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1. URBANISMO – TEORIAS E REALIZAÇOES


2. Françoise CHOAY
3. Tradução /adaptação Margareth da Silva Pereira

4. A palavra “urbanisme” é de formação recente. Sua primeira aparição em francês é


datada de 1910; seus equivalentes em inglês e alemão – “city planning” e “Stadtebau” –
não aparecem em nenhum dicionário antes do século XX. O criador do termo para as
línguas latinas – a partir da raiz “urbs” – é o engenheiro espanhol Idelfonso Cerda
(1816-1876), autor da Teoria General de la urbanizacion, publicado em 1867. Cerda
indica nessa obra que esta palavra nova – este neologismo – é necessário para designar
uma “matéria nova, intacta, e virgem” que terá o estatuto de uma “verdadeira ciência”.

5. Em sua acepção original, urbanismo é a prática social específica que, após a


Revolução Industrial, procura construir um ordem espacial urbana – correspondente a
uma nova sociedade econômica e tecnológica – apoiada por um discurso (teoria)
científico. É este o significado que será empregado neste texto, ignorando-se, portanto,
todos os outros sentidos que a palavra vem tomando hoje.

6. Se o urbanismo é um traço da sociedade industrial, ele não deve ser confundido


com urbanização e deve ser entendido como uma prática específica no processo de
organização do espaço urbano. Para poder identificar as suas problemáticas é necessário
situar o urbanismo na história da organização das cidades na cultura ocidental, na qual
podemos distinguir três modos de criação urbana isto não implique que um exclua a
existência do outro.

7. Até o primeiro Renascimento, na Itália, e até o final do século XVI, em outros países
da Europa, a organização morfológica das cidades não era objeto de nenhum discursos
ou prática específica. Até então, a forma das aglomerações era regulada por discursos
jurídicos, religiosos, econômicos, políticos e, assim, ela era diretamente produzida e lida
por seus habitantes segundo um processo comparável ao que foi analisado pelos
etnólogos (Claude Lévi-Strauss, por exemplo) nas sociedades primitivas ou ao que
ainda se perpetua no mundo islâmico tradicional. Este é o tempo das cidades vividas em
silencio.

8. O tempo das cidades faladas, descritas, é caracterizado pelo aparecimento de uma


forma específica de discurso (tanto por sua forma literária quanto pelo seu conteúdo
consagrado ao espaço edificado, que é analisado em si e por si) visando à produção do
que é construído. A primeira prática que resulta deste tipo novo de discurso é a arte
urbana. Ela é produzida pelos artistas para seus mecenas e leva à criação de um espaço
erudito.

9. A transformação dos meios de produção, a concentração demográfica, da mesma


forma que as transformações epistemológicas engendradas pela Revolução Industrial
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farão surgir uma nova prática com fundamento discursivo – o urbanismo – que é
caracterizado, em particular, pelos seus objetivos e suas pretensões à cientificidade e à
validade universal.

10. A ARTE URBANA

11. A emergência da arte urbana e do discurso que a fundamenta é resultado de uma


ruptura epistêmica radical, que é contemporânea de uma série de outras rupturas
operadas pela Itália do século XV. É neste momento que se rompe com o teocentrismo
medieval e as criações do homem passam a ser vistas com interesse – enquanto objetos
– delineando-se as primeiras formas de historiografia, de arqueologia, de filologia.

12. TEORIA

13. ALBERTI é o primeiro teórico ocidental da arte urbana. Seu livro De re


aedificatoria, publicado em 1483, após sua morte, é pouco anterior aos Trattati
(inéditos até o século XIX), de Filarete e de Francesco di Giorgio Martini, que
partilham do mesmo espírito. Estas obras do século XV constituem a origem de uma
longa linhagem de Tratados de Arquitetura que se sucedem sem descontinuidade,
primeiro na Itália, depois na França de Palladio e Serlio a J.N. Durand (Cours
d’Architecture), passando por Philibert de l’Orme, Scamozi, Perralt, François Blondel,
Jacques François Blondel, Pierre Plate.

14. Estes textos apresentam duas características comuns. Primeiramente, todos eles são
direta ou indiretamente – através da obra de Alberti – marcados pela obra de Vitrúvio,
que foi o único teórico do espaço na Antiguidade e cujo tradado, De architectura, foi
recolocado em circulação em 1415. Com Vitrúvio, eles se ligam a uma tradição
aristotélica que se traduz em um objetivo que lhes é comum: não elaborar um modelo
científico, mas constituir uma espécie de gramática generativa do construído. Em
segundo lugar, o problema da cidade, nestes textos, nunca é dissociado da arquitetura. A
cidade é entendida como um edifício como qualquer outro, o que quer dizer que ela não
possui especificidade. A cidade é como uma casa grande e a casa é semelhante a uma
cidade pequena, escreve Alberti.

15. Como primeiro tratadista moderno, Alberti organiza o jogo dos princípios
generativos das “coisas construídas”, segundo três planos hierarquizados, mas
indissociáveis da necessidade (necessitas), da adaptação aos usos e usuários
(commoditas) e da beleza (voluptas) que, embora sendo o valor e o fim do supremo,
nada é sem soliditas sem commoditas. É bastante significativo ver o papel que
desempenham, para Albert, a localização e disposição das partes do edifício urbano.
Praças, edifícios públicos (sagrados e profanos, políticos, educativos ou comerciais)
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edifícios privados, hierarquia das vias ou caminhos manterão relações diferentes, de
acordo com a situação geotopográfica da cidade e de seu regime político.

