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UTOPIAS URBANAS E AS VIAS DE EMANCIPAÇÃO SOCIAL

A proposta de mesa intitulada “As utopias urbanas e as vias de emancipação social” destaca a
importância do pensamento utópico na historiografia e nas teorias sociais urbanas, com o
objetivo de evidenciar em que medida tais proposições apontam possibilidades de vias de
transformação e experimentações na construção de outras formas de vida em comum. Para
tanto, trazemos um mosaico de formulações teóricas e espaciais, cujo fio condutor é a aposta
segundo a qual uma sociedade emancipada será uma sociedade urbana.

A primeira delas reside na categoria de “romantismo revolucionário”, como trabalhado pela


tradição marxista francesa e, em especial, pelas leituras de Michael Löwy e Robert Sayre. Para
os autores, “o romantismo como visão do mundo constitui-se enquanto forma específica de
crítica da ‘modernidade’” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.43). Logo, o romantismo como “visão de
mundo” se define por uma totalidade coerente que se organiza em torno de um eixo, no qual
seu elemento central é a contradição ou oposição entre dois sistemas de valores “[...] os do
romântico e os da realidade social dita ‘moderna’” (LÖWY; SAYRE, 2015, p.43). O termo
“modernidade”, crucial para a análise do romantismo, é adotado por Löwy e Sayre a partir da
concepção de Max Weber, o qual dá um sentido mais amplo ao fenômeno correntemente
sintetizado em dois fatores fundamentais “a civilização moderna engendrada pela Revolução
Industrial e a generalização da economia de mercado”. Os autores românticos revolucionários
(LÖWY; SAYRE, 2015, p.253) do século XX, como o filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940),
o filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre (1901-1991), o movimento da Internacional
Situacionista (1957-1972), abordados na presente sessão, reagem a um certo número de
características da modernidade que são por eles identificadas como intoleráveis. São elas: o
desencantamento, a quantificação e a mecanização do mundo, assim como o espírito de cálculo,
a racionalidade instrumental, a dominação burocrática e a dissolução dos vínculos sociais
orgânicos, características que, segundo Weber, são inseparáveis do aparecimento do ‘espírito
do capitalismo’. Nessa chave de leitura, o pensamento de Henri Lefebvre sobre a cidade, atualiza
as propostas de Marx, ao revelar a centralidade da produção do espaço para a manutenção do
sistema capitalista, que se estende à (re)produção da vida enquanto totalidade.

No sentido dessa crítica à modernidade, elo de articulação das propostas aqui apresentadas, a
apresentação do ANÔNIMO, sob o título “A utopia da cidade jardim: uma alternativa para a
era pós-pandemia?”, discute a proposta utópica da garden city, idealizada por Ebenezer Howard
(1850-1928), como resposta à degradação da vida urbana na Londres industrial daquele período,
já colocada por Friedrich Engels (1820-1895) na “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”
(1845) e retomada por Henri Lefebvre na obra "O pensamento marxista e a cidade" (1972). A
questão colocada é a atualidade da utopia Howardiana para se repensar as cidades
contemporâneas.

Seguiremos para a proposta “Afinidades eletivas entre Henri Lefebvre e a Internacional


Situacionista a partir do Romantismo Revolucionário Utópico, de tendência do romantismo
marxista”, do ANÔNIMO, que propõe analisar a presença da crítica do romantismo
revolucionário utópico, de tendência do romantismo marxista na obra de Henri Lefebvre.
Perspectiva que aproximou a crítica urbana compartilhada por Henri Lefebvre e pela
Internacional Situacionista.
Depois passaremos a proposta “O direito à cidade como momento do projeto utópico em Henri
Lefebvre”, da ANÔNIMO, propõe analisar o “direito à cidade” no seu sentido original cunhado
por Lefebvre, o qual pertence ao projeto do possível-impossível. Interpretação que o posiciona
como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao
habitat e à habitação; direito à obra (atividade participante) e o direito à apropriação (bem
distinto do de propriedade) que se imbricam dentro do direito à cidade, revelando plenamente
o seu uso. A análise destaca a importância da “utopia concreta” no pensamento do autor e no
processo do devir da sociedade urbana.

Em outro sentido, partindo do reconhecimento do projeto utópico de sociedade materializado


na arquitetura e no urbanismo modernos, a proposta “Brasília, ou a volta da modernidade
barroca”, do ANÔNIMO, busca situar a cidade de Brasília na historiografia do pensamento
urbanístico, enquanto uma manifestação barroca do modernismo, tipicamente brasileira. Nesse
sentido, evidenciará, por um lado, as leituras críticas à incorporação parcial da proposta
estético-política da arquitetura moderna nos termos europeus e, por outro, a própria crítica à
modernidade na arquitetura e no urbanismo, central para Lefebvre e para os pós-modernos, na
arquitetura. Situará Brasília enquanto fruto de um projeto ético barroco da arquitetura como
resposta tipicamente moderna frente à tragédia capitalista do abismo estabelecido entre o
mundo do trabalho e o mundo encantado da mercadoria, colocado por Marx, e retomado por
Benjamin no Das Passagen-Werk.

Na sequência, a proposta intitulada “A cidade e as vias do possível: aproximações entre Henri


Lefebvre e Walter Benjamin”, da ANÔNIMO, busca identificar como a compreensão dos
processos de (re)produção econômica (e social) que levaram aos apagamentos sociais pode
servir de horizonte para a construção de outros possíveis a partir da filosofia da história proposta
por Walter Benjamin e do pensamento urbano utópico de Henri Lefebvre. Nesse sentido,
apresenta as aproximações identificadas no pensamento de ambos, assim como reflete acerca
das possíveis condições necessárias à mobilização social para a construção de uma sociedade
renovada.

Por fim, seguiremos com a proposta “Utopias concretas em tempos de crises”, do ANÔNIMO,
que busca analisar o tempo presente e encontrar neste elementos com os quais seja possível
formular utopias concretas, construídas desde agora como experimentação de outros mundos
possíveis. Do ponto de vista do potencial transformador, está no fenômeno urbano as condições
sociais necessárias aos regimes de abundância coletiva em termos materiais, formas
radicalmente democráticas de decisão e, ainda, experiências outras de júbilo e gozo. E por esse
mesmo diagnóstico do tempo presente, ao que tudo indica, as formas de luta também tem um
repertório urbano, cujos potenciais ainda não foram explorados.

