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Aureli, Pier Vittorio.

The Possibility of an Absolute Architecture, MIT (2011)

Rumo ao Arquipélago

Primeiramente, vamos criticamente entender a diferença essencial entre o conceito de


cidade e o conceito de urbanização. E em segundo lugar, olhar para como a
urbanização historicamente se sobressaiu em relação à cidade. Aristóteles faz uma
distinção fundamental entre política e economia, a distinção do que ele define como
technè politikè e technè oikonomikè.

O que ele chama de technè politikè é a faculdade de tomar decisões (decision


making) em prol dos interesses públicos, decisões para o bem comum, para que
indivíduos e diferentes grupos de pessoas possam viver juntos. Política, nesse sentido,
vem da existência da Pólis (e não o inverso). A Pólis é o espaço de muitos, o espaço
que existe entre os indivíduos ou grupos de indivíduos quando eles coexistem.

Technè oikonomikè – economia – diz respeito a administração do espaço privado: a


casa, ou o oiko, de onde a palavra deriva. Oikonomikè diz respeito a ampla
administração da casa e o controle sobre a relação dos seus membros. O princípio da
economia pode ser distinguível do princípio de política da mesma maneira que a casa
é distinta da Polis. Diferentemente da política, a autoridade da economia não age para
o interesse público, mas para o próprio interesse.

Essa distinção se origina na cidade-estado grega, onde havia um contraste entre dois
elementos: a oikoi – a aglomeração de casas – e o espaço político da ágora – onde
opiniões são trocadas e as decisões públicas são feitas.

Na cidade romana, uma batalha análoga foi travada na dicotomia entre urbs e civitas.
A palavra latina urbs indicava “cidade” em um senso diferente da palavra grega Polis.
O termo urbs diz respeito a própria constituição material da cidade. Onde a polis era
fundada em pré existência, uma comunidade latente, a formação da urbs transcendia
qualquer comunidade, e assim poderia ser fundada ex novo, em uma condição de
tabula rasa, como a construção do espaço doméstico. Civitas não diz respeito a
materialidade do espaço habitado, mas o status político dos seus habitantes.

Enquanto a polis grega era uma cidade estritamente descrita por um perímetro
murado, a Urbs romana não tinha a intenção de ser restrita, e de fato se expandia
na forma de uma organização territorial, na qual ruas tinham um papel crucial.

A polis grega pode ser descrita como um arquipélago, não apenas por sua forma
geográfica, mas também porque sua condição insular como um modo de relações era
sua forma política essencial. O império romano, por contraste, pode ser descrito
como uma insaciável rede na qual a diversidade do império se tornava uma totalidade
integral. Essa totalidade era o processo de assentamento que originou a lógica da Urbs.
A Urbs, em contraste a lógica insular da Polis grega, representa a expansão e lógica de
anexação de territórios romanos.
Com o renascimento da cidade ocidental depois da dissolução da civilização romana, a
distinção entre urbs e civitas não foi simplesmente dissolvida; de fato, o ímpeto
econômico da urbs gradualmente se sobrepôs a ideia política da civitas. Com a crise
do antigo regime, o advento da industrialização, a ascensão do capitalismo, o papel da
urbs absorveu a ideia da civitas ao ponto que ao longo dos últimos três séculos nós
testemunhamos o triunfo de uma nova forma de associação humana baseada
inteiramente na maestria do urbs.

A palavra urbanização foi introduzida pelo engenheiro espanhol Ildefons Cerdà, para
descrever um paradigma de uma condição sem limite e de completa integração do
movimento e comunicação trazidos pelo capitalismo. Depois de uma cuidadosa
investigação da origem das palavras disponíveis para descrever uma nova situação, ele
cunhou a palavra urbanização, derivada da palavra urbs, com a intensão de substituir a
palavra cidade, na qual ele achou muito condicionada ao sentido de civitas.