16. entretanto, progressivamente, os sucessores de Alberti romperão em seus tratados


com este equilíbrio, em benefício da estética. Não somente a adaptação que ajusta o
construído aos desejos históricos e mutáveis dos homens é negligenciada, com o
também, através de uma teoria “invasora” das ordens, o prazer visual se torna
privilegiado. Se, na origem, a beleza era um sistema de relações, uma estrutura ligada
àquela comodidade e da necessidade, agora ela se torna um sistema de regras rígidas,
que conduzem ao academicismo.

17. Em 1769, em suas Memories sur les objets plus importants de l’architecture,
duzentos anos depois de Alberti, Pierre Patte denuncia esta situação da qual, entretanto,
não conseguirá se livrar. Voltando a atenção à commoditas, pela primeira vez na
tradição dos tratados, ele dedica à cidade de seu tempo uma longa análise centrada na
higiene e na circulação, mas, em seguida, ele reintegrará, sem nenhuma crítica ou
mudança, a estética das ordens.

18. APLICAÇÃO

19. O impacto dos textos dos primeiros arquitetos teóricos sobre o meio urbano é
pequeno e a aplicação da teoria aos conjuntos urbanos, ao contrário do que se observa
na construção de monumentos, não foi imediata. Foi necessário esperar os trabalhos de
Bramante para Ludovico e Júlio II, e sobretudo, as transformações de Roma realizadas
sob impulso de Sixto Quinto, para encontrar obras urbanas de certa envergadura.

20. Estas realizações, entretanto, não são apenas o produto da teoria, mas revelam a
influência do teatro e da pintura que consagram o caráter espetacular e visual do novo
espaço urbano. Neste sentido, a perspectiva desempenha um papel tão importante
quanto as regras de simetria e de harmonia.

21. A Itália fornece, assim, os primeiros modelos de praças regulares, de ruas retilíneas,
de composições urbanas antes do século XVIII: as primeiras realizações francesas
datam de Henrique IV (Place des Voges, Place Dauphine, em Paris, Charleville,
Henrichemont). A partir do reino Luís XIV, entretanto, e simbolicamente após o
fracasso de Bernini nas obras do Louvre, é a França que criará os novos modelos
urbanos com perspectivas mais abertas e com programas mais complexos, enquanto a
Holanda, que exercerá sua influência, sobretudo na Escandinávia, permanecerá presa ao
nível commoditas.

22. As criações da arte urbana se apresentam como remodelagens no interior de cidades


antigas (como por exemplo a Roma de Sixto Quinto, a Paris de Luís XIV e Luís XV),
como extensões de cidades antigas às quais se justapõem (por exemplo, Bath, Nancy e
Berlim) ou, por fim, como uma criação ex nihilo, quase sempre ligada a uma residência
de príncipes (Richelieu, Versailles, Aranjuez, Mannheim, Karlsruhe, Saint-
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Petersbourg). Em qualquer desses três casos, a arte urbana irá introduzir uma ruptura na
forma de apreensão da cidade, vivida até então de maneira consensual.

23. Ao espaço de convívio da Idade Média que continuará a funcionar até hoje, se
justapõe um espaço de espetáculo, que é também pela primeira vez um espaço de classe:
elaborado por grupos privilegiados – artistas eruditos a serviço de príncipes. Como toda
obra de arte da época, os conjuntos urbanos são a partir de agora, obras assinadas: a
Praça do Quirinale, por Michelangelo; a do colégio das Quatro Nações, por Le Vau; a
cidade de Richelieu, por Lemercier; Bzath, por John Wood; Nancy, por Héré. De agora
em diante, a apresentação desses espaços torna-se privilégio daqueles que possuem
saber ou poder.

24. O URBANISMO

25. O discurso do urbanismo se opõe ao da arte urbana por três características:

26. é a cidade ela mesma e não o quadro construído, em geral, que é enfocado;

27. o urbanismo se assume essencialmente como ciência e não como arte;

28. ele possui uma dimensão crítica que nasce de um objetivo terapêutico.

29. O discurso urbanístico deriva de duas fontes distintas que revelam suas diferentes
tendências. Por um lado, o urbanismo regularizador – que tem em Haussmann seu mais
importante expoente – é herdeiro do discurso sobre a arte urbana, tal como fora
“mutilada” na segunda metade do século XVIII por Lodolli e seus discípulos (Algarotti
e Memmo), Laugier e Patte. Por outro lado, o urbanismo tanto progressista como
culturalista descendem dos discursos utopistas dos reformadores sociais do século XIX
(como Owen, Fourier, Morris) que designamos como pré-urbanistas.

30. O PRÉ-URBANISMO

31. O pré-urbanismo, cujo discurso provocou apenas aplicações pontuais e sem


consequências socioeconômicas, nos dá a chave epistêmica e ideológica do discurso que
sustenta os urbanismos progressistas e culturalistas do final do século XIX à segunda
metade do século XX.
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32. A ESTRUTURA UTÓPICA

33. Desde o final do século XV, os problemas sociais, econômicos, políticos que
surgem numa sociedade em plena transformação, favorecem o nascimento de uma
reflexão critica sobre estes diversos processos e provocam o aparecimento e uma onda
de utopias. Assim, vemos surgir projetos de “contra-sociedades” (ideais, positivas), cujo
retrato é desenhado, traço por traço, sempre em oposição ao da sociedade real
(negativa). Na maioria dos casos, estas “contra-sociedades” são dotadas de “contra-
espaços”, destinados a permitir a instalação de novas instituições.

