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COMPLEXIDADE

ARTIGO E SISTEMA
DE NA PSICOPEDAGOGIA
REVISÃO

COMPLEXID ADE E SISTEMA


OMPLEXIDADE NA
P SICOPEDAGOGIA
SICOPEDA

Maria Luiza Puglisi Munhoz

RESUMO - O pensamento complexo rompe com os paradigmas da ciência


tradicional ao propor a integração das culturas da ciência e das humanidades,
objetivando a conscientização da condição humana. A abordagem sistêmica
é um instrumento metodológico adequado para o pensamento complexo,
que considera o contexto e as complexidades inerentes aos processos
biopsicossociais influenciadores das condutas do ser humano. A partir dos
estudos da cibernética, o enfoque sistêmico cria uma teoria que procura dar
conta das relações, ao invés das partes isoladas, valorizando todos os
elementos dessa relação de forma igualitária. A Psicopedagogia, ao articular
disciplinas parcelares, caracteriza-se como um saber interdisciplinar que
utiliza os conhecimentos de outras disciplinas para a criação de conhecimentos
próprios. E ao focalizar os processos de ensino/aprendizagem em seus
aspectos relacionais abre uma via de acesso ao pensamento sistêmico para o
entendimento de sua atuação psicopedagógica. A fim de propor uma
estratégia de aprendizagem dos novos paradigmas, Morin8 amplia os
ensinamentos de Bateson2, ao desenvolver os Metálogos, e introduz a
argumentação como forma de chegar a aquisição de novos conhecimentos.

UNITERMOS: Psicopedagogia. Conhecimento interdisciplinar.


Pensamento complexo. Teoria sistêmica.

ENSINAR A CONDIÇÃO HUMANA NA Se pretendermos analisar os acontecimentos


INTEGRAÇÃO DAS CULTURAS de uma forma integral, a fim de captar as
múltiplas inter-relações presentes em qualquer
“Uma verdadeira viagem de descoberta
fato inerente à vida, temos que articulá-los,
não é a de pesquisar novas
estabelecendo uma comunicação solidária entre
terras, mas de ter um novo olhar”.
eles, para ensinar a condição humana, que se
Marcel Proust1 encontra ausente, no ensino atual. O grande

Maria Luiza Puglisi Munhoz - Psicopedagoga, Correspondência


psicóloga, mestre e doutora em Psicologia Clínica pela Rua Moncorvo Filho, 101- City Butantã - CEP: 05507-
PUC/SP; Especialista em Terapia Familiar e de Casais 060. S. Paulo – SP - Tel: (011) 3031-6963
pela PUC/SP; Professora e Pesquisadora do Instituto de marilumunhoz@uol.com.br
Psicopedagogia do setor de Pós-graduação Stricto
Sensu da Universidade de Santo Amaro-UNISA.

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desafio da globalidade consiste em fazer frente à orgânicos, psicológicos e sociais. Maturama7,