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A UTOPIA DA CIDADE JARDIM: UMA ALTERNATIVA PARA A ERA PÓS-PANDEMIA?

Dentre as inúmeras ideias urbanísticas surgidas em fins do século XIX na Europa, a proposta de
cidade jardim, formulada por Ebenezer Howard (1850-1928), em 1898, foi a que encontrou
maior ressonância no urbanismo moderno do século XX, tendo se difundido por inúmeros países
de todos os continentes. A razão de tal sucesso, que levou a adaptação do tipo cidade jardim a
situações sociais, econômicas e políticas as mais diversas, reside em grande parte no seu
conteúdo utópico que busca a reaproximação entre campo e cidade. A utopia howardiana irá se
situar ao lado de inúmeras outras formuladas na Inglaterra do século XIX, e também na América,
como Looking Backwards 2000-1887, de Edward Bellamy (New York: The Modern Library, 1887)
que ele menciona ao lado de outras referências teóricas utópicas e reformistas, como Kropotkin,
Henry George, Richardson.

Ao retomarmos a proposta original de Howard pretendemos indagar a respeito da sua


atualidade, tendo em vista a falência da metrópole, das grandes cidades e da urbanização
extensiva do planeta, com a explosão do mundo urbano (Lefebvre). Poderá o ideário da garden
city contribuir para a formulação de uma alternativa na reconstrução do território em uma era
pós-pandemia, em que a redefinição radical das relações campo-cidade, já então considerada
por Howard, se fará necessária ?

Na introdução de seu livro, o estenógrafo do parlamento inglês constata nos primeiros


parágrafos a febril agitação de ideias, propostas e pontos de vista sobre temas sociais, políticos
e religiosos, e a ausência geral de concordância a respeito. Observa ali que apenas na crítica à
contínua e crescente migração da população do campo para as cidades haveria unanimidade.
Um de seus objetivos, portanto, será dar uma resposta à questão do inchaço populacional e
crescimento desmedido das cidades, procurando assim repensar as relações campo-cidade.

A segunda metade do século XIX na Inglaterra foi pródiga em levantamentos e denúncias das
condições de vida dos miseráveis que passaram a habitar suas principais cidades. Panfletos,
ensaios e relatórios oficiais registravam tais condições, procurando na crueza da objetividade
dos fatos descritos denunciar, ou ao menos constatar, uma nova situação das grandes cidades.
Howard, entretanto, apresenta uma chave-mestra, vale dizer, uma solução ideal. Sua proposta
era construir o novo mundo em velhas terras, refazendo o meio através da integração entre
campo e cidade, apontando a criação de novas cidades como a única forma para dar conta dos
problemas das cidades já existentes.

Preconizando a dissolução da metrópole como locus de concentração de forças produtivas,


subjetividades e fluxos energéticos, a cidade jardim de Howard tem como um de seus princípios
gerais a descentralização, associada às baixas densidades habitacionais. Assim, embora não
pretenda uma negação radical da cidade, intenta realizar uma harmonia entre cidade e campo,
visando resgatar o vínculo entre sociedade e natureza, buscando fundir oposições radicais da
história. Como solução para o fenômeno de metropolização, Howard preconiza um limite para
o crescimento das cidades, tanto em termos populacionais quanto físico-territoriais. É assim que
sua cidade jardim não deveria ultrapassar a população de 32 mil habitantes, bem como estaria
contida por um cinturão agrícola. Respondendo ao pavor à grande cidade que crescia de modo
desmedido e desorganizado, e que se manifesta no horror a Londres, Howard encontra a
solução para inúmeros outros problemas que afligiam a sociedade de sua época.

Em sua proposta o que Howard destacava era como levar as pessoas de volta ao campo.
Descartando buscar as causas do fenômeno migratório campo-cidade, observava apenas que,

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sejam elas quais forem, podiam ser resumidas a atrativos, passando a considerar cada cidade
como um imã e as pessoas como alfinetes. Daí sua solução constituir-se em oferecer uma outra
atração, vale dizer, conforme sua metáfora, criar um imã que contivesse os aspectos positivos
do campo associados aos da cidade, como indica no seu célebre diagrama “Os três imãs” (ver
figura abaixo). A identificação da cidade jardim como um imã alternativo ao "imã-cidade" e ao
"imã-campo", reunindo em si os atributos positivos de ambos, foi um dos aspectos fortes da
teoria howardiana devido à sua importância ideológica e eficácia propagandística, ainda que
outras propostas preconizassem o mesmo ideal, algumas das quais o influenciaram
profundamente, como as de Piotr Kropotkin (1842-1921), cujo livro “Campos, Fábricas e
Oficinas”, publicado em Londres alguns meses antes do de Howard, fora por este mencionado.

O sub-título do livro de Kropotkin é "indústria combinada com agricultura e trabalho intelectual


com trabalho manual" e nele a tese principal defendida pelo célebre anarquista é a da
descentralização da indústria e da viabilidade econômico-social da pequena indústria, bem
como da aldeia industrial, temas caros ao ideário do movimento pela cidade jardim. Revelam-
se aí as aproximações entre as concepções reformistas de Howard e de Kropotkin, em especial
no que se refere à forma de propriedade cooperativa dos meios de produção, dentre os quais o
solo urbano. A difusão da ideia de um habitat cooperativo no imaginário de parcelas
significativas da classe trabalhadora semi-especializada emergente na Europa, em fins do século
XIX, no bojo dos movimentos socialistas, anarquistas e cooperativistas do período, marcará
também a proposta de Howard. Destacam-se inúmeras aproximações entre as concepções
reformistas de Kropotkin e Howard, tanto na forma de propriedade cooperativa do solo urbano,
quanto na gestão comunitária de assentamentos habitacionais. Elas nos indicam o intercâmbio
de ideias entre a teoria política e a teoria do urbanismo, no âmbito de um vigoroso movimento
social de reforma do habitat e da vida cotidiana.

