Você está na página 1de 11

Abecedário da interculturalidade Vera Candau

Ações afirmativas – são medidas, políticas, são projetos que focalizam grupos sociais
marginalizados, inferiorizados, na perspectiva da sua inserção na sociedade. Nesse sentido, as
ações afirmativas são sempre focalizadas, em geral tem um caráter temporário. Elas podem
ser de naturezas diferentes, e podem também estar orientadas para o mundo do trabalho,
para o mundo da educação, da saúde. Entre nós, as ações afirmativas nos últimos anos
provocavam um enorme debate associado à questão das políticas de cotas, e principalmente
de cotas para universidade, de acesso à universidade, de negros, de indígenas, de pessoas com
deficiências, de outros sujeitos. Na sociedade ficou uma enorme discussão, em todos os
ambientes: se elas favorecem a democracia, se elas negam o mérito individual... esse debate
foi tão grande, que levou, inclusive, a questionar a constitucionalidade dessas políticas. Mas o
STF afirmou taxativamente que elas eram constitucionais. É importante a gente ter presente
que as políticas afirmativas nascem em um contexto de um pensamento liberal, voltado para
igualdade de oportunidades, para que diferentes sujeitos que estão presentes em uma
sociedade possam estar representados em diferentes instâncias, sejam políticas ou sejam
acadêmicas. E elas favorecem principalmente o acesso dessas pessoas. Este acesso tem levado
às universidades brasileiras que apoiam essas políticas, uma população muito mais
diferenciada, muito mais adequada (ainda que não totalmente) à própria distribuição
demográfica do Brasil. Mas elas são um primeiro passo, porque favorecem o acesso, mas se
esse acesso não for acompanhado de uma série de medidas que permitam a permanência
desses sujeitos na universidade, e que também questionem a própria lógica da cultura
universitária, fazendo com que ela incorpore referencias também vindos dessa pluralidade
cultural... ela fica na metade do caminho. Acho que estas ações afirmativas têm que ser
valorizadas, mas também têm que ser problematizadas na perspectiva da interculturalidade,
para que elas possam responder plenamente, como uma democratização não só de acesso,
mas também epistemológica e cultural da Universidade.

Branquitude - é uma questão bastante recente na discussão sobre problemas das relações
étnico raciais e concretamente da interculturalidade. Sempre que se discute as relações étnico
raciais, é muito presente a questão das culturas negras, das culturas indígenas, das culturas
regionais do país... mas a identidade branca é completamente silenciada, não se tocava nesse
tema, como se a identidade branca fosse o óbvio, o natural, e todos os demais fossem o
diferente - a identidade branca era a referência. Ultimamente, acho que nos últimos 20, 30
anos principalmente, já tem acontecido uma reflexão bastante forte sobre esse tema. Ser
branco também é uma identidade, e é uma identidade construída socialmente. O que significa
ser branco na sociedade que a gente vive? O que significa ser branco no mundo ocidental? É
muito importante perceber que o branco tem um lugar de privilégio dentro da sociedade que a
gente vive. Privilégios que são simbólicos e também são materiais. Nas relações sociais, ser
branco é uma vantagem, e muitas vezes um privilégio. Questionar a identidade branca, é um
componente fundamental nos processos interculturais. Não basta trabalhar o tema da cultura
indígena, da cultura negra... que teoricamente parecem diferentes. É importante que as
pessoas que se auto identificam como brancas, reflitam sobre em que consiste ser branco na
sociedade em que a gente está vivendo, que reconheçam seu lugar de privilégio e, de alguma
forma, que tentem desconstruir esse lugar de privilégio para poder ser capaz de construir
relações mais igualitárias com diferentes sujeitos étnico raciais.

Colonialidade – a expressão colonialidade - e também decolonialidade - está muito


relacionada a um grupo de intelectuais que se reuniram em torno de um projeto chamado
modernidade – colonialidade, que se desenvolveu especialmente na américa latina a partir dos
anos 2000. Esse grupo de intelectuais, cientistas sociais, filósofos, linguistas, partem do ponto
de vista que a modernidade teve dois momentos: o primeiro está relacionado com a invasão
dos europeus na américa. E a segunda modernidade seria posterior e mais ampla. Mas eles
defendem que a modernidade vem sempre atrelada à colonialidade – quer dizer, modernidade
e colonialidade são duas caras da mesma moeda. O que eles se referem com isso? Eles querem
dizer que não se trata, no caso da colonização, de uma mera questão jurídica e política, mas
que através dessa dominação jurídica e política, também tem uma dominação cultural,
epistemológica, que incide sobre o imaginário de todos os sujeitos que foram colonizados, de
tal maneira que a colonização pode terminar, esses sujeitos colonizados já não pertencem
mais a um país que é colônia, já é um país independente, mas a colonialidade permanece, que
é essa introjeção do que tem valor, do que é verdadeiro, do que “conta”, do que é moderno a
partir de uma única matriz cultural. Segundo esses autores, essa colonialidade não só persiste
até hoje, como vem adquirindo novas formas. Por exemplo, os processos de globalização
podem reforçar perspectivas da colonialidade. Então, é muito importante ter presente isso,
para pensar, por exemplo, em processos educacionais que sejam capazes de reconhecer essa
colonialidade, e de descontruir esse processo que está sempre inferiorizando, considerando
como não desejáveis, ou não valorizáveis determinados tipos de conhecimentos, valores e
práticas que são oriundo de grupos sociais que foram inferiorizados pelos processos de
colonização.