inadequação de um saber fragmentado, com biólogo e neurofisiologista, estudioso dos
elementos desconjuntados e compartimen- diferentes aspectos dos sistemas vivos, diz que a
talizados em disciplinas separadas, para dar humanidade tem percorrido uma bela e histórica
conta das realidades multidimensionais e caminhada, mas acredita que a inteligência
problemas cada vez mais transversais. humana somente poderá se desenvolver e se
Aprendemos a dividir, a separar, para expandir com a convivência amorosa e cooperativa
posteriormente sintetizar e compreender os entre os aspectos afetivos e intelectuais.
fenômenos humanos que não podem ser Procurar compreender o ser humano
separados por fazerem parte de uma mesma interagindo com seu meio, no mundo em que
trama, de um mesmo tecido. O desenvolvimento vive, em suas inter-relações, bem como observar
da cultura humanista permite um ensino que faz as instâncias -biológica, psicológica e social-,
convergir as disciplinas, a fim de facilitar a cada inerentes à sua essência, seria o primeiro passo
jovem espírito conscientizar-se do significado de para o entendimento do indivíduo em seu
ser humano. contexto e em sua complexidade.
Como as ciências da Terra nos permitem
conhecer nosso planeta, situando-nos na biosfera, COMPLEXIDADE: RUPTURA CULTURAL
e as ciências biológicas nos possibilitam O pensamento complexo coloca em confronto
acompanhar os processos evolutivos da vida os pressupostos da ciência tradicional, no final
animal e humana, as ciências humanas nos do segundo milênio, que se apóia em três pilares:
levarão a discernir o que é próprio do humano - 1. A ordem, a regularidade, a constância e o
o que representa sua inserção social e histórica, determinismo absoluto.
quais suas paixões, do que se trata seu 2. A separabilidade conceitual e expe-
imaginário, o mítico e o religioso -, propor- rimental. Separa o objeto de seu meio de origem
cionando uma consciência do caráter complexo para estudá-lo separadamente.
da condição humana. Do lado da cultura 3. O valor da indução e da dedução para
humanista, a literatura, o teatro e o cinema fazem estabelecer a identificação, recusando a
com que vejamos os indivíduos em sua contradição.
singularidade e subjetividade, possibilitando a São pilares, que no início do terceiro milênio,
apreensão de sua complexidade. Como diz perdem o seu valor, na medida em que se começa
Morin8:“Convém, pois, reconhecer o que é o ser a admitir que mesmo no mundo físico, em que a
humano, que pertence ao mesmo tempo à ordem tem predominado como soberana, existe
natureza e à cultura, que está submetido à morte um jogo dialógico entre ordem e desordem que é
como todo animal, mas que é o único ser vivo complementar e antagônico. Exemplo disso são
que crê numa vida além da morte e cuja aventura os grandes cataclismas, como a queda de um
histórica conduziu-nos à era planetária” . meteorito que extinguiu os dinossauros,
Assim, estaríamos procurando atingir a provocando a destruição de parte da natureza e
finalidade do ensino, que é facilitar ao aluno o sua posterior reconstrução, bem como, no mundo
acesso ao reconhecimento da própria huma- vivo, observando o constante movimento entre
nidade, contextualizando-a no “estar no mundo” morrer e viver. Sabemos que em cada ser vivente,
para poder assumi-lo. as células morrem e são substituídas pelo
Em algum momento nos tornamos humanos, organismo, e que o bombar de nosso coração leva
nos diferenciando das outras espécies vivas. oxigênio às células, desintoxicando-as,
Caracterizamo-nos, a partir daí, como um sistema promovendo o rejuvenescimento de nossas partes
complexo em funcionamento, dependente do constituintes. Portanto, partes de nós morrem e
compartilhar harmônico dos subsistemas: renascem a cada dia.

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Por sua vez, a separabilidade não permite causando tantas desgraças e infelicidades, e, por
considerar os fatores de organização ou sistemas outro, a miopia de uns olhando somente para si
de ligação dos objetos com eles próprios, num mesmo.
movimento intra, e de uns com os outros, num O mundo contemporâneo emerge com dois
movimento inter. É de conhecimento que a vida grandes desafios a serem enfrentados: a
se originou das moléculas, que estudadas mundialização dos processos e problemas,
separadamente perdem suas propriedades de tornando-se absolutamente essencial
vida - de reprodução, de auto-reprodução e de globalizar as formas de soluções, pois o que
movimentação -, que somente emergem devido acontece no contexto asiático, como exemplo,
a uma auto-organização complexa. Devido a ultrapassam suas fronteiras, tornando
esses questionamentos é que muitas ciências têm problemas mundiais com repercussões nos
se tornado sistêmicas, articulando entre si o processos locais de outras nações e culturas;
conhecimento de disciplinas isoladas, partindo e a incerteza do advir, devido à inconstância
da premissa de que não podemos separar em e efemeridade de nossos conhecimentos, em
nosso universo o que é inseparável. virtude das descobertas tecno-científicas, com
Referente ao valor absoluto da indução, e reflexos nos valores éticos que direcionam
mesmo da dedução, os estudos metodológicos nossas condutas. Alguns dos exemplos mais
de diferentes disciplinas apresentam suas expressivos são os efeitos do advento da pílula
limitações e derrapagens. Como exemplo, a anti-conceptiva e, mais atuais, das clonagens
física, em alguns experimentos com a partícula, de órgãos e de seres.
demonstra que esta pode comportar-se de modo Aprendemos que a aventura humana é
contraditório: em algumas situações é uma onda desconhecida. Dispomos, porém, de instrumentos
e em outras circunstâncias torna-se um para enfrentar o imprevisível: a consciência de
corpúsculo. A Biologia, por sua vez, apresenta nossa condição instável, inesperada, e a
profundos paradoxos, dependendo do foco de capacidade de modificar o comportamento frente
estudo: o indivíduo ou a espécie. Se virmos o às informações e novos conhecimentos, que nos
indivíduo, não focalizamos a espécie que dá possibilitem ações propícias.
continuidade à raça animal ou humana, e, num É preciso religar o que era considerado como
espaço de tempo maior, se focarmos a espécie, separado. Ao mesmo tempo, é preciso aprender
não há mais indivíduos. Assim, também a a fazer com que as certezas interajam com a
sociologia não estuda os indivíduos, incerteza. O conhecimento é, com efeito, uma
considerando-os como fantoches dos eventos e navegação que se efetiva num oceano de
circunstâncias sociais como única realidade incerteza salpicado de arquipélagos de certeza1.
existente e, da mesma forma, para alguns Para Morin1,8, a coerência do pensamento
psicólogos a sociedade deixa de existir, pois complexo está na coerência e na compreensão
somente estudam e querem compreender os das partes interligadas com a proposta de religar
indivíduos. as culturas separadas: a da ciência e a da
A partir dessas considerações, nos humanidade. Acredita que ao religar essas
certificamos da inoperância dos pilares culturas estará regenerando a cultura social,
científicos do último século, apontando para a porque se trata de uma ação que possibilita
necessidade de religar o que é considerado contextualizar corretamente, bem como refletir
separado, a fim de evitar que continuemos sobre o que é aprendido e tentar integrar esses
focalizando um único fragmento da humanidade, conhecimentos no nosso saber vivido. Situa o
do qual também fazemos parte. século XVI, como o início do desafio da ruptura
Por um lado, temos a ciência tecnocrática, cultural, que se intensifica nos meados do
incapaz de reconhecer os sentimentos humanos, século XX.