34. Segundo suas tendências, os pensadores sociais do século XIX construíram utopias
prospectivas ou retrospectivas, progressistas ou culturalistas. Não obstante sua
diversidade, elas acusam em sua projeção espacial certas características comuns que
podemos considerar como uma estrutura de espaço utópico, na medida em que
encontramos estes mesmos traços em todos os textos que pontuam a história da utopia,
desde o discurso inaugural de Thomas Morus, em 1516 (Viagem à Ilha de Utopia) até o
século XX.

35. Com efeito, percebemos que: 1. O contra-espaço de utopia está sempre presente sob
a forma de uma imagem (descrição no tempo presente) e não sob a forma de regras
abstratas; 2. Este objeto icônico tem valor de modelo preciso e fixo, sobre o qual o
tempo não interfere, não sendo, portanto, um sistema gerador; 3. O espaço utópico é
dotado sempre, simultaneamente, de um valor positivo e negativo: positivo porque ele é
o meio mais eficiente de realizar a nova sociedade, uma vez que é ele que sustenta,
abriga, torna visível as suas instituições (o “falanstério” é o meio por excelência de
realizar a sociedade “harmoniana”), negativo porque a extensão, o “espaçamento”, o
fazer espaço, ao invés de servir à transcrição indefinida de novos desejos, como era o
caso na arte urbana, separa e desune as consciências, rompe a comunicação viva e
direta. Isto faz com que a sociedade utópica apresente sempre uma morfologia
determinada, às vezes, até mesmo muito elaborada, mas que tem tendência a ocupar a
menor superfície do solo. (A Amaurota de Morus não poderia crescer fora de seus
muros ou o falanstério fora de seu palácio, a população, nos dois casos, sendo
rigorosamente controlada numericamente, sem possibilidade de aumentar. Da mesma
forma, a Nowhere de Morris é reduzida à metade em relação a Londres, da qual ela
ocupa o sítio). Eventualmente, a aglomeração utópica se desenvolverá verticalmente
para se juntar ainda mais (o falanstério tem seis andares) e ela se fechará sobre si mesma
para evitar qualquer contaminação com o exterior: os lugares de encontro do falanstério
estão situados no seu centro (a rua galeria) e o palácio das habitações está ligado a todos
os edifícios individuais e ateliers de trabalho por comunicações diretas. Estes traços são
um legado do pensamento platônico que através de Thomas Morus marcará o
pensamento utópico e o pré-urbanismo, da mesma forma que, graças à mediação de
Vitrúvio e Alberti, o pensamento aristotélico marca a arte urbana

36. A partir dessa estrutura comum, duas ideologias distintas elaboraram dois modelos
urbanos bem diferentes.
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37. O pré-urbanismo progressista

38. Se os higienistas como B. W. Richardson (Hygeia, 1876) contribuíram para a


elaboração do modelo progressista, devemos sua concepção sobretudo àqueles que
Marx nomearia “socialistas” utópicos: Owen, Fourier, Cabet e seus discípulos.

39. Esses homens tinham fé no progresso que a história deveria realizar através tanto da
emergência da razão cientifica quanto da transformação técnico-econômica do mundo, o
que permitiria, pela sua desalienação, a realização do homem universal. Tratava-se,
assim, para eles, de determinar a priori – atitude que Marx irá condenar veementemente
– o modelo espacial que suprimiria a desordem e a ineficiência das cidades atuais e
permitiria, a contra golpe, a emergência de tempos históricos novos.

40. É daí que derivam as características do espaço progressista que são: 1. Ordenadas,
isto é, classificadas, as funções (habitação, trabalho e lazer) são nele dissociadas e
separadas; 2. Estandartizadas: um protótipo ou edifício-tipo correspondente a cada
função ou sub-função (a rua-galeria é, para Fourier, um protótipo, como o são também
os ateliers de trabalho: Cabet irá até mesmo propor um mobiliário tipo); Espalhadas: a
classificação das funções e as exigências da higiene, levam a que o vazio desempenhe o
papel anteriormente reservado ao cheio (as relações de contiguidade sucedem a
associação dos edifícios num continuum vazio; os quadriláteros de Owen não
comportam nenhuma rua a mais, nem os falanstérios de Fourier um só, e novo, andar;
são microunidades sociais – respectivamente 1200 e 1600 habitantes – multiplicados e
espalhados pelo campo); 4. Em oposição à tradição urbana: essa é rejeitada em
benefício de uma associação de um novo tipo com a natureza (notar-se-á a influencia de
Rousseau sobre Fourier).

41. Certos socialistas tentaram realizar suas utopias. Owen irá se arruinar criando New
Harmony em Indiana, em 1825, os falanstérios experimentam um fracasso em Condé-
sur-Vesgre, por volta de 1830; Cabet tentará, sem êxito, por duas vezes fundar colônias
icarianas no Texas (1848) e depois, em Iowa (1853). Dessas iniciativas sem alcance
social, devido a sua exiguidade, a única experiência que sobrevive é o Familistério de
Guise (em atividade desde 1865), criado pelo industrial fourierista Godin, para seus
operários.

42. O pré-urbanismo culturalista

43. O modelo culturalista foi elaborado mais tardiamente por socialistas estetas ingleses,
em particular Ruskin e Morris, em reação aos efeitos sociais dos pretensos progressos
realizados pela Revolução Industrial.

