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EDGAR MORIN, A DIALOGIA 167

Edgar Morin, a dialogia


de um Sapiens-demens

EDGARD DE ASSIS CARVALHO

Adentrar nas cavernas do homem, chimpanzé, criar uma cognição cultu-


nos insondáveis e inesperados cami- ral que o afastou da ordem estritamen-
nhos da alma parece ter sido a energia te biológica, caracterizada pela univer-
que impulsionou o pensamento de Ed- salidade dos instintos. No tempo, essa
gar Morin a incursionar pelos labirin- singularidade acabou por fazer com que
tos da complexidade, um trabalho das a cultura fosse entendida como algo
e sobre as contradições sociais, cultu- apartado da natureza, ainda que me-
rais, políticas, subjetivas que caracteri- diações, como a proibição do incesto,
zam o mundo e a vida. Trata-se de um o trabalho, a linguagem, procurassem
movimento dialógico, hologramático e estabelecer a passagem das compulsões
recursivo empreendido sobre o siste- biológicas às diversidades criativas
ma-mundo que permite entrever o mo- propiciadas pelo modelo cultural uni-
vimento das partes sobre o todo e do versal. Entender o homem como um
todo sobre as partes. vivente cosmo-psico-bio-antropos-
Há idéias nucleares em toda a obra. social implica devolvê-lo ao império da
A mais central é a da unidualidade do natureza, sem retirá-lo da república da
homem, um ser físico e metafísico, na- cultura, descentrá-lo de sua superiori-
tural e meta-natural, cultural e metacul- dade, para reinseri-lo na diáspora cós-
tural que se estabeleceu no cosmo há mica universal.
cerca de 130 mil anos e que possibili- Por isso, sua autonomia de ser-su-
tou a um pequeno bípede, com um cé- jeito deve ser dissecada nos fundamen-
rebro muito assemelhado ao de um tos da physís e do bios. Falar em sujeito

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autônomo implica reconhecer sua auto- tem-se a forças tirânicas incontidas, a


organização, produto da própria orga- pulsões desenfreadas, que lutam por
nização biopsíquica. Implica, igualmen- se tornar dominantes e atuantes, para
te, definir o homem como um ser to- caotizarem o ser-sujeito ou para impri-
talmente biológico e totalmente cul- mir-lhe novas reorganizações. Nesse
tural. Diante dessa dupla articulação, equilíbrio/desequilíbrio entre ordem/
é forçoso reconhecer que o Sapiens- desordem é que se tecem todas as “pro-
demens é capaz de edificar noologias jeções-identificações” que constituem o
que circundam a vida das idéias, do mundo, a natureza e a matéria, uma
espírito e da própria sociedade. rede na qual o real-em-si não dá mais
Mesmo assim, a animalidade con- conta da realidade, e isso porque real/
tinua a ser a marca fundamental de virtual, real/mágico, real/imaginário
qualquer indivíduo vivo, seja ele uma impregam a totalidade das relações
bactéria, um rinoceronte, uma ameba, bioculturais.
ou um Homo sapiens. Qualquer indiví- A partir dos anos 1970, sua Antro-
duo é sujeito na medida em que faz pologia fundamental passará a ter con-
referência a si, e a não-si, reorganiza o tornos mais claros, no sentido de mo-
ecossistema, produz autopoiesis, num delizar a complexidade organizacional
movimento organizatório recursivo em do fenômeno humano. Se algum fun-
que causas e efeitos interagem mutua- damento deve ser buscado nesse ma-
mente, impulsionando o sistema para croobjetivo, ele deve estar situado nu-
outras direções. Essa auto-eco-organi- ma profunda insatisfação com o conhe-
zação do sistema vivo nutre-se de aca- cimento disjuntor, produto do grande
sos, tensões, contradições, erros, que paradigma do Ocidente, simplifica-
o reordenam de modo mais complexo, tório, que, além de dualizar razão/ima-
como se a relação ordem-desordem- ginação, sujeito/objeto, liberdade/
reorganização, cercada de antagonis- determinismo, sensível/inteligível,
mos, complementaridades e concorrên- pensamento selvagem/pensamento
cias estabelecesse uma dispersão em domesticado, separa, hierarquiza, dis-
espiral na configuração do todo. tingue, degenera o saber numa concep-
Embora a formulação dos “pressu- ção mutilante. Esse paradigma, uma es-
postos” da epistemologia complexa só pécie de cânone, mindscape, constituí-
viesse a se sistematizar no pensamento do por princípios ocultos que coman-
moriniano a partir dos anos 1960, eles dam a ciência e a própria subjetivida-
já se encontram cimentados nos traba- de, tornou-se hegemônico, determinis-
lhos da década anterior, com as desa- ta, hiperespecializando os diversos cam-
venças da morte, a magia do cinema, pos cognitivos em campartimentos
as epifanias do “star-system”, que põem não-comunicantes.
a nu a “desordem sapitental originária”. Muitas vezes já foi reiterado o sig-
Nossas personalidades não vivem nificado etimológico da palavra com-
nunca numa democracia plena. Subme- plexo como aquilo que se tece em con-

