Você está na página 1de 11

HENRI LEfEBVRE

A tVOlUÇAO UANA

TRADuÇÃo
SÉRGIO MARTINS

REVISÃo TÉCNICA
MARGARIDA MARIA DE ANDRADE

30 REIMPRESSÃO

Belo Horizonte
Editora UFMG
2008
,I
A favor do monumento. É o único lugar de vida coletiva c A p T u L o I I

(social) que se pode conceber e imaginar. Se ele controla, é para


reunir. Beleza e monumentalidade caminham juntas. Os grandes
monumentos foram trans-funcionais (as catedrais), e mesmo
trans-culturais (os túmulos). Daí seu poder ético e estético. Os
monumentos projetam uma concepção de mundo no terreno,
enquanto a cidade projetava e ainda nele projeta a vida social
o CAMO CeGO
(a globalidade). No próprio seio, às vezes no próprio coração
de um espaço no qual se reconhecem e se banalizam os traços
da sociedade, os monumentos inscrevem uma transcendência, o método utilizado nesta exposição não é histórico na

um alburY!S. Eles sempre foram u-tópicos. Eles proclamavam, acepção habitual desse termo. Apenas aparentemente tomamos

em altura ou em profundidade, numa outra dimensão que a dos o objeto "cidade" para descrever e analisar sua gênese, suas

percursos urbanos, seja o dever, seja o poder, seja o saber, a modificações, suas transformações. Em verdade, colocamos
primeiramente o objeto virtual, o que nos permitiu traçar o eixo
alegria, a esperança.
espaço-temporal. O futuro iluminou o passado, o virtual permitiu
examinar e situar o realizado. É a cidade industrial, ou melhor,
o estilhaçamento da cidade pré-industrial e pré-capitalista sob o
impacto da indústria e do capitalismo, que permite compreender
suas condições, seus antecedentes, a saber, a cidade comercial;
esta, por sua vez, permite apreender a cidade política à qual se
superpôs. Como Marx pensava, o adulto compreende, como
sujeito (consciência), e permite conhecer, como objeto real, seu
ponto de partida, seu esboço, talvez mais rico e complexo que
i I ele próprio, a saber: a criança. Embora complexa e opaca, é a
sociedade burguesa que permite compreender as sociedades
mais transparentes, a sociedade antiga e a sociedade medieval.
Não o contrário. Um duplo movimento impõe-se ao conheci­
mento, desde que existem tempo e historicidade: regressivo (do
virtual ao atual, do atual ao passado) e progressivo (do superado
e do finito ao movimento que declara esse fim, que anuncia e
faz nascer algo novo).

O tempo histórico pode ser recortado (periodizado) segundo os


modos de produção: asiático, escravista, feudal, capitalista, socia­
lista. Esse recorte tem certas vantagens e alguns inconvenientes.
Quando é levado longe demais, quando se insiste nos cortes, nas
características internas de cada modo de produção, na coesão de
cada um como totalidade, a passagem de um a outro toma-se
ininteligível, no exato momento em que se destaca e se acentua
a inteligibilidade de cada um tomado separadamente. Não há
dúvida que cada modo de produção "produziu" (não como uma
coisa qualquer, mas como uma obra privilegiada) um tipo de

30
cidade, que o "exprime" de maneira imediata, visível e legível no século XVIII e primórdios do XIX? O que se entendia por isso?
terreno, tornando sensíveis as relações sociais as mais abstratas, jurí­ Não houve uma dupla negação da natureza, e'nquanto anterior
dicas, políticas, ideológicas. Esse aspecto descontínuo do tempo ao pensamento e à ação "humanos"? Dupla negação pela cidade
não pode ser levado até o ponto em que a continuidade se tome e pela indústria que a fez transparecer e brilhar novamente? Desde
ininteligível. Na cidade também houve um processo cumula­ esse momento, a Cidade aparece como segunda natureza, pedra e
tivo relativamente contínuo: acumulação de conhecimentos, de metal, erigida sobre a natureza inicial e fundamental, a dos elementos,
técnicas, de coisas, de pessoas, de riquezas, de dinheiro, depois a terra e o ar, a água e o fogo. Essa segunda naturalidade adquire
de capital. Ela foi o lugar de sua acumulação, em que pese o seu paradigma, seu sistema de oposições pertinentes: o brilhante
capital ter nascido da riqueza criada no campo e seu investimento e o sombrio, a água e a pedra, a árvore e o metal, o monstruoso e
industrial ter se voltado contra a cidade.
o paradisíaco, o rugoso e o polido, o selvagem e o artificial. Nos e
A teoria marxista da mais-valia distingue a formação da mais­ pelos poetas (Hugo, Baudelaire). Mas isso nos remete aos mitos da
valia, sua realização e sua distribuição. A mais-valia formou-se cidade, sobre os quais falaremos mais tarde. No entanto, o que
inicialmente no campo. Essa formação deslocou-se para a cidade ocorre com a tentativa, inerente ao espaço urbano, de reunir o
na medida em que esta se transformou na sede da produção, espontâneo e o artificial, a natureza e a cultura? Não existe cidade,
do artesanato, depois da indústria. Em contrapartida, o sistema nem espaço urbano, sem jardim, sem parque, sem simulação da
comercial e bancário das cidades sempre foi o órgão da reali­ natureza, sem labirintos, sem evocação do oceano ou da oresta,
zação da mais-valia. Na sua distribuição, os mestres das cidades sem árvores torturadas até tomarem formas estranhas, humanas e
sempre tentaram dela reter uma grande parte (maior que o lucro inumanas. O que dizer, portanto, dos jardins e parques que fazem
médio de seus investimentos). Nos três aspectos da mais-valia, o a qualidade urbana de Paris como de Londres, de Tóquio ou de
centro urbano desempenha um papel cada vez mais importante.
Nova Iorque, da mesma maneira que as praças e o arruamento?
O que define uma função essencial e, no entanto, desconhecida
Tais espaços seriam o lugar de uma correspondência unilateral,
(despercebida), da centralidade urbana no modo de produção
ou quase, entre a cidade e o campo? Seriam are-presentação
capitalista. O que torna inexata a afirmação segundo a qual a
sensível de um alhures, a u-topia da natureza? O referencial
cidade de outrora e atualmente o centro urbano são apenas supe­
indispensável para que se situe e se perceba a realidade urbana?
restruturas, não tendo relação alguma com as forças produtivas
Ou, ainda, seriam simplesmente o elemento neutro do conjunto
e o modo de produção.
urbano? O que ocorre com essas funções (essas realidades
O eixo espaço-temporal permite situar algumas relações multifuncionais ou tran'sfuncionais) nos "espaços verdes"? São
entre a cidade e o campo, e suas transformações. Ele não retém transformadas? O problema não foi resolvido, arbitrariamente
todas, nem as contém totalmente. Por exemplo, ele não contém
e sem consciência, por essa neutralização do espaço não edifi­
nem as condições, nem os elementos dos conceitos ligados a
cado, ilusoriamente voltado à uma natureza fictícia, o "espaço
essas relações: a natureza (a physis) e o logos (a razão). Ele não
verde"?
mostra a genealogia da idéia de Natureza e suas aventuras. O
Esses aspectos da problemática urbana (que não são menores e
esquema indica uma inversão de situações, na história européia,
vão além das imagens banalizadas do "meio ambiente", posto que
no momento do que comumente se denomina o Renascimento. No
supõem uma análise) não figuram no esquema. Contudo, fazem
curso dessa fase crítica, o que exatamente acontece com os conceitos
e representações que essas palavras - natureza, razão - designam?
parte da fase critica. Ela os contém. Seguindo a metáfora empre­

