Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
14 du r va l m u n i z de a l b u q u e r q u e j ú n io r
buscam salvar o que pretensamente está morrendo, congelan-
do-o através do registro em cd-rom, em dvd, em cd, em fo-
tografi as digitais, etc. Poderíamos dizer que estamos diante de
uma nova forma de empalhamento ou de mumificação, uma
nova maneira de museologizar e folclorizar as produções cul-
turais populares ou de grupos étnicos, sociais ou culturais es-
pecíficos. Chegará um momento em que possivelmente estas
manifestações terão desaparecido entre seus produtores tradi-
cionais, por uma série de motivos, entre eles o próprio desin-
vestimento de sentido em torno desta prática, mas poderemos
sentar em nossa poltrona na sala e assistir saudosos e nostál-
gicos estes rituais, estas festas, estes cantos, fabricados, feitos
especialmente para inglês ver e digitalizar.
Longe de mim estar negando a importância do registro des-
tas atividades culturais, destas formas e matérias de expressão,
mas daí a achar que isto é uma forma de preservar sua pretensa
lógica tradicional, seu pretenso sentido primitivo e autêntico,
vai uma longa distância. Convidar os Xavantes para dançar o
toré e fi lmá-lo achando que assim o resgata, é não compreender
que o que se faz ali é fabricá-lo, reinventá-lo, como aliás fazem
os próprios índios, ao longo dos anos.
Pensar o registro como salvação de uma forma pretensa-
mente original do rito, salvar a sua autenticidade, garantir a sua
perpetuação sem modificações, é operar justamente a partir da
lógica da identidade, de que há a possibilidade de que os even-
tos culturais se repitam no tempo sem mudanças de sentido, de
significado, sem deslocamentos nos próprios arranjos dos ritu-
ais, dos objetos, dos motivos, dos temas, dos próprios agentes
e de lugares onde se realiza. A idéia de resgate traz embutido
o mito da pureza das origens, de um tempo onde o aconteci-
mento era idêntico a si mesmo, em que o evento é semelhança
absoluta, identidade consigo mesmo, quando isto não existe no
campo cultural ou em qualquer aspecto das práticas humanas,
16 du r va l m u n i z de a l b u q u e r q u e j ú n io r
as dominações, as hegemonias, as trocas, as antropofagias, as
relações enfi m. O que chamamos de cultura, conceito que por
seu uso no singular já demonstra sua prisão à lógica da identi-
dade, é na verdade um conjunto múltiplo e multidirecional de
fluxos de sentido, de matérias e formas de expressão que cir-
culam permanentemente, que nunca respeitaram fronteiras,
que sempre carregam em si a potência do diferente, do cria-
tivo, do inventivo, da irrupção, do acasalamento. Na verdade
nunca temos cultura: temos trajetórias culturais, fluxos cul-
turais, relações culturais, redes culturais, conexões culturais,
confl itos, lutas culturais. As classes ou grupos sociais hege-
mônicos é que, muitas vezes, querem fazer de suas manifes-
tações culturais a cultura.
Outra noção recorrente é a de “preservação”, que parte de
outro pressuposto identitário que é o da possibilidade de que
qualquer realidade natural ou cultural possa permanecer sem
mudanças ao longo do tempo. Ao instituir-se uma reserva flo-
restal pretensamente se está garantindo a preservação da flo-
resta, ou seja, que ela continue sendo o que ela é desde o prin-
cípio. Mas o que ela é desde o princípio é um arranjo ecológico,
um bioma em permanente estágio de mutação, motivada pelas
alterações, com temporalidades diversas, nos arranjos entre
seus múltiplos componentes. O que preservamos é justamen-
te a possibilidade daquele bioma mudar, continuar em trans-
formação. O mesmo ocorre com qualquer prática cultural que
se queira preservar, o que preservamos é sua possibilidade de
existir e, portanto, de diferir e de divergir.
Preservar não é congelar numa pose uma certa temporalidade.
Quando se tenta preservar congelando o tempo, como em mui-
tas ocasiões se deu com o chamado patrimônio histórico, o que se
teve foi sua progressiva ruína, porque a mudança no tempo con-
tinuou a fazer o seu trabalho de corrosão. Aqueles elementos de
patrimônio que não foram reinvestidos de significado para a so-
18 du r va l m u n i z de a l b u q u e r q u e j ú n io r
sua cultura. Como foi possível misturar e identificar, se a mis-
tura é a dissolução dos idênticos e a produção de um terceiro
termo, uma terceira possibilidade, sempre indefi nida, sempre
instável, sempre em mutação, sempre potencialmente outra?