Cultura - Essa é uma palavra por um lado muito comum, e por outro lado extremamente difícil
de se definir. Teve um autor que tentou fazer um levantamento das definições de cultura, e
levantou mais de 200 definições: eu não pretendo abarcar tudo isso. Gosto de um texto curto,
do Roberto da Matta que chama: “Você tem cultura?” Nesse texto, ele distingue,
fundamentalmente, duas perspectivas de cultura. A perspectiva do senso comum, aquela em
que a gente diz: essa pessoa não tem cultura; aquela outra pessoa tem cultura... que está
muito mais se referindo à ideia de que ela tem cultura porque tem escolarização, porque tem
um refinamento de modos, de comportamentos, que mais ou menos são hegemônicos
naquela sociedade, que são valorizados... e é comum, inclusive na escola, professores dizerem:
esses alunos vão fracassar na escola, porque onde eles vivem não tem cultura. Essa é a visão:
cultura, de alguma forma, está se referindo à cultura letrada, à cultura estética, à alta cultura
estética, muito mais ligada à polarização. Mas, principalmente para a antropologia, a cultura é
o tema dos antropólogos. Os antropólogos trabalham a cultura de maneira muito diferente –
são modos de vida, são maneiras de se situar na vida, é como se fossem os “óculos” através
dos quais nós olhamos a realidade, criamos redes de significado, redes de sentido. E nessa
perspectiva, todas as pessoas, todos os grupos sociais têm cultura. Uma questão importante
no mundo atual é que essas culturas são sempre dinâmicas, elas estão sempre em processo
contínuo de configuração, de desconfiguração, reconfiguração... não existe nenhum grupo
cultural que tenha uma cultura estática, a cultura é sempre um processo dinâmico.

Daltonismo cultural – essa expressão é trabalhada por Stephen Stoer com a educadora
portuguesa Luiza Cortesão. Eles se baseiam numa afirmação do sociólogo português
Boaventura Souza Santos, que fala que o mundo é um arco-íris de culturas. Baseado nessa
afirmação, eles fazem uma analogia que diz o seguinte: existem pessoas que são daltônicas,
que não percebem as diferentes cores do arco-íris, têm uma limitação nesse sentido de
perceber a diversidade de cores do arco-íris. Fazendo uma analogia, existem tantas pessoas
que não são capazes de perceber a pluralidade de culturas, que podem inclusive estar imersos
em uma sociedade com muita pluralidade de culturas, mas não percebem toda essa
diferenciação cultural. Nesse sentido, eles falam do daltonismo cultural. Não são capazes de
perceber essa diferenciação entre as culturas, e é fundamental - para trabalhar a
interculturalidade -, desenvolver essa capacidade de observar e reconhecer o arco-íris das
culturas, para poder de alguma forma valorizar as diferentes manifestações que esse arco-íris
apresenta. Eles dizem que uma das instituições em que esse daltonismo cultural está presente
é a escola, e todos os educadores deviam ter, de alguma forma, muito mais sensibilidade para
perceber essas diferenças culturais que estão na sala de aula. Em pesquisas que tenho
realizado é muito comum perguntar a uma professora: como é que você trata as diferenças em
sua sala de aula? “Não, aqui não temos esse problema, somos todos iguais”. Então, as
diferenças, de alguma forma, ficam silenciadas, ficam negadas, não são percebidas, ou são
percebidas como um problema. Trabalhar essa questão do daltonismo cultural é fundamental
para os processos de educação intercultural.

Descolonização e decolonialidade – esses dois termos algumas vezes são utilizados como
sinônimos. Algumas pessoas não fazem essa diferenciação, outras pessoas preferem um dos
termos. Mas é importante a gente já ter feito uma referência sobre o grupo modernidade -
colonialidade para entender essa diferenciação. Descolonização é visto como um processo
político e jurídico. Os países que eram colônia deixaram de ser colônia: houve uma
descolonização. Tanto das colônias da América, como também das colônias da África, da Ásia...
houve um processo de descolonização. Mas lembrem que eu havia falado que a
descolonização vai acompanhada de uma colonialidade - não necessariamente a
descolonização vai acompanhada de uma decolonialidade, quer dizer, de questionar a
colonialidade dos processos que nós vivemos onde foi introjetada uma visão hegemônica de
cultura, de saber, sobre o que vale na sociedade, o que é bom, o que é moderno, e tudo o que
não obedece a esse esquema, de alguma forma é desvalorizado. A decolonialidade está
voltada a questionar essa colonialidade, e construir outro tipo de lógica, uma lógica muito mais
plural dentro da sociedade em que a gente vive.