44. Essa havia substituído o reino do orgânico pelo mecânico, a obra pelo produto, a
beleza pela feiura, a cultura espiritual pela cultura material. O espaço que permitiria
devolver à classe trabalhadora a propriedade de uma cultura verdadeira, de reestabelecer
MSP
o reino do homem total só poderia ser concebido tendo como modelo o espaço das
cidades pré-industriais, notadamente aquele das cidades medievais, reabilitadas pelo
romantismo e pelos trabalhos históricos contemporâneos.

45. Este espeço se caracteriza em particular por:

46. – sua coerência orgânica oposta à ordem abstrata e mecânica da sociedade


industrial;

47. – o papel que nele é atribuído à diferença: Morris e Ruskin sublinharão a


imprevisibilidade das cidades antigas e a possibilidade que cada um encontrava nelas de
exprimir suas particularidades no seio da comunidade;

48. - a concentração do construído, que não deve se dispersar e que manterá as antigas
estruturas de contiguidade e continuidade;

49. – o valor atribuído às obras do passado, que devem permanecer integradas à cidade
moderna.

50. A despeito de seu tom nostálgico que trai um certo desconhecimento da historia, o
espaço culturalista estava apoiado, pelo menos no caso de Morris, por uma análise do
trabalho social e da luta de classes e por um humanismo comparável àquele do jovem
Marx.

51. Se a preleção de Ruskin e Morris não teve de imediato mais do que efeitos pontuais
em algumas municipalidades, eles contribuirão, contudo, rapidamente, com o
nascimento do urbanismo culturalista, cuja primeira obra teórica Der Stadtebau nach
seinen Kunstlerischen Grundsatzen (Camillo Sitte) segue de apenas cinco anos as
News from Nowhere.

52. O urbanismo e a regularização

53. O urbanismo stricto veio no bojo da amplitude da urbanização consecutiva à


Revolução Industrial e da urgência dos problemas surgidos por esse processo, que
parecia necessário tentar controlar (entre 1830 e 1880, a população de Londres passa de
um milhão a quatro milhões). A escala e a gravidade das necessidades humanas
conferem às aplicações concretas, neste momento, um desenvolvimento até então
desconhecido nas praticas de organização urbana, pautadas num fundamento discursivo.
Elas são, agora, estreitamente ligadas à teoria, sem nenhuma defasagem.

54.Entretanto, as diferentes correntes do urbanismo não são sincrônicas: com efeito, os


urbanismos culturalista e progressista de origem utopicaa aparecem porteriormente ao
urbanismo de “regularização”, cuja certidão de nascimento será assinada por
MSP
Haussmann e que nos classificamos com o próprio termo utilizado com frequência pelo
prefeito de Napoleão II, para designar as suas obras.

55. Contrariamente aos urbanismos culturalista e progressista que, conforme suas


origens utópicas procuram inventar a priori o suporte espacial de uma sociedade
imaginaria ou que deverá existir, o urbanismo de regularização se propõe a adaptar
(regularizar) as cidades antigas às exigências da nova sociedade histórica (industrial e
capitalista). Trata-se de dar nascimento à ordem que estas sociedades esperam: esse é o
sentido da cirurgia haussmaniana, cujas destruições escondem o seu caráter destrutivo.

56. Dos três planos ou níveis integrados pela arte urbana são levados em conta somente
a necessidade e a comodidade. Embora Haussmann afirme “nunca defini o traçado de
uma via sem preocupar-me com o ponto de vista que lhe poderia ter dado”, a estética
para ele é uma herança secundária. O papel de concepção desempenhado anteriormente
pelos artistas poderá ser atribuído aos administradores (Haussmann) ou aos engenheiros
(Cerda). Mas, mas ainda: o plano dos usos é reduzido a duas dimensões: higiene e
circulação.

57. Esta redução contribui a permitir uma abordagem que, pela primeira vez, considera
as cidades existentes:

58. – globalmente: por exemplo, o Plano dos Artistas desenhado após a Revolução
(1793) considerava Paris como uma justaposição de vilarejos sobre os quais eles
praticavam certas operações fragmentárias de embelezamento ou loteamento, enquanto
o plano de Haussmann constitui um sistema;

59. – como um objeto ou instrumento suscetível de receber um tratamento cientifico que


se traduz em particular pelos seguintes aspectos:

60. – o esboço de uma teoria das cidades fundada em uma pesquisa taxonômica (a
classificação das cidades por Cerdà (Ildefons Cerdà i Sunyer) tem por critério o modo
de locomoção que reina na cidade, sendo sua época caracterizada pelas vias férreas);

61. – a elaboração de instrumentos conceituais novos, dentre os quais muitos serão


emprestados à biologia (sistemas, conjuntos, mas também organismo, função);

62. – o estudo sistemático e prévio a toda opção do contexto particular sobre o qual se
opera e de suas determinações espaciais e temporais: Haussmann começa criando o
Serviço do Plano e realiza a primeira planta de Paris com curvas de nível. Ele estuda as
correntes de circulação histórica desde a Idade Média e se vê nesse perspectiva,
prevendo uma população de três milhões de habitantes para o final do século.

63. A obra de Haussmann ultrapassa enormemente o quadro policialesco ou edilitário a


que, geralmente, lhe reduzem. Suas M oferecem, a posteriori, uma teoria do urbanismo
regularizador que encontraremos de uma forma apriorística e sistemática em Cerdà ou
mais tarde em J. Subben (Der Stadtebau, 1890). Para transformar “as” Paris de Balzac
MSP
na Paris de Zola, Haussmann criou essencialmente três redes de circulação: dos homens,
de ar e de circulação de fluidos (abastecimento de água, eliminação de dejetos). Essas
redes se caracterizam por suas conexões e pela hierarquização sistemática de seus
elementos.