Preconizando o equilíbrio entre campo e cidade e uma vida comunitária, a atenção dada por
Howard aos aspectos econômicos e administrativos para a implantação de sua proposta,
sugerindo formas específicas de propriedade fundiária e de gestão do assentamento, também
foi uma das causas responsáveis por suas inúmeras adequações em condições históricas
distintas, conferindo um caráter marcadamente pragmático à sua teoria. Interessa-nos em
nossa exposição questionar se a ideia de cidade jardim, conforme sua formulação original, pode
fornecer alternativas para a reconstrução dos territórios contemporâneos sob novas formas de
sociabilidade marcadas pela baixa densidade populacional como condição sanitária impositiva.

Referências

ANDRIELLO, Domenico. Howard o dell'Utopia. Nápoles: 1964

ARCHER, John. Rus in urbe: classical ideas of country and city in British town planning. In: Studies in
Eighteenth-Century Culture, XII, 1983, pp.159-86.

FISHMANN, Robert . L'Utopie Urbaine au XXe Siècle. Ebenezer Howard, Frank Lloyd Wright, Le Corbusier.
Bruxelas: Pierre Mardaga, 1979.

HOWARD, Ebenezer. Garden Cities of To-morrow. Londres, Faber and Faber Ltd. Edição brasileira: São
Paulo: Hucitec, 1997.

LANG, Susanne. "The ideal city from Plato to Howard". In: The Architectural Review. Vol.112, nº668
(ago.1952), pp.91-101.

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AFINIDADES ELETIVAS ENTRE HENRI LEFEBVRE E A INTERNACIONAL SITUACIONISTA A
PARTIR DO ROMANTISMO REVOLUCIONÁRIO UTÓPICO, DE TENDÊNCIA DO
ROMANTISMO MARXISTA.

O presente trabalho pretende analisar a obra de Henri Lefebvre e da Internacional Situacionista


a partir do amplo espectro político do romantismo revolucionário, classificado pelos autores
Michael Löwy e Robert Sayre como a corrente quente do marxismo, na qual seus representantes
mais ilustres são Georg Lukacs, Walter Benjamin, Ernst Bloch, Theodor Adorno, Edward Palmer
Thompson, e na França, o Movimento Surrealista, Henri Lefebvre e a Internacional Situacionista.
Segundo Löwy e Sayre, a corrente quente do marxismo apoia suas críticas sobre o pensamento
utópico, os sentimentos e o amor, contraposta à corrente fria que privilegia uma análise
científica e racional do capitalismo. Nosso principal objetivo é identificar na obra de Henri
Lefebvre e na Internacional Situacionista, manifestações modernas da corrente de pensamento
romântico, pertencentes à tipologia do Romantismo Revolucionário e/ou Utópico, de tendência
do romantismo marxista 1 , inserindo-os em um espectro político mais amplo. Portanto, o
conceito de romantismo revolucionário é o fio condutor adotado para esclarecer as relações
entre os dois objetos de nossa pesquisa. A definição do conceito é adotada a partir de duas
fontes: a do próprio Lefebvre, cuja formulação é publicada pela primeira vez na Nouvelle Revue
Française, no artigo Vers un romantisme révolutionnaire2, em 1957, posteriormente retomada
a reflexão no artigo Vers un nouveau romantisme?, editado em 1962 no livro Introduction à la
modernité, e republicada a versão de 1957 em 1971 no livro Au-delà du structuralisme; e a dos
autores Löwy e Sayre, desenvolvida no livro Révolte et mélancolie: le romantisme à contre-
courant de la modernité, lançado pela primeira vez em francês em 1992, em seguida em
português, em 1995, e recentemente reeditado em 2015 pela editora Boitempo.

A nossa hipótese de interpretar Lefebvre como um autor romântico revolucionário se inicia com
a publicação do artigo Vers un romantisme révolutionnaire, no qual Lefebvre formula pela
primeira vez o conceito. Remi Hess, sociólogo, discípulo e principal biógrafo de Lefebvre destaca
que a referida publicação é o começo do processo no qual Lefebvre revela o movimento
romântico de seu pensamento. O artigo trata-se de um esboço, um primeiro ensaio do que será
desenvolvido definitivamente no livro La Somme et le reste, publicado em 1959. Segundo Hess,
La Somme et le reste é um livro incontornável, “il est à Henri Lefebvre ce qu’Être et Temps est à
Heidegger, Le Discours de la méthode à Descartes” 3 , livro no qual Lefebvre rompe
definitivamente com o marxismo instituído e desenvolve o seu pensamento romântico
revolucionário. “Je perçois La Somme et le reste comme un livre incontournable pour rompre
avec un marxisme institué et mortifère, et entrer dans ce que l’on pourrait nommer un marxisme
instituant et vivant!” 4 (HESS, 2011, p.16). Além da republicação do artigo original no livro
Introduction à la modernité (1962), já citado, o conceito é utilizado para fazer referência à
juventude romântica revolucionária, denominada de possibilita no livro L’irruption de Nanterre

1A tipologia do Romantismo Revolucionário e/ou Utópico, de tendência do romantismo marxista é adotada a partir
da definição formulada pelos autores Michael Löwy e Robert Sayre no livro: Revolta e melancolia: o romantismo na
contramão da modernidade. Trad. Nair Fonseca. 1°ed. São Paulo: Boitempo, 2015.
2O texto ainda não tem tradução para o português. Entretanto, foi relançado em 2011 com apresentação do autor
Remi Hess.
3 Texto original. Tradução do autor: “(...) ele (o livro) é para Lefebvre o que Être et Temps é para Heiddeger, Le Discours
de la méthode é para Descartes” ou “(...) ele (o livro) está para Lefebvre assim como (...)”.
4 Texto original. Tradução do autor: “Eu vejo La Somme et le reste como um livro incontornável para romper com um

marxismo instituído e mortífero, e entrar naquilo que poderia se chamar um marxismo novo e vivo”.

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au sommet (1968), e é retomado de forma mais extensa no livro Au-delà du structuralisme
(1971).

