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COHN, Gabriel. Indiferença, nova forma de barbárie. In: NOVAES, Adaulto (org.).

INDIFERENÇA, NOVA FORMA DE BARBÁRIE


Civilização e barbárie. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 81-89.

(Observação: a quebra de páginas está conforme o livro)

Gabriel Cohn

O Messias só vem quando não é mais esperado, lembra Kafka. Em outro


registro, e a partir de outra grande matriz civilizatória do Ocidente, Kavafis
põe na boca dos habitantes da cidade a pergunta: os bárbaros, onde estão eles,
que poderiam nos salvar? Teimosa esperança no que só virá quando se tiver
aprendido a não esperar a redenção transcendente, por um lado; desesperança e
entrega total à ordem vinda de fora, pelo outro. Há algo que permita pensar
esse descompasso sem depositar todo o peso numa ideia tão frágil como a de
esperança? Talvez a referência contida em Kavafis à intrincada teia de relações
entre civilizados de dentro e os bárbaros de fora, com todas as suas
permutações de identidades e localizações, ofereça uma pista. Pois são os não-
bárbaros (posto que capazes de se diferenciar dos bárbaros) que mantêm a
iniciativa de reservar para si a condição de civilizados, por mais que
reconheçam que os outros lhes são indispensáveis. Convém, pois, começar
pelo lado da civilização.
Para retomar a ideia de civilização, cumpre primeiro recuperar
referências nela contidas que foram soterradas pela distinção que em certa
época se construiu, entre "civilização" e "cultura". Em boa medida isso
ocorreu como resposta conservadora aos ímpetos progressistas e
evolucionistas dos que apostavam numa sequência ascendente de níveis cada
vez mais avançados de organização da vida social, entendidos justamente
como níveis de civilização. Atualmente devem ser poucos os defensores de
uma irreversível evolução civilizatória. Mas a resposta conservadora a essa
concepção produziu efeitos perversos, ao corromper o termo pela raiz. Nessa
perspectiva, civilização passou a significar a mera aquisição e manutenção de
recursos técnicos e de destreza, reservando-se o termo cultura para algo mais
elevado, que seria (p.81)
a capacidade de infundir sentido nessas habilidades em princípio acessíveis a da "dialética do tato". O termo, porém, poderia muito bem ser traduzido por
todos. Numa formulação bem conhecida, civilização seria inventar os talheres, civilidade. Pois é disso que se trata: para além do refinamento, ou do gosto, a
e cultura consistiria em saber servir-se deles de modo conveniente (conforme civilidade manifesta-se, no texto de Adorno (sobretudo quando lido junto com
regras sociais específicas, portanto). A manobra é clara. Introduz-se uma os demais), como, antes de mais nada, respeito ao outro, exercício espontâneo
cunha na junção da ideia de civilização com a de cultura, para valorizar a e autônomo da dignidade humana sem imperativo categórico, com bases
segunda em detrimento da primeira. Com isso desloca-se o foco do universal históricas materiais. É idéia negativa: não reafirma algo já dado, mas assinala
(ou tendente ao universal) para o particular, restrito, peculiar a este ou aquele os limites de sua realização e evoca uma possibilidade histórica. Tal como
povo ou, de preferência, a este ou aquele grupo social. Isso tem uma despontou historicamente, a civilidade instala-se em espaço singular: aquele
consequência muito importante do ponto de vista do meu argumento. É que, ao em que a individualidade burguesa emergente se combina com os fracos
destruir-se por essa via o contraste entre "civilização" e "barbárie" que tanto remanescentes das convenções aristocráticas legadas pelo ancien régime em
importava aos velhos evolucionistas (para quem ele indicava diferenças seu ocaso. Daí a sua dialética, expressa no jogo entre individualidade e
remediáveis entre estágios de desenvolvimento), insinuava-se a idéia de que a convenção, em que nenhum dos termos aparece desencadeado, solto. Nem
mera civilização, sem o corretivo restritivo – e historicamente contingente – da pura auto-referência da individualidade nem convenção opressiva, pois: mas
cultura, abrigaria ela mesma a barbárie. Isso à primeira vista pode parecer uma ambas definindo-se e limitando-se mutuamente. A civilidade quase dispensa a
concepção crítica um tanto "frankfurtiana", que assinalaria o germe da barbárie convenção e quase dispensa o móvel interno: joga com ambos. É o momento,
no próprio interior da civilização que se apresenta como a mais avançada. Mas raro e fugidio, do encontro (da "reconciliação") entre o compromisso externo e
não é isso. A atitude envolvida não é crítica: é de pura e simples o impulso interno, entre a renúncia e a plenitude. Como fazê-lo perdurar,
desqualificação. A tarefa que temos, hoje, envolve justamente retomar a cobrar a promesse de civilisation sem a qual não há promesse de bonheur?