Ecologia dos saberes – essa é uma expressão muito utilizada pelo sociólogo Boaventura Souza
Santos, e faz parte de uma série de conceitos que ele trabalha, como o pensamento pós
abissal, a sociologia das ausências, das emergências. A ecologia dos saberes visa reconhecer
que no mundo existe muito mais conhecimentos e saberes do que aqueles que são produzidos
pela ciência moderna, europeia, pelos saberes científicos, e visa entender que muitas vezes só
são reconhecidos saberes produzidos dentro do que a gente chama de “modernidade
europeia”, que depois, com a influência dos EUA também, somente estes saberes são
reconhecidos como conhecimentos válidos, sistemáticos, científicos. Na ecologia de saberes é
importante reconhecer a pluralidade de saberes que existe na sociedade: os saberes sociais, os
saberes tradicionais, os saberes que tem um legado histórico enorme de determinadas
culturas... mas é importante fazer dialogar, não é substituir um tipo de saber por outro, mas
fazer dialogar o que a gente chama de saber científico, de tradição ocidental, com esses
saberes sociais, tradicionais, que são produzidos por muitos grupos socioculturais no mundo
inteiro, procurando que eles possam se reconhecer mutuamente, dialogar e construir juntos
novas perspectivas.

Educação intercultural – tem também muitas maneiras de ser concebida. Vou me basear em
um conceito que nós construímos no grupo de pesquisa que coordeno, sobre educação
intercultural. Esse conceito parte da afirmação de que a diferença é uma riqueza, isso pra mim
é fundamental, quase que é o ponto mais importante. As diferenças não são um problema,
não são algo a ser superado, as desigualdades sim, mas não as diferenças. Já vamos ver essa
questão das desigualdades e das diferenças. As diferenças são uma riqueza no mundo! Porque
existem muitas diferenças no mundo, o mundo é extremamente rico. Então a gente parte
desse ponto de vista, que para fazer uma educação intercultural você precisa primeiro partir
das diferenças como riqueza. E promover processos sistemáticos de diálogo entre diferentes
grupos socioculturais, onde esse reconhecimento das diferenças seja um reconhecimento
mútuo, que esteja orientado a promover uma justiça - não só a justiça social, mas também a
justiça cognitiva, cultural, econômica. Orientar e articular processos que afirmam a igualdade
com processos que afirmem a diferença – articular a igualdade com a diferença é outro
elemento fundamental para educação intercultural. Então, a educação intercultural é um
processo que valoriza as diferenças, que promove o diálogo, que está orientado para
construção de justiça, um processo que visa articular igualdade e diferença na construção de
uma democracia onde os diferentes sujeitos e os diferentes saberes sejam reconhecidos.

Euro-usa-centrismo – essa é uma expressão, uma ampliação do que muitos dos autores que
mencionamos do grupo modernidade/ colonialidade falam em relação ao eurocentrismo. Mas
acho que hoje em dia é euro-usa-centrismo, porque a perspectiva da ciência, construída no
mundo ocidental a partir da Europa, se expandiu pelo mundo inteiro e tem como um de seus
lugares fundamentais de produção nos EUA. Visa reconhecer que a super valorização desta
tradição (que certamente construiu muitas coisas importantes na sociedade) da modernidade
europeia, deste conhecimento cientifico produzido... expandido para o mundo inteiro,
geralmente entendidos como se fossem os únicos. Euro-usa-centrismo quer dizer isso, são as
construções, as criações, as produções que têm a sua matriz na Europa e nos EUA entendendo-
as como aquelas que significam o que há de melhor à humanidade, que significam o progresso,
que fazem avançar... todos os demais são de segunda categoria, ou são primitivos, ou ainda
não “chegaram lá”, mas devem pretender chegar lá... por exemplo, isso fica muito claro
quando a gente fala em desenvolvimento e subdesenvolvimento. Onde estão os países
desenvolvidos? São os países europeus, são os EUA, o Canadá.. e onde estão os
subdesenvolvidos? Na américa latina, na África, em algumas partes da Ásia... e sempre a gente
quer chegar lá. Então você tem um modelo único de trajetória histórica, uma única maneira de
conceber os conhecimentos, de se construir a modernidade e o progresso.. e todos os demais
são desvalorizados. Então a gente cai na mesma coisa: na educação intercultural a gente
questiona essa perspectiva euro-usa-centrada, procurando incorporar muito mais outras
tradições nos processos educativos.

Empoderamento – é a tradução de uma fala da palavra americana empowerment, sendo que


muitas pessoas não estão de acordo com essa tradução, acham que é insuficiente, ou que
pode permitir uma interpretação que não é a verdadeira, de que alguns grupos empoderam
outros grupos. Mas empoderamento não é isso. São processos sociais que vão favorecendo
que pessoas e grupos sociais descubram sua potência, o poder que têm. Não é que alguém
lhes vai dar poder, eles vão descobrindo o poder que têm, o poder de agência na sua própria
vida, o poder de intervenção na sociedade, poder de mobilizar processos transformadores,
portanto, de serem sujeitos plenos, cidadãos e cidadãs plenamente engajados nas práticas
sociais. A educação intercultural visa promover processos que favoreçam esse
empoderamento, que desenvolvam essa capacidade das pessoas e dos grupos de acionar suas
potencialidades e ser agentes, de ser sujeitos plenos na sociedade em que vivemos.

