Adentrar nas cavernas do homem, chimpanzé, criar uma cognição cultu-
nos insondáveis e inesperados cami- ral que o afastou da ordem estritamen- nhos da alma parece ter sido a energia te biológica, caracterizada pela univer- que impulsionou o pensamento de Ed- salidade dos instintos. No tempo, essa gar Morin a incursionar pelos labirin- singularidade acabou por fazer com que tos da complexidade, um trabalho das a cultura fosse entendida como algo e sobre as contradições sociais, cultu- apartado da natureza, ainda que me- rais, políticas, subjetivas que caracteri- diações, como a proibição do incesto, zam o mundo e a vida. Trata-se de um o trabalho, a linguagem, procurassem movimento dialógico, hologramático e estabelecer a passagem das compulsões recursivo empreendido sobre o siste- biológicas às diversidades criativas ma-mundo que permite entrever o mo- propiciadas pelo modelo cultural uni- vimento das partes sobre o todo e do versal. Entender o homem como um todo sobre as partes. vivente cosmo-psico-bio-antropos- Há idéias nucleares em toda a obra. social implica devolvê-lo ao império da A mais central é a da unidualidade do natureza, sem retirá-lo da república da homem, um ser físico e metafísico, na- cultura, descentrá-lo de sua superiori- tural e meta-natural, cultural e metacul- dade, para reinseri-lo na diáspora cós- tural que se estabeleceu no cosmo há mica universal. cerca de 130 mil anos e que possibili- Por isso, sua autonomia de ser-su- tou a um pequeno bípede, com um cé- jeito deve ser dissecada nos fundamen- rebro muito assemelhado ao de um tos da physís e do bios. Falar em sujeito
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autônomo implica reconhecer sua auto- tem-se a forças tirânicas incontidas, a
organização, produto da própria orga- pulsões desenfreadas, que lutam por nização biopsíquica. Implica, igualmen- se tornar dominantes e atuantes, para te, definir o homem como um ser to- caotizarem o ser-sujeito ou para impri- talmente biológico e totalmente cul- mir-lhe novas reorganizações. Nesse tural. Diante dessa dupla articulação, equilíbrio/desequilíbrio entre ordem/ é forçoso reconhecer que o Sapiens- desordem é que se tecem todas as pro- demens é capaz de edificar noologias jeções-identificações que constituem o que circundam a vida das idéias, do mundo, a natureza e a matéria, uma espírito e da própria sociedade. rede na qual o real-em-si não dá mais Mesmo assim, a animalidade con- conta da realidade, e isso porque real/ tinua a ser a marca fundamental de virtual, real/mágico, real/imaginário qualquer indivíduo vivo, seja ele uma impregam a totalidade das relações bactéria, um rinoceronte, uma ameba, bioculturais. ou um Homo sapiens. Qualquer indiví- A partir dos anos 1970, sua Antro- duo é sujeito na medida em que faz pologia fundamental passará a ter con- referência a si, e a não-si, reorganiza o tornos mais claros, no sentido de mo- ecossistema, produz autopoiesis, num delizar a complexidade organizacional movimento organizatório recursivo em do fenômeno humano. Se algum fun- que causas e efeitos interagem mutua- damento deve ser buscado nesse ma- mente, impulsionando o sistema para croobjetivo, ele deve estar situado nu- outras direções. Essa auto-eco-organi- ma profunda insatisfação com o conhe- zação do sistema vivo nutre-se de aca- cimento disjuntor, produto do grande sos, tensões, contradições, erros, que paradigma do Ocidente, simplifica- o reordenam de modo mais complexo, tório, que, além de dualizar razão/ima- como se a relação ordem-desordem- ginação, sujeito/objeto, liberdade/ reorganização, cercada de antagonis- determinismo, sensível/inteligível, mos, complementaridades e concorrên- pensamento selvagem/pensamento cias estabelecesse uma dispersão em domesticado, separa, hierarquiza, dis- espiral na configuração do todo. tingue, degenera o saber numa concep- Embora a formulação dos pressu- ção mutilante. Esse paradigma, uma es- postos da epistemologia complexa só pécie de cânone, mindscape, constituí- viesse a se sistematizar no pensamento do por princípios ocultos que coman- moriniano a partir dos anos 1960, eles dam a ciência e a própria subjetivida- já se encontram cimentados nos traba- de, tornou-se hegemônico, determinis- lhos da década anterior, com as desa- ta, hiperespecializando os diversos cam- venças da morte, a magia do cinema, pos cognitivos em campartimentos as epifanias do star-system, que põem não-comunicantes. a nu a desordem sapitental originária. Muitas vezes já foi reiterado o sig- Nossas personalidades não vivem nificado etimológico da palavra com- nunca numa democracia plena. Subme- plexo como aquilo que se tece em con-