Löwy, no livro A estrela da manhã: surrealismo e marxismo, compreende o romantismo


revolucionário como “[...] a vasta corrente de protesto cultural contra a civilização capitalista
moderna, que se inspira em certos valores do passado pré-capitalista, mas que aspira antes de
tudo a uma utopia revolucionária nova - desde Rousseau e Fourier até os surrealistas e os
situacionistas” (LÖWY, 2002, p.15). Portanto, é possível estabelecer um fio condutor, nas
palavras de Löwy, um “fio vermelho e negro” entre Henri Lefebvre e os situacionistas, os quais
compartilham da tentativa de “[...] um protesto contra a racionalidade limitada, o espírito
mercantilista, a lógica mesquinha, o realismo rasteiro, de nossa sociedade capitalista-industrial,
e a aspiração utópica e revolucionária de ‘changer la vie5’” (LÖWY, 2002, p.09). Henri Lefebvre
e os situacionistas direcionam suas críticas ao urbanismo para alcançar a revolução da vida
cotidiana, o desejo de “changer la vie” está diretamente ligado ao de “changer la ville”6.

Referências

HESS, Remi. Henri Lefebvre et l’aventure du siècle. Paris : Éditions A.M. Métailié, 1988.

_____. Présentation. In : LEFEBVRE, Henri. Vers un romantisme révolutionnaire. Clamercy : Nouvelles


Éditions Lignes, 2011.

LEFEBVRE, Henri. Le romantisme révolutionnaire. In : Au-delà du structuralisme . Paris : Anthropos,


1971.

_____. Introdução à Modernidade. Trad. Jehovanira Chrysóstomo de Souza. Rio de Janeiro: Ed. Paz e
Terra, 1969.

_____. La Somme et le reste. Paris : La Nef, 1959.

_____. L'Irruption de Nanterre au sommet. Paris : Éditions Anthropos, 1968.

_____. Vers un romantisme révolutionnaire. In : Introduction à la modernité, Paris, Editions de Minuit,


collection Arguments, 1962.

_____. Au-delà du structuralisme. Paris : Anthropos, 1971.

LÖWY, Michael. A estrela da manhã: surrealismo e marxismo. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002.

_____. A estrela da manhã: surrealismo e marxismo. Trad. Eliana Aguiar. 2.ed. São Paulo: Boitempo,
2018.

LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia. O romantismo na contramão da modernidade.


Trad. Guilherme João de Freitas. Petrópolis: Vozes, 1995.

5 Texto original. Tradução do autor: “mudar a vida”.


6 Texto original. Tradução do autor: “mudar a cidade”.

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_____. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da modernidade. Trad. Nair Fonseca. 2°ed.
São Paulo: Boitempo, 2015.

MARCOLINI, PATRICK. “L’Internationale situationniste et la querelle du romantisme révolutionnaire”.


Noesis, 11 / 2007, p.31-46.

SITUATIONNISTE, INTERNATIONALE. Internationale Situationniste 1958-69. Paris: Champ Livre, 1975.

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O DIREITO À CIDADE COMO MOMENTO DO PROJETO UTÓPICO EM HENRI LEFEBVRE.

O objetivo desta apresentação é pensar o papel da teoria na constituição de um projeto de


transformação real e emancipadora da sociedade urbana a partir do debate realizado por Henri
Lefebvre sobre o devir da sociedade urbana iluminada pela ideia do projeto do possível-
impossível.

Como ponto inicial é preciso levar em conta o desafio atravessa a obra de Henri Lefebvre: a
compreensão do mundo exige colocar o possível no lugar do real. Com esta subversão o Autor
sinaliza na direção de que realidade não se encontra pronta e acabada, mas em movimento e,
ao mover-se, orienta nosso pensamento em direção as possibilidades da história. O devir
aparece, em sua obra, na forma da sociedade urbana em constituição.

Minha hipótese é que o “direito à cidade” tal qual desenvolvido na obra do Autor situa-se no
projeto do possível/impossível e, nesta direção manifestar-se-ia como forma superior dos
direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e a habitação; direito
a obra (atividade participante) e o direito a apropriação (bem distinto do de propriedade) que
se imbricam dentro do direito a cidade, revelando plenamente o uso.

Trata-se de pensar a sociedade urbana que se esboça e que aparece para o Autor como
realidade, mas também virtualidade. Isto porque os anos 60 anunciam na obra de Lefebvre a
inversão na história segundo a qual a sociedade industrial se superaria pela constituição de uma
sociedade urbana, com outra lógica. Deste modo a modernidade estaria marcada por uma nova
problemática: a urbana que teria por conteúdo uma determinação espacial localizando, nas
transformações do espaço, a possibilidade para pensar o futuro. Como mediação para pensar o
que moveria a sociedade urbana em direção à sua realização virtual, encontra-se o “direito à
cidade” como mediação necessária. É assim que o conceito ganha centralidade no debate sobre
o devir.

Nas obras sobre a cidade, particularmente “O direito à cidade” e “Revolução urbana”, Lefebvre
constrói uma profunda crítica ao urbanismo o que o permite deslocar a superação dos
problemas urbanos das políticas públicas- indicando a necessidade de uma crítica ao Estado,
bem como seu lugar no devir – para a subversão deste real como projeto possível-impossível
levado a cabo pela sociedade sem a tutela do estado.

O entendimento sobre os conteúdos do “direito à cidade”, se realizaria como produto da luta


entre forças sociais e forças políticas, e o Estado. Portanto trata-se de prolongar o pensamento
e a reflexão para além das fronteiras do institucional sinalizando a negação do mundo invertido.
Este se caracterizaria como o mundo das cisões e privações: a) das cisões da identidade abstrata;
b) da indiferença da constituição da vida como imitação de um modelo de felicidade forjado
na posse de bens; c) da generalização e concentração da propriedade privada da riqueza social;
d) na importância da instituição, na onipresença do mercado; e) do poder repressivo que induz
a passividade pelo desaparecimento das particularidades; f) da redução do espaço cotidiano ao
homogêneo destruidor da espontaneidade e do desejo.

