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ENSINO DE BIOLOGIA E SABERES DA TRADIÇÃO

SEVERO, Thiago Emmanuel Araújo – UFRN


thiagosev@gmail.com

ALMEIDA, Maria da Conceição Xavier de – UFRN


calmeida17@hotmail.com

Eixo Temático: Cultura, Currículo e Saberes


Agência Financiadora: CNPq

Resumo

No conjunto das transformações por que passa as ciências modernas na contemporaneidade,


destaca-se a ampliação das estratégias de diálogo inter-saberes por parte das ciências naturais.
De fato, compreender o que foi cindido e o que é capaz de refazer os elos entre saberes
distintos tem prefigurado, de forma lata, um horizonte paradigmático e pragmático dos vários
ramos das ciências. Cabe a nós, educadores, compreender a intersecção entre domínios do
mundo, o que configura o que Bruno Latour denomina de híbridos, ou seja, entidades ou
fenômenos emergentes que bricolam Natureza e Cultura. No espaço desta comunicação temos
como referência a abordagem das ciências da Complexidade como substrato para o ensino de
ciências e, em particular, da Biologia. Conceber a incerteza e o inacabamento da cultura
científica consolidada é um passo importante para abrir-se outras interpretações e leituras do
vivo e do não vivo que parasitam, como matriz, os conhecimentos da Biologia. Ter por
estratégia de método a complementaridade entre os dispositivos interpretativos científicos e
aqueles que emergem, de forma igualmente sistemática, dos saberes da tradição permite
religar conhecimentos diversos e, sobretudo, operar simultaneamente pela lógica do sensível e
da formalização dos modelos científicos. Bruno Latour, Henri Atlan, Basarab Nicolescu, Ilya
Prigogine, Lévi-Strauss e Edgar Morin são algumas das matrizes epistemológicas que dão
suporte a essa comunicação. O texto se desdobra em três eixos: no primeiro, um panorama
introdutório repõe o marco teórico de autores de ponta na Biologia, na epistemologia e nas
ciências da Complexidade; no segundo, argumenta-se a respeito da pluralidade dos saberes e
da necessidade de uma ciência múltipla, híbrida e transdisciplinar; por fim, expõe-se uma
experiência de religação de saberes que tem por horizonte a formação de professores da rede
pública municipal, de um município do estado do Rio Grande do Norte.

Palavras-chave: Ensino de Biologia. Saberes da tradição. Natureza. Cultura.


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Introdução

O desdobramento do tempo marca evoluções de diversas ordens que fazem emergir


eventos igualmente diversos. Estes eventos dificilmente seguem um padrão linear,
determinístico e previsível, assim como previa a ciência clássica, uma vez que parte destas
transformações são marcadas pela dinâmica dos “sistemas longe do equilíbrio”. O surgimento
do novo, da novidade e da inovação, nos sistemas naturais nos expõe uma face da realidade
nunca inteiramente determinada, mas, ao contrário, em constante construção (PRIGOGINE,
2009).
Num universo em expansão e repleto de bifurcações, como podemos compreender as
relações entre a Natureza mutável, a Cultura – igualmente mutáveis e permanentemente
resignificada – e as ciências? A Natureza, a Cultura e as ciências são, de maneira análoga,
incertas e imprevisíveis? Como estudá-las? Como trabalhá-las em sala de aula? A
compreensão dos sistemas complexos mostra que construímos abismos gigantescos entre
Natureza e Cultura, principalmente por tentar compreendê-las através de capítulos separados
de um mesmo grande livro da vida (NICOLESCU, 2000).
Ilya Prigogine (2009) argumenta que as características incertas do Universo descritas
pelas ciências modernas nascidas no século 17 nos impõem, hoje, um ponto de intersecção e
não de separação. Tem-se, de fato, a sequência de histórias que se desdobram no tempo.