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A cultura científica e a cultura das propiciam a abertura para a criatividade de novos


humanidades apresentam naturezas totalmente conhecimentos. A missão da ciência não é mais
diversas. A científica é a cultura das expulsar a desordem, mas incorporá-la em suas
especializações, que tende fechar-se em si, teorias para que seja possível articular as
enquanto a cultura das humanidades não tem disciplinas parcelares (com vias de acesso e
muito a oferecer, uma vez que todos os circulação interna).
conhecimentos revolucionários do mundo físico,
sobre a realidade, sobre a vida e natureza humana ARTICULAÇÃO DAS DISCIPLINAS
provêm da cultura científica. Torna-se necessário De acordo com Morin1, disciplina é um ramo
integrar as ciências, como propõe Piaget1 ao do conhecimento que organiza uma área do saber
estabelecer a interdependência das diversas científico ou técnico, instituindo nesse
ciências, denominando-a de “circulo das conhecimento os conceitos, linguagem, divisão e
ciências”. Defende essa integração ao relacionar especialização a fim de dar resposta coerentes
os conteúdos de cada uma das culturas, científica aos domínios do conhecimento científico que
e das humanidades, situando as ciências recobre. Entretanto, a institucionalização
humanas como a que estuda o homem, não disciplinar pode promover um fechamento das
somente psíquico e cultural, mas também um ser disciplinas em suas fronteiras, com conceitos e
biológico, que por sua vez enraíza-se nas ciências linguagens próprias, que as isolam umas das
físicas. E as ciências físicas, por mais outras e dos problemas que a ultrapassam.
fundamentais que sejam, também são humanas, Schnitman12 afirma que a cultura contem-
pois aparecem numa história humana e numa porânea, em que se superpõem linguagens,
sociedade humana. A partir dessa visão ampla, tempos e projetos têm uma trama plural, com
todos as ciências são interdependentes, e o que múltiplos eixos problemáricos. Para dar conta
dificulta a articulação entre elas é a comunicação dessa pluralidade, faz-se necessário o surgimento
possível, em virtude das linguagens próprias e de uma consciência crescente de descontinuidade,
de conceitos fundamentais de cada uma, não não linear, não homogênea e determinista, mas
sendo redutíveis umas as outras1. sim que abrace a diferença e as contradições do
Morin 1,8 , em seus escritos, assinala a mundo em sua complexidade.
emergência ainda incipiente de um paradigma Assistimos a dissolução de discursos
cognitivo que começa a estabelecer ligações entre homogeneizantes e totalizantes nas ciências e na
ciências não comunicantes, concebendo o estado cultura, trazendo respostas não diretas, nem
de ordem complementar ao estado de desordem, estáveis. Sendo assim, a complexidade dos
em substituição ao paradigma determinista e problemas nos remete a um reordenamento
mecanicista, que concebe a exclusão do estado intelectual que nos habilite a pensar a
de desordem dos fenômenos físicos e humanos. complexidade; como também, o desconhecimento
Nesta nova concepção, essas noções devem do futuro pode parecer vantajoso se nos
ser entendidas como complementares e não mais impulsionar para o desenvolvimento da
como antagônicas. Surgiram no plano teórico, com consciência da ambigüidade dos processos
Von Foerster5, ao definir a implantação da ordem científicos e técnicos e das incertezas de nosso
a partir do ruído, e com Ilya Prigogine10 e seus porvir. Sem dúvida, o nosso tempo é de
colaboradores, que demonstraram processos de criatividade, generatividade e de restauração de
auto-organização em que a ordem emerge nos elementos singulares, do local, dos dilemas e das
sistemas caóticos, denominando de “caos aberturas para novas potencialidades. Para tanto,
determinista”. Os momentos de ordem promovem acreditamos que ao articular as disciplinas
a organização dos conhecimentos e produtividade parcelares no que possuem de vias de
como resultado final e os momentos de desordem comunicação interna seria um caminho para