reflexão crítica tanto da civilização como da barbárie (e, de passagem, da Pois no momento histórico presente a civilidade perdeu substância. E o fez, diz
cultura), para surpreender os limites e também o potencial não realizado de Adorno, porque se tornou "emancipada", sem chão histórico, privada da
todos eles – incluindo a barbárie, que também tem o seu momento de verdade dialética da interpenetração tensa da individualidade e da convenção que
(com o quê, aí sim, estaríamos na linha dos mestres de Frankfurt). Trata-se de estava na sua origem. Com isso a convenção perde sua base social substancial
recuperar o complexo significativo que anima a idéia de civilização e a torna e a individualidade, solta e sem referência, gira no vazio da ideologia; com
inseparável da idéia de cultura, entendida esta na sua acepção mais plena, prejuízo para ambas.
como cultivo da humanidade, como formação. Vida civil, livre convivência na A civilidade é um modo de expressão da experiência social: exprime um
cidade, cidadania e, indo mais fundo na etimologia, lar, abrigo, local de modo de agir, de sentir, de avaliar. É, portanto, um modo de exercício da
repouso em paz – tudo isso faz parte desse complexo, assinalando o grande cultura no plano das relações sociais. Vista por esse ângulo, a cultura revela-se
tema de uma sociabilidade que permita a todos estarem chez soi. naquilo que tem de mais fundo, como tradução da experiência social no
Fiz referência, acima, aos mestres frankfurtianos da teoria crítica da registro significativo. Para além, e mais fundo, de constituir um complexo de
sociedade. Pois é um deles, Theodor W. Adorno, que oferece os elementos normas, valores e regras de conduta, a cultura é um conjunto de padrões de
para localizar o núcleo de significados que permitirá identificar, nas condições interpretação da experiência. Mais do que molde rígido, é travessia constante
contemporâneas, tanto a promessa contida na ideia de civilização como a da fronteira entre as sensações brutas e os significados compartilhados. Não há
forma que nelas assume a sua inseparável ameaça, contida na ideia de barbárie. como, pois, contrapor civilização e cultura, nem mesmo separá-las; e, no
O texto de Adorno que pretendo usar não trata diretamente de civilização, mas mundo moderno, o elo que as liga é a civilidade. A civilização envolve,
daquilo que se poderia entender como sua expressão mais plena, que se traduz primeiro, a unidade tensa entre conteúdos materiais da experiência
numa forma peculiar de conduta dos homens entre si. Num dos pequenos socialmente compartilhada e os padrões de interpretação que lhe dão sentido.
ensaios e antimáximas de seu livro Minima moralia, Adorno fala do tato – Depois, configura a unidade maior, entre a civilidade no plano social e a
mais precisamente, (p.82) cidadania no plano político; entendida esta na sua dupla dimensão, (p.83)
também inseparável, de exercício de direitos (que são universais) e de a barbárie é a invasão da nossa casa pelo estranho – mesmo quando é para nos
participação na coisa pública pelo exercício de virtudes civis (que são salvar da nossa civilização, como lembra Kavafis. Nisso, aliás, exprime-se o
contextuais). lado sombrio da associação entre civilização e morada, mundo habitável. Esta
Por que é central a civilidade? Porque abre a possibilidade da coisa mais é, até hoje, a óptica conservadora (os franceses seguidores de Le Pen que o
difícil de todas, que é a orientação da experiência social pelo prisma da digam, entre tantos outros). Nessa perspectiva, a civilização é algo a ser
consideração pelo outro, naquilo que ele tem de universalmente válido. preservado contra a ameaça externa, é algo a ser cercado, blindado. Não há
Civilidade e humanidade são o mesmo, escreve Adorno. Trata-se de idéia como evitar, nesse passo, que ocorra à mente uma raiz do termo pólis, que é
diferenciadora: a consideração pela humanidade do outro não é abstrata, mas muro, limite; o que mais uma vez nos recorda a íntima associação da noção de
passa pela diferença que o individualiza. É, pois, o oposto da indiferença. Mas civilização com o medo, que é transferido para fora, para os de fora. (Afinal,
também não é mera diferença, distinção solta, desencadeada: sua referência é nossos conceitos trazem todos eles as marcas de múltiplas incrustações histó-
universal, como possibilidade a ser cobrada como promessa, na figura de uma ricas, e não há como tentar limpá-los, nem cabe esse gesto; mas cabe, sim,
humanidade unida nas suas particularidades, reconciliada. Por não ser mero saber discernir suas muitas camadas indutoras de interpretações tácitas).
