participação, que depende de
crucial e justificado “para o cidadãos politicamente educados e tão
desenvolvimento das sociedades bem organizados quanto possível,
contemporâneas e para a promoção então ela tende inevitavelmente a
do bem-estar de seus cidadãos”. Entra conhecer alguma crise quando
assim em nova fase, marcada por cidadãos e organizações mudam de
transformações qualitativas padrão, impulsionados por uma
importantes em termos de inclusão e grande transformação social. A
generosidade, por uma nova divisão de democracia não é somente um
funções entre público e privado, por conjunto de regras sobre o modo
impulsos de re-mercantilização e por como se governa uma comunidade
um “incremental deslocamento de um política. É, também, uma diretriz ético-
welfare de seguridade em direção a política, valorativa, dedicada a
um welfare de serviços”. produzir o compartilhamento e a
(KERSTENETZKY, 2012, p. 86). divisão do poder político entre os
Quanto ao “compromisso cidadãos. Em termos normativos, é o
social-democrata”, não há sinais conjunto dos cidadãos que governa,
evidentes para que se constate sua repartindo entre si responsabilidades e
inviabilização. Seus partidos políticos poderes. Sua crise atual deriva
de sustentação estão em crise e essencialmente de uma demanda de
sofrem a concorrência das dinâmicas transformação que não consegue ser
de “desorganização” e individualização adequadamente processada e
que estão a redefinir o modo mesmo atendida. Se a mudança no padrão da
como se faz e se organiza a política. As cidadania e da dimensão organizada
sociedades contemporâneas, porém, da participação política aparece como
não poderão seguir em frente tão- desgaste e problematização de
somente com base na reiteração dos instituições (como o voto e o
postulados simples da democracia Parlamento, por exemplo), como
liberal, que não protegem demolição dos partidos políticos,
adequadamente os cidadãos contra redução do ideal igualitário e
riscos sociais, econômicos e atomização das energias individuais
ambientais. (MEYR; HINCHMAN, dos cidadãos, a qualidade da
2008). Em boa medida, tudo indica que democracia tende a decair, a ponto de
regulações e controles de tipo social- se converter em componente da crise,
democrata continuam a ser, desde que que passa assim a ser de
devidamente atualizados, os principais funcionamento e de legitimação.
recursos com que se conta para o Nas condições atuais, de
alcance de uma ordem social mais globalização capitalista e de
democrática, justa e estável. radicalização dos termos da vida
moderna, de “segunda modernidade”,
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o cenário acima traçado surge como deslocando a democracia para uma


razoável. A marcha em direção a um posição defensiva. “Costumávamos
mundo “pós-nacional” (Habermas) falar de capitalismo tardio na década
carrega consigo destroços e promessas de 1970, mas desde então o
de novas edificações. A reestruturação capitalismo rejuvenesceu. A
das relações de poder no espaço democracia ainda não atingiu seu
global produz múltiplos efeitos sobre limite. Seus males mais graves no
os Estados nacionais e seus sistemas início do século XXI são a castração da
políticos, afetando inevitavelmente a política pelos mercados (um ferimento
democracia mediante a exacerbação auto-infligido) e a crescente exclusão
de seus paradoxos e de algumas dos estratos mais baixos da
“patologias”. Há “desordem” demais participação e da representação
no sistema internacional de Estados e substancial. Ambas as deficiências
no interior das sociedades nacionais: podem e devem ser corrigidas. Se não
fragmentação, perda da centralidade forem, uma concha pós-democrática
da classe trabalhadora, diferenciação vazia pode ser tudo o que resta da
social potencializada, democracia”. (MERKEL, 2015).