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romper com suas fronteiras e limitações. transferências entre conceitos da Física, da


Assim nos sentiremos participes de uma narrativa Química e da Biologia, criando novos
de nosso relato histórico, por meio das vias de paradigmas nessas religações. E será a partir dos
que dispomos como indivíduos e pertencentes a conceitos da Física, baseados na teoria geral dos
grupos humanos, para poder atuar como sistemas de Ludwing von Bertalanffy3, que a
protagonistas de nossas vidas e nos incluir como Biologia os transporta para a compreensão das
sujeitos dos desenhos sociais. relações imanentes aos sistemas vivos,
Na história das ciências observamos, de um considerando o ser em sua integração com o meio-
lado, a constituição e proliferação de disciplinas ambiente, num processo constante de retro-
e, por outro, a ruptura de fronteiras disciplinares alimentação (feed-back positivos e negativos).
com circulação de conceitos e de formação de A noção de sistema aparece como conceito
disciplinas híbridas que se autonomizam. fundamental na investigação científica em que a
A Psicopedagogia é um exemplo de disciplina ciência não mais isola os fenômenos de seu
híbrida que se autonomizou a partir de sua contexto, investigando unidades cada vez
prática, por se tratar de uma atividade humana maiores. Sob o título de análise relacional
que ultrapassa os limites de uma disciplina sistêmica, convergem avanços de diversas
específica, pois engloba os aspectos físicos e especialidades científicas com articulações de
biológicos, cognitivos, afetivos, sociais e disciplinas que se incluem nas “ciências dos
relacionais do indivíduo, e ainda a sua sistemas” - teoria geral dos sistemas, cibernética,
capacidade de simbolização através das informática, teoria das decisões e teoria dos jogos
linguagens recorrendo, portanto, a diversas - que se dedicam aos estudos da interação entre
disciplinas científicas, tais como a Biologia, a fenômenos de organização, de regulação e de
Psicologia, a Pedagogia, a Lingüística e as escolhas de metas.
Ciências Sociais, construindo assim seu campo Iniciaram juntas e se desenvolveram
próprio de conhecimento. paralelamente com diferentes tendências: uma
Um dos casos de hibridização extremamente com tendência mecanicista, que se relaciona a
fecundos foi o ocorrido nos encontros que se técnicas de controle, automatização, inovações
operaram nos anos quarenta, durante a Segunda tecnológicas, e a outra com tendência organicista,
Grande Guerra Mundial, e depois dos anos que parte da premissa de que “um organismo é
cinqüenta, entre engenheiros e matemáticos, que uma coisa organizada” 3.
levaram a criação das máquinas auto- A pretensão das abordagens racionais
governáveis, condutoras da formação do que conduzem ao cálculo, à molecularização, à
Weiner denominou de cibernética. programação de itinerário, e exclui a intuição, e
a organização do artesão, do golpe de vista do
CIBERNÉTICA E TEORIA SISTÊMICA homem de ação. O vivido excede às possibilidades
Em 1950, Weiner13 defende a tese de que: “a do cálculo e das previsões, além de perder o que
sociedade só pode ser compreendida através de é inusitado e divertido por sair do programado
um estudo das mensagens e das facilidades de como objetivos secundários que desviam muitas
comunicação de que disponha”. Foi quando vezes da meta principal. O grande mérito dessas
utilizou pela primeira vez o termo “cibernética” abordagens teóricas foi justamente ter caminhado
para se referir a todo o campo do controle e da até aqui, possibilitando novos métodos de
teoria da comunicação, na máquina e no animal. investigação para compreensão dos fenômenos
No mesmo período histórico surgiu a “revolução em relação. É assim que a cibernética conduz o
biológica” que nos permite afirmar que as investigador aos temas resistentes à sua
mudanças vêm ocorrendo, especificamente, com penetração como a moral, a ética, a estética e ao
as sobreposições, as articulações e as amor. Novamente nota-se a necessidade da