Globalizações – esta palavra está no plural, sendo que a gente está mais acostumada a ouvir
no singular, o que faz parecer que existe um único processo de globalização, com uma única
lógica que impera e domina a sociedade em que a gente vive. Colocar no plural, obedece a
alguns autores, como Boaventura, que distingue diferentes processos de globalização. Ele
distingue fundamentalmente duas dinâmicas de globalização: uma globalização de cima pra
baixo, que ele chama de globalismo localizado ou localismo globalizado; ou as globalizações de
baixo pra cima, que ele chama de processos insurgentes ou de processos do patrimônio
comum da humanidade. Então, o importante é a gente perceber que existem globalizações
que vão na linha do eurocentrismo, do euro-usa-centrismo, da colonialidade, de construir
novos processos de colonialidade no mundo que a gente vive, que tem que ver com a
sociedade de consumo, com a sociedade midiática, atravessando toda a sociedade que a gente
vive. Mas existe uma outra globalização, que nasce das pessoas, da sociedade civil, que nasce
das organizações sociais. O fórum social mundial é um espaço que quer visibilizar essa outra
globalização, portanto quer ser um espaço onde os grupos estão procurando construir uma
sociedade mais igualitária, que reconheça as diferenças, que não quer ter um padrão único
imposto a todos, como um padrão de desenvolvimento, do moderno, do verdadeiro... esses
processos de globalização articulam redes no plano internacional - muito evidente na área
ambiental, onde a gente vê uma globalização contra-hegemônica, que vai continuamente
questionar, problematizar questões relativas ao meio ambiente no mundo que a gente vive.

Homogeneização cultural – é um processo que está ligado ao que falamos anteriormente.


Nessa globalização hegemônica, você tende a promover um único padrão cultural, por
exemplo, me impressiona a gente ver alguns shopping centers, que você pode ver em qualquer
parte do mundo... eles têm as mesmas lojas, com os mesmos padrões estéticos, os mesmos
produtos, tudo. Visam que a gente considere que isso seja o bom, o verdadeiro. Vi essa
semana no jornal uma loja que abriu em Ipanema, para vender tênis de uma marca, que
custava 1.100 reais o par. Em uma hora venderam todos os tênis, que é de uma marca
internacional. Então, você tem uma homogeneização cultural: passa a ser importante usar esse
tênis dessa marca - essas marcas passam pelo mundo inteiro e tendem a padronizar gostos,
desejos... assim, essa globalização hegemônica tende a promover uma homogeneização
cultural. Mas é verdade também que a gente percebe que a globalização não só tende à
homogeneização cultural, ela desperta, também, a diferenciação, desperta um movimento de
afirmar o próprio, de afirmar o diferente. A gente não pode entender como algo que não tem
uma brecha. É forte o processo de homogeneização cultural, mas também esse processo
enfrenta essas resistências e insurgências de grupos que estão afirmando outras lógicas
culturais. Talvez, o mais sério para nós, que somos educadoras, é que a escola muitas vezes é
vista como uma instituição privilegiada para trabalhar nessa perspectiva da homogeneização
cultural, quer dizer, a escola visa a padronização, a homogeneização de todos os seus alunos, a
começar pelo uniforme – olha a palavra – até os processos de avaliação. Essa homogeneização
invade também a cultura escolar, que acaba se tornando uma cultura homogeneizadora. Pra
educação intercultural é importante a gente reconhecer essa realidade para poder trabalhar
em cima dela, pra poder refletir criticamente, mostrar como essa homogeneização é
construída e como a gente pode fazer para que realmente a sociedade e a escola sejam muito
mais plurais.