Composto de ruas e habitações individuais, os subúrbios de acordo com Cerdà,


ofereciam as melhores condições de vida e então a tarefa da urbanização era expandir
infraestrutura o máximo possível para desenvolver os habitats humanos para além da
moldura simbólica da cidade. “Ruralizar a cidade e urbanizar a cidade” era, para
Cerdà, a dupla agenda da urbanização. O grid potencialmente infinito de Cerdá visava
melhorar as condições de vida das classes operárias e aumentar o controle social sobre
essas classes.

Implícito na ideia de Cerdà sobre urbanização está a supressão do carácter político


da cidade em favor do que Giorgio Agamben definiu como o “paradigma gestionale”
– economia em seu senso original como a administração da casa.

A essência da urbanização é então a destruição de qualquer limite, borda ou forma


que não seja infinita, repetição compulsiva de sua própria reprodução e o consequente
mecanismo de controle totalizante que garante o processo infinito.

Não se poderia, no entanto, prever dois “efeitos colaterais” da urbanização, que a


primeira vista parecem contradizer a lógica negativa da infinitude: o enclave e o
marco. Esses efeitos colaterais estão na base de um metaprojeto sobre a urbanização
contemporânea. A Cidade do Globo Cativo de Rem Koolhaas. Concebida em 1972, é
uma representação de Manhattan e sua cultura de congestão. (...)

Nesse projeto o grid de Manhattan é representado por uma potencial série infinita de
terrenos, cada um composto por uma base pesada de pedra polida. Koolhaas chama
essas bases de “laboratórios ideológicos” nas quais diferentes tipos de consciência
metropolitana são formadas. Cada base serve para “suspender leis indesejáveis,
verdades indiscutíveis e criar uma condição de extrema artificialidade”. A suspensão
de qualquer lei ou verdade geral é manifesta nas arquiteturas deliberadamente e
radicalmente diferentes que repousam sobre cada base. Essas arquiteturas constituem
a Valhalla dos edifícios arquétipos favoritos de Koolhaas, como o Edifício RCA, os
isogramas do Superstudio, a tribuna de Lenin de El Lissitzky, os tectônicos de
Malevich, um complexo de edifícios típicos de Mies nos Estados Unidos, e até mesmo
um elevador. Na cidade de Koolhaas, esses arquétipos (...) estão lobotomizados de
seus contextos originais. (...)

O objetivo da Cidade do Globo Cativo é resolver o esquematismo inevitável entre


permanência do sistema urbano – a combinação entre circulação vertical e horizontal
provida pelo elevador e o grid – e o radical pluralismo demandado pela metrópole
apresentada pelo skyline eclético, onde os arquétipos vanguardistas da cidade são
“aceitos” e reduzidos a “ícones”. (...)

Se o projeto é o retrato de Manhattan, então a praça do Globo Cativo – no qual


Koolhaas reforça sua identidade da cidade como uma miniatura do próprio mundo – é
análoga ao papel do Central Park em Nova York. Esse vazio – o tapete da natureza
sintética – anula o atributo mais evidente da metrópole, sua densidade, para
dialeticamente reforçar sua oposição: congestão urbana.

Koolhaas chama esse modelo de arquipélago: o grid é o mar e os terrenos as ilhas.


Quanto mais diferente os valores celebrados em cada ilha, mais unidos e totais o grid
ou o mar que os rodeiam. Portanto, os terrenos não são simplesmente prédios, mas
cidades em miniaturas, ou como diria Koolhaas, citando Oswald Mathias Ungers,
“cidades dentro de cidades”. (...)

O espaço do edifício na Cidade do Globo Cativo de Koolhaas não é realmente uma


ilha, onde as relações entre dentro (terra firme) e fora (o mar) são vitais e abertas para
diferentes abordagens, mas é mais um enclave, onde a estrita dependência do enclave
no regime de acessibilidade e circulação é compensada pela overdose de ideologia e
iconografia provida pelo marco. (...)