O Universo parece ter algum parentesco com o livro das Mil e Uma Noites, nas
quais Sherazade narra histórias que se ligam umas às outras: a história da
cosmologia, a história da natureza, a história da vida, da matéria e das sociedades
humanas. (Idem, p. 32)

Neste contexto, “cabe às futuras gerações construir uma ciência que incorpore todos
estes aspectos, porque, por enquanto, a ciência continua em sua infância” (Idem, p. 17).
Certamente as oposições entre Natureza e Cultura, ciência e sociedade, Cultura científica e
Cultura humanística, fazem parte desta história ainda pueril de uma ciência nascente.
Quanto a nós, educadores e cientistas, cabe, ao que parece, favorecer bifurcações e
flutuações, tanto quanto nos alimentarmos de incertezas. É nossa missão construir estratégias
e subsídios para esta árdua tarefa. Cabe a nós, educadores também, compreender a intersecção
entre os vários domínios do mundo, o que configura propriamente os híbridos, ou seja,
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entidades ou fenômenos emergentes que bricolam Naturezas-Culturas, o que na nomenclatura


proposta pelo historiador da ciência e antropólogo Bruno Latour, constituem os “quase
sujeitos” e “quase objetos”. Por meio da multiplicação destes intermediários, destes híbridos
de Natureza, Culturas, ciências e saberes, “acabaríamos colando de volta as duas partes –
natureza e social – que, anteriormente, estavam infinitamente afastadas” (LATOUR, 2009).
Em larga escala, tanto as Culturas quanto às ciências modificam-se pelo advento dos
avanços tecnológicos e tem balizado os interesses e objetivos do desenvolvimento das
sociedades. Em decorrência, modificam-se também nossos objetos e métodos científicos de
compreendê-los. As ciências naturais ampliam, hoje, suas estratégias de compreensão dos
fenômenos indo além do artifício de partir do fragmento para entender o todo, ou vice-versa.
Agora procuram compreender o que está entre o que foi partido, aquilo que os une, religando
e dando voz aos mediadores emergentes. Como propõe Latour (2009), Natureza e Cultura não
são mais termos excludentes nem auto-explicativos, “mas sim aquilo que requer uma
explicação conjunta” (p. 80).
Como poderemos explicar – e ensinar – conjuntamente Natureza e Cultura a partir das
ciências naturais? Na verdade esta fratura é um marcador arbitrário e expressa as marcas de
um paradigma da ciência em declínio denominado por Edgar Morin de “O Grande Paradigma
do Ocidente”.

Ciências múltiplas e multidimensionais

Vivemos em um mundo dinâmico, que se renova e modifica a partir de processos


diversos, alguns deles cíclicos outros descontínuos. Henri Atlan argumenta que estas
constantes transformações que movem nosso mundo têm berço tanto nas relações biológicas
quanto nas pré-biológicas que, apesar de suas diferenças evidentes, são complementares. Esta
unidade histórica que nos ajuda a entender a narrativa da flecha do tempo é, por um lado,
“pré-biótico que conduziu às origens da vida”, e por outro “biológico propriamente dito que
produziu o aparecimento de novas espécies, inclusive a espécie humana” (ATLAN, 2001, p.
65). Para este autor é de fato difícil, e mesmo impossível, conceber um limite exato entre o
que é da ordem do vivo e do não vivo. O biótico e o pré-biótico exprimem taxonomias
operativas que favorecem uma lógica da compreensão dos fenômenos, mas exprimem
também uma construção cognitiva inexata, do ponto de vista da ontologia da realidade.
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Edgar Morin e Michel Cassé (2008) vão mais longe a este respeito. Em Filhos do Céu,
o que temos em destaque é nossa filiação ao universo, domínio em relação ao qual somos
simultaneamente próximos e distantes, filhos e estranhos. Filhos do universo porque somos
constituídos das mesmas partículas que originaram o cosmos. Estranhos porque desde que a
espécie humana existe, sofre mutações e reorganizações nos padrões de ordem e desordem do
ser. Esta condição de familiaridade e estranhamento diante do universo inquieta-nos perante o
mundo, seus desafios e possibilidades. Nosso pertencimento e nossos horizontes projetivos
são marcados pela incerteza e pela relação ambígua entre Natureza e Cultura.
Nossos dispositivos de compreensão do nosso ser no mundo nos foram sendo
construídos por pensadores e intelectuais capazes de, por vezes, imputar um sentido de
verdade que construíram os grandes paradigmas da ciência, marcados pela certeza. Esses
pensadores e intelectuais de pertencimentos disciplinares diversos procuraram descrever e
compreender as diferentes relações, formas e interações presentes na Natureza. Os saberes
construídos pelas suas observações sistemáticas são até os dias de hoje fonte de inspiração e
pesquisa para as ciências formais, que levam consigo a marca dos métodos acadêmicos e da
quantificação laboratorial. Uma multiplicidade de saberes construídos pelas sociedades
tradicionais estão relegados ao segundo plano ou são excluídos da rede de disseminação das
instituições educacionais. Muitos destes saberes permanecem, portanto, no esquecimento das
sociedades ocidentais ou são discriminados como saberes menores, uma vez que a estes foram
imputados valores da inconsistência ou do esoterismo.
O fato é que os saberes da tradição têm demonstrado sua eficácia e é deles que se
valem numerosas populações espalhadas pelo planeta. As diferentes observações e condições
sócio-culturais em que foram desenvolvidos estes saberes geraram, historicamente, métodos
singulares de viver e compreender o mundo. Como sabemos, a ciência, mesmo que
hegemônica na sociedade ocidental é uma entre as várias representações sobre os fenômenos
do mundo e da Cultura (ALMEIDA, 2009). Em face destas singularidades e diversidades de
saberes narrados ao longo da flecha do tempo, o que realmente mudou? Haveria diferença
entre a concepção de Natureza descrita pelos saberes da tradição e os saberes dos cientistas?
De que meios se valer na formação do Biólogo, por exemplo, para ampliar o conjunto de
saberes diversos em relação à concepção de Natureza?
Para compreender a importância da dimensão diversa da concepção de Natureza nos
valemos aqui de um questionamento posto por Basarab Nicolescu (2000), no seu Manifesto
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da Transdisciplinaridade. O que há de diferente entre a natureza que inquietava Galileu ou