O direito à cidade, se deslocaria, assim do campo jurídico, como momento do projeto do


possível-impossível como a possibilidade da realização do fim das alienações humanas
dissolvendo as contradições que desviam a realização do humano. O projeto que se delineia,
assim, na direção da constituição de um novo humanismo. Este, revolucionário e dialético,
estaria aberto para as relações (conflitantes) do possível e do real incorporando um urbanismo

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revolucionário que mobilizaria os recursos da arte, do conhecimento e da técnica da imaginação,
unindo o singular (o individual) o particular (os grupos, povos, nações,) e o geral (o mundial) e o
universal (o sentido da história, da vida, do humano).

Neste caminho Lefebvre atualiza a utopia presente em Marx, apontando em direção ao possível-
impossível: a comunicação, o amor, a participação, o conhecimento, o jogo, que são sempre
impossíveis como totalidade e possíveis como momentos. Esse projeto para Lefebvre
mobilizaria os recursos do imaginário e da arte tanto quanto os recursos da ciência e do
pensamento político localizando essa ação em direção à reconstrução da sociedade no plano do
cotidiano como momento de sua metamorfose. Esse é um projeto poético de mudar a vida.

No plano da práxis, análise do urbano engloba um universo complexo de relações em


constituição e, portanto, seria o lugar aonde se travariam as lutas por mudanças posto que é na
cidade e na sociedade urbana que se viveria a privação. É na cidade onde grupos podem se
reencontrar, onde eles se confrontam que os conflitos podem permitir a construção das
alianças, onde eles podem concorrer à construção de uma obra coletiva. se realize na obra
enquanto atividade criadora.

A utopia ao longo da história liga-se ao desejo humano de realização prática de uma vida não
alienada. Trata-se do desejo de superação de todas as condições de privação na qual se encontra
o indivíduo: situações que privam o homem de sua humanidade. A utopia nos situa no futuro,
todavia, ela nasce no seio de uma determinada sociedade a partir de uma condição histórica
real no tempo presente. Assim a existência do pensamento utópico contempla vestígios e
persistências no seio desta própria sociedade que lhe serve de abrigo; localiza-se na existência
das forças criativas latentes em todas as sociedades, surge da consciência da existência da
alienação, posta-se em direção a realização do humano, o que requer a consciência da
totalidade do mundo.

Referências

CARLOS, Ana Fani A. “La utopía de la gestión democrática de la ciudad”. Scripta Nova. Revista electrónica
de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2005, vol. IX, núm.
194 (01). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-194-01.htm>

LEFEBVRE, Henri. Le droit à la ville. Paris: Anthropos,1968.

_____.La revolution urbaine. Gallimard, Paris; 1970.

_____.Le manifeste différentialiste. Galimard, Paris: 1970

_____.Espace et politique. Paris: Anthropos,1972.

_____.La survie du capitalisme. Paris: Anthropos,1973.

_____.Le retour de la dialectique – 12 mots clés pour le monde moderne. Paris: Messidor/Editions
Sociales, 1986.

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BRASÍLIA, OU A VOLTA DA MODERNIDADE BARROCA

A cidade de Brasília é geralmente interpretada como uma tradução regional da ideologia


modernista, simples aplicação local dos grandes princípios formulados pelos Centros
Internacionais da Arquitetura Moderna (CIAM). Siegfried Giedion já reconhecia a arquitetura
brasileira como uma aplicação regional e, ao mesmo tempo, uma renovação original da
arquitetura modernista europeia, um veredicto retomado depois do nascimento da nova capital
em 1960. Reyner Banham também faz em 1962 uma apologia da cidade modernista que vai no
sentido de uma apologia da aceleração e do progressismo que é ligado a ele. Mas é sobretudo
numa percepção negativa que Brasília é vista como o paroxismo do modernismo em arquitetura.
Herdeiro dessa vertente interpretativa, o antropólogo James Holston a denuncia em 1989 como
uma triste repetição de um padrão frio e autoritário, longe das vibrações das cidades
tradicionais. Ele vai até ilustrar a vida cotidiana cinza e repetitiva dos brasilienses nesses
aranheu-céus sem alma botando na capa do seu livro uma imagem... do Congresso nacional
(uma estratégia semântica que colocaremos em questão).

De maneira contraditória, Brasília foi também atacada como sendo um desvio irracional,
barroco e até surrealista da estética sóbria e socialmente útil do padrão modernista. O designer
e arquiteto suíço Max Bill, vanguardista e modernista, atacou já em 1953 a arquitetura brasileira
para ser “individualista”, “antissocial”, com um “barroquismo excessivo” e “bárbaro”. Para
Bruno Zevi o ano seguinte, se tratava de uma arquitetura “escapista”, “histérica” e que refletia
o “estado de incerteza do país”. Todas as acusações contra Brasília estão já aqui, e serão
retomadas com força depois da inauguração da cidade. Talvez seja o historiador da arquitetura
italiano Manfredo Tafuri que, em 1979, resumiu melhor essa percepção, falando do plano piloto
de Lucio Costa como algo “alegórico infantil” e da arquitetura de Oscar Niemeyer como
“maneirista” e “caprichosa”.

Uma como outra posição (historiográfica, antropológica ou simplesmente polêmica, torcendo