Identidade cultural – é uma expressão que nos remete à nossa maneira de ser. Normalmente,
não estamos muito acostumadas a pensar sobre quem somos nós culturalmente. Nos cursos
que tenho dado, várias vezes peço aos alunos para escreverem sobre isso... “Ah, professora
gosta sempre de passar redação, né? Eu vou passar uma redação: minha identidade cultural”.
E é muito comum que as pessoas tenham muita dificuldade de responder, é muito comum as
pessoas dizerem: eu nunca pensei nisso. Sou capaz de dizer a minha personalidade – sou
extrovertida, introvertida... mais a chave psicológica, né? Mas como me construí
culturalmente, quais as grandes influências culturais da minha vida, que foram permitindo que
eu fosse criando identificações com determinados grupos, propostas... isso é muito mais difícil,
porque a gente não está acostumado a pensar sobre isso. Mas é importante tomar essa
consciência que nós também somos culturalmente construídos, e que essa identidade cultural
é dinâmica, ela vai sendo mobilizada a partir dos processos de identificação que a gente vai
tendo ao longo da vida. Então, não é que a identidade cultural seja uma coisa estática, é muito
importante a gente não cair nessa armadilha ao descobrir determinadas marcas da própria
identidade, de cair num certo essencialismo identitário... “os negros são assim, as mulheres
são assim, os indígenas são assim”... não! As identidades culturais são sempre processos
dinâmicos que estão sendo continuamente revisitados, e novas identificações vão surgindo, e
a gente vai sendo cada vez mais consciente dos nossos processos de constituição. Esses
processos se dão no plano individual, mas também se dão também no plano coletivo - existem
grupos que vão construindo uma identidade cultural própria. Por exemplo, na sociedade
brasileira atual, os quilombolas têm uma identidade cultural própria, mas é uma identidade
dinâmica. Quilombola não é igual aqui, no Piauí, acolá... quer dizer, a pluralidade existe nos
modos de ser quilombola, nos modos de ser indígena, de ser mulher... mas é importante que a
gente perceba que nós temos uma construção cultural, que nós temos que ter consciência
dela, e que sejamos capazes também de reconhecer esses processos de constituição cultural
nos outros e nos diferentes grupos sociais. Uma dinâmica em geral muito interessante é
quando as pessoas socializam suas diferentes trajetórias culturais em um grupo, ou os grupos
socializam seu processo histórico de construção. Isso em geral é extremamente enriquecedor,
e a gente percebe essa dinâmica tão positiva na construção da identidade cultural.

Igualdade e diferença – essa é uma tensão fundamental no mundo atual. Eu considero que,
possivelmente, é uma das principais tensões que a gente enfrenta no mundo atual. A
modernidade foi toda construída a partir, fundamentalmente da afirmação da igualdade.
Todos somos iguais perante a lei, todos queremos ser iguais, e a igualdade é o baluarte da
democracia, da constituição, da cidadania - é nisso que nós fomos formados. E certamente é
um grande legado e tem uma importância grande na história da humanidade, na nossa
história, no caso brasileiro, de cada um de nós. Antonio Flávio Pierucci tem um livro chamado
Ciladas da diferença, que coloca o seguinte: somos todos iguais ou somos todos diferentes?
Queremos ser iguais ou queremos ser diferentes? Parece que até os anos 40, 50, toda nossa
energia era para firmar a igualdade, mas a partir daí, os movimentos sociais, os movimentos
identitários, começaram a pautar muito a questão da diferença. Parece que hoje em dia, não
estamos querendo tanto ser iguais, quanto queremos afirmar a diferença, ele diz. Eu parto da
posição que o importante é você articular a igualdade com a diferença, que igualdade não se
contrapõe com a diferença, igualdade se contrapõe com a desigualdade, e a diferença se
contrapõe a padronização. Nosso grande desafio é promover a igualdade, combater todas as
desigualdades, respeitando e valorizando as diferenças e, portanto, questionar a
homogeneização e a padronização. Articular essas duas dinâmicas – da igualdade e da
diferença – é uma coisa fundamental. Voltando a um dos autores que referencia o trabalho do
nosso grupo de pesquisa, que é o Boaventura Sousa Santos, ele tem o que a gente já chama de
um “mantra”, que sintetiza muito bem essa tensão entre igualdade e a diferença. Ele diz: nós
temos o direito de reivindicar a igualdade sempre que a diferença nos inferioriza; e temos o
direito de reivindicar a diferença sempre que a igualdade nos descaracteriza. É nessa tensão
que a gente tem que trabalhar, isso é fundamental e é também um grande desafio da
educação intercultural.
Intraculturalidade – é um termo que no Brasil praticamente é desconhecido, ou só muito
recentemente apareceu. Alguns autores dizem que a sua origem está na Bolívia, a partir de um
autor chamado Felix Pat, que foi o primeiro indígena a se tornar ministro da educação na
Bolívia. Ele criou esse termo para manifestar que a intraculturalidade seria a valorização da
própria educação, da própria cultura. Valorização, reconhecimento, potencialização da própria
cultura. Isso era muito importante porque, se você entra em um diálogo intercultural sem uma
cultura própria bem afirmada, esta pode se diluir e pode ser que essa interculturalidade, de
alguma forma, termine em um processo de colonização. Então, essa articulação entre
intraculturalidade e interculturalidade passou a ser fundamental. Tem alguns autores que
dizem que primeiro tem que haver a intraculturalidade para fortalecer o sujeito, reconhecer a
própria cultura, se sentir forte, para então poder entrar em um diálogo intercultural. Eu acho
que esse negócio de 1º, 2º... não funciona muito. Eu acho que nos processos de
interculturalidade, a intraculturalidade é um componente. Em um processo de
interculturalidade, você tem que reconhecer a especificidade das culturas que entram naquele
processo e valorizá-las. Então, não existe propriamente uma contraposição entre
intraculturalidade e interculturalidade, são dois processos que têm que estar continuamente
articulados. Agora, acho que é importante essa categoria de intraculturalidade, a valorização, o
reconhecimento e o potencial da própria identidade cultural, sempre numa perspectiva
dinâmica, não estática e rígida, para dar capacidade de dialogar com outros, e também para
que os outros reconheçam essa riqueza de sua própria cultura.