Descartes e aquela que inquietou os astrofísicos soviéticos, quando puseram o primeiro
satélite em órbita para compreender a superfície terrestre? Nada, exceto o próprio homem,
conforme assinala o autor. De fato, um imaginário histórico e mutante está na base das
diversas concepções de Natureza que Nicolescu estratifica em três categorias: A “Natureza
mágica, a Natureza como máquina e a morte da Natureza”. A primeira, uma concepção ligada
às sociedades arcaicas, a segunda construída pelo pensamento mecanicista dos séculos 18 e 19
e a terceira nascida no século 20 (NICOLESCU, 2003, p. 92, 93).
Cabe destacar que os imaginários sociais que estão na base das concepções da
Natureza nem sempre dão o devido lugar à diversidade dos tempos que marcam os diversos
domínios do mundo. Como sabemos, o tempo dos homens é imensamente efêmero quando
comparado aos tempos cósmicos, geológicos e biológicos expressos pela Natureza. Mas,
apesar de distintos estes diferentes tempos não se separam, mas, propriamente, se desdobram
oferecendo emergências de domínios distintos como ocorre nos sistemas complexos. É nesta
perspectiva que Henri Atlan (2001) defende uma unidade histórica na Natureza, uma narrativa
descontínua, porém constante.
Faz sentido, portanto, compreender os híbridos e as mestiçagens que emergem entre as
diferentes Culturas e a Natureza como padrões de organização emergentes regidos pela flecha
do tempo e que ganham destaque no advento incerto das criatividades e das propriedades
dinâmicas da Natureza. A hipótese aqui é que há uma unidade descontínua, porém constante,
que se origina dos mesmos compostos orgânicos dispersos na matéria, no bios e nas culturas
humanas. Em outras palavras, como lembraram Shakespeare, Edgar Morin e Michel Cassé, os
humanos são pó de estrelas, mesmo que expressemos uma auto-organização infinitamente
mais complexa do que os sistemas estrelares. As palavras de Prigogine são aqui exemplares
para expressar esse desdobramento da história do tempo: “há uma história cosmológica no
interior da qual há uma história da matéria, no interior da qual há, finalmente, a nossa própria
história” (PRIGOGINE, 2002, p. 26).
Estamos imbricados neste ser do mundo, complexo e transformador de realidades, ao
passo que, simultaneamente, transformamos e adaptamos nossas compreensões e significados
pautados na cultura de nosso tempo. Disso decorre que a realidade não são os fenômenos e as
coisas em si, “mas uma construção do sujeito mediada por suas convicções, limitações e
contingências” (ALMEIDA, 2010, p. 26).
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Como proposto por Lévi-Strauss (1976), é essencial reintegrar Cultura na Natureza.