A Cidade do Globo Cativo pode ser interpretada como a previsão da urbanização


contemporânea na qual o pluralismo e a diversidade são celebrados (e exagerados)
dentro da lógica espacial estrita do enclave. Dentro do regime da economia, essa lógica
de inclusão/exclusão dissolve o potencial conflito dialético ao longo das partes da
cidade e transforma confronto e sua solução – coexistência – na indiferença de
cohabitação, em que de fato é a forma de vida da urbanização.

Se a cidade começa como o dilema entre civitas e urbs, entre a possibilidade de


encontro (e possivelmente de conflito) e a possibilidade de segurança, ela termina
completamente absorta pelo infinito processo de urbanização e sua natureza
despótica. (...)

Encarando esse cenário de infinita urbanização – na qual não é mais teoria, mas
sim prática diária – eu gostaria de argumentar que chegou o tempo para
drasticamente combater a própria ideia de urbanização. Para isso, eu proponho
uma visão partidária da cidade contra o espaço totalizante da urbanização. Para
formular uma metacrítica da urbanização como a encarnação do infinito e do atual
estase do poder econômico frente à cidade, eu proponho reexaminar o conceito da
política e da forma enquanto eles se desdobram na ideia da arquitetura que
criticamente responde a ideia de urbanização. Nessa proposta, o político é
equiparado com o formal, e o formal finalmente apresenta-se como a ideia de
limite.

Como o formal está definido em termos de limites mais do que autossuficiência, é


fundamentalmente relacional. Em sua finitude e especificidade, implica a
existência de algo externo a “si mesmo”. Estando preocupado com “si mesmo”,
necessariamente considera o “outro”. Por essa razão, o formal é contra a totalidade
e conceitos genéricos de multiplicidade. O formal, portanto, é uma autêntica
representação do político, sendo o político um agonístico espaço de real confronto,
dos outros. Assim, o formal é uma ideia partidária. (...)

Desde suas primeiras casas suburbanas na Alemanha até seus complexos de escritórios
corporativos nos Estados Unidos, a forma simples e delimitada do pedestal (que pode
ser interpretada como uma versão abstrata do estilóbato grego) é a pré-condição para
quase todos os projetos de Mies.

Isso é evidente em projetos como a Casa Riehl (1907), o Pavilhão de Barcelona (1929),
o Edifício Seagram (1954-1958) e a New National Gallery de Berlim (1962-1968). Ao
colocar ênfase no sítio, o plinto inevitavelmente torna o terreno limite para o que ele
contém. A ordem isotrópica da industrialização evocada pelas envoltórias dos edifícios
é contrastada pela sua localização, emoldurada pelo plinto.

Além disso, a maneira como o pedestal reorganiza a conexão entre um edifício e seu
local afeta não apenas a experiência do que está colocado no pedestal, mas também e
especialmente a experiência da cidade que está fora do pedestal. Uma das coisas mais
marcantes sentidas por quem sobe um pedestal de Mies, seja em Nova York ou em
Berlim, é a experiência de virar as costas para o prédio para olhar a cidade.
Subitamente, e por um breve momento, distanciamo-nos dos fluxos e padrões
organizacionais que animam a cidade, mas ainda assim os confrontamos. Desta forma,
os plintos de Mies reinventam o espaço urbano como um arquipélago de artefatos
urbanos limitados.

É essa ênfase na finitude e na separação que torna artefatos como esses a manifestação
mais intensa do político na cidade. Não há dúvida de que os projetos de Mies,
especialmente aqueles executados para corporações, são a personificação dos valores
que produziram a lógica da urbanização. E, no entanto, precisamente porque a
arquitetura de Mies tem essa fonte, sua ênfase na separação e na autolimitação parece
ainda mais intensamente política. (...) Enquanto os edifícios de Mies assumem os
atributos genéricos da produção, sua insistência em enquadrar e limitar propõe esses
atributos não como normas, mas como estados arquitetônicos de exceção que forçam
o genérico a se conformar à forma finita de localização. Desta forma, as forças da
urbanização são explicitadas e são levadas a definir sua própria posição como forma
agonística.

Pier Vittorio Aureli, The Possibility of an Absolute Architecture, 2011

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