em favor de uma política estética mais do que em favor de uma outra) mantém a cidade na
masmorra da história, seja como modelo ultrapassado de uma ideologia fora de moda ou como
espécime excêntrico da mesma. Gostaria aqui de propor outra hipótese, que apresenta Brasília
como capital de um “modernismo barroco” consistente e até mesmo como capital de uma
“modernidade barroca” que não teve a chance de se desenvolver na história, resgatando o
imaginário de um país do futuro próprio ao Brasil, e talvez à América Latina, dos anos 1960. Tal
perspectiva se inspira na ideia de uma “modernidade do barroco” defendida pelo sociólogo e
filósofo Bolivar Echeverria, ideia de uma modernidade alternativa esquecida, aqui persistindo
discretamente, para quem quer decifra-la, nas formas de Brasília. Os traços modernistas do
plano urbanístico de Lúcio Costa são tão evidentes como os traços barrocos da arquitetura de
Oscar Niemeyer, mas interpretarei também o Plano piloto e o Eixo monumental de Costa como
uma tentativa de fusão barroca com a natureza (exatamente como Deleuze a definiu a partir de
Leibniz como alternativa à modernidade clássica de Descartes). Tentarei mostrar como essa
dimensão metafísica do plano e da arquitetura de Brasília se articula com um modernismo
funcional de maneira a propor um outro tipo ideal e projeto ético da arquitetura moderna: não
mais uma ética “realista” à maneira de Walter Gropius (1926), uma ética “clássica” à maneira
de Mies Van der Rohe (1958) ou uma ética “romântica” a maneira de Frank Lloyd Wright (1939),
mas bem uma ética “barroca”, que será a assinatura especifica do Oscar Niemeyer e do Lucio
Costa de 1960. Se tomamos em conta que as éticas realistas, clássicas, românticas e barrocas
são a respostas tipicamente modernas frente à tragédia capitalista do abismo entre o duro
mundo do trabalho (fotografado por Marcel Gautherot ou Peter Scheier nos canteiros de

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Brasília) e o mundo encantado da mercadoria (como a igreja branca que virou o símbolo para
vender cidade), tem que reconhecer a peculiaridade da resposta barroca, que aposta na utopia
de uma superação desse abismo sem cair, como o romantismo, na ilusão de uma superação já
realizada.

Todo esse percurso nos permitirá de revelar a dimensão política da epistemologia, isso é, os
efeitos políticos da historiografia da arquitetura, nesse caso a arquitetura de Brasília. De um
lado, negar a dimensão barroca de Brasília para reduzir a cidade ao plano de Le Corbusier para
Paris (o que é a posição do antropólogo norte-americano James Holston) talvez não significa
nada mais do que projetar esquemas de pensamentos do “norte” sobre as singularidades do
“sul”, negando assim essa singularidade. Do outro lado, insistir na sua dimensão barroca com a
habitual intenção pejorativa (o que é a posição do arquiteto suíço Max Bill) pode corresponder
à uma visão “orientalista” do capitalismo periférico, visão já denunciada por Edward Said e que,
aqui, aparece na sua versão depreciativa, a do outro como um bárbaro sanguinário obcecado
com a ideia de mostrar seus ornamentos com ostentação. De um lado como do outro, as análises
as vezes pertinentes parecem limitadas pelo etnocentrismo dos interpretes. Interpretar Brasília
como essencialmente modernista e barroca pode permitir de destacar a estética barroca da
modernidade como a chance de uma modernidade alternativa, a modernidade do barroco,
negada tanto pela historiografia como pela história mesmo, desde o golpe de 1964 que acabou
com os projetos utópicos do urbanismo progressista no Brasil. Pretendo propor, assim, uma
viagem no espaço de Brasília e na história da sua recepção, tentando descodificar, no espaço e
no tempo, os signos de um futuro perdido.

Referências

BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.

BRAGA, Milton. O concurso de Brasília. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

CROCE, Benedetto. Breviário de estética. São Paulo: Ática, 1997.

COSTA, Lucio. Registro de uma vivencia. São Paulo: Ed 34 / SESC, 2018.

D’ORS, Eugenio. Do barroco. São Paulo: Tecnos/Martins Fontes, 2002.

DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Campinas: Papirus, 2007.

ECHEVERRIA, Bolivar. La modernidade de lo barroco. México: Era, 1998.

ECHEVERRIA, Bolivar. Modernidad y blanquitud. México: Era, 2010.

FERRO, Sergio. Arquitetura e trabalho livre. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

FORTY, Adrian; ANDREOLI, Elisabetta. Arquitetura moderna brasileira. Londres: Phaidon, 2004.

KIM, Lina; WESELY, Michael. Arquivo Brasília. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

LUCIO, Costa. Um modo de ser moderno. São Paulo, Cosac Naify, 2005.

PEDROSA, Mario. Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo, Perspectiva, 1981.

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SARDUY, Severo. Barroco. Lisboa: Vega, 1989.

WÖLFFLIN, Henrich. Conceitos fundamentais da história da arte. São Paulo: Martin Fontes, 1989.

WÖLFFLIN, Henrich. Renascença e barroco. São Paulo: Perspectiva, 2005.

XAVIER, Alberto; KATINSKY, Julio. Brasília: Antologia crítica. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

XAVIER, Alberto. Depoimento de uma geração: Arquitetura moderna Brasileira. São Paulo: Cosac Naify,
2003.

Outra fonte:

https://www.vitruvius.com.br

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CIDADE E AS VIAS DO POSSÍVEL: APROXIMAÇÕES ENTRE HENRI LEFEBVRE E WALTER
BENJAMIN.

O reconhecimento dos grandes projetos de transformação urbana conduzidos pelo Estado


enquanto mecanismo de controle social e possibilidade de (re)produção do sistema/modo de
produção capitalista já foi apontado por anarquistas franceses do século XIX e reforçadas pelo
sociólogo alemão Walter Benjamin em sua obra inacabada das Passagens (LÖWY, 2019). Esta
compreensão da cidade enquanto lugar estratégico da luta de classes ganha força no
pensamento do autor, principalmente, quando este formula a sua crítica ao progresso e aponta
as (modernas) intervenções urbanas conduzidas pelo Barão de Haussmann na Paris do século
XIX – entendidas como ferozes mecanismos de contenção das barricadas/insurgências sociais e,
ainda, enquanto possibilidade de rentabilização do solo. É no cerne dessa crítica à ideologia
burguesa do progresso, no seio da modernidade, que Benjamin estrutura as suas Teses sobre o
conceito de história cujas reflexões colocam, em uma perspectiva utópica, a possibilidade de
transformação social, e portanto da cidade, a partir de uma escrita da história “à contrapelo”7,
na ótica dos vencidos, em que a liberação dos possíveis esquecidos no passado, poderia resgatar
outros futuros para além deste que realmente ocorreu (GAGNEBIN, 2018, p. 58-59).