Para isso precisamos revisitar nossa própria trajetória errante e tentar escapar de vícios
intelectuais como uma forma de reduzir e simplificar saberes ricos e múltiplos, construídos
através de várias gerações. Todo o esforço da Cultura científica por unificar e hierarquizar
saberes diversos é uma tentativa de reduzir a diversidade como um valor maior da
representação das culturas sobre o mundo. Hegemonizar e tomar como verdadeiro um único
domínio de representação é uma arrogância que começa a se reduzir a partir da metade do
século 20.
O diálogo a partir dos diferentes saberes originários dos pensadores e intelectuais – do
nosso tempo e de outros – é um caminho rico no que diz respeito à construção de um
repertório mais amplo de conhecimentos sobre nosso mundo, ou seja, de uma ecologia das
idéias (ALMEIDA, 2010).
Neste sentido conseguimos enxergar as possibilidades para a organização de um
processo educativo mais justo, construído sobre uma ciência multifacetada e a uma sociedade
integrada a estas Naturezas-Culturas (LATOUR, 2009). É por meio de uma ciência
atualmente em reorganização que tem levado a rubrica de Ciências da Complexidade que
conseguiremos aproximar e atribuir sentido aos híbridos – múltiplos saberes que perpassam
nossa sociedade, políticas, instituições de ensino e práticas profissionais.
Um dos grandes desafios do nosso século, marcado por um paradigma informacional
que privilegia velocidade e quantidade de informações é, certamente, saber escolher e tratar
bem estas informações, transformando-as em “conhecimento pertinente” (MORIN, 2005), ou
seja, ler bem o nosso mundo, imerso em incertezas. Exercitar uma ecologia das idéias a fim
de evitar dualismos nocivos, que separem as compreensões e os diferentes saberes é, hoje,
uma meta a ser assumida pelos educadores.
A Natureza não é um livro morto, que está a nossa disposição para ser decifrado, mas
um livro vivo, sendo continuamente escrito (NICOLESCU, 2002) por intelectuais que, em
seus respectivos contextos, se valem de conhecimentos milenares para ler e compreender a
Natureza de seus tempos.
Cabe perguntar: Por que não nos valer de saberes plurais e diversos, sistematicamente
construídos e validados pela experiência de tantos leitores do ecossistema, da fauna, da flora e
dos fenômenos físicos? Por que não reabrir o livro da Natureza? Por que não redefinir nossas
práticas como educadores a partir das várias compreensões que compõem a nossa Cultura?
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Desdobramentos e Reencontros