64. A eficácia do sistema de circulação está ligada particularmente à largura e


‘retilinearidade’ das vias, à utilização de diagonais e retornos (rocades), à multiplicação
dos acessos às praças que se tornam os primeiros “conversores” de circulação. O
sistema de aeração valoriza pela primeira vez o espaço vazio e comporta uma hierarquia
de espaços “verdejantes”, ancestrais dos nossos espaços verdes (parques sub-urbanos,
jardins, praças e vias arborizados).

65. Nenhuma outra realização da época – como o plano de extensão para Barcelona por
Cerdà – é comparável às obras de Haussmann. Ao nível de projetos pode-se comparar-
lhe o Great Victorian Way (1855), elaborado no mesmo espirito por Joseph Paxton
(1803-1865) para resolver o problema da circulação em Londres, que se tornara um
impasse, devido ao seu estuto fundiário, ainda feudal (justaposição de vilarejos
pertencentes e dependentes juridicamente dos grandes land-lords).

66. A influencia da obra de Haussmann foi considerável, não apenas no interior da


França, mas em toda a Europa (Antuérpia, Bruxelas, Dresden, Roma, Viena) e mesmo
nos Estados Unidos, onde ela inspira a remodelação de Chicago, em 1909, por Daniel
Burhham (1846-1912).

67. O valor inovador do urbanismo regularizador pode ser simbolizado pelo espaço de
circulação, introduzido nas antigas aglomerações e onde ele é sibstituído pelos espaços
de contato e de espetáculo, impostos em certas criações urbanas.

68. Tornado o apanágio dos engenheiros de pontes, o urbanismo regularizador


conheceu, após Haussmann, dois outros homens “teórico-práticos” de envergadura:
Eugéne Henard (1849-1923), criador da perspectiva Alexandre II, em Paris, que elabora
uma “teoria geral da circulação” e é o primeiro a desenvolver os conceitos do urbanismo
subterrâneo e de solo artificial em seu livro Rapport sur l’avenir des grands villes
(1910); Colin Buchanan, cinquenta anos mais tarde, formulará a ideia de uma
“arquitetura da circulação”, que não dissociará o planejamento dos edifícios do
planejamento das vias de trafego, ao tentar adaptar as cidades à circulação
automobilística. Escrito, tendo por referência a Grã-Bretanha, seu livro Traffic in
Towns conheceu um sucesso mundial tanto ao nível da pratica quanto da teoria.
MSP
Urbanismo Progressista

69. No Plano Voisin de Paris (1925), Le Corbusier destrói toda cidade antiga, com
exceção de um setor museu; o urbanismo progressista não procura remodelar um tecido
urbano pré-existente, ao contrário, ele o revoga violentamente em beneficio de modelos
“novos” criados inteiramente.

70. Suas mais importantes “imagens” (Cidade Linear de Soria, Cidade Industrial de
Garnier, Cidade Funcional do CIAM, Cidade Verde dos desurbanistas soviéticos)
apresentam traços característicos já elaborados pelo pré-urbanismo progressista. Por
outro lado, são inspiradas por uma ideologia universalista que defende a ideia de um
homem-tipo (“as necessidades humanas são idênticas para todos os homens, uma vez
que todos os homens foram feitos na mesma forma desde épocas remotas”, afirma Le
Corbusier). Entretanto, a noção de progresso no urbanismo progressista tende a se
resumir na apologia do maquinismo e, com exceção das propostas dos urbanistas
soviéticos dos anos 1920, os objetivos sociais de uma contra-sociedade são lentamente
esquecidos em benefício de finalidades derivadas, como a higiene e a eficiência.

71. A Cidade Linear inventada em 1882 pelo espanhol Arturo Soria y Mata (1844-1920)
- filósofo, militante politico e especialista em comunicação - constitui o ato de
nascimento do urbanismo progressista. O espaço, neste plano, está classificado de
ambos os lados de um eixo longitudinal que agrupa os transportes (trens, bondes,
estrada principal), a circulação dos fluidos (água, gás, eletricidade) e os serviços
municipais (saúde, política, bombeiros). De cada lado do eixo, duas faixas de largura
reduzida recebem as habitações individuais “standards”, os edifícios industriais,
comerciais e de lazer.

72. Pela primeira vez, Soria coloca o problema do estabelecimento humano à escala
regional e até mesmo mundial. Este espaço “fragmentado”, mas controlado, preserva
intacto o campo, possibilitando um crescimento que contamina o menos possível o meio
ambiente. “Uma rua única de 500 metros de largura – tão longa quanto seja necessário -,
eis a cidade do futuro, cujas extremidades poderiam ser Cadiz e São Petesburgo”.