informacionalização, conectividade Para Merkel, a desregulação
intensiva e vida em rede fazem com destrói os próprios mercados e
que a experiência social se torne compromete a coesão social das
flutuante e instável, difícil de ser sociedades. Eles precisam ser
coordenada. As “redes de indignação e submetidos a rigorosos controles. Ao
esperança” que se formam, movidas a permitir que tal situação se prolongue,
“autocomunicação de massa” a democracia se devora a si mesma:
(CASTELLS, 2009; 2013), põem-se perde sentido para os estratos mais
como uma possibilidade real, mas são pobres e facilita o distanciamento
o tempo todo hostilizadas pelas entre eles e os estratos superiores. O
agendas e pelos desafios da vida fato, além disso, torna mais difícil o
cotidiana, assim como pela oposição relacionamento entre a economia
de elites dominantes, governos e capitalista e o Estado democrático,
Estados. O desentendimento cresce, travando as possibilidades de
complicando a formação de consensos retomada do “compromisso social-
e até mesmo a definição de agendas democrata” que fez a fortuna do
públicas mais bem concatenadas. O Estado de Bem-Estar em vários países
desejo de participação também se da Europa, graças a uma bem-sucedida
expande, mas não se coaduna nem se articulação entre associações
compõe com o que há de vida política empresariais, sindicatos e Estado
organizada, de política instituída. democrático.
Se há um mal-estar na “Durante as décadas
democracia, ele se associa muito mais dominadas pelo neoliberalismo, o
aos triunfos do que à crise do equilíbrio de poder entre os três
capitalismo, como escreveu Wolfgang mencionados atores foi deslocado em
Merkel (2015). A aceleração e a uma direção desvantajosa para o
ampliação da desregulação do Estado democrático e os sindicatos.
capitalismo fizeram com que os Deixou assim de existir uma base no
sistemas ficassem mais tecnocráticos, poder político para o compromisso
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social-democrata. A tarefa que se tem processo de regressão oligárquica da


pela frente, portanto, é a de devolver democracia”, ou seja, o “deslocamento
poder ao Estado democrático. Isso não para cima dos mais relevantes centros
pode ser feito sem que se recupere de tomada de decisões, com o que as
parte do território que foi cedido ao decisões políticas escapam das sedes
capital desregulamentado. As forças mais amplas e se refugiam em lugares
progressistas têm que admitir para si menos acessíveis, reservados a
próprias que o capitalismo não pode restritos grupos oligárquicos”,
ser domesticado pela sociedade civil e combinando-se assim com “um
por suas causas mais avançadas. O verdadeiro processo de des-
Estado democrático não é tudo, mas democratização”. (PETRUCCIANI, 2014,
sem um Estado forte e democrático p. 353).
nossas sociedades não podem ser Neste ambiente, os governos e
estruturadas razoavelmente.” a classe política se soltam de suas
(MERKEL, 2015). comunidades, pioram dramaticamente
Uma real tendência à “pós- seu desempenho e deixam as próprias
democracia” está hoje posta em comunidades sem muitas saídas. Nos
termos práticos: “ainda que as eleições vazios que assim se abrem, projetam-
continuem a transcorrer e a se uma cidadania ativa mas mal
condicionar os governos, o debate posicionada, mídias tradicionais e
eleitoral é um espetáculo firmemente novas mídias, muitas tribos e nichos
controlado, conduzido por grupos identitários, um mercado que funciona
rivais de profissionais especializados com moto próprio e indivíduos
nas técnicas de persuasão e “empoderados”. Há muita
concentrado em um número restrito concatenação e articulação entre
de questões selecionadas por estes economia, política e sistema de
grupos. A massa dos cidadãos comunicação – o que encapsula e
desempenha um papel passivo, trava a democracia política, como
aquiescente, até mesmo apático, vimos --, mas há pouca articulação de
limitando-se a reagir aos sinais que tipo antagonista e antissistêmico: falta
recebe. À parte o espetáculo da luta solidariedade (coesão e unidade) entre
eleitoral, a política é decidida em as classes e dentro de cada classe.