Compartilhamos com pensadores, civilizações e expressões culturais de todos os


tempos, vestígios de uma mesma Natureza em auto-eco-organização permanente e que é lida
em seus mistérios e desafios. A cultura que recebemos hoje como herança, funda-se sobre
dois domínios de saberes principais: de um lado os saberes da tradição; do outro os saberes
científicos.
Nossa história, inicialmente desenhada por múltiplos caminhos, por fim tendeu a
seguir a reta das especializações. Esta reta nos direcionou para a excessividade das técnicas e
para a hegemonia de um domínio do saber sobre os outros. Isso contribuiu para aumentar as
distâncias entre o abismo que as separa, representações do mundo diversas, visto que a
consolidação das ciências modernas “só foi possível às custas da redução, assimilação e
negação de diversas formas de representação do mundo” (ALMEIDA, 2010, p. 58).
Esquecemos que a ciência, assim como suas especialidades e técnicas nasceram,
“justamente, da domesticação de parte dos saberes milenares, mesmo que deles tenha, um
pouco, se distanciado” (ALMEIDA, 2010, p. 59). Ora, uma vez que a Natureza se expressa
através dos híbridos que emergem de suas relações intrínsecas, transformando-se e recriando-
se biológico, físico e ontologicamente, compreendê-la a partir de um referencial apenas
compromete uma democracia cognitiva e subjuga a diversidade de saberes.
A complexidade das relações entre a Natureza e a Cultura torna necessária sua
compreensão através da dinâmica permanente dos sistemas abertos assim como de suas
diversas representações, a fim de torná-las significativas, em sintonia com as necessidades
sociais e com os verdadeiros problemas que emergem nas esferas político-sociais. Neste
sentido, é urgente superar a monocultura da mente (SHIVA, 2003), indo além de um conjunto
de práticas herméticas construídas através de erudições narcísicas de uma ciência mecânica e
de formas de ensino que perpetuem estas culturas da fragmentação. Mas como?
Os Parâmetros Curriculares Nacionais da educação básica, por exemplo, já
contemplam este ensino de ciências amplo e complexo. De acordo com ele, o ensino de
ciências deve abordar a construção de um mundo socialmente justo e ecologicamente
equilibrado, o que requer responsabilidade individual e coletiva em níveis local, nacional e
planetário (MEC/BRASIL, 2006). Desse modo, as ciências tomam para si um papel social,
que vai além do laboratório físico, onde são feitos e reproduzidos experimentos. Toma para si
valores que, através da educação, qualifica e objetiva a construção de “conhecimentos,
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habilidades, atitudes e competências”, sendo estes um “bem de uso comum do povo, essencial
à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade” (MEC/BRASIL, 1999, p. 1).
No espaço desse artigo ampliamos esta abordagem complexa do ensino de ciências e
dos diálogos entre a Natureza e a Cultura para as ciências Biológicas. Uma abordagem
complexa do ensino de Biologia deve estar relacionada à sua própria condição imprecisa,
envolvendo transformações e interações, construindo-se e desconstruindo-se não apenas a
partir do vivo, como também do não vivo.
É a partir dessa condição intrínseca de mutabilidade que devemos refletir sobre o
currículo dos cursos de ciências Biológicas, da educação básica à superior. Já ultrapassamos
os imobilismos das dualidades Natureza vs Cultura, ciêcia vs sociedade? Os currículos
construídos de forma universal pelas ciências ocidentais estão fundamentados apenas nos
saberes “formais”, isto é nos conhecimentos e conteúdos paradigmatizados. Subjaz a essa
projeto curricular pedagógico o fantasma de um outro, ou seja, o que é diverso e, de forma
subliminar, sua automática aniquilação. Um tal processo se mantém e se repete em todos os
níveis de escolaridade, da alfabetização ao pós-doutoramento.
Como podemos pensar a criação do novo, a estocasticidade, a variabilidade nos
ecossistemas a partir de programas seqüências, impossíveis de retroceder ou expandir?
Poderíamos pensar a transformação curricular do ensino das ciências Biológicas por
meio de uma estratégica policêntrica. Para alavancar tal horizonte, a formação dos professores
de Biologia precisaria nutrir os licenciandos de conteúdos que os permitisse ir expandindo
seus referenciais e dando lugar aos outros saberes, enquanto representações importantes para
se aproximar das metamorfoses próprias ao que é da ordem dos fenômenos do mundo.
Aprender com outras representações e interpretações distintas da ciência hegemônica, e ter
como meta uma aprendizagem entre as Culturas, parece aqui ser o princípio epistemológico
que alicerça o ensino complexo da Biologia.

As culturas devem aprender umas com as outras, e a orgulhosa cultura ocidental,


que se colocou como cultura-mestra, deve-se tornar também uma cultura-aprendiz.
[...] Existem dentro de cada cultura, mentalidades abertas, curiosas, não-ortodoxas,
desviantes, e existem também mestiços, fruto de casamentos que constituem pontes
naturais entre as culturas. (MORIN, 2007, p. 103)

Valorizar as compreensões de Natureza a partir dos intelectuais da tradição e dos


saberes científicos, fazendo-os dialogar entre si, oferece subsídios para discuti-los em diversas
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áreas e espaços, principalmente os educacionais, facilitando a compreensão de fenômenos de


diversas ordens a partir de uma lógica planetária, sem reduzi-los ou simplificá-los. Como nos
explica Nicolescu (2002),

Uma vez formada, a imagem da Natureza exerce uma influência sobre todas as áreas
do conhecimento. A passagem de uma visão a outra não é progressiva, contínua, ela
ocorre antes por rupturas bruscas, radicais, descontínuas. Várias visões
contraditórias podem inclusive coexistir. A extraordinária diversidade de visões da
Natureza explica porque não podemos falar de Natureza, mas apenas de uma certa
natureza de acordo com o imaginário de uma dada época (NICOLESCU, 2002, p.
8).