Modificando-se profundamente a relaçào "cidade-eampo", houve gada, diremos que essa fase comporta um branco (um vazio),

correspondência ou distorção entre essas modificações e as dos ou um momento sombrio (uma "caixa preta"), ou, ainda, que

conceitos? A singular polissemia dessas palavras - natureza, ela designa um campo cego. Na fase crítíca, a natureza aparece

razão - pode ser analisada e elucidada em funçào da história aqui no primeiro plano dos problemas. Associadas e concorrentes, a

indicada? Talvez. Por que há o fetichismo da Natureza ao final do industrialização e a urbanização devastam a natureza. A água, a

32 33
terra, o ar, a luz, os "elementos" estão ameaçados de destruição. o que nela se passa. Nosso esquema não o diz. Ele supõe, sobre­
Os prazos finais chegarão em datas precisas. Por volta do ano 2000, tudo, que a cidade (a cité) foi o lugar das criações e não simples
com ou sem uma guerra nuclear, a água e o ar estarão poluídos resultado, simples efeito espacial de uma criação que ocorreu
a tal ponto que a vida tomar-se-á difícil na Terra. Pode-se, desde noutro lugar, no Espírito, na Razão. Ele estipula que o urbano
agora, conceber um "socialismo" bem diferente do que se entende pode tornar-se "objetivo", isto é, criação e criador, sentido e fim.
por tal palavra, e daquele que Marx definiu. Os bens outrora Resta demonstrá-lo.
raros tornam-se abundantes: o pão e os alimentos em geral Três camadas. Três épocas. Três "campos", não apenas de
(ainda raros numa grande parte mal desenvolvida do planeta, mas "fenômenos sociais", mas de sensações e de percepções, de
superabundantes na parte desenvolvida). Ao contrário, os bens espaços e de tempos, de imagens e de conceitos, de linguagem
outrora abundantes tomam-se raros: o espaço, o tempo, o desejo. e de racionalidade, de teorias e de práticas sociais:
E depois a água, a terra, a luz. Não se imporá a gestào coletiva - o rural (camponês),
das novas raridades? A não ser que se imponha a produção ou
- o industrial,
re-produção de tudo que foi a "natureza" ...
- o urbano,
Assim se determina a problemática parcial relativa à "natureza".
Teoricamente, a natureza distancia-se, mas os signos da natureza com emergências, interferências, desencontros, avanços e
e do natural se multiplicam, substituindo e suplantando a "natu­ atrasos, desigualdades de desenvolvimento e, sobretudo, tran­
reza" real. Tais signos são proouzidos e vendidos em massa. Uma sições dolorosas, fases críticas. Eis, portanto, o que se evidencia
árvore, uma flor, um ramo, um perfume, uma palavra tornam-se do balizamento do eixo espaço-temporal, das hipóteses teóricas
signos da ausência: ilusória e fictícia presença. Ao mesmo em curso de verificação. Entre duas épocas, no meio, no corte,
tempo, a naturalização ideológica obceca. Na publicidade, a ou nas dobras (nos nossos dias: entre o industrial e o urbano),
dos produtos alimentares ou têxteis, como a da moradia ou das o que há? Capas verbais, "sigrlificantes flutuantes" soltos, cujo
férias, a referência à natureza é constante. Todos os "significantes significado (a indústria, racionalidade e prática) não é mais sufi­
flutuantes" que a retórica utiliza se agarram à sua representação ciente, ainda que permaneça necessário. Essas capas verbais,
para encontrar um sentido e um conteúdo (ilusórios). O que não errantes acima de seu solo natal, não podem se prender nem a
tem mais sentido procura reencontrar um sentido pela mediação um "sujeito filosófico", nem a um "objeto privilegiado", nem a uma
do fetiche "natureza". Rara, fugidia, devastada, resíduo da urba­ "totalização histórica". Pode-se observá-las como se contempla, do
nização e da industrialização, a natureza é reencontrada por toda avião, as camadas e capas de nuvens. Eis aqui, muito alto, muito
a parte, na femininidade, como no menor objeto. Quanto aos leves, os cirros da antiga ftlosofia. E os nimbos da racionalidade.
"espaços verdes", última palavra das boas intenções e das deplorá­ E os pesados cúmulos dos cientificismos. Todos linguagens ou
veis representações urbanísticas, o que pensar senão que constituem metalinguagens a meio caminho entre o real e o fictício, entre o
um substituto medíocre da natureza, um degradado simulacro do realizado e o possíveL Vão à deriva, escapando dos sortilégios
espaço livre, aquele dos encontros e dos jogos, dos parques, dos dos filósofos feiticeiros.
jardins, das praças? O espaço assim neutralizado numa degra­ Entre os campos, que não são aprazíveis, mas campos de forças
dante democratização tem por símbolo a "square".1 O urbanista e de conflitos, existem campos cegos. Não somente obscuros,
obedece passivamente às pressões do número e do menor custo; incertos, mal explorados, mas cegos no sentido em que há, na
a própria funcionalidade que ele crê conceber reduz-se ã ausência retina, um ponto cego, centro da visão e, contudo, sua negação.
de funções "reais", reduz-se ã função do puro olhar. Paradoxos. O olho não se vê. Ele necessita de um espelho. O
Fase crítica. Caixa preta. Ora confundidos num duo ambíguo, ponto central da visão não se vê, nem sabe que é cego. Esses
ora gêmeos, ora innãos inimigos, ora associados distantes e rivais, o paradoxos não se estendem ao pensamento, à consciência, ao
arquiteto e o urbanista examinam a caixa preta. Eles também sabem conhecimento? Assim, ontem, entre o rural e o industrial; hoje,
o que nela entra. Surpreendem-se com o que dela sai. Não sabem entre o industrial e o urbano, _ não existe campo que não se vê?