Interculturalidade – essa também é uma palavra polissêmica, pode adquirir diferentes


sentidos. Tem pessoas que acham que no simples fato de eu conhecer uma pessoa de outra
cultura, a interculturalidade já se faz presente. Mas essa é uma visão do senso comum sobre
interculturalidade. A professora Catherine Walsh, que tem trabalhado bastante esse tema,
distingue 3 perspectivas da interculturalidade. A 1ª, que é a linha que eu mencionei antes, se
chama relacional – tem a ver com uma relação interpessoal entre pessoas que pertencem a
culturas diferentes. É importante desenvolver essa relação interpessoal para superar questões
de preconceito, de discriminação... mas tudo fica no plano interpessoal, relacionado à
melhoria das relações interpessoais. Em vários países, existem projetos que são voltados pra
isso, pra melhorar relações entre crianças ou adolescentes que são oriundos de diferentes
culturas. Ela distingue, além dessa visão relacional, uma visão funcional – quer dizer, uma
interculturalidade que é funcional ao sistema vigente. Ela diz o seguinte: não em vão, muitos
organismos internacionais, várias políticas públicas de diferentes países estão pautando a
interculturalidade como parte da sua agenda. Mas essa interculturalidade visa criar maior
coesão social, diminuir elementos de conflito que possam existir na relação entre pessoas e
grupos socioculturais, mas ela não coloca em questão a estrutura na qual essas relações se
dão, não tem uma perspectiva estrutural, que é exatamente a perspectiva que ela vai chamar
de interculturalidade crítica. Interculturalidade crítica não se reduz a relações interpessoais,
não se reduz a uma questão de minimizar conflitos, ela coloca em questão as relações de
poder construídos numa sociedade, no mundo atual, que privilegia determinados sujeitos,
saberes e práticas em detrimento de outros. Essa é a base da interculturalidade crítica, que
não pode se reduzir a uma dimensão interpessoal, nem a uma dimensão de redução de
conflitos sociais, ao contrário, muitas vezes a interculturalidade crítica, quando entra na lógica
social, ela gera desconfortos e muitas vezes conflitos - conflitos que vão levar à transformação
da sociedade, numa perspectiva de uma sociedade mais democrática.

Justiça cognitiva – é uma expressão utilizada também por Boaventura Sousa Santos.
Normalmente, quando a gente fala de justiça, a gente tem muito atrelada a questão da justiça
social, quer dizer, em países como o Brasil, que tem uma enorme desigualdade social, você
tende a promover uma justiça social, promover maior acesso às populações que têm esse
acesso negado, a bens e serviços da sociedade, maior distribuição de bens e serviços na
sociedade... A palavra justiça fica atrelada ao termo da justiça social, ou quando muito, à
justiça econômica, melhor distribuição de renda. O Boaventura diz que a justiça é algo muito
mais amplo: a gente tende a lutar pela justiça social e pela justiça econômica, mas também
tem que lutar por uma justiça cognitiva, que seria o reconhecimento dos diferentes
conhecimentos que são produzidos no mundo, por diferentes grupos sociais. A justiça também
tem uma dimensão epistemológica e cognitiva, e isso é fundamental para o processo de
educação intercultural. É muito comum, tenho visto vários debates, em que as pessoas se
perguntam: vocês estão falando de interculturalidade, da diversidade cultural, mas em um país
como o Brasil, não é muito mais importante você falar da desigualdade social? Essa questão
cultural, de alguma forma, não é uma questão derivada da desigualdade social? A gente
responde: não. Essas duas coisas têm que estar articuladas. A pobreza tem cor, tem sexo, afeta
mais determinados grupos do que outros... a gente não pode desarticular as questões sociais
das questões culturas, e das questões epistemológicas. Justiça cognitiva visa não só firmar uma
justiça cognitiva, é firmar uma justiça social, econômica, que incorpore também a dimensão
epistemológica.