relativismo, que fragmenta diferenças recolhidas cada qual no seu mundo Ocorre que, seguindo-se essa linha de argumentação, logo concluiríamos que a
fechado e paradoxalmente acaba homogeneizando tudo – o onde só há idéia de barbárie é uma construção que não resiste à mudança de perspectiva
diferenças o resultado é o indiferenciado – o não dispensa a divergência e gerada pela consideração do outro como legitimamente diferente e merecedor
converte o consenso numa tarefa. Civilização e cultura são dimensões insepa- de respeito como tal. E, prosseguindo nessa mesma linha, diríamos que esse
ráveis do processo histórico, como figuras do universal e do particular. Trata- gesto de alçar o outro à condição de diferente mas igual é o gesto civilizado
se de encontrar os elos entre ambas, não de identificá-las ou contrapô-las. Na por excelência. Mas isso não seria suficiente. Como a nova direita européia
dimensão da civilização o elo é dado pela civilidade; na dimensão da cultura, descobriu há bom tempo e já foi demonstrado por vários ângulos pelos seus
pela formação. Em ambos os casos, trata-se de imprimir forma à experiência: críticos, o tão decantado respeito pelo outro não rompe o círculo perverso do
forma social num caso, forma significativa, no outro. confronto do particular com o particular, em que cada qual fica do seu lado na
A civilidade, como exercício, e a formação, como aprendizado, sua irredutível diferença. Claro que somos de fato diferentes. Nisso reside o
constituem, na sua unidade, o oposto da barbárie. Ambas remetem ao tema momento de verdade da barbárie. A sua falsidade consiste precisamente em
central da responsabilidade, que assume, no plano da civilidade, a forma do tornar absoluto esse seu momento de verdade. (Todo relativismo repousa em
cuidado com o outro. A atenção ao outro, que está presente em Adorno como algum absoluto não questionado.) Civilização, para fazer sentido, remete ao
núcleo mesmo da civilidade, e que, como cuidado, care, é contribuição universal. É só neste que se pode romper, pela descoberta dos laços que
importante do pensamento feminista à reflexão social, é ponto nodal na atravessam o conjunto todo, a casca opaca das peculiaridades tornadas
articulação da referência particular (este outro ser, que aqui se encontra) e a absolutas e externas umas às outras. O jogo das peculiaridades soltas ainda é
referência universal mais plena (os homens só se tornarão humanos quando da ordem da barbárie. Em primeiro lugar, naquilo que aqui nos interessa,
deixarem de atormentar os animais, dizia Horkheimer). Isso envolve a questão porque nesse plano não é possível evitar que o respeito pelo outro deslize
fundamental da articulação dos direitos universais com as responsabilidades rumo à indiferença pelo outro. A aceitação generalizada da diferença é a
locais. No que nos importa aqui, a responsabilidade como instância da expressão exata da indiferença. A barbárie é, antes de mais nada, uma forma
civilização representa, sobretudo, a oposição à indiferença. E, com isso, perversa de universalização: tudo o que não se identifica com a peculiaridade
chegamos à questão da barbárie. Pois o que se defende aqui é que a dada é resto indiferenciado, irrelevante, indiferente, portanto. Em contraste, a
indiferença é a forma contemporânea da barbárie. universalização civilizada necessariamente encerra o particular como objeto de
Bem sabemos como o termo bárbaro traz uma carga peculiar desde a consideração, não é indiscriminadamente abstrata.