34 35
Campos cegos? Não se trata de uma imagem literária, nem de
Em que consiste tal cegueira? No fato de olharmos atentamente
o campo novo - o urbano -, vendo-o, porém, com ,os olhos, uma metáfora, apesar do paradoxo da uniào entre um tenno subje­

com os conceitos, formados pela prática e teoria da industriali­ tivo, "cego": e um termo objetívo, o "campo" (o qual, ademais, só
se imagina iluminado). Trata-se de uma noção que se encontra
zação, com um pensamento analítico fragmentário e especializado
ou reencontra por vários caminhos, que emerge ao mesmo tempo
no curso desse período industrial, logo, redutor da realidade em
filosófica e cientificamente, isto é, na análise dita filosófica e no
formação. Desde então, não vemos essa realidade. Opomo-nos
conhecimento.2 Não se trata mais da distinção trivial entre o que
a ela, a afastamos, a combatemosj impedimo.la de nascer e de
fica na sombra e o que é iluminado, mesmo se acrescentarmos
se desenvolver.
que a "iluminação" intelectual tem limites, afasta ou menospreza
O urbano (o espaço urbano, a paisagem urbana), não o vemos.
isto ou aquilo, projeta-se aqui e não ali, põe aquilo entre parên­
Nós ainda não o vemos. Será simplesmente o olho formado (ou
teses e isto em evidência. E isso não é tudo: há o que não se
deformado) pela paisagem anterior que não pode ver um novo
sabe e o que não se pode elucidar.
espaço? Tratar-se-á simplesmente do olhar cultivado pelos espaços
O que existe no campo cego é o insignificante, cujo sentido
aldeões, pela magnitude das fábricas, pelos monumentos das
será atribuído pela pesquisa. Antes de Freud, o sexo era signifi­
épocas passadas? Há isso, como há mais e outra coisa. Não se trata
cante? Sim. De pecado, de vergonha. Ao menos na cultura ocidental
somente de uma ausência de educação, mas de uma ocultação.
(judaico-cristã). Ou de sistematização ideal, na poesia, para alguns
O que olhamos, na verdade, não enxergamos. Quantas pessoas
poetas. Atribuir-lhe sentido era um ato. O sexo, antes de Freud,
percebem "perspectivas", ângulos e contornos, volumes, linhas
era ao mesmo tempo afastado, dilacerado, reduzido, recusado
retas ou curvas, mas não podem ver, nem conceber, percursos
(recalcado). Ele se apresentava no campo cego, povoado de
múltiplos, espaços complexos! Não podem saltar do cotidiano ­
sombras e de fantasmas, expulso do concreto por uma pressão
fabricado segundo as coações da produção industrial e do consumo
impiedosa, por uma alienação essencial. Nada mais propício a
dos produtos da indústria - para o urbano, que se libertaria
um "claro-obscuro místico".
desses determinismos e coações. Não sabem construir uma
paisagem, compondo e propondo uma idéia da feiúra e da beleza O inconsciente seria a substância ou a essência dos campos
especificamente urbanas. A realidade urbana, antes de nascer e cegos? Mas esses campos são campos: eles se oferecem à explora,do.
de se afirmar, se vê reduzida, de um lado, pelo rural (os subúr­ Eles a aguardam. São virtualidade para o conhecimento e possibi­
bios compostos por casas ajardinadas, os espaços ditos verdes) lidade para a ação. Por que e como permanecem cegos? Má-fé,
e, de outro, pelo cotidiano industrial (as moradias funcionais, as mal-entendido, desconhecimento (falso conhecimento e, talvez,
vizinhanças, as relações, os trajetos monótonos e obrigatórios), falsa consciência) têm um papel. Portanto, seria mais exato falar
cotidianidade submetida ãs exigências das empresas e tratada do desconhecido que do inconsciente. Entretanto, esses termos
conforme a racionalidade empresarial. Trata-se de uma redução, não bastam. Por que "eu" (ou "nós", ou "se") me recuso a ver,
ao mesmo tempo social e mental, de um lado, à trivialidade e, de perceber, conceber, isto ou aquilo? Por que fazemos de conta
outro, à especialidade. Em poucas palavras: o urbano reduz-se que não estamos vendo? Como chegamos a isso? Existem zonas
ao industrial. A ceguei!'d, ° não-ver e o não-saber, implicam uma "incultas" (não apropriadas) do próprio corpo, inclusive o sexo.
ideologia. Os campos cegos instalam-se na re-presentação. Há, de No entanto, os campos cegos são, ao mesmo tempo, mentais e
início, a apresentação dos fatos e dos conjuntos de fatos, o modo sociais. Para compreender sua existência, é preciso reportar-se
de percebê-los e de agrupá-los. Em seguida, há a re-presentaçào, ao poder das ideologias (que iluminam outros campos ou fazem
a interpretação dos fatos. Entre esses dois momentos, e em cada surgir C"àmpos fictícios) e, por outro lado, ao poder da linguagem.
um deles, intervêm desconhecimentos, mal-entendidos. O cegante Não existe "campo cego" ora quando a linguagem está ausente,
(os conhecimentos que se adotam dogmaticamente) e o cegado ora quando há abundância e redundãncia de metalinguagem
(o desconhecido) são complementares na cegueira. (discurso sobre o discurso, significantes flutuantes longe dos
significados)?