Essa reflexão serve de fundamento ou princípio para pensarmos a educação além dos
diálogos entre aspectos técnicos e conceituais de um ambiente que, por vezes,
compreendemos como exógeno, oposto e distante de nós. Por outro lado, a compreensão de
uma Natureza multifacetada instiga a construção de situações de envolvimento e, acima de
tudo, de (des)encontros formativos que perpassam a ética e a justiça entre os indivíduos, suas
relações sócio-culturais e o meio ambiente (REIGOTA, 1999, p. 82).
Vivemos em um mundo de contrastes, onde dialogam saberes e interesses de diversas
ordens. Aproximar, sem compactar, as singularidades e compreensões sobre uma mesma
Natureza, mas ontologicamente diferente, “parece ser o desafio de uma nova cosmologia dos
saberes humanos, ou seja, de uma ciência da complexidade” (ALMEIDA, 2010, p. 55) que,
fundamentada nas múltiplas compreensões e nas incertezas do real, possa subsidiar uma
educação verdadeiramente formadora e autônoma, defensora das diferentes formas de olhar e
explicar a Natureza.
Propomos, portanto, uma busca, um desafio, a construção de um horizonte coletivo
para a educação. Uma busca pela interface entre conhecimentos, o que levaria, por suposição,
e passo a passo, a dissolver o imobilismo disciplinar das propostas educativas redutoras. Por
extensão, seria possível ultrapassar uma sociedade imersa em uma rede restrita da informação
por uma sociedade simbiótica, capaz de construir conhecimento.

Conhecimento é manipulação cognitiva, trabalho artesanal do pensamento, como se


o pensamento tivesse mãos para dar forma ao que vemos, ouvimos, sentimos,
tocamos, apreciamos. Essa manipulação das informações para construir
conhecimentos se assemelha ao trabalho do oleiro que, com suas mãos, dá forma ao
barro que se torna pote, panela ou telha (ALMEIDA, 2010, p. 10).
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As teorias e conteúdos consagrados hoje pelas ciências formais que estão nos livros
didáticos e permeiam os currículos dos cursos de ciências Biológicas, por exemplo, tiveram
sua origem em conhecimentos locais construídos com afinco e cuidado e que, sistematizados,
testados e avaliados acabaram sendo aceitos por um público maior, posteriormente. Muitos
dos saberes paradigmatizados e universalizados pela Cultura científica nasceram de
experiências singulares e locais por indivíduos providos de curiosidade e inventividade na
forma de compreender a Natureza.
Daí porque as observações sistematizadas pelos intelectuais da tradição - ou seja,
aquelas pessoas que, não tendo frequentado escolas e universidades, constroem
conhecimentos pertinentes sobre o mundo e os fenômenos cotidianos -, devem ser avaliados e
discutidos para ampliar e renovar os conhecimentos já oficializados como verdadeiros. Por
outro lado, há sempre várias versões e interpretações para os mesmos problemas, e essa
diversidade é o valor maior da cultura científica e da cultura humanística.
A partir desses pensadores da Natureza e de seus saberes sistematizados, aprendemos
não só a respeitar, mas a admirar a multiplicidade de formas e dinâmicas dos fenômenos
vivos, dos ecossistemas, dos regimes das águas e da diversidade de interações características
do vivo. Os intelectuais da tradição se valem de diferentes elementos do meio e “transitam por
diferentes domínios – físicos, biológicos e culturais – para construir um conhecimento
ecossistêmico” (ALMEIDA, 2007, p. 10).
“Filósofo da Natureza”, como tem sido chamado, Francisco Lucas da Silva (ou Chico
Lucas), tem ensinado, a partir de uma ‘ecologia das idéias e da ação’, uma maneira sensível e
complexa de compreender a Natureza. Talvez esse leitor do mundo exemplifique com os seus
saberes o que Claude Lévi-Strauss denominou “Uma ciência do sensível”, próxima da
Natureza, uma “ciência do concreto” (LÉVI-STRAUSS, 1976).
Chico Lucas é morador da comunidade Areia Branca, Lagoa do Piató, localizada na
região semiárida do Rio Grande do Norte, onde nasceu e vive até hoje. A partir dos
ensinamentos de seu pai, o talento de Chico Lucas foi sendo tecido frente às necessidades e
dificuldades do ecossistema da região. Talentos como a pesca, caça, agricultura, construção
de canoas e, principalmente, predição do tempo, constituem juntos domínios diversos dos
saberes plurais construídos com o passar do tempo, como o próprio Chico Lucas confessa na
obra A Natureza me disse (SILVA, 2010):
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Eu sempre fui ligado às previsões de chuva e de seca. Isso eu aprendi com meu pai.
Ele era um agricultor e sempre prestava atenção na natureza. A minha vivência foi
no trabalho com ele, e eu toda vida tive a curiosidade de perguntar as coisas a ele.
Quando tinha o formigueiro, e a gente estava trabalhando numa vazante, na pegado
do inverno, e o formigueiro se retirava, ele dizia: “Vai chover. Eu vou parar o
trabalho da vazante porque o inverno vai pegar”. Quer dizer, são essas coisas que eu
prestei atenção e elas são, durante o tempo que eu venho observando, corretíssimas
(SILVA, 2010, p. 30).