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junto, que reassocia o que está ender a natureza da natureza, a vida
dissociado, que comunica o que está in- da vida, o conhecimento do conheci- comunicável. Essa complexidade não é mento, as idéias e as identidades, títu- algo novo, identificado com o los dos cinco volumes publicados de nihilismo, irracionalidade, pós- O Método. modernidade ou até com auto-ajuda, Se alguém procurar nesses cinco li- qualificativo que detratores e ressenti- vros um receituário linear de procedi- dos se esmeram em murmurar nos fri- mentos e técnicas de pesquisa, pode os corredores da academia. afastar-se de imediato da leitura. La Se a idéia adorniana de que a tota- Metode é uma viagem transversal atra- lidade é a não verdade é recorrente na vés de blocos de saber, de metapontos totalidade da obra, o desafio parece de vista sobre os sistemas vivos, de sinalizar a necessidade de civilizar as religações cognitivas, éticas e estéticas idéias, para que seja possível reorgani- que permitem equacionar uma política zar todo o processo de conhecimento, civilizacional para o planeta como um dar novo sentido à vida, perceber que todo. sociedade, cultura, cerebralização são Resta saber se essa regeneração se- aspectos de um mesmo processo de au- rá efetivada a ponto de colocar um to-organização complexificador. Mais ponto final na idade de ferro planetá- que isso, as epifanias imaginárias e as ria. Em 1994, Edgar nos convocava a desavenças da subjetividade não são assumir Sísifo como guia imaginário meros epifenômenos, mas elementos para nossas ações. Como se sabe, Sísifo constitutivos de um processo sócio-his- foi condenado por Zeus aos Infernos, tórico que explicita, desde sempre, a tendo como castigo rolar um rochedo unidualidade do Sapiens-demens. até o alto de uma montanha, de onde a Caminhando pelas margens da vi- pedra sempre voltava a cair, em virtu- da e do conhecimento, fiel à concepcão de de seu próprio peso. Essa tarefa que sintética de vida, elaborada desde a nunca dava descanso ao herói, nem lhe juventude, Edgar Morin exibe suas permitia fugir de seu vaticínio, deve partes malditas (desordem) e ben- ser a tarefa de todos aqueles que ain- ditas (ordem), sua unidualidade, num da acreditam que o caleidoscópio de esforço de dialogizar sua própria sin- suas vidas e suas idéias vale para algu- gularidade/universalidade, traduzin- ma coisa. do-a num panteão transdisciplinar de Nos idos de 1995, em uma de suas idéias que impõem uma reforma do e peregrinações planetárias, foi ele a para o pensamento. Sarajevo, cidade onde sérvios bósnios, Como um bionauta, navegador muçulmanos e croatas se defrontavam empedernido da vida, era preciso me- pelo controle diabólico de um territó- ditar, refletir e muito sobre a physis, rio que, a rigor, pertencia a todos eles. a biocosmologia, o acaso, a biopolítica, Na Universidade sitiada pronunciou o cérebro, numa tentativa de compre- um discurso em que enfatizava que os
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atentados à cidade representavam uma
agressão à alma do mundo e à preten- dida reunificação européia. Lá foi rei- terado que a idéia de nação é sempre matripatriótica; lá foi demonstrado que a fragmentação da Europa pós-comu- nista em conjuntos poliétnicos rivais representa um retrocesso à fraterni- zação planetária; lá foi enfatizado que o destino europeu se encontra preso a uma luta titânica entre forças dis- sociativas e de ruptura e forças associa- tivas, solidárias e confederadas. Essa luta não se restringe, porém, apenas a um local. Ela atravessa a rede planetá- ria em seu conjunto, como que domi- nada pela dialogia da pulsão da vida e da pulsão da morte. Ao intitular a homenagem aos seus 80 anos de Edgar Morin, um humanista planetário, a Unesco soube reconhecer e atualizar o adágio de Antônio Ma- chado que acomete a todos aqueles que se sensibilizam com as infindáveis reli- gações que os saberes culturais ainda terão que realizar: Caminhante não há caminho, pois o caminho se faz ao andar.
Recebido em 4/6/2002 Aprovado em 30/10/2002
Edgard de Assis Carvalho, professor do Depar-
tamento de Antropologia da PUC-SP. E-mail: edgardcarvalho@terra.com.br