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articulação da cultura das ciências e das culturas


Figura 1
das humanidades, quando surgem as contri-
buições dos epistemólogos Bateson2, Maturana7
e Von Foerster 4, definindo a cibernética da • • •
• • •
cibernética como a epistemologia dos processos
vivos e mentais, que implicam na recursividade,
auto-referência e paradoxo, incluindo a • • •
participação do observador. Esse exemplo
clarifica a compreensão das passagens da
cibernética de 1a ordem para a cibernética da
cibernética, ou cibernética de 2 a ordem: o
aparelho de calefação é controlado pelo termostato Figura 2
calibrado (organização e controle: cibernética de
1a ordem), mas há uma pessoa que calibra o
termostato, a qual é influenciada não somente
pelo clima, como por seu estilo de vida
(cibernética da cibernética, ou cibernética de 2a
ordem).
Temos aqui as versões da cibernética de 1a
ordem, referindo-se a uma tendência mecanicista
da ciência dos sistemas de máquinas triviais, e a
cibernética de 2a ordem, baseada em tendência
organicista da ciência dos sistemas vivos,
autônomos (sociais e ecológicos), autopoiéticos
(biológicos), autocriadores, denominado por Von Como já foi definida, cibernética de 1a ordem
Foerster4 de máquinas não triviais. consiste em mudanças de um comportamento
Sabemos que para chegar a solução de uma para outro, num mesmo modo de comportar-
situação problema, para promover mudanças, se; um ajuste para melhor atender às
precisamos sair das regras disciplinares, a fim necessidades do momento, muito adequado às
de poder enxergar com mais clareza as soluções. modificações de máquinas. Enquanto que as
Um exemplo abstrato, mas muito simples, mudanças necessárias aos organismos vivos se
tornará essa afirmativa mais clara: Os nove pontos processam de forma a promover mudanças de
da Figura 1 devem ser interligados por quatro valores, de condutas, em diferentes modos de
linhas retas sem se erguer o lápis do papel. se comportar.
A maioria das pessoas, ao tentar resolver
esse problema, parte de um pressuposto que PSICOPEDAGOGIA À LUZ DA TEORIA
torna a solução impossível. Visualiza o conjunto SISTÊMICA
de pontos como um quadro e que a solução Ao propor esse tema estamos resgatando as
deveria estar contida nesse quadro, condição experiências apresentadas por Gasparian 5
perceptiva e auto-imposta que não fazem parte referentes à análise das instituições numa
das instruções. Quer dizer que pode tentar perspectiva sistêmica. Por nos considerarmos
respostas ligando os pontos dentro do quadro, parceiras no estudo e compreensão dos princípios
numa mudança de 1a ordem, e não chegarão à norteadores da abordagem relacional sistêmica,
solução. Necessitam, sim, sair do campo para procuramos analisar a família e a escola como
encontrar a solução numa proposta de instituições interagentes no desempenho do ato
mudanças de 2a ordem. de educar.