A narrativa de Chico Lucas mostra a riqueza de sua compreensão da Natureza,


construída pacientemente pelo seu olhar atento para a diversidade de situações que encontra à
sua volta. Mas não só. Às suas observações sistemáticas seguem-se sempre experimentações
no amplo laboratório vivo do lugar onde mora, um laboratório a céu aberto. Como Francisco
Lucas da Silva, dezenas de intelectuais da tradição mais próximos de nós do que pensamos,
teriam, sim, o que dizer a uma Biologia aberta, complexa e capaz de dialogar com
conhecimentos construídos por métodos e experiências diferentes das suas próprias.

Estaleiro de saberes

Todo o panorama argumentativo e propositivo até aqui exposto fundamenta alguns


projetos de formação de professores. Para citar um deles, fazemos referência ao projeto de
extensão intitulado Estaleiro de Saberes, desenvolvido por pesquisadores e pós-graduandos do
Grupo de Estudos da Complexidade – Grecom, da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte – UFRN. Exercitando esse diálogo entre saberes científicos e saberes da tradição,
desenvolve-se o referido projeto, que tem como público alvo os professores do ensino
fundamental da rede pública municipal da cidade de Natal - RN.
O que é o Estaleiro de Saberes? Estaleiro de Saberes é um projeto de extensão
aprovado pela Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(PROEX - UFRN) desde 2008. Tem por objetivos: facilitar a autoformação e atualização de
professores do ensino básico; permitir a partilha de experiências pedagógicas com materiais e
conteúdos que facilitem a prática de ensino; disseminar informações e conhecimentos novos,
frutos das investigações desenvolvidas pelos pesquisadores do Grupo de Estudos da
Complexidade (Grecom) da UFRN na região da Lagoa do Piató, no município do Assú, a
partir de 1986.
Normalmente, esse tipo de atividade de extensão é chamado de ‘Oficinas Pedagógicas’
para atualização de professores. De nossa perspectiva, seria mais adequado denominar essa
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atividade de Estaleiro. Isso porque, sendo o estaleiro o lugar onde se constrói canoas e barcos,
essa palavra é mais próxima do cotidiano da atividade pesqueira tão importante na região do
Assú. Assim, o encontro entre pesquisadores do Grecom e os professores da rede pública
pode ser considerado uma oportunidade e um lugar para a construção de saberes coletivos que
levem em conta a relação entre os conhecimentos científicos e os saberes locais (ALMEIDA ;
PEREIRA, 2008).
Os temas tratados nestes encontros de formação de professores dizem respeito à:
saberes da tradição, ecologia e ciências da saúde; paisagens sonoras e cultura da criança;
cosmologia e matemática da tradição; saberes da tradição, patrimônio, história oral e
literatura.

Considerações finais

Essa experiência de uma formação complexa dos professores da rede pública pode ser
considerada uma experiência exitosa e tem levado a um desdobramento rizomático não
previsto. A experiência do Estaleiro pode vir a ser, talvez, um casulo capaz de fazer replicar
outras experiências marcadas pela diversidade, mas pautadas sempre pelo desejo de uma
ciência mais múltipla e transdisciplinar.

REFERÊNCIAS

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______. Complejidad y el Vuelo Incierto de La Mariposa. Visión Docente Con-Ciencia, n.


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UFRN 2008.

ATLAN, Henri. Viver e conhecer. Cronos. Revista do Programa de Pós-Graduação em


Ciências Sociais da UFRN, v. 2, n. 2, 2001.
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