Como a chamada cultura brasileira, se é que isto existe assim
como unidade, o que duvido, pois cultura brasileira é um con-
ceito que precisa ser sempre explicado e relatado novamente,
que precisa sempre que se diga a que se refere e não cessa de se
redefi nir, se defi ne pela mistura, ele se defi niria pela indefi ni-
ção. Diz-se com orgulho que somos uma terra que acolhe to-
dos os estrangeiros, onde se fusionaram formas e matérias de
expressão trazidas por desterrados de todos os quadrantes, por
migrantes, por imigrantes, nomadismos culturais de todas as
bandeiras, pelo desterro forçado de milhares de culturas afri-
canas, pela destruição sistemática de várias formas culturais
indígenas, também já produtos de migrações e trocas culturais
seculares e, estranhamente, isto nos daria nossa identidade.
Ou seja, nossa identidade é a de sermos estrangeiros em nossa
própria terra, é a de sermos estranhos a esse pretenso “nós”
que seria a nação, produção imaginada e imaginária, que nem
por isso deixa de existir como concretude.
A noções de “fusão” ou de “sincretismo cultural” devem ser
também problematizadas, por trazerem consigo a idéia de que
a mistura pode estabelecer o desaparecimento completo das
marcas anteriores do que foi misturado ou de que esta mistura
se dá de forma harmoniosa. Fundir-se não é superar a diferença
interna, é afi rmá-la permanentemente, é afi rmá-la como con-
dição mesma da fusão. O sincretismo não é o desaparecimento
da tensão entre o que se mistura, é a afi rmação do confl ito e da
luta como a própria possibilidade do que aparece sincretizado.
Ao invés desta tensão ser expulsa para um pretenso exterior ou
para um momento anterior do fusionado ou do sincretizado,
ela é afi rmada como elemento imanente desta forma do ser.
20 du r va l m u n i z de a l b u q u e r q u e j ú n io r
ainda falar de cultura no singular, quando vivemos afi rmando
que o que nos orgulha como brasileiros e como produtores cul-
turais no Brasil – aliás quem não é produtor cultural? – é o fato
de que somos diversos, múltiplos, temos uma enorme riqueza
cultural, clichês dos clichês. Se somos ricos em manifestações
culturais, por que ainda somos tão pobres quando se trata de
renovar o vocabulário para apreender esta diversidade, para
promover esta diversidade? Por que não pensarmos em flu-
xos culturais, ao invés de cultura, por que não pensarmos em
construção de singularidades culturais ao invés de identidades
culturais? O singular só existe na relação com aquilo do qual se
singulariza, a singularidade é relacional, situacional e provisó-
ria. Para se afi rmar singular é preciso ao mesmo tempo afi rmar
também aquilo em relação a que se singulariza.
A identidade, pelo contrário, pretensamente se constrói a
partir de um fechamento para o diferente, para o fora. A iden-
tidade nasceria da atitude de enrolar-se sobre si mesmo, de
envolver-se consigo mesmo e expulsar o estranho, o diferente
como intrusão, o escavar o si mesmo até encontrar um núcleo
fi xo e perene para o si mesmo. A identidade nega o exterior,
o hostiliza, tem medo dele; a singularidade só existe porque
afi rma a coexistência da diferença e faz do exterior parte de si
mesma, abrindo-se para o fora que a constitui, que lhe é in-
terior. Ser singular é afi rmar-se na condição em que o outro
permaneça existindo, ser idêntico é afi rmar a possibilidade de
que só um si mesmo pode existir, o outro deve ser defi nitiva-
mente excluído como ameaça. A singularidade é abertura para
a relação, a identidade é pensar a possibilidade do fi m da rela-
ção. A singularidade é a afi rmação do movimento, do devir, a
identidade é o medo do devir, é a afi rmação da estaticidade, da
fi xidez, da paralisia.
Não precisamos de identidade para existir, nada na natureza
ou na cultura existe na identidade, mas sim na diferença, na di-
22 du r va l m u n i z de a l b u q u e r q u e j ú n io r
consensual. Culturas sem identidades, feitas de singularidades
afi rmativas, já que o singular só existe ao se afi rmar, enquanto
a identidade vive de negar o outro, o devir que reside em seu
interior, vive da negação e não da afi rmação. Culturas no plural,
constituídas pela multiplicação do singular.