36 37
Voltemos ao contraste entre o cegante e o cegado. O cegante definidos, vinculados às particularidades da "natureza'.). Eie supõe
é a fonte luminosa (conhecimento e/ou ideoiogia) que projeta o uma espontaneidade fortemente controlada pela ação incessante
facho de iuz, que ilumina alhures. O cegado é o olhar ofuscado; é de uma comunidade. O que não ocorre sem particularidades
também a zona deixada na sombra. De um lado uma via se abre mentais e sociais, sem originalidades devidas à origem dos grupos
à exploraçãoj de outro, hã uma barreira a romper, uma sançào (etnias, climas, contextos geográficos, produções "naturais" orga­
a transgredir. nizadas pelo trabalho agricola etc.). As particularidades de tais grupos
Três campos ou domlnios, dissemos. Poderíamos também encontram sua expressão privilegiada na combinação de duas ativi­
dizer que houve descoberta, emergência, constituição ou criação dades, não obstante distintas e mesmo opostas tendenciaimente: a
históricas, de três continentes: o agrário, o industrial, o urbano. magia e a religião. Padres e feiticeiros são necessários. Devido à sua
Por analogia com a descoberta das matemáticas, depois da física, dupla operação, os ritmos e os ciclos simples (dias, estações, anos)
depois da história e da sociedade, no processo do conhecimento, se instalam nos grnndes ciclos cósmicos. Um pensamento imediato
sucessão reconhecida pela epistemologia. Todavia, não se trata de - que também é pensamento do imediato (do que acontece aqui
"cortes" na acepção que a epistemologia contemporânea confere e agora, do que é preciso fazer hoje ou amanhã) - integra-se
a esse termo. Não somente existem simultaneidades, interações, num pensamento mais vasto e mais amplo, que compreende
desigualdades de desenvolvimento, pelas quais esses momentos vidas inteiras, seus acontecimentos - nascimentos, casamentos,
(esses "continentes") coexistem, não s6 uma tal noção de "corte" mortes e funerais -, bem como a sucessão das gerações. Os
lançaria à cegueira as relações de produção e de classes, como, de feiticeiros encarregam-se do imediato, os padres, do mundo. Será
modo mais geral, os países ditos subdesenvolvidos caracterizam-se preciso iembrar que o "rural-cunponês", apesar de primordial e longa­
atualmente por conhecerem simultaneamente a era rural, a era mente dominante, só se formou, indubitavelmente, sob a ação de
industrial, a era urbana. Eles acumulam os problemas, sem por isso conquistadores, de administradores instalados na cidade política?
acumularem as riquezas. Pode-se dizer também que esses momentos Uma tal cidade tem existência tão-somente política, de dominação
correspondem à triplicidade que se reencontra, acentuada dife­ sobre os camponeses, cujas vagas a inundam, a nutrem e, por
rentemente, em toda prática social: necessidade-trabalho-fruição.
vezes, a submergem. A cidade política ainda não é o "urbano".
À necessidade corresponderia o período agrário, produção limi­ Apenas seu pressentimento. Todavia, em que pese o fato de a
tada, submetida à "natureza" I atravessado por catástrofes e fome,
cidade política encontrar-se tão enraizada quanto as comunidades
domlnio da escassez. Ao trabalho, corresponderia o período
camponesas e fortemente marcada por essa circunvizinhança,
industrial, produtivo até fetichizar a produtividade, devastando
a divisão (fundamentaI) do trabalho entre os dois fragmentos da
a natureza, inclusive aquela que vive ou sobrevive no "ser
sociedade já tomou forma. À distinção entre a cidade e o campo
humano". A sociedade urbana corresponderia à fruição? Não
vinculam-se as oposições destinadas a se desenvolverem: trabalho
basta afirmar, é preciso demonstrAr.
materiai e trabalho intelectual, produção e comércio, agricultura e
Três campos. Não se trata de uma perspectiva histórica, ou indústria. Oposições inicialmente complementares, virtualmente
econômica, ou sociológica, mas de uma concepção global, dupla­ contraditórias, depois conflituosas. Ao campo correspondem
mente: no que concerne à sucessão dos períodos, e no que formas de propriedade fundiária (imobiliária) tribais e mais tarde
concerne a cada um deles. O termo "campos" não designa apenas feudais. À cidade correspondem outras formas de propriedade:
camadas sucessivas ou superpostas de fatos, de fenômenos, mas mobiliária (no começo pouco distinta da imobiliária), corporativa,
modos de pensamento, de ação, de vida.
mais tarde capitalista. No curso dessa pré-história reúnem-se os
O campo "camponês-ruraI" compreende uma re-presentação elementos e as formas que farào a história ao se separarem, ao
do espaço, ou, se quisermos, uma gmde espacial, implicando a se combaterem.
orientação, a demarcação, a capacidade de se apossar dos sítios O campo industrial substitui as particularidades naturais,
e de nomear os lugares (os lugares nomeados, topias em espaços ou supostas como tais, por uma homogeneidade metódica e

