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A proposta de mesa intitulada “As utopias urbanas e as vias de emancipação social” destaca a
importância do pensamento utópico na historiografia e nas teorias sociais urbanas, com o
objetivo de evidenciar em que medida tais proposições apontam possibilidades de vias de
transformação e experimentações na construção de outras formas de vida em comum. Para
tanto, trazemos um mosaico de formulações teóricas e espaciais, cujo fio condutor é a aposta
segundo a qual uma sociedade emancipada será uma sociedade urbana.
No sentido dessa crítica à modernidade, elo de articulação das propostas aqui apresentadas, a
apresentação do ANÔNIMO, sob o título “A utopia da cidade jardim: uma alternativa para a
era pós-pandemia?”, discute a proposta utópica da garden city, idealizada por Ebenezer Howard
(1850-1928), como resposta à degradação da vida urbana na Londres industrial daquele período,
já colocada por Friedrich Engels (1820-1895) na “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”
(1845) e retomada por Henri Lefebvre na obra "O pensamento marxista e a cidade" (1972). A
questão colocada é a atualidade da utopia Howardiana para se repensar as cidades
contemporâneas.
Por fim, seguiremos com a proposta “Utopias concretas em tempos de crises”, do ANÔNIMO,
que busca analisar o tempo presente e encontrar neste elementos com os quais seja possível
formular utopias concretas, construídas desde agora como experimentação de outros mundos
possíveis. Do ponto de vista do potencial transformador, está no fenômeno urbano as condições
sociais necessárias aos regimes de abundância coletiva em termos materiais, formas
radicalmente democráticas de decisão e, ainda, experiências outras de júbilo e gozo. E por esse
mesmo diagnóstico do tempo presente, ao que tudo indica, as formas de luta também tem um
repertório urbano, cujos potenciais ainda não foram explorados.
Dentre as inúmeras ideias urbanísticas surgidas em fins do século XIX na Europa, a proposta de
cidade jardim, formulada por Ebenezer Howard (1850-1928), em 1898, foi a que encontrou
maior ressonância no urbanismo moderno do século XX, tendo se difundido por inúmeros países
de todos os continentes. A razão de tal sucesso, que levou a adaptação do tipo cidade jardim a
situações sociais, econômicas e políticas as mais diversas, reside em grande parte no seu
conteúdo utópico que busca a reaproximação entre campo e cidade. A utopia howardiana irá se
situar ao lado de inúmeras outras formuladas na Inglaterra do século XIX, e também na América,
como Looking Backwards 2000-1887, de Edward Bellamy (New York: The Modern Library, 1887)
que ele menciona ao lado de outras referências teóricas utópicas e reformistas, como Kropotkin,
Henry George, Richardson.
A segunda metade do século XIX na Inglaterra foi pródiga em levantamentos e denúncias das
condições de vida dos miseráveis que passaram a habitar suas principais cidades. Panfletos,
ensaios e relatórios oficiais registravam tais condições, procurando na crueza da objetividade
dos fatos descritos denunciar, ou ao menos constatar, uma nova situação das grandes cidades.
Howard, entretanto, apresenta uma chave-mestra, vale dizer, uma solução ideal. Sua proposta
era construir o novo mundo em velhas terras, refazendo o meio através da integração entre
campo e cidade, apontando a criação de novas cidades como a única forma para dar conta dos
problemas das cidades já existentes.
Em sua proposta o que Howard destacava era como levar as pessoas de volta ao campo.
Descartando buscar as causas do fenômeno migratório campo-cidade, observava apenas que,
Preconizando o equilíbrio entre campo e cidade e uma vida comunitária, a atenção dada por
Howard aos aspectos econômicos e administrativos para a implantação de sua proposta,
sugerindo formas específicas de propriedade fundiária e de gestão do assentamento, também
foi uma das causas responsáveis por suas inúmeras adequações em condições históricas
distintas, conferindo um caráter marcadamente pragmático à sua teoria. Interessa-nos em
nossa exposição questionar se a ideia de cidade jardim, conforme sua formulação original, pode
fornecer alternativas para a reconstrução dos territórios contemporâneos sob novas formas de
sociabilidade marcadas pela baixa densidade populacional como condição sanitária impositiva.
Referências
ARCHER, John. Rus in urbe: classical ideas of country and city in British town planning. In: Studies in
Eighteenth-Century Culture, XII, 1983, pp.159-86.
FISHMANN, Robert . L'Utopie Urbaine au XXe Siècle. Ebenezer Howard, Frank Lloyd Wright, Le Corbusier.
Bruxelas: Pierre Mardaga, 1979.
HOWARD, Ebenezer. Garden Cities of To-morrow. Londres, Faber and Faber Ltd. Edição brasileira: São
Paulo: Hucitec, 1997.
LANG, Susanne. "The ideal city from Plato to Howard". In: The Architectural Review. Vol.112, nº668
(ago.1952), pp.91-101.