origem: o estranho, o que não fala (a nossa língua), o inacessível, o que tem Meu argumento, pois, é precisamente este: que a face contemporânea da
que ser mantido longe, ou submetido. Nessa concepção, (p.84) barbárie se exprime na indiferença. Mas há um segundo passo (p.85)
nesse argumento: é que essa associação entre barbárie e indiferença é No modelo clássico do mercado concorrencial, ações singulares de
fundamental porque a indiferença é um traço estrutural básico da forma de agentes com alcance limitado equilibravam-se mutuamente, dispensando toda
organização das sociedades que corresponde ao modo contemporâneo de intervenção. O modelo pode ter sido uma aproximação grosseira, mas serve
operação do capitalismo. A idéia é que a lógica do funcionamento do para contraste com uma situação como a atual, em que as ondas de choque
intercâmbio intra e internacional no interior do sistema "global" que se vem criadas pelas ações de alguns poucos agentes literalmente monstruosos (porque
desenhando nas últimas décadas envolve um aspecto da maior importância. É não só desconhecem a força que têm como não se importam com isso quando
que o aumento de capacidade de decisão de um número restrito de agentes agem) obrigam a repensar outra categoria central do pensamento moderno: a
econômicos que operam em todos os quadrantes planetários gera efeitos em de controle. Claro que os grandes agentes decisivos têm, talvez mais do que
grande escala marcados pela circunstância de escaparem ao controle daqueles nunca, controle sobre seus objetivos imediatos e sobre o formato
que os desencadearam. Em conseqüência, são em grande medida organizacional mais adequado para atingi-los. O que acontece é que a escala·
indeterminados. O aspecto fundamental disso é que essa indeterminação é de operações e a complexidade de seus ambientes se tornaram de tal ordem
assimilada sem grandes problemas por esses agentes dotados de capacidade de que os efeitos secundários (diretos, indiretos e combinados ou sinérgicos)
decisão altamente concentrada. Isso porque eles se encontram em condição de extravasam o controle, não só pela natureza que assumem mas e este é o
avaliar a propagação dos efeitos de seus atos como irrelevante para seus ponto decisivo porque não mais importam a quem os desencadeou. Pode
objetivos pontuais. parecer pouco, mas há uma diferença enorme entre o agente que conhece os
Nessas circunstâncias, altera-se o próprio significado do termo decisão. seus limites de intervenção eficaz e se preocupa com isso, quando nada para
Na origem ele se referia a um ato de um agente senhor de sua vontade que, superá-los numa busca implacável de controle sobre o mundo, e o agente a
numa situação de crise (isto é, de paralisia, por extremar-se a distância entre as quem simplesmente não importa o que decorre de suas ações para além dos
opções disponíveis), intervém para criar uma nova situação, uma nova limites de seus objetivos imediatos. Na sua acepção primitiva, a idéia de
configuração, no limite, uma nova legalidade. Nesse sentido, decisão não se controle envolvia uma responsabilidade do agente, uma capacidade de resposta
confunde com a escolha entre alternativas, pois é mais propriamente a criação às conseqüências de seus atos, sem a qual perderia sentido a idéia de
de novas alternativas. A oportunidade importa para a decisão, sem dúvida, mas organização. É um pouco por isso, também, que o programa socialista clássico,
a orientação básica dirige-se para o controle da situação, da maneira mais sobretudo na sua versão revolucionária, vai perdendo fôlego ao longo desse
integral e no prazo mais longo possível. Não é mais este o caso, na etapa período. Pois não há como gerar, pela capacidade de resposta à ação de um
contemporânea. A palavra de ordem é mobilidade, rapidez, sobretudo. Decisão adversário que necessariamente incorpora as regras do sistema em que age,
deixa de ser um sinal da virtu do agente que depois busca conservar o objetivo formas de organização que permitam arrebatar seu controle dos processos
conquistado: passa a ser a capacidade de detectar num átimo a oportunidade da quando a situação em que atua o levou a abrir mão da racionalidade
fortuna fugaz. Isso não é de hoje, mas cada vez mais os agentes do capital organizadora e controladora que permitiria de algum modo prever seus atos. O
percebem que seus interesses não mais repousam na capacidade de explorar novo ambiente combina de modo peculiar a concentração de capacidade de
produtivamente força de trabalho (isto é subsidiário), mas na incorporação de decisão com o caráter aparentemente errático das ações. Eis por que faz
técnicas organizacionais e de planejamento que lhes permitam, num mundo sentido sugerir que a ênfase na dimensão da organização é do passado,
globalizado e hipercomplexo, concentrar a atenção, em cada momento, substituída como vem sendo pela ênfase na mobilidade. Não é um mero jogo
estritamente nas oportunidades de ganho imediato que cintilam aqui e acolá. de palavras afirmar que as novas condições históricas vão substituindo a pos-
Não se trata mais de buscar eliminar, ou de neutralizar, os componentes sibilidade da organização responsável pelo exercício da mobilidade
irracionais (vale dizer, não controláveis) do ambiente em que se age, mas oportunista.