38 39
sistematicamente imposta. Em nome do quê? Da razão, da lei, extmir da linguagem, da informação e da comunicação etc. Cada
'da autoridade, da técnica, do Estado, da classe que detém a lógica pretendendo ser, ao mesmo tempo, restritiva e completa,
hegemonia. Tudo serve para legitimar, para entronizar uma ordem eliminando o que não lhe convém, declarando que vai e quer
geral, que corresponde à lógica da mercadoria, a seu "mundo" governar o resto do mundo, converte.se em tautologia vazia.
realizado à escala verdadeiramente mundial pelo capitalismo e pela Assim, a comunicação transmite unicamente o comunicável etc.
burguesia, Pergunta-se, às vezes, se o socialismo pode se afastar Porém, todas as lógicas e todas as tautologias se encontram. Por
desse reino da economia política, Esse projeto de racionalidade um lado, elas têm um lugar comum: a lógica .da mais-valia. A
generalizada constrói literalmente o vazio diante de si. Devasta pelo cidade, ou o que dela resta, ou o que ela se torna, serve mais
pensamento antes de devastar pela eficácia. Cria o campo cego, que nunca à formação de capital, isto é, ã formação, à realização,
porque deserto, Em que consiste o projeto de uma racionalidade à distribuição da mais-valia. Por outro, tais lógicas e tautologias
universal? Na extensão, a todas as atividades, de uma experiência, a negam a natureza. Negação que nada tem de abstrata, que não
da divisào manufatureira do trabalho. Na empresa, os trabalhos são é especulativa. Rejeitando as particularidades, a racionalidade
divididos e organizados de modo a se complementarem sem que os industrial devasta, pum e simplesmente, a natureza e tudo o que é
produtos e os próprios trabalhos passem pelo mercado. O grande do domínio da "naturalidade". O que se traduz por uma obsessão,
intento da era industrial é o de estender à divisão social do trabalho por um estado segundo das consciências, do pensamento e da
a eficácia da sua divisão manufatureira. Projeto sempre retomado, linguagem.
jamais realizado. A divisào social do trabalho se acentua (sem por O pensamento analítico, que se crê e pretende ser racionali­
isso organizar-se racionalmente) até pulverizar-se em atividades dade integml (integrante-integrada), opera com eficiência apenas
separadas, tanto nos trabalhos produtivos materialmente como como Intennedlário. O reino da finalidade mcional se tmnsforma,
no trabalho improdutivo, mas socialmente necessário (intelectual, portanto, em importância dos intermediários de toda espécie.
científico). A fragmentação analitica é levada a tal ponto que a De fato, essa racionalidade decorre de uma extensão abusiva:
unidade (síntese) pretensamente proporcionada pela religiào, pela aquela dos procedimentos organizacionais e operações inerentes à
filosofia, pelo Estado, ou por determinada ciência promovida à empresa. Ela confia as tarefas parciais a coadjuvantes sociais que
posição dominante, superpõe-se artificialmente à pulverização das se esforçam para se afirmar e alcançar a autonomia: os buro­
"disciplinas", das leis e dos fatos. A organização geral, isto é, espaço­ cratas, os comerciantes, os publicistas e publicitários. Uma vez
temporal, da prática social tem a aparência de uma racionalidade que a regra é o desenraizamento generalizado e as separações,
completa porque é feita de ordens e coações. O espaço-tempo um mal-estar gemi acompanha a satisfação vinda da ideologia, do
homogêneo que essa prática se esforça para realizar e encerrar consumo, do predomínio do racional. Tudo torna-se calculável
é preenchido por uma multiplicidade de objetos, de atividades e previsível, quantificável e determinável. Tudo deve integmr-se
parcelares, de situações e de pessoas em situação, povoamento numa ordem (aparente e fictícia) fortalecida pelas coações. Tudo,
cuja coerência é apenas aparente, ainda que essa aparência salvo um resíduo de desordem e de liberdade, às vezes tolerado, às
se fortaleça através de sistematizações imperiosas. Da "cidade vezes perseguido com uma tenível fúria repressora. Trata-se, então,
industrial", mostramos o caráter suspeito. Ela existe? Nesse sentido, do período no qual a "história" se precipita, pondo a nu as parti­
sim. Noutro, não. Trata-se de uma cidade fantasma, uma sombra cularidades e aniquilando quem ou o que tinha prívilégio ou
de realidade urbana, uma análise espectral de elementos dispersos eminência, tanto obras como pessoas. Trata-se de uma época de
e exteriores reunidos pela coação. Várias lógicas se confrontam e guerras e revoluções que abortam no momento em que parecem
por vezes se chocam: a da mercadoria Oevada ao limite de tentar a culminar no culto do Estado, no fetichismo da prodUçãO, coroa­
organização da produção de acordo com o consumo); a do Estado mento, ele próprio, do fetichismo do dinheiro e da mercadoria.
e da lei; a da organização espacial (planejamento do território e
Finalmente advém a era do urbano. Aqui, nos limitaremos a
urbanismo); a do objeto; a da vida cotidiana; a que se pretende
mostrar, globalmente, que há um novo campo ainda ignorado