73. Ele só pode realizar seu projeto numa escala reduzida – um subúrbio de Madri
(1894) em torno de uma espinha dorsal constituída por uma estrada e uma linha de
bondes. Seu modelo foi, entretanto, retomado não apenas por Le Corbusier, mas
também pelos “desurbanistas” soviéticos (Guinzbourg, Ohitovitch, Milioutine, etc) que
o reelaboram no sentido de transformá-lo num instrumento capaz de suprimir as
diferenças entre a cidade e o campo e o suporte de um novo modo de vida (projeto de
Milioutine e Leonidov para Magnitogorsk). Esses projetos não foram realizados. Em
compensação, o modelo da cidade linear inspirou numerosos projetos e realizações
atuais (particularmente o plano de Kenzo Tange para Tokio, o de Georges Candilis para
Toulouse-de-Mirail, os trabalhos de Milton Keynes, o trabalho teórico de Constantin
Doxiadis).
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74. Em 1904, Tony Garnier expunha as pranchas de Uma cidade industrial que ele
publica com um texto teórico em 1917. A classificação aqui é diferente e separa os
bairros industriais, de habitação, administrativos, hospitalares e os fragmenta num
“continuum” de verde. Pela primeira vez os desenhos cuidadosos de Uma cidade
industrial reúnem a inovação urbanística à inovação arquitetural e propõem protótipos
que técnica e esteticamente exprimem a modernidade e contribuem para a imensa
influência que Garnier exerce sobre os urbanistas do pós-guerra. Nomeado por Edouard
Herriot, urbanista chefe de Lyon, em 1905, ele realiza nesta cidade um quarteirão de
habitações populares, verde e aerado, mas não chega a empreender nenhum conjunto à
altura de suas concepções teóricas.

75. É só no final da Primeira Guerra Mundial que o urbanismo progressista floresce sob
a pressão se uma série de fatores:

76. – reconstrução das cidades destruídas;

77. – revolução e perturbações sociais (na Rússia e na Alemanha, que foram os focos
privilegiados da reflexão sobre o espaço, em relação à construção de sociedades novas);

78. – transformação tecnológica (o desenvolvimento da industrialização confirma a


tendência ao standard; os novos materiais estruturais - concreto e aço – permitem a
liberação do solo e, sobretudo, dão nascimento em arquitetura à “planta livre” que,
transposta ao urbanismo, contribuirá à dispersão do espaço);

79. – transformação estética (cubismo, exaltação da geometria e da linha reta).

80. Excluindo os engenheiros de pontes, os administradores, ou os reformadores sociais,


o urbanismo progressista foi, então, o apanágio de uma geração de arquitetos
designados pelos historiadores como “racionalistas” e agrupados a partir de 1928 nos
Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM), que se davam como tarefa
promover um espaço (arquitetural e urbano) moderno. Eles foram animados por quatro
grupos principais:

81. – em Paris, em torno de Le Corbusier e da revista L’espirit nouveau;

82. – na Holanda, em torno de Cor van Eestern (presidente dos CIAM) e do grupo De
Stijl;

83. – na Alemanha, em torno de Bauhaus de Weimar (Gropius, Mies van der Rohe);

84. – na Rússia, em torno do grupo dos construtivistas que alimentariam com a Europa
Ocidental relações complexas em particular por meio dos alemães Meyer e Ernst May.
MSP
85. Desde então os textos teóricos se sucedem como, por exemplo, em 1925,
Urbanismo, de Le Corbusier, manifestos de A. C. (Arquitetura Contemporânea, revista
soviética de 1925 a 1931), mas também os projetos-manifestos (Plano para uma
Cidade de Três Milhões de Habitantes, de 1922, ou Plano Voisin, de 1925, no qual
Le Corbusier recompõe Paris sob a forma de vinte arranha-céus especializados,
ortogonalmente dispostos no verde). Outras realizações também se seguem, dentre as
quais os loteamentos experimentais lançados na Alemanha pelos membros da Bauhaus
Gropius, Mies, May (Dammerstock, 1929; Fankfurt, 1926-1928; Stuttgart, 1927) e as
grandes criações holandesas, com os bairros de habitação popular de Oud, em Roterdam
(1924) e, sobretudo, com o Plano regulador de Amsterdam, de Van Eesteren
(publicado em 1934).

86. A síntese desses trabalhos foi tentada pelos membros do CIAM no decurso do seu
congresso realizado em Atenas, em 1933: o resultado é um documento coletivo,
internacional e anônimo (do qual, em 1943, Le Corbusier fará uma versão comentada),
conhecido pelo nome de Carta de Atenas e que foi o credo teórico de varias gerações
de urbanistas progressistas.

87. Emprestando uma linguagem ora da ética, ora da ciência ou do direito, a carta
comporta, em boa simetria utopista, uma análise crítica dos “defeitos” e “erros”
manifestos no atual “caos” urbano, ao mesmo tempo que a descrição de um modelo – a
Cidade Funcional. Inseparável de sua região, este modelo classifica e dissocia (pelo
zoning) as quatro funções maiores – habitação, trabalho, lazer e circulação – que
resumem as necessidades humanas e são, por sua vez, subdivididas em subclasses (a
circulação separa as velocidades e os pedestres dos automóveis). A antiga continuidade
do construído é rompida em benefício de um espaço geometrizado que acolhe a
natureza, recusa as “ruas corredores”, privilegia a função habitação e toma a escala
humana como um dos seus critérios de racionalidade.

88. Le Corbusier sistematiza esses princípios, chegando em seus projetos até a suprimir
completamente a rua. Ele privilegia a construção em altura e aperfeiçoa as unidades de
habitação standard, verdadeiras cidades verticais de habitação, de administração, de
negócios, etc. Por fim, e conforme o espírito dos CIAM, ele faz do arquiteto o “senhor”
do urbanismo, reintroduzindo como princípio desse a dimensão estética que havia sido
excluída no congresso de 1928.