Apesar dessa questão não ser explorada pela historiografia, formulamos a hipótese de que Henri
Lefebvre corrobora com a crítica ao caráter homogeneizador da modernidade capitalista
colocada por Benjamin, evidenciada nos violentos apagamentos da memória e da experiência
coletiva, das diferenças e particularidades. Em conformidade com Benjamin, o Lefebvre reforça
a centralidade do espaço para reprodução capitalista, especialmente no século XX, e avança
quando parte da necessidade de compreensão de seu processo de produção, elucidando a
temporalidade histórica do estabelecimento das relações sociais, para o entendimento das
contradições da sociedade de seu tempo (o método regressivo-progressivo). Lefebvre atualiza
o pensamento marxista na medida em que reconhece o capitalismo enquanto processo
civilizatório da sociedade em sua totalidade, implicando na compreensão do cotidiano
instaurado no período pós-guerras na Europa, enquanto momento/lugar possível de
transformação social, pois é nele que residem, paralelamente, as privações e as possibilidades
de transformação da realidade concreta. A propósito desta afirmação Lefebvre aponta que A
revolução não se define [...] unicamente no plano econômico, político ou ideológico, porém mais
concretamente pela eliminação do cotidiano (LEFEBVRE, 1991, p.43-44). Portanto, no
estabelecimento de outras relações sociais em uma sociedade renovada, em um novo espaço.

Uma revolução que não produz um novo espaço não chega ao fim de si
mesma; falha; ela não muda a vida; ela modifica somente as superestruturas
ideológicas, as instituições, os dispositivos políticos. Uma transformação
revolucionária se verifica por sua capacidade criativa de obras na vida
cotidiana, na linguagem, no espaço, uma não necessariamente no mesmo
ritmo da outra (LEFEBVRE, 2000, p.66)8.

Na perspectiva de uma sociedade fundamentalmente urbana, pretendemos identificar como a


compreensão dos processos que levaram aos apagamentos sociais pode servir de horizonte para

7 Referência à tese VII das Teses sobre o conceito de história.


8 Tradução livre do autor a partir de : « Une révolution qui ne produit pas un espace nouveau ne va pas jusqu’au bout
d’elle même; elle échoue ; elle ne change pas la vie ; elle ne modifie que des superstructures idéologiques, des
institutions, des appareils politiques. Une transformation révolutionnaire se vérifie à sa capacité créatrice d’oevres
dans la vie quotidienne, dans la language, dans l’espace, l’un n’allant pas nécessairement au même pas que l’autre,
également » (LEFEBVRE, 2000, p.66)

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a construção de outros possíveis. Refletindo acerca da potência explicativa do pensamento de
ambos para compreensão da atualidade, em uma perspectiva de transformação social,
entendemos que a consciência das privações estabelecidas no plano da vida cotidiana e
decorrentes dos processos históricos de (re)produção do capital, pode ser capaz de aglutinar
forças para uma perspectiva de mobilização social e transformação da realidade. No entanto, a
produção de um discurso crítico sobre a história não é suficiente para transformá-la (BETTO,
1981, p. 15), embora seja um primeiro passo para isso. É preciso que o pesquisador engajado e
articulado à realidade prática se envolva em processos de rememoração para que aquilo que
permanece em sofrimento, os sonhos perdidos e a utopias enterradas dos vencidos da história,
possam ser capazes de disparar processos de rememoração neles mesmos (BERDET, 2015).

Nesse sentido, o esforço científico que sistematize os interesses dos oprimidos ganha força ao
revelar um possível papel de educação libertadora na construção da cidadania e, por
consequência, na condução do processo de transformação social. Isto, porque, a compreensão
crítica dos processos históricos pelos vencidos da história constitui-se enquanto etapa
necessária à mobilização social na perspectiva de luta pela transformação da sua própria
realidade.

No Brasil, incluindo-se também alguns países sul americano da periferia do capitalismo,


destacamos as experiências de atuação das Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s), entre as
décadas de 1970 e 1980, especialmente nos contextos urbanos periféricos, enquanto
importantes vetores de mobilização social e política de populações vulneráveis, que viriam a
constituir resistências às imposições hegemônicas do processo de (re)produção capitalista do
espaço. Este violento, à medida em que segrega populações tradicionais, expulsando-as de seus
lugares cotidianos de vida, apagando suas memórias e experiências coletivas, suprimindo as
diferenças e normatizando a vida em todas as esferas da sociedade como totalidade, ou seja,
revelando as contradições próprias da sociedade na qual estamos inseridos.

Referências

BETTO, Frei. O que é comunidade Eclesial de Base. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981. Disponível
em:<http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/freibetto/livro_betto_o_que_e_cebs.pdf>.

BERDET, Marc. L’Ange de l’Histoire: Walter Benjamin ou l’apocalypse méthodologique. Socio-


anthropologie 28 | 2013 (p.47-63) Online desde 23de setembro de 2015, acesso em: < 10 d Abril de
2020>. URL : http://journals.openedition.org/socio-anthropologie/1540 ; DOI :
https://doi.org/10.4000/socio-anthropologie.1540

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin: os cacos da história. n-1 edições, 2018.[1982]

LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991.

_______. La production de l’espace. 4 édition Paris : editions Anthropos, 2000.

LÖWY, Michel. A revolução é o freio de emergência: ensaios sobre Walter Benjamin. São Paulo:
Autonomia Literária, 2019.

_______. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses sobre o conceito de história. São
Paulo: Boitempo, 2005.

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UTOPIAS CONCRETAS EM TEMPOS DE CRISES

O texto tem o objetivo de analisar o tempo presente e encontrar neste elementos com os quais
seja possível formular utopias concretas, isto é, construídas desde agora como experimentação
de outros mundos possíveis. Em nossa perspectiva, será necessário identificar de saída que a
última década é marcada pela experiência de crises, o que coloca amplos setores da população
em situações de grande vulnerabilidade. Isso implica perceber em que medida as democracias
capitalistas preservam a estabilidade de 1% e são incapazes de gerar formas de vida
minimamente dignas para “os outros 99%”. Ainda que sejam dolorosos, tais momentos trazem
lições históricas importantes. Mostramos ainda que as atuais condições de vida são urbanas e
uma utopia concreta precisa assumir tal ponto como fundamental.