40 41
e desconhecido. Com esse novo período relativiza.se o que do espaço diferencial urbano (do tempo-espaço), introduzimos
passava por absoluto: a razão, a história, o Estado, o homem. conceitos novos, como tso-topia e betero-topia, completados
Diz-se, então, que essas entidades e fetiches morrem. Há algo pelo de u-topta. Denominamos Iso-topia um lugar (topos) e o
de verdadeiro nessa afirmação, mas os fetiches não morrem da que o envolve (vizinhança, arredores imediatos),' isto é, o que
mesma morte. A morte do "homem" só afeta aos filósofos. O faz um mesmo lugar. Se noutra parte existe um lugar homólogo
ou análogo, ele entra na isotopia. Entretanto, ao lado do "lugar
fim do Estado não pode ocorrer sem tragédia. Do mesmo modo
mesmo", há o lugar outro, ou o outro lugar. O que o torna outro?
como o fim da moral, o fim da famOia. O pensamento reflexivo
Uma diferença que o caracteriza, situando-o (situando-se) em
se deixa fascinar por tais dramas com mais freqüência; ele afasta
relação ao lugar inicialmente considerado. Trata-se da betero­
seus olhares do campo que se abre e que permanece cego. Para
Ii explorá-lo, para vê-lo, é necessário uma conversão que aban­
topia. Desde que se considere os ocupantes dos lugares, a dife­

,I done a ótica e a perspectiva anteriores. Nessa nova época, as


rença pode ir até o contraste fortemente caracterizado, e mesmo até
o conflito. Esses lugares são relativos uns aos outros no conjunto
!! i
diferenças são conhecidas e reconhecidas, consideradas, conce­
li I bidas, e ganham significados. Essas diferenças mentais e sociais,
urbano, o que supõe a existência de um elemento neutro, defi­

i nido aqui ou ali, que pode consistir na ruptura-sutura dos lugares


espaciais e temporais, destacadas da natureza, são retomadas
I justapostos: a rua, a praça, o cruzamento (de caminhos e percursos),
num plano mais elevado: o de um pensamento que considera
H\  todos os elementos. O pensamento urbanístico (não estamos
ou então o jardim, o parque. E agora há também o alhures, o
não-Iugar que não acontece e, entretanto, procura seu lugar. A
dizendo: o urbanismo), isto é, a reflexão acerca da sociedade

II
verticalidade, ou seja, a altura erigida não importa a que ponto a
urbana, reúne os dados estabelecidos e separados pela história. partir do plano horizontal, pode tornar-se a dimensão do alhures,
Sua fonte, sua origem, seu ponto forte não se encontram mais o lugar da ausência-presença: do divino; da potência; do meio­
I na empresa. Ele não pode colocar-se senão do ponto de vista fie.tício meio-real; do pensamento sublime. O mesmo ocorre com a
do encontro, da simultaneidade, da reunião, ou seja, dos traços profundidade subterriínea, verticalidade inversa. É evidente que,
específicos dafonna urbana. Conseqüentemente, ele reencontra, nesse sentido, o u-tópico nada tem em comum com o imaginário
num nível superior, numa outra escala, após a explosão (negaçào), abstrato. Ele é real. Ele está no comção desse real, a realidade
I'
:I a comunidade, a cidade. Ele recupera os conceitos centrais da
realidade anterior para restituí-los num contexto ampliado: formas,
urbana, que não está, ela própria, desprovida dessa semente.
No espaço urbano, o alhures está em toda parte, e em nenhuma

I
funções, estruturas urbanas. O que se constitui é um espaço-tempo parte. Foi assim desde que existiram cidades e que, ao lado dos
renovado, topologia distinta do espaço-tempo agrário (cíclico; que objetos e atos, emergiram situações, sobretudo as das pessoas
justapõe as particularidades locais), como do espaço-tempo industrial (indivíduos e grupos) vinculadas à divindade, ao poder, ao imagi­
(que tende para a homogeneidade, para a unidade racional e nário. Espaço paradoxal, onde o paradoxo converte-se no avesso
planificada das coações). O espaço-tempo urbano, desde que do cotidiano. Em toda parte a monumentalidade se difunde, se
não seja mais definido pela racionalidade industrial - por seu irradia, se condensa, se concentra. Um monumento vai além de
projeto de homogeneidade -, aparece como diferenciai: cada si próprio, de sua fachada (se tem uma), de seu espaço interno.
lugar e cada momento não tendo exisrência senão num conjunro,
À monumentalidade pertencem, em geral, a altura e a profun­
pelos conrrastes e oposições que o vinculam aos outros lugares
didade, a amplitude de um espaço que ultrapassa seus limites
e momentos, distinguindo-o. Esse espaço-tempo se define por
materiais. Não há nada, nas cidades antigas, que tenha escapado
propriedades unitárias (globais: constitutivas de conjuntos, de
ã monumentalidade, que era plural (pluralidade: edificios sagrados,
grupos em tomo de um centro, de centralidades diversas e espe­
edifícios políticos, palácios, lugares teatralizados de encontros,
cíficas), assim como por propriedades duais. Por exemplo: a rua
estádios etc.). Nesse sentido, o que não tem lugar - a divindade,
é uma ruptura-sutura. Melhor ainda, é preciso distinguir, sem as
a majestade, a realeza, a justiça, a liberdade, O pensamento - em
separar, a localização e a troca, a transferência das informações
toda parte encontra-se no seu lugar. Não sem contradições.
e o transporte dos bens materiais. Para definir tais propriedades

42
I'
I
43

,
Esse espaço urbano é contradição concreta. O estudo de sua
encontros, reuniões (não sem conflitos específicos), suplantariam
lógica e de suas propriedades formais conduz à análise dialética
a luta entre elementos separados tornados antinômicos. Nesse
de suas contradições. O centro urbano é preenchido até a
sentido, isso seria uma pós-história.
saturação; ele apodrece ou explode. Às vezes, invertendo seu
sentido, ele organiza em tomo de si o vazio, a raridade. Com mais Assim, o urbano, considerado como "campo", nào é conce­

freqüênda, ele supõe e propõe a concentraçã,? de tudo o que existe bido simplesmente como espaço vazio repleto de objetos. Se há

no mundo, na natureza, no cosmos: frutos da terra, produtos da cegueira, não se deve apenas ao fato de não se ver os objetos e