89. A obra de reconstrução consecutiva à Segunda Guerra Mundial consagra a difusão


do urbanismo progressista encarnada nas criações de Lucio Costa, em Brasília; de Le
Corbusier, em Chandigarh. A Carta de Atenas inspira, nesse período diretamente, a
reabilitação de centros urbanos nos Estados Unidos (Ludwig Hilberseimer, em Detroit),
os grandes-conjuntos (les grands-ensembles) residenciais franceses e, sobretudo, a
urbanização nos países do Terceiro Mundo, da qual a obra de Michel Ecochard, no
Marrocos, oferece um exemplo.
MSP
90. O urbanismo culturalista

91. O postulado do “homem esteta” e “ser da cultura” sustenta a ideologia do urbanismo


culturalista. Não encontramos nele, entretanto, a preocupação de transformar a
sociedade que inspirava o pré-urbanismo de Ruskin e Morris. Somente nas teorias do
socialista Ebenezer Howard, discípulo de Henry Georges, as motivações sociais cedem
lugar às motivações antropológicas, geralmente permeadas de nostalgia.

92. Essa se exprime com uma força particular em Sitte (1843-1903), arquiteto e
historiador da arte vienense, cuja obra Stadtebau (1899) é o monumento teórico do
culturalismo. A crítica de Sitte visa à modernização de Viena que opera sob os seus
olhos um urbanismo regularizador. A esse grito de alarme responde um modelo
deduzido de uma análise sistemática, através do desenho (o mais frequentemente in situ)
da morfologia das cidades antigas, medievais e barrocas, que eram consideradas, ao
mesmo tempo, belas e asseguradoras para o habitante. O espaço proposto por Sitte é,
portanto, contínuo (deve-se “lutar contra a doença moderna do isolamento”) e fechado
para dar segurança ao olho e ao corpo. Ele repudia a simetria e a regularidade, em
benefício de disposições imprevisíveis e orgânicas: a praça tem suas aberturas
dissimuladas para dar impressão de fechamento, seus monumentos são integrados na
continuidade do tecido urbano, seus ornamentos distribuídos irregularmente nos lados e
jamais no centro. A natureza é expulsa da cidade que, para confirmar seu estatuto de
cidade, domestica o verde e o localiza e o trata de modo arquitetural.

93. Embora Sitte seja o primeiro urbanista a se preocupar com o conforto existencial do
habitante, um formalismo aparece em seus projetos para Viena, onde encara os edifícios
do ponto de vista plástico, como volume, e não segundo a sua função.

94. O livro de Sitte não teve efeito sobre a urbanização de Viena, mas inspiraria
imediatamente os planos de extensão de numerosas cidades germânicas. Sua influência
se exerceria, sobretudo, nos países anglo-saxões desde o início do século XX. Na
França permaneceria desconhecido e Le Corbusier o acusaria de herói “do caminho das
mulas” e de um passado “mesquinho”.

95. A imagem esquemática da cidade-jardim foi exposta em 1898 por Howard (1850-
1928), em Tomorrow. Ela resulta de uma dupla crítica à cidade e ao campo ingleses
contemporâneos, tendo em vista a supressão de diferenças e a promoção de uma
revolução social pacífica.

96. A cidade-jardim não é um modelo culturalista puro, mas as suas características a


dominam. Ela é limitada em extensão (raio de meia milha) e em população (máximo de
32 mil habitantes), de modo a permitir o funcionamento de uma verdadeira comunidade.
Como em Morus, cada vez que este número é ultrapassado, uma nova cidade deve ser
criada. A cidade-jardim é circunscrita por um cinturão verde, onde se agrupam os
produtores rurais encarregados de alimentá-la. Ela possui um centro que reúne funções
MSP
terciárias e edifícios públicos. Seu tecido urbano é contínuo e exclui toda
“standartização”.

97. Em contrapartida, Howard atribui ao verde um papel importante (higiene). Ele


classifica e localiza as atividades industriais e rurais na periferia, separando também do
centro da cidade o setor residencial. Num espírito prospectivo ele prevê um sistema
regional de transporte elétrico, ligando os conjuntos de cidades “satélites” organizadas
em volta da cidade “mãe”.

98. Espírito realista, Howard havia previsto um procedimento fundiário, cuja aplicação
lhe permitiu começar a primeira cidade-jardim, Leichworth, em 1903. (Em 1899 ele
havia fundado a Associação Cidades-Jardins). Barry Parker e Raymond Unwin,
arquitetos, realizam Leichworth, aplicando ao esquema de Howard a estética de Sitte.

99. A partir desta época, o urbanismo culturalista se expande, sobretudo na Grande


Bretanha, onde em 1943 ele inspira o plano regulador de Londres de Patrick
Abercrombie. As cidades-novas inglesas, resultantes do New Town Act, de 1946,
trazem todas elas – com mais ou menos arranjos – as marcas do modelo de Howard,
embora tenha sido necessário, entre outras modificações, admitir patamares
populacionais mais elevados.

100. Stevegane, Harlow (primeira geração, quatorze cidades, 1946-1950) são


radiocêntricas, com um centro exclusivo para pedestres em torno do qual são
distribuídas as unidades de vizinhança. Cumbernauld (segunda geração, 1955) apresenta
a densidade mais elevada (212 hab/ha), o aspecto mais urbano, a estrutura mais
elaborada (solo em vários níveis e inteiramente artificial). As treze cidades da terceira
geração (após 1961, Milton Keynes, Rucorn, Livingstone, etc.) se caracterizam por
sistemas de circulação novos e complexos.