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Ao situarmos a evolução da Psicopedagogia10 Ciret 6 sobre interdisciplinaridade e trans-


no quadro geral das ciências, podemos disciplinaridade. Enquanto a transdiciplinaridade
estabelecer as mudanças de paradigmas, situa-se entre as disciplinas, através de diferentes
posicionando-a numa nova forma de saber. disciplinas e além de qualquer disciplina, tendo
A ciência tradicional se apóia em uma como objetivo a unidade de conhecimento numa
metodologia de verificação objetiva do que pode integração sem barreiras disciplinares de
ser controlado e manipulado na busca de especialistas de várias áreas, a interdiscipli-
conhecer um só aspecto do fenômeno pesqui- naridade tem como finalidade a criação de um
sado, e inspira-se num mecanismo causal e novo campo de conhecimento a partir da
seqüencial de causa e efeito de um pensamento superposição de outras disciplinas, não se
mecanicista. Subjaz a concepção de mundo de restringindo a uma simples somatória, mas de
relações permanentes e imutáveis, regidas por um pensamento novo que surge.
regras simples, inspirada no paradigma da Este último aspecto é extremamente relevante:
simplificação. Dentro disso, o que nos parece a Psicopedagogia não apenas utiliza os
fundamental é a relação estabelecida entre o conhecimentos de outras disciplinas, mas, a partir
sujeito/objeto, caracterizada como posições deles, cria conhecimentos novos. Sendo um
distintas e independentes, na qual o campo novo do conhecimento científico, é fértil
pesquisador se aproxima do fenômeno ao em possibilidades criativas, oferecendo uma
pesquisar de forma neutra, controlando as liberdade de inovação, que nem sempre é fácil
variáveis para manipulá-las em busca da em outras áreas científicas mais estratificadas.
objetividade, reduzindo o diverso, o diferente, Configurando-se como um estudo interdisciplinar,
a uma única dimensão9. a Psicopedagogia, por princípio, ultrapassa os
Sendo a Psicopedagogia um todo único, com estreitos limites da disciplina. Assim sendo,
uma dinâmica específica, fruto da integração de aproxima-se mais da visão integradora do
disciplinas que abordam os fenômenos humanos pensamento sistêmico.
em suas inter-relações, não se ajusta a essa O pensamento sistêmico deixa de focar o
concepção de mundo e, por si só, escapa às indivíduo para focar as relações, considerando
limitações impostas pelos objetivos, leis e as características das interações humanas
paradigmas da simplificação. Evolui, portanto, pautadas nas diferenças e nas contradições. O
para uma concepção mais ampla, definida, psicopedagogo, ocupando-se das relações entre
atualmente, como ciência contemporânea, que os seres ensinantes/aprendentes e de como se
acompanha o mundo em sua trajetória: da operam as passagens/aquisições do conhecimento
estabilidade para a instabilidade; do simples para em um contexto específico, a partir dos conceitos
o complexo; do mundo estável para o mundo do da abordagem sistêmica, orientará o foco de seu
processo, enquanto ocorrem os comportamentos olhar para o ser em desenvolvimento, com suas
humanos no seu percurso evolutivo de diferenças e contradições ao vivenciar as relações
aprendizagem, com presença constante das consigo mesmo, com o mundo, e com o
interações e interligações dos eventos. Será nesse conhecimento10.
momento histórico que a Psicopedagogia passa Retomamos o pensamento de Gasparian5 com
a considerar o aprender/ensinar como processos, os seguintes questionamentos: É possível ensinar
numa ação conjunta na construção do e aprender sem relacionar-se, sem influenciar e
conhecimento. ser influenciado por alguém? E em todo o processo
Embora alguns autores considerem a de aprendizagem não estão implicados os quatro
Psicopedagogia como um campo de estudo níveis: o organismo, o corpo, a inteligência e o
transdisciplinar, este entendimento não se desejo? Não seria já um sistema interagindo com
sustenta se utilizarmos os conceito do seus elementos?

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Em resposta, consideramos o aprender e o ensinável que legitima um raciocínio por