indústria, obras humanas, objetos e instrumentos, atas e situações, o espaço parecer vazio. O urbano? É um campo de tensões alta­
signos e símbolos. Em que ponto? Qualquer ponto pode tomar-se mente complexoj é uma virtualidade, um possível-impossível que
o foco, a convergência, o lugar privilegiado. De sorte que todo atrai para si o realizado, uma presença-ausência sempre renovada,
o espaço urbano carrega em si esse possível-impossível, sua sempre exigente. A cegueira consiste em não se ver a forma do
própria negação. De sorte que todo espaço urbano foi, é, e será, urbano, os vetares e tensões inerentes ao campo, sua lógica e
concentrado e poli(multl)cêntrico. A forma do espaço urbano seu movimento dia lético, a exigência imanente; no fato de s6
evoca e provoca essa concentração e essa dispersão: multidões, se ver coisas, operações, objetos (funcionais e/ou significantes
acumulações colossais, evacuações, ejeções súbitas. O urbano de uma maneira plenamente consumada). No que concerne ao
se defme como lugar onde as pessoas tropeçam umas nas outras, urbano, há uma dupla cegueira. Seu vazio e sua virtualidade são
encontram-se diante e num amontoado de objetos, entrelaçam-se ocultos pelo preenchimento. O fato desse preenchimento ter o
até não mais reconhecerem os fios de suas atividades, enovelam nome de urbanismo ofusca o cego mais cruelmente. Ademais,
suas situações de modo a engendrar situações imprevistas. Na sua o preenchimento advém da época que caminha para seu fim:
definição, esse espaço comporta um vetor nulo (virtualmente); a da industrialização, dos objetos e produtos, das operações e
anulação da distância obceca os ocupantes do espaço urbano. É técnicas da indústria. O urbano, velado, escapa ao pensamento
seu sonho, seu imaginário simbolizado, representado de múlti­ que se cega e se fIxa apenas nas luminosidades atrasadas em
plas maneiras: nos planos, no frenesi dos encontros e aproxi­ relação ao atual.
mações, na atração pela velocidade "até na cidade". É a u-topia
As descontinuidades (relativas) entre o industrial e o urbano
(real, concreta). Assim se realiza a superação do fechado e do
encontram-se, assim, mascaradas e ilusoriamente sedimentadas
aberto, do imediato e do mediato, da ordem próxima e da ordem
(assim como estiveram e freqüentemente ainda estão entre o rural
distante, numa realidade diferencial na qual esses termos não
e o industriaDo Caso não tivesse havido cegueira no que concerne
mais separam, mas se transformam em diferenças imanentes. Um
à indústria, às suas possibilidades e exigências, ser-lhe-ia permi­
pensamento a caminho da unidade concreta efetua a retomada
tido invadir o mundo, devastar a natureza, semear o planeta de
(seletiva) das particularidades, promovidas à posiçào de dife­
horrores e de feiúras numa história sangrenta? Ter-se-ia confiado
renças: locais, regionais, nacionais - étnicas, lingüísticas - éticas,
sem limites em sua racionalidade? Tais considerações parecerão
estéticas etc. Apesar dos esforços da homogeneização pela técnica,
utópicas. Mas elas são utópicas! E, no entanto, o que pensaram,
apesar da constituição de isotopias arbitrárias, ou seja, de segrega­
o que projetaram, Saint-Simon, de início, e Marx, em seguida,
ções e separações, nenhum lugar urbano é idêntico a outro. Esta
senão dominare orientaro processo de industrialização? Para eles
análise pode parecer formal. Com efeito, ela corresponde a Nova
Iorque, a Tóquio, assim como a Paris. É a sociedade urbana que não se tratava de compreender um processo cego deixando-o na

ela quer esclarecer, com sua dialética imanente, que prolonga, cegueira, nem de se limitar a um simples esclarecimento. Hoje,

num plano novo, o passado e o futuro. Com esse pensamento a própria realidade urbana, com sua problemática e sua prática,

unitário e diferencial, talvez penetremos num período que não é encontra-se oculta, substituída por representações (ideológicas e

mais aquele da história, onde particularidades se enfrentavam, institucionais) que têm o nome de urbanismo. Este tapa o fosso,
onde o homogêneo lutava contra o heterogêneo. Agrupamentos, preenche o vào. Tema ao qual teremos que retornar..

44
45
A confusão entre o industrial (prática e teoria, sejam capita­ contraditórias: revoluções e autoritarismos. Ambos os processos
listas ou socialistas) e o urbano leva, numa hierarquia de ações, atuando nos países ditos socialistas. Essas reformas e revoluções

a subordinar este àquele, considerando-o como um efeito, um nascidas do processo de industrialização confundimm-se, carac­
resultado, ou um meio. Tal confusão tcm graves conseqüências. terizando o período tenninal.

Dela resulta um pseudoconceito do urbano, a saber, o urba­ Os sintomas da passagem ao período urbano já se manifestam
nismo, isto é, aplicação da racionalidade industrial e evacuação com força. Um paternalismo urbano, ainda velado pelas figuras
da racionalidade urbana. das idades precedentes, causa danos; os "notáveis" urbanos que

A transição, difícil, é portanto metodológica e teórica, tanto exercem a autoridade ornamentam-se com o duplo prestígio do
Pai e do Capitão de indústria. A reforma urbana, que resgaUria o
e mais que empírica.
solo das servidões devidas ã propriedade privada (e por conseguinte
A cada era correspondem formas específicas de autoritarismo,
da especulação) já tem um alcance revolucionário. Continentes
de reformismo, de revolução. Poder-se-ia igualmente dizer que
inteiros passam das formas anteriores de ação revolucionária à
cada período, cada era ou "esfera", teve suas próprias alienações e
guerrilha urbana, aos objetivos políticos concernentes ã vida e ã
desalienações, confrontando-se num processo próprio a cada um.
organização urbanas (sem poder omitir nem resolver, por isso,
No primeiro campo, na esfera da agricultura, vimos historica­
os problemas da organização industrial e da agricultura que se
mente crescerem e florescerem a [amma e a sociedade patriarcais
superpõem). Começa o período das revoluções urbanas.
(da qual o escravismo pode passar por um desenvolvimento),
depois, a familia e as relações sociais da feudalidade (ao menos Assim se confirma a concepção, no tempo histórico, dos três
campos sucessivos. Pode-se acrescentar que o mais novo. o que
na Europa, onde a feudalidade se esubelece numa base territorial,
o senhor sendo mestre "eminente" de um feudo, chefe de uma emerge, age simultaneamente como catalisador e analisador