101. Nos Estados Unidos, a cidade-jardim inspirou Clarence Stein e Henry Wright a
cidade (sem cinturão rural) da Radburn, em 1928, e duranre o New Deal as Greenbelt
cities. Na Europa, o modelo culturalista com frequência temperou a inspiração
progressista dos urbanistas escandinavos e holandeses (Willen Dudock, em Hilversum).

102. A crítica ao urbanismo

103. Se o urbanismo nasceu de uma crítica das realizações da arte urbana e das
urbanizações não coordenadas, a amplitude da produção do urbanismo após a Segunda
Guerra Mundial suscitou uma nova crítica que, por sua vez, poderia muito bem
engendrar uma nova prática – o pós-urbanismo.
MSP
104. Crítica Factual

105. Essa crítica se constituiu em dois tempos: primeiramente voltando-se para as


realizações e a partir dos anos sessenta, aos princípios, conceitos e métodos empregados
no discurso do urbanismo.

106. As realizações visadas eram essencialmente aquelas do urbanismo regulador


progressista. Lewis Munford Gastão Bardet, retomando os ideais culturalistas, foram os
primeiros a atacar os CIAM, a deplorar a impersonalidade, o gigantismo e a
artificialidade dos novos conjuntos estereotipados e desumanos. Sua pobreza semântica
era também contestada. Embora apologista da grande cidade, Jane Jacobs denunciava o
zoneamento em defesa de uma mistura das funções. Desmontava o mito dos espaços
verdes, reabilitando a rua. Essas objeções diversas ecoam na concepção dos projetos de
reabilitação dos centros urbanos nos Estados Unidos. Na França elas contribuem para
que sejam abandonadas as construções dos grandes conjuntos, em benefício de políticas
que privilegiam o coração das cidades.

107. Crítica epistemológica

108. Entretanto, a argumentação dos autores citados permanece impregnada de


julgamentos de valor. Uma crítica mais radical deveria começar a sondar a pretensão
cientifica do urbanismo, escrutando seu fundamento teórico. Esse esforço de
desmistificação e de ajuste à episteme contemporânea orientou a partir dos anos
sessenta as análises que se desenvolveram de modo independente e em diferentes
planos, cuja síntese permitiria captar o estatuto epistêmico do urbanismo atual.

109. No que diz respeito aos conceitos diretores e operatórios, Christopher Alexander
foi o primeiro a se dedicar à lógica da concepção, há séculos imutável. Na Grã-
Bretanha, o grupo Archigram rediscutiria as noções de cidade, de habitat, de circulação,
sublinhando o arcaísmo e a rigidez que permeavam estas ideias. Tentam derrubar os
hábitos mentais dos planejadores pela substituição do desenho, pelo discurso e pela
utilização sistemática de noções emprestadas da teoria da informação e da cibernética.
Paralelamente, foi denunciada a reificação da cidade pelos modelos utópicos e revelado
o caráter redutor e ideológico de um certo funcionalismo, aplicando-se os conceitos de
sistema e processo ao urbano.

110. A conjunção destas iniciativas permitiu notadamente de se colocar o problema dos


estabelecimentos humanos em termos de redes de comunicação e de informação e de se
pensar, assim, modos de agrupamentos precários e disseminados, tornados possíveis
pelo desenvolvimento das telecomunicações e a aceleração dos transportes.

111. Num outro plano, a pobreza e a imprecisão das necessidades integradas pelo
urbanismo progressista foram sublinhadas. As ciências humanas e as ciências naturais
foram convocadas para precisar antigos conteúdos e definir novos. A velha noção de
MSP
higiene se desdobra em higiene física e higiene mental e foi ainda calçada pelas
contribuições da ecologia, da ethologia (noções de território, espaço vital, etc.), da
psicologia do consciente e do inconsciente. A antropologia cultural e a sociologia
econômica demoliram o dogma da universalidade das necessidades de base, mostrando
a dupla presença da cultura e da economia na estruturação do espaço pelo indivíduo. A
historia sublinhou a importância dos ciclos lentos.

112. Para além das necessidades elementares, outros críticos atribuíram ao urbanismo
tomado como criador de vestígios e de sentidos, transcritor de motivações, cuja escolha
escapa sempre da ciência, todo campo do desejo. Dentre estas motivações que o
discurso do urbanismo mascara, Henri Lefebvre exaltou a importância do político e,
como se sabe, hoje acham-se confrontadas ambas as noções de planejamento e de luta
urbana.

113. Desde cerca de 1955 o urbanismo tomou para si um arsenal de tecnologias que o
fazem utilizar computadores, análises de dados, métodos de simulação, etc., permitindo-
lhe uma pratica mais complexa e mais precisa. Entretanto, se devêssemos caracterizar
sua evolução, seria não pelas certezas adquiridas, mas pela amplitude das problemáticas
que se revelam no processo de elaboração consciente do espaço as dialéticas do
tecnológico e do político, do Estado e do setor privado, da especialização e da abertura
(no campo da formação), do urbanista e do habitante, cuja participação ativa reaparece
como uma necessidade.

114. Ao fim de uma longa historia e das revoluções epistêmicas que a acompanharam
desde o século XV, o “organizador” do século XX se encontra curiosamente
confrontado aos três planos do velho Alberti. A necessitas circunscreve hoje toda a
contribuição científica, a commoditas integra o campo do desejo e reafirma sua ligação
com o político, a voluptas, sem dúvida, é a própria criação de sentido.

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