Multiculturalismo – na américa latina, às vezes se contrapõe multiculturalismo e


interculturalidade. Se afirma que o multiculturalismo está muito referido à uma tradição anglo
saxã, está muito mais próxima dos países anglo saxônicos, que se limita a afirmar a pluralidade
de grupos que existem numa determinada sociedade, e às vezes assumem políticas de que
esses grupos possam “existir” numa sociedade, mas cada um no seu espaço determinado. Há
países e há cidades famosas no mundo que estão diversificadas por bairros: bairro chinês,
bairro tailandês... a pluralidade existe, mas essa pluralidade, de alguma forma, gera uma série
de localizações para cada um dos diferentes grupos sociais. Esses autores assimilam, ou
entendem que o multiculturalismo é isso, e portanto, essa não é a nossa posição. Mas na
verdade, também os autores que eu trabalho em relação ao multiculturalismo, apresentam
muitos tipos de multiculturalismo. Eu tento sintetizar esses tipos de multiculturalismo em 3
grandes blocos. Um, é o multiculturalismo assimilacionista, que entende que a sociedade é
plural, que quer promover uma democratização de oportunidade para todos, mas todos têm
de adquirir uma cultura “comum”, um padrão cultural. Então, nesse pensamento, cria-se uma
série de políticas que são assimilacionistas, quer dizer, os considerados diferentes têm que
assumir aquela cultura hegemônica, própria daquele lugar, daquele país, para serem
plenamente identificados nessa sociedade. Atualmente, em países europeus, com todo esse
movimento de refugiados, as políticas assimilacionistas têm sido muito fortes, quer dizer, para
estar aqui nesse país, nessa cidade, vocês têm que adquirir a cultura própria desse país. Eu
reconheço a pluralidade, mas quero incorporar essa pluralidade toda a partir de uma visão
comum, hegemônica, que quem quiser estar aqui tem que adquirir. Tem uma expressão forte
que diz, se você quer entrar na turma, você tem que desracializar. O outro seria o
multiculturalismo diferencialista, que muitos autores latino americanos reconhecem.
Reconhece que existe uma pluralidade de grupos, pluralidade de culturas, mas que cada
cultura tenha seu espaço e fique no seu espaço próprio, inclusive com suas instituições
próprias: sua escola, seu hospital, tudo próprio daquela cultura, daquele grupo. O que
chamamos de multiculturalismo interacionista, seria não só reconhecer, mas provocar a
relação entre essas diferentes culturas. Isso seria a interculturalidade. Só que essa relação
entre cultura, como a gente já viu, também pode ser funcional, relacional, ou pode ser crítica.
Não basta reconhecer que existe pluralidade, não pode limitar a uma perspectiva
assimilacionista, tem que reconhecer essas diferenças e colocar essas diferenças em diálogo.

Políticas de Reconhecimento das diferenças – vou falar dessas políticas de reconhecimento


articulado com o que vem depois, que são políticas de distribuição, porque a gente volta
àquela matriz da igualdade e da diferença, quer dizer... políticas de redistribuição estão
voltadas para firmar a igualdade: se você vive numa sociedade muito desigual como a
brasileira, você pode desenvolver políticas de melhor redistribuição de renda, de melhor
redistribuição de acesso a determinadas coisas – bens e serviços, para fazer uma
redistribuição. Políticas de reconhecimento estão muito mais na ótica cultural – você
reconhece os diferentes grupos, suas culturas, suas especificidades, valoriza-os, então a
redistribuição e o reconhecimento não podem ser vistos também como duas coisas
contrapostas. Nós já vimos que existem grupos que contrapõem: o importante são as políticas
de redistribuição, vamos lutar por elas, e o reconhecimento, vamos ver depois... Como se
pudesse isolar essas duas coisas. Existe um autor que eu gosto muito, a Nancy Fraser, que ela
defende muito essa questão da importância da articulação entre políticas de redistribuição e
de reconhecimento, que são duas caras de uma mesma moeda. Se você quer trabalhar na
perspectiva de uma sociedade mais democrática, precisa articular redistribuição e
reconhecimento.

Relativismo cultural – é uma expressão muito cara aos antropólogos, acho que é muito bom a
gente aprender com eles. É você não olhar o outro culturalmente diferente a partir dos seus
próprios parâmetros, e estar continuamente fazendo juízos sobre ele. Eu olho o outro, estou
sempre comparando, pois eu sou o centro, minhas referências são as que valem, e os outros
estão sempre confrontados com essas diferenças, e eu estou sempre julgando a partir daquilo
que é bom ou reconhecido por mim. O relativismo cultural permite você tentar (digo tentar
porque nunca a gente consegue plenamente) se aproximar dos outros culturalmente
diferentes, seja pessoas, seja grupos, procurando olhar a realidade a partir deles, e não a partir
dos nossos próprios referenciais. Isso sempre é uma tarefa muito difícil, os antropólogos falam
em relativizar o próprio para ser capaz de, de alguma forma, entender melhor outras
realidades diferentes a partir dos referenciais dela, e não dos referenciais nossos. No entanto,
isso é fundamental para os processos sociais, educacionais. Vou dar um exemplo que eu dou
na escola: uma criança criou uma série de problemas na sala de aula, a professora chamou lá
na frente e disse: por que você fez isso? Deu uma bronca grande na criança, e a criança olhava
o tempo todo para o chão. A professora pedia: olha pra mim, olha nos meus olhos, vou te levar
para a direção. A diretora falou com a criança, que só olhava para o chão. Chamaram a mãe da
criança, que disse: na nossa comunidade quando uma criança é repreendida por um adulto,
ela não pode olhar nos olhos do adulto, isso seria uma grande falta de respeito, como se
estivesse enfrentando-o. Então, a gente pode interpretar determinados comportamentos de
maneira muito diferente, segundo o nosso contexto e o contexto cultural onde esse
comportamento está inserido. Ser mais sensível para perceber essas questões é fundamental
para a sociedade que a gente vive, e para a escola, onde acontece muitos fatos como o desta
criança, onde você tem diferentes padrões culturais que entram em diálogo, mas que não são
capazes de entender a partir do referencial do outro. Quando a gente lida com realidades
muito diferentes daquela que a gente está acostumado a viver é fundamental para nós,
educadores, desenvolver essa capacidade do relativismo cultural, que é a capacidade de
entender os processos e comportamentos a partir dos referenciais do outro, e não dos nossos
próprios.
Subalternidade – tem a ver com estudos subalternos. Tanto os estudos subalternos
construídos na Índia, como os latino-americanos, e a tensão existente entre uns e outros. A
subalternidade, - na perspectiva da interculturalidade - eu vejo principalmente como
processos de inferiorização de determinados grupos sociais que são considerados
dependentes, sem capacidade própria, e que, portanto, tem sua presença na sociedade muito
inferiorizada em todos os sentidos. Reconhecer esses processos de subalternização que
existem na sociedade, e ser capaz de tomar consciência desses processos e provocar outras
dinâmicas de empoderamento dessas populações é fundamental. A subalternidade para a
interculturalidade é algo que tem que ser questionado, problematizado, superado e tem que
ser reconhecido como uma construção histórica de longa duração, que tem muito a ver com o
processo de colonização e de escravização da nossa sociedade.