ou de várias aldeias). Com a transformação da estrutura agrária, do campo, ou melhor, dos campos preexistentes (o agrário e o

em geral no sentido de uma concentração da propriedade, a industrial). Ele precisa e precipita os traços difusos e confusos

história retém as lembranças de inúmeros movimentos revolucio­ destes. Esclarece os conflitos nào resolvidos, as contradições,
nários: revolus locais ou generalizadas, jacqueries, banditismo, numa reativação notável (por exemplo, nos países da América do
bandos de "justiciers" animados por ideologias diversas, quase Sul). Assim. a ascensão da industrialização, com novas relações
sempre místicas. Enfim, a concentração da propriedade nas mãos de produção (capitalisus) revelou as características da sociedade
de senhores feudais associados ou rivais, depois nas de uma camponesa (e feudal) aos que as "'viviam" I"Prrt as conhecer, relações
burguesia ela própria associada aos senhores feudais, ou deles veladas no seio de uma turva transparência.
rival, engendrou projetos de refonna agrária. A "fome de terra" A hierarquia dessa sociedade (vivida como laços de parentesco e
e o programa visando uma vasta transferência de propriedade de vizinhança), a exploração (vivida como laço de proteção, como
impulsionaram movimentos revolucionários, transformando a subordinação da comunidade ao senhor "justiceiro") apareceram
sociedade inteira: revolução francesa de 1789, revolução russa como uis. Do mesmo modo, hoje o urbano revela o industrial,
de 1917, revoluções chinesa e cubana. que aparece como hierarquia reforçada por uma refinada explo­
No que concerne ao período da industrialização, ele fez nascer ração. Os centros (urbanos) de decisão tomam legíveis, no terreno,
um paternalismo do chefe de empresa (patrão), deveras conhe­ essas relações complexas. Eles as projeum no solo. A atividade
cido para que nele nos detenhamos. O que aconteceu, e ainda organizadora dos "decisores", apoiada pelos que detêm e gerem
acontece, é a superposição e consolidação do patriarcalismo os meios de produção, opõe-se nitidamente ã passividade dos
(camponês) e do paternalismo (industrial) para engendrar a figura "sujeitos" que aceitam essa dominação. Poder-se-ia acrescentar
do Chefe de Estado perfeito. A industrialização, tendo exigências (mas isso mereceria uma longa exposição) que as sociedades
I muito foltes (acumulação do capiul, utilização de todos os recursos de
um país, organização planificada estendendo a racionalidade empre­
que não atravessaram uma crise quando da industrialização sem
dúvida irão conhecê-la no curso da urbanização, as duas ordens de
sarial ao conjunto de um país), leva a conseqüências políticas

46 47

BibJiot,,l(),! rTjt 1'arq\bb k!r.é ,eQThZCi dr; OJit.";"'i


C.U':1 .-.; ::;I;:'i"(,}
causas ou de razões podendo se superporem, se associarem, ou c A p T U L O I I I
se desencontrarem, uma em relação à outra. Com esses conceitos,
poder-se-ia estudar a situação atual dos Estados Unidos, da
América do Sul, da Ásia não "socialista" etc.
No curso desse vasto processo de transformação, o espaço
revela sua natureza, aquilo que ele sempre foi: a) um espaço
político, lugar e objeto das estratégias; b) uma projeção do tempo, o feNÔMeNO UANO
reagindo sobre ele e permitindo dominá-lo, e, por conseguinte,
atualmente, explorá-lo até a morte. O que anuncia a libertação do
tempo-espaço. Após ter apresentado o urbano (não dizemos mais: a cidade),
imagens e conceito adquirindo nitidez, virtualidade ascendente,
vamos analisar o fenômeno tal como ele se oferece ao conheci­
mento que estuda o "real". (As aspas na palavra "real" indicam
uma reserva e uma precisão: o possível faz parte do real, lhe dá
o sentido, ou seja, a direção e a orientação, a via aberta para o
horizonte.)

Atualmente o fenômeno urbano surpreende por sua enormi­


dade; sua complexidade ultrapassa os meios do conhecimento
e os instrumentos da ação prática. Ele toma quase evidente a
teoria da complexificação, segundo a qual os fenômenos sociais
vão de uma certa complexidade (relativa) a uma complexidade
maior. Teoria que nasce nas ciências ditas "da natureza" e na
teoria geral da informação, mas que se desloca para a realidade
social e seu conhecimento. As relações sociais nunca são simples,
mesmo numa sociedade arcaica. O esquema cartesiano da simpli­
cidade originária e da complicação obtida pela combinação dos
elementos simples deve ser abandonado. A teoria da complexi­
ficação pode parecer filosófica, e mesmo idealista (ideológica).
De fato, ela se apóia em múltiplos argumentos científicos. Os
"elementos" encontrados pela análise em toda realidade, e que
constituem sua orderp. interna (sua consistência, sua coerência),
apresentam-se em outros lugares numa desordem que fornece
uma informação no qu'e concerne à redundância (repetição da
ordem, do agrupamento já constituído e constatado das unidades
discretas ou elementos inventariados). Quem diz informação,
diz surpresa, variedade crescente, desordem da qual nasce uma
nova inteligibilidade, uma nova redundância, uma outra ordem
momentânea e mais complexa.1

O fenômeno urbano depende, primeiro, dos métodos descri­


tivos, eles próprios variados. A ecologia descreve o "habitat", as
áreas habitadas, as unidades de vizinhança, as formas de relações

48

Você também pode gostar