precisamente de ignorá-los – não por negligência, mas por exigência de É nessa linha de reflexão que se pode sustentar que a atual lógica
funcionamento de um sistema hipercomplexo. Nitidez na escolha do alvo, econômica dominante está centrada naquilo que se poderia denominar
mobilidade e rapidez na decisão são os imperativos da ação eficaz. (p.86) indiferença estrutural, que envolve a irresponsabilidade das agências (p.87)
decisivas (empresas, mas também, em escala crescente, Estados nacionais) em É verdade que, mesmo quando reduzida à sua expressão mais simples, a
relação a tudo que exceda a órbita imediata de sua ação. Nesse sentido, democracia não é pouco, no âmbito institucional dos processos políticos. É
desgastam-se os laços entre processos econômicos e poder político, e acaba igualmente verdade, porém, que não é suficiente, quando se fala de civilização;
fazendo sentido a imagem errônea quanto ao resto da crescente perda de pois não faltam atos de barbárie plena (com todas as marcas da indiferença
substância do Estado como instituição classicamente associada ao âmbito aqui apontadas, só que rebatidas sobre o plano da violência pura) praticados
nacional. Não insistirei aqui no radical economicismo que anima a atual ordem por nações beneficiadas pelo funcionamento dos dispositivos democráticos,
dominante, nem na desqualificação da dimensão política nisso envolvida. quando não em nome deles. Não é difícil enunciar a tarefa urgente que se
Outros, como Francisco de Oliveira, já o fizeram vigorosamente. Importa, apresenta: a de reunir numa unidade forte a democracia política, a civilidade
neste passo, assinalar a importância que assume, no mundo cujos contornos se social e a responsabilidade moral. Difícil é não esmorecer diante da inevitável
vêm desenhando, a contínua criação de áreas de indiferença, por efeito desse constatação de que, por urgente que seja, é tarefa para décadas, ou gerações.
paradoxo do alcance global das decisões: à multiplicação de focos de atenção Não há como acelerar o processo de emancipação plena da humanidade (pois é
pontuais responde o aprofundamento da indiferença estrutural. A dificuldade disso que se trata, não menos). Mas há como, e por quê, ampliar aqui e agora
da questão só aumenta quando consideramos que indiferença não envolve os espaços para que se ouça a voz da razão. Pois esta, como diria Freud, é
necessariamente ausência de mecanismos seletivos. Pelo contrário, eles baixa, mas persistente. (p. 89)
ganham papel decisivo. O termo decisivo é intencional neste ponto: alude à
circunstância de que, na forma de organização das sociedades e de seu
conjunto, vai ganhando corpo a substituição da decisão de agentes
identificáveis por operações seletivas incorporadas à rotina de sistemas
complexos. São essas operações que definem o que é relevante ou não, o que
merece atenção e o que cai na área de indiferença. Trata-se de um modo de dar
conta da impossibilidade da decisão por agência responsável, posto que
nenhum agente, ou conjunto de agentes (classe, por exemplo), tem como
aspirar à visão de conjunto das ações possíveis e dos efeitos previsíveis, sem a
qual a ação deixa de ser a expressão de uma capacidade de iniciativa para ser
mera resposta, reação a demandas e estímulos.
Insiste-se com frequência no caráter "excludente" das sociedades que se
vão formando na nova ordem. Mas é preciso considerar que a rigor não se trata
de exclusão. O processo não mais se dá em termos da natureza inconveniente
de tal ou qual grupo social bem definido, mas incide sobre setores inteiros das
sociedades, não porque sejam inaceitáveis (minorias étnicas, por exemplo) mas
simplesmente porque são irrelevantes. Essa é a contra partida social da relação
entre o poder dos grandes agentes econômicos de decisão e o desinteresse
destes pelos desdobramentos das conseqüências de seus atos. Em ambos os
casos, áreas inteiras do terreno em que se opera se tornam irrelevantes, insig-
nificantes, se convertem em áreas de indiferença. Por outro lado, a con-
trapartida política disso é a redução da democracia à sua dimensão mínima, de
método de escolha de governantes no interior do mercado político. (p.88)

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