Tradução intercultural – novamente vamos remeter a Boaventura Sousa Santos, porque se


situa no âmbito do que ele chama de diálogo intercultural. Ele explica que para um diálogo
intercultural autêntico, você tem que promover o que ele chama de uma hermenêutica
diatópica, quer dizer, você vai promover processos de interpretação entre diferentes culturas
ou grupos culturais – se são dois seria diatópico, que tem topós, quer dizer, lugares e
referenciais a priori, diferenciados. No diálogo intercultural, você vai fazer uma hermenêutica
diatópica, sendo que essa tradução intercultural não é uma tradução linguística, de uma
palavra para outra palavra... você tem que reconhecer determinados conceitos, determinadas
realidades de uma cultura e de outra cultura, e ver quais pontes e sinergias você pode fazer
entre elas, sabendo que não são sinônimos um do outro, mas que você pode apresentar
diferentes aproximações entre categorias que são próprias de uma cultura, e categorias
próprias de outra cultura. Por isso ele diferencia o que está chamando de tradução
intercultural do que uma tradução linguística – não é uma questão de palavras, é uma questão
de entender determinados sentidos de uma cultura e de outra, e que pontes e sinergias pode-
se estabelecer. Vou dar um exemplo. Conceito de direitos humanos – típico da cultura
ocidental. Não existe, em outras culturas, algo com o mesmo conceito de direitos humanos?
Com essa palavra, não existe. Mas nas culturas andinas, o conceito de bom viver poderia ter
elementos, alguma sinergia com a questão de direitos humanos? Você não tá fazendo uma
tradução, mas você está procurando uma aproximação com essa cultura, identificar aspectos
que de alguma forma possa criar pontes entre as culturas.

Universalismo – nós ocidentais, somos muito acostumados a falar no universal, a cultura


ocidental muitas vezes é apresentada como a cultura universal, os valores da cultura ocidental:
direitos humanos, democracia... apresentados como próprios de uma cultura universal. Muitas
vezes o universalismo é visto essencializado, e é visto como algo que tem que estar presente e
tem que ser assumido por todos, assim como os conhecimentos científicos, sistematizados,
que são próprios da cultura ocidental e entendidos como conhecimentos universais. É muito
comum a gente dizer a escola tem que ensinar os conhecimentos universais. A gente não se
pergunta sobre a construção da universalidade, como é que essa universalidade foi
construída? Essa universalidade, no fundo, é uma particularidade na qual se atribuiu uma
função de universal... é cultura ocidental europeia, é particular... mas se atribuiu um valor de
universalidade que passa a ser difundido no mundo inteiro. O universalismo é isso, é você
acreditar e afirmar que existe um modo de entender a vida, um modo de entender a realidade,
de explicar uma produção científica que é válida, verdadeira e deve ser difundida no mundo
inteiro. É própria do ser humano – pior ainda quando essa universalidade está sentada numa
visão ontológica e essencialista do ser humano. Na perspectiva da interculturalidade a gente
questiona essa visão de universalidade. Qual é o grande problema que sempre incomoda, vai
cair no relativismo, e o relativismo muitas vezes é visto como um vale tudo. Eu acho que a
gente pode falar, que você tem que construir uma realidade transcultural, mas essa realidade
transcultural, daquilo que é comum, vai ter que ser construída no diálogo entre as diferentes
tradições culturais. É nesse diálogo que a gente vai descobrindo e afirmando algo comum – e
algo para todos – mas entendendo esse algo comum para todos como algo histórico e
dinâmico, e que está continuamente sendo reconstruído.

Você também pode gostar