Nossa primeira grande crise foi econômica, deflagrada em 2007-2008 pela irresponsabilidade
de bancos estadunidenses, com impactos imediatos no sistema financeiro de todo o mundo. Os
Estados nacionais interviram para estabilizar os mercados e impuseram, como saída, medidas
de austeridade fiscal que, em linhas gerais, significaram lançar nas camadas populares os ônus
da estabilização. Não por acaso, desde 2011 assistimos a uma onda de protestos como o 15M
espanhol, os Occupy, os estudantes secundaristas e a Greve Geral de 2017 no Brasil, o Nuit
Debout e os coletes amarelos na França e, em 2019, os estudantes chilenos. Estas turbulências
continuam latentes, pois as saídas propostas pelas autoridades reiteram o mais do mesmo.

A segunda grande crise foi de saúde pública, vivida em 2020 na pandemia da COVID-19. Trata-
se de uma questão complexa cujos desdobramentos ainda são imprevisíveis, mas algumas lições
já merecem destaque: em problemas dessa ordem as saídas precisam ser coordenadas e
cooperadas, o que somente é possível através de ações do poder público e da sociedade
organizada. É imprescindível a presença de um Estado que oriente os investimentos de acordo
com as necessidades sociais prioritárias. A iniciativa privada e atores do mercado, no melhor dos
casos, seguiram orientações e destinaram parte de suas produções para o fim determinado
como prioritário mas, em muitos outros casos, reforçaram a fragmentação e desorganização
social ao impor cálculos econômicos em momentos nos quais o valor fundamental era a garantia
da vida. Demissões, chantagens políticas mostraram em que medida a burguesia nacional se
exime de responsabilidade tão logo veja risco de queda em sua taxa de lucro.

É preciso ousar dizer: nosso momento histórico tornou gritante os limites democráticos
intransponíveis sob marcos capitalistas. Ao pensamento crítico, por sua vez, não basta dizer não,
mas recolocar horizontes de uma forma de vida digna para todas e todos. E mais do que isso,
instituir no cotidiano as práticas com as quais se experiencia uma história por ser construída
desde agora.

Portanto, para formular uma utopia concreta atualmente é preciso saber pensar e agir no
interior de crises. Isso implica perceber que nessas situações a sociedade engendra, ao mesmo
tempo, o pior e o melhor em termos civilizatórios.

O corpo social se fragmenta e o pensamento transformador precisa compreender como o


conservadorismo e o cálculo econômico produz ruínas e, em meio a essas, estão atores
dispostos a transformar, desde o cotidiano, as práticas e valorações. Uma utopia concreta
precisa instituir, desde já, espaços que restituam vínculos, atualizem experiências coletivas de
cooperação e, ainda, formas de gozo nas quais a liberdade de um(a) garanta e amplie a liberdade
de todas e todos. Em tempos de crise, tais espaços ganham um magnetismo inesperado e, não
raro, escalas imprevistas, pois o que antes era tido como normal agora se mostra inaceitável.

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Um outro aspecto diz respeito ao fato de que nossas atuais condições de vida são urbanas,
incontornavelmente. No Brasil, isso significa 85% da população e, no mundo, 55%. Não se trata
de um dado menor, secundário, mas de compreender em que medida a urbanização é absorvida
pelos atores sociais em formas de sociabilidade e subjetivação que se traduzem num repertório
de ação coletiva. Traduzem-se numa imaginação política desses sujeitos.

Uma utopia concreta precisa saber ler as desigualdades, os conflitos de classe – com dimensões
de gênero e de raça -- através do espaço urbano. Mesmo entre teóricos sociais e filosofias
críticas do campo progressista ainda há um déficit espacial nesse sentido.

Dito de outro modo, precisamos conseguir identificar onde estão as forças vivas e os sujeitos
dispostos a construir esses “espaços outros” que mencionamos acima. O caldo de mobilizações
de 2011 em diante nos mostra que há formas urbanas de “constituir classe” e a geração de
atores que entrou em cena nesse período já esboça muitas dessas intuições. E nem sempre
precisamos de massas nas ruas. As iniciativas de movimentos sociais e de comunidades
mostraram, ao longo da pandemia, uma capacidade organizativa e de agência ímpar na solução
de problemas complexos. Os mapas digitais colaborativos digitais mobilizaram e orientaram as
práticas solidárias que se multiplicavam dia a dia.

Uma utopia concreta precisa, portanto, explorar os potenciais acumulados historicamente no


fenômeno urbano enquanto obra civilizatória. O urbano concentra redes de infraestruturas,
reúne forças produtivas, a inteligência coletiva, intensifica as interações sociais e a visibilidade
das ações insurgentes. Além disso, o urbano e o poder local são o lugar da proximidade entre
governantes e cidadãos. Aí estão as condições sociais necessárias para a organização societária
em direção a regimes de abundância coletiva em termos materiais, formas radicalmente
democráticas de decisão e, ainda, experiências outras de júbilo e gozo.

Referências

ARRUZZA, Cíntia; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: ed. Boitempo,
2019.

CARLOS, A. Fani. “A luta é urbana, o caminho está ainda sendo construído”. 2013b. Disponível em:
<http://gesp.fflch.usp.br/node/197>. Acesso em 08 abr. 2018.

COLOSSO, Paolo. Disputas pelo direito à cidade: outros personagens em cena. Tese de doutorado.
Faculdade de Filosofia Letras e Ciencias Humanas. São Paulo: USP, 2019.

FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução. São Paulo: ed. Elefante, 2019.

KLEIN, Naomi. Não basta dizer não. Rio de Janeiro: ed. Bertrand Brasil, 2017

LEFEBVRE. A revolução urbana. Belo Horizonte: ed UFMG, 2000

LÖWY, Michael. A revolução é o freio de emergência: ensaios sobre Walter Benjamin.

MARICATO, Erminia. “É a questão urbana, estúpido”. In: Cidades Rebeldes. São Paulo: Boitempo, 2013

PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Amanhã vai ser maior: o que aconteceu com o Brasil e possíveis rotas de
fuga para a crise. São Paulo: ed. Planeta, 2019

Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo


SANTOS, Boaventura. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: ed Almedina, 2020

Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo

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