privado pela interação entre os Embora cercada e
governos eleitos e as elites que “desqualificada” por essa forma de
representam quase exclusivamente vida em transformação, a democracia
interesses econômicos”. (CROUCH, resiste. Traduz-se como
2005, p. 7). Especialmente na esfera democratização social. Expande-se
superior do sistema político, o clima é expressivamente como cultura e se
de re-oligarquização e de “des- impõe no plano da vida familiar, nas
democratização”, para empregar escolas, nos relacionamentos e em
expressões utilizadas por alguns muitos processos de tomada de
analistas da vida contemporânea: decisões. Abre-se assim um vasto
entre as muitas dimensões caóticas campo para novos arranjos
das mudanças políticas institucionais, novos formatos de
contemporâneas, “o primeiro aspecto família, experimentos participativos,
que se deve por em destaque é o projetos de reforma e pulsões cívicas.
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A partir deste campo, pode-se voltar a ganhará factibilidade se puder contar


transferir poder político à democracia, com uma esquerda que opere como
dando-lhe renovada e melhor uma unidade na diversidade.
qualidade. Ao longo da história da
Abraçada aos problemas de modernidade, a esquerda deu decisiva
realização da democracia evolui uma contribuição para a conquista de
complicada crise da esquerda. A esta melhores patamares de bem-estar e
altura dos acontecimentos históricos vida digna. Desempenhou importante
mundiais, uma crise dos partidos de papel no processo de qualificação da
esquerda é inquestionável, democracia política, forçando-a a ir
expressando-se não só (ou nem tanto) além das fronteiras mais elitistas do
no encolhimento eleitoral mas liberalismo. O “compromisso social-
sobretudo na incapacidade de democrata” foi uma alavanca
governar melhor, responder melhor poderosa deste movimento. Hoje, em
aos problemas da vida e apresentar circunstâncias inteiramente novas, os
novos projetos de sociedade. A caminhos da esquerda permanecem
esquerda carece hoje daquilo que fez abertos, a desafiá-la. Seus partidos
sua fortuna durante todo o século XX: estão em crise e talvez não consigam
a força política dos trabalhadores mais ser repostos sem mudanças
organizados e um projeto factível de teóricas e organizacionais de tipo
contestação do capitalismo, o que faz radical, de difícil execução. Mas a ideia
com que ela tenha pouca de esquerda e a atuação daqueles que
operacionalidade política e baixo com ela se identificam ainda mostram
poder de agendamento. Não somente ser importantes para "salvar" a
a esquerda partidária perde com este democracia das limitações liberais, por
encolhimento: passa-se o mesmo com um lado, e da re-oligarquização, da
as políticas sociais distributivas e com corrupção e da degradação ética, por
o poder de sedução do igualitarismo. A outro. A única exigência para que isso
crise da esquerda, no entanto, não se traduza em fato é que a esquerda se
tem implicado que os valores mostre como a corrente mais coerente
associados à esquerda -- justiça social, e avançada da defesa e do
tolerância, fraternidade, direitos, aprofundamento da própria
desejo de comunidade, regulação democracia.
política da economia – tenham sido
dissolvidos pela barafunda de REFERÊNCIAS
convicções e pelo mercado cultural.
O “compromisso social- BAUMAN, Z. Em busca da política. Rio de
democrata” fica, assim, Janeiro: Zahar, 2000.
problematizado. Para seguir em frente . Modernidade líquida. Rio de
e se atualizar, ele precisa ir além da Janeiro: Zahar, 2003.
social-democracia realmente existente
hoje, cujos partidos, símbolos e BECK, U. La società globale del rischio. Trieste:
políticas não conseguem se contrapor Asterios Editore, 2001.
ao capitalismo globalizado e a seus
. O que é globalização? Equívocos
efeitos mais deletérios. Não tem
do globalismo, respostas à globalização. São
como, porém, dispensá-los. Somente
Paulo, Paz e Terra, 1999.
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Submetido em: 29/08/2015
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