ensinar como ações que perpassam por muitas argumentações que impede a criação de
questões de ordem objetiva e subjetiva que se verdades eternas, inquestionáveis, absolutas e
articulam com o significado do que se quer impostas. Estaríamos assim formando cidadãos,
conhecer, conectado aos vínculos internos e que situam os saberes em seus contextos,
externos na relação com o conhecimento, e a aproveitando-os em suas vivências. Meta-
Psicopedagogia como área de estudo que se forizando seria formar clínicos e não cirurgiões,
encontra entre os espaços existentes nessas que em sua ação somente irão recompor o órgão
relações, dando sentido às interações dessa rede enfermo. O clínico é aquele que pretende
complexa, pois o indivíduo não aprende sozinho compreender o processo da enfermidade num
e como conseqüência os ensinantes - a família e dado contexto, num diagnóstico global, propondo
a escola - aprendem juntos. Por sua vez, o as condutas sucessivas na busca da meta
conhecimento não é único e finito, ele se amplia, desejada.
se modifica em suas interações familiares e Apresenta como proposta, não usar somente
socioculturais9. dos procedimentos de separação e departa-
mentalização das peças para depois remontá-las,
ENSINAR NUMA NOVA RETÓRICA: A como tem se fundamentado o conhecimento
SISTÊMICA analítico base de nosso ensino, nos dois últimos
Partimos dos relatos de Morin8 ao narrar suas séculos, mas sim: “... aprender a modelizar, a
experiências nas Jornadas Temáticas em Paris, representar fenômenos, percebendo-os como
que usa como estratégia para tentar consolidar a ativos em seu contexto, em relação a algum
“modelização sistêmica” como paradigma projeto que eles formem, transformando-se neles
epistemológico que legitime os conhecimentos com o passar do tempo. Os saberes em questão
transmitidos e, os contextualize em nossa prática, estão disponíveis, acumulado pelo menos há dois
faz as seguintes perguntas aos educadores: “Que mil e quinhentos anos de história humana. Basta
saberes estamos produzindo por meio de nossa olhá-los, recolhê-los, mobilizá-los8”.
ação? Podemos transformar o fazer em saber, para Bateson2, no decorrer de seu percurso como
depois poder fazer sabendo, e sabendo porque docente, ministrando palestras e aulas sobre os
fazer?8. principais temas desenvolvidos nas áreas de
O ato de interrogar nos propicia raciocinar, antropologia, psiquiatria, evolução biológica e
não somente o que fazemos, mas como estamos genética, ao focalizar as crises contemporâneas
fazendo. Pergunta-se o que fazemos, a que se do homem com o seu fazer em relação à natureza,
refere nossa própria ação e em que poderia afirma que somente poderá haver uma
transformar-se o nosso saber e a nossa prática compreensão desses fatores por meio de uma
pela ação da contextualização. ecologia dessas idéias. Propõe algumas questões:
Segundo Morin 8, torna-se emergente a “Como interatuam essas idéias? Existe algum tipo
necessidade de reencontrar os procedimentos de de seleção natural que determina a
contextualização, a fim de possibilitarmos a sobrevivência de umas idéias e a extinção de
apreensão e construção de representações do que outras? Quais são as condições necessárias para
ouvimos e fazemos, se pretendemos formar a estabilidade de tal sistema ou subsistema?”
cidadãos. Parte desses questionamentos para propor um
Para o autor, uma maneira possível de novo formato para a aquisição de um
contextualizar os saberes seria pela ciência da conhecimento coerente e significativo para o
argumentação, vista e ensinada nos primórdios homem em relação ao seu ambiente. Trata-se de
do século XX como o ensino da retórica. Acredita um processo de conhecimento por meio da
que a ciência da argumentação é uma disciplina argumentação, denominado de Metálogos,

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Metálogo2 é necessariamente uma conver- dinheiro,(medido pelo taxímetro) pagos a um