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junto, que reassocia o que está ender a natureza da natureza, a vida


dissociado, que comunica o que está in- da vida, o conhecimento do conheci-
comunicável. Essa complexidade não é mento, as idéias e as identidades, títu-
algo novo, identificado com o los dos cinco volumes publicados de
nihilismo, irracionalidade, pós- O Método.
modernidade ou até com auto-ajuda, Se alguém procurar nesses cinco li-
qualificativo que detratores e ressenti- vros um receituário linear de procedi-
dos se esmeram em murmurar nos fri- mentos e técnicas de pesquisa, pode
os corredores da academia. afastar-se de imediato da leitura. La
Se a idéia adorniana de que a tota- Metode é uma viagem transversal atra-
lidade é a não verdade é recorrente na vés de blocos de saber, de metapontos
totalidade da obra, o desafio parece de vista sobre os sistemas vivos, de
sinalizar a necessidade de civilizar as religações cognitivas, éticas e estéticas
idéias, para que seja possível reorgani- que permitem equacionar uma política
zar todo o processo de conhecimento, civilizacional para o planeta como um
dar novo sentido à vida, perceber que todo.
sociedade, cultura, cerebralização são Resta saber se essa regeneração se-
aspectos de um mesmo processo de au- rá efetivada a ponto de colocar um
to-organização complexificador. Mais ponto final na idade de ferro planetá-
que isso, as epifanias imaginárias e as ria. Em 1994, Edgar nos convocava a
desavenças da subjetividade não são assumir Sísifo como guia imaginário
meros epifenômenos, mas elementos para nossas ações. Como se sabe, Sísifo
constitutivos de um processo sócio-his- foi condenado por Zeus aos Infernos,
tórico que explicita, desde sempre, a tendo como castigo rolar um rochedo
unidualidade do Sapiens-demens. até o alto de uma montanha, de onde a
Caminhando pelas margens da vi- pedra sempre voltava a cair, em virtu-
da e do conhecimento, fiel à “concepcão de de seu próprio peso. Essa tarefa que
sintética de vida”, elaborada desde a nunca dava descanso ao herói, nem lhe
juventude, Edgar Morin exibe suas permitia fugir de seu vaticínio, deve
“partes malditas” (desordem) e “ben- ser a tarefa de todos aqueles que ain-
ditas” (ordem), sua unidualidade, num da acreditam que o caleidoscópio de
esforço de dialogizar sua própria sin- suas vidas e suas idéias vale para algu-
gularidade/universalidade, traduzin- ma coisa.
do-a num panteão transdisciplinar de Nos idos de 1995, em uma de suas
idéias que impõem uma reforma do e peregrinações planetárias, foi ele a
para o pensamento. Sarajevo, cidade onde sérvios bósnios,
Como um bionauta, navegador muçulmanos e croatas se defrontavam
empedernido da vida, era preciso me- pelo controle diabólico de um territó-
ditar, refletir — e muito — sobre a physis, rio que, a rigor, pertencia a todos eles.
a biocosmologia, o acaso, a biopolítica, Na Universidade sitiada pronunciou
o cérebro, numa tentativa de compre- um discurso em que enfatizava que os

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atentados à cidade representavam uma


agressão à alma do mundo e à preten-
dida reunificação européia. Lá foi rei-
terado que a idéia de nação é sempre
matripatriótica; lá foi demonstrado que
a fragmentação da Europa pós-comu-
nista em conjuntos poliétnicos rivais
representa um retrocesso à fraterni-
zação planetária; lá foi enfatizado que
o destino europeu se encontra preso a
uma luta titânica entre forças dis-
sociativas e de ruptura e forças associa-
tivas, solidárias e confederadas. Essa
luta não se restringe, porém, apenas a
um local. Ela atravessa a rede planetá-
ria em seu conjunto, como que domi-
nada pela dialogia da pulsão da vida e
da pulsão da morte.
Ao intitular a homenagem aos seus
80 anos de Edgar Morin, um humanista
planetário, a Unesco soube reconhecer
e atualizar o adágio de Antônio Ma-
chado que acomete a todos aqueles que
se sensibilizam com as infindáveis reli-
gações que os saberes culturais ainda
terão que realizar: “Caminhante não há
caminho, pois o caminho se faz ao andar”.

Recebido em 4/6/2002
Aprovado em 30/10/2002

Edgard de Assis Carvalho, professor do Depar-


tamento de Antropologia da PUC-SP.
E-mail: edgardcarvalho@terra.com.br

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