sação entre o homem e a natureza sobre algum motorista que o conduz.
tema problemático, numa constante criação e Cris.: Uma vez fiz um experimento. Queria
interação de idéias, que exemplifica um processo experimentar se podia pensar em duas idéias ao
evolutivo. mesmo tempo. Então pensei: “É verão” e pensei:“É
Trechos de um dos Metálogos criados entre inverno”. E logo tratei de pensar os dois
Bateson (Bt.) e Cristine (Cris)2: pensamentos juntos.
Bt.: E daí?
(Cris.): “QUANDO É QUE SE SABE?”
Cris. : Descobri que não estava tendo dois
pensamentos, somente tinha um pensamento
Cris.: Pai, Como é que sabemos algo?
sobre ter dois pensamentos.
Bt. : Penso que conhecimento é algo como um
Bt.: É assim efetivamente, não se pode mesclar
tecido, uma tela, e que cada pedacinho tem
os pensamentos, somente se pode combinar e que
sentido ou utilidade quando ligado a outros
o maior engano sobre os pedacinhos de
pedacinhos.
conhecimento é tentar juntá-los para contá-los
Cris.: Como algo que teríamos que medir com todos juntos.
um metro, como fazemos ao comprar uma tela?
Bt. : Não filha, porque uma tela tem duas Bateson 2 , como outros epistemólogos,
dimensões e podem se somar, mas o compreendem que os processos de construção do
conhecimento tem mais dimensões, então não conhecimento, descritos como aprender a
medimos o conhecimento da mesma maneira. aprender, se integram num movimento recursivo
Cris.: Realmente o que ocorre é que temos com outras formas de abordar o mesmo fenômeno,
um grande pensamento com muitíssimas como a Psicologia, a Pedagogia, a Sociologia e
ramificações, centos e centos de ramificações. outras disciplinas qu e não se esgotam em si, mas
Bt.: Parece-me que é assim. Penso ser a que se complementam e ao mesmo tempo se
maneira mais clara de expressá-lo contrapõem, contestando o que já conhecem, na
criação de novos pensamentos e idéias, numa
Cris.: E por que não podemos somar ou
ampliação de novos conceitos. Seria um
subtrair as medidas do conhecimento, como
movimento semelhante a uma rica dança
fazemos com uma tela ou tecido que se compra?
complexa e multifacetada, com passos regulares
Bt. : Porque não podemos mesclar classes de
ou irregulares, muitas vezes previsíveis e outras
coisas diferentes. A idéia de quilômetros é
vezes imprevisíveis.
realmente diferente da idéia de laranjas, se
As contribuições mais valiosas desses autores
somá-las obterá uma bela confusão em sua
consistem em entender que o conhecimento do
cabeça.
conhecimento não se dá somente num nível
Cris. : Mas você não pode manter as idéias metateórico, mas também num nível vivencial,
separadas em sua cabeça papai? Deveria poder. onde incluímos uma ampla noção da subjetividade
Bt. : Não, somente podemos combinar duas ao se criar um diálogo com a complexidade do
classes de coisas diferentes multiplicando-as, aprender a aprender. Isso porque, ao estudarmos
ou dividindo-as, que trará como resultado uma ou desenvolvermos qualquer teoria, devemos
nova classe de coisas. Se dividir quilômetros pensar em quem é o sujeito que vivencia esse
(medido pelo metro) e horas (medido pelo processo. Importante conhecer o que pensa, o que
relógio) teremos velocidade. Ou se deseja e como o faz, conhecendo suas histórias
multiplicarmos quilômetros por hora teremos passadas, assim como as experiências de sua
quilômetros em horas que se transforma em história atual.

Rev. Psicopedagogia 2002; 20(62): 179-88

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MUNHOZ MLP

SUMMARY
Complexity and systems in psychopedagogy

When complex taught asks for the integration of science and humanities,
aiming to reach the consciousness of human condition, it brakes the traditional
science’s paradigms. The systemic approach is a methodological instrument
that is very fit for the purposes of complex taught, which considers the context
and the inherent complexities of the psycho-bio-social process that influences
the human behavior. After the cybernetic studies the systemic approach created
a theory that gave great importance to the relations instead of the related
parts in itself, and giving them the same importance on the process as a
whole. The psychopedagogy could be understood in terms of an
interdisciplinary knowledge, as it bases itself on the many different kinds of
knowledge of other disciplines to create its own knowledge. Stepping away,
far from the discipline’s frontiers and focusing on the teaching/learning process
(in its relational aspects) we found a new way for the systemic taught to
understand the psychopedagogic process. Decided to propose a learning
strategy for the new paradigm, Morin1 amplifies the lessons of Bateson2 when
he developed his meta-dialogs and introduces the argumentation as a valid
way to reach new knowledge.

KEY WORDS: Psycopedagogy. Interdisciplinary knowledge. Complex


taught. Systems approach.

REFERÊNCIAS 7. Maturana, H. O sentido do humano.


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2. Bateson, G. Passos hacia una ecología de la 9. Munhoz, MLP. A psicopedagogia como
mente, Buenos Aires: editorial Planeta Argentina veículo para a construção do sujeito,
en coedición con Carlos Lohlé S.A., 1991. Cadernos de Psicopedagogia vol.1, n o 1,
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10. _____. Bases teóricas da visão sistêmica, in:
cional sistêmica. S. Paulo, SP: Abril
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M. S. & Capobilla, A. G.S. (orgs.). A 13. Weiner, N. (1948) Cybernétics or control and
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técnicas de pesquisa em psicopedagogia, São machine, Cambridge, Massachussets: The
Paulo: Memnon: 66-78. Mit. Press, 1961.

Trabalho realizado no Instituto de Psicopedagogia da Artigo recebido: 04/06/03


Universidade de Santo Amaro –UNISA, São Paulo, SP. Aprovado: 14/07/03

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