A nossa hipótese de interpretar Lefebvre como um autor romântico revolucionário se inicia com
a publicação do artigo Vers un romantisme révolutionnaire, no qual Lefebvre formula pela
primeira vez o conceito. Remi Hess, sociólogo, discípulo e principal biógrafo de Lefebvre destaca
que a referida publicação é o começo do processo no qual Lefebvre revela o movimento
romântico de seu pensamento. O artigo trata-se de um esboço, um primeiro ensaio do que será
desenvolvido definitivamente no livro La Somme et le reste, publicado em 1959. Segundo Hess,
La Somme et le reste é um livro incontornável, “il est à Henri Lefebvre ce qu’Être et Temps est à
Heidegger, Le Discours de la méthode à Descartes” 3 , livro no qual Lefebvre rompe
definitivamente com o marxismo instituído e desenvolve o seu pensamento romântico
revolucionário. “Je perçois La Somme et le reste comme un livre incontournable pour rompre
avec un marxisme institué et mortifère, et entrer dans ce que l’on pourrait nommer un marxisme
instituant et vivant!” 4 (HESS, 2011, p.16). Além da republicação do artigo original no livro
Introduction à la modernité (1962), já citado, o conceito é utilizado para fazer referência à
juventude romântica revolucionária, denominada de possibilita no livro L’irruption de Nanterre
1A tipologia do Romantismo Revolucionário e/ou Utópico, de tendência do romantismo marxista é adotada a partir
da definição formulada pelos autores Michael Löwy e Robert Sayre no livro: Revolta e melancolia: o romantismo na
contramão da modernidade. Trad. Nair Fonseca. 1°ed. São Paulo: Boitempo, 2015.
2O texto ainda não tem tradução para o português. Entretanto, foi relançado em 2011 com apresentação do autor
Remi Hess.
3 Texto original. Tradução do autor: “(...) ele (o livro) é para Lefebvre o que Être et Temps é para Heiddeger, Le Discours
de la méthode é para Descartes” ou “(...) ele (o livro) está para Lefebvre assim como (...)”.
4 Texto original. Tradução do autor: “Eu vejo La Somme et le reste como um livro incontornável para romper com um
marxismo instituído e mortífero, e entrar naquilo que poderia se chamar um marxismo novo e vivo”.
Referências
HESS, Remi. Henri Lefebvre et l’aventure du siècle. Paris : Éditions A.M. Métailié, 1988.
_____. Introdução à Modernidade. Trad. Jehovanira Chrysóstomo de Souza. Rio de Janeiro: Ed. Paz e
Terra, 1969.
LÖWY, Michael. A estrela da manhã: surrealismo e marxismo. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002.
_____. A estrela da manhã: surrealismo e marxismo. Trad. Eliana Aguiar. 2.ed. São Paulo: Boitempo,
2018.
Como ponto inicial é preciso levar em conta o desafio atravessa a obra de Henri Lefebvre: a
compreensão do mundo exige colocar o possível no lugar do real. Com esta subversão o Autor
sinaliza na direção de que realidade não se encontra pronta e acabada, mas em movimento e,
ao mover-se, orienta nosso pensamento em direção as possibilidades da história. O devir
aparece, em sua obra, na forma da sociedade urbana em constituição.
Minha hipótese é que o “direito à cidade” tal qual desenvolvido na obra do Autor situa-se no
projeto do possível/impossível e, nesta direção manifestar-se-ia como forma superior dos
direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e a habitação; direito
a obra (atividade participante) e o direito a apropriação (bem distinto do de propriedade) que
se imbricam dentro do direito a cidade, revelando plenamente o uso.
Trata-se de pensar a sociedade urbana que se esboça e que aparece para o Autor como
realidade, mas também virtualidade. Isto porque os anos 60 anunciam na obra de Lefebvre a
inversão na história segundo a qual a sociedade industrial se superaria pela constituição de uma
sociedade urbana, com outra lógica. Deste modo a modernidade estaria marcada por uma nova
problemática: a urbana que teria por conteúdo uma determinação espacial localizando, nas
transformações do espaço, a possibilidade para pensar o futuro. Como mediação para pensar o
que moveria a sociedade urbana em direção à sua realização virtual, encontra-se o “direito à
cidade” como mediação necessária. É assim que o conceito ganha centralidade no debate sobre
o devir.
Nas obras sobre a cidade, particularmente “O direito à cidade” e “Revolução urbana”, Lefebvre
constrói uma profunda crítica ao urbanismo o que o permite deslocar a superação dos
problemas urbanos das políticas públicas- indicando a necessidade de uma crítica ao Estado,
bem como seu lugar no devir – para a subversão deste real como projeto possível-impossível
levado a cabo pela sociedade sem a tutela do estado.
Neste caminho Lefebvre atualiza a utopia presente em Marx, apontando em direção ao possível-
impossível: a comunicação, o amor, a participação, o conhecimento, o jogo, que são sempre
impossíveis como totalidade e possíveis como momentos. Esse projeto para Lefebvre
mobilizaria os recursos do imaginário e da arte tanto quanto os recursos da ciência e do
pensamento político localizando essa ação em direção à reconstrução da sociedade no plano do
cotidiano como momento de sua metamorfose. Esse é um projeto poético de mudar a vida.
A utopia ao longo da história liga-se ao desejo humano de realização prática de uma vida não
alienada. Trata-se do desejo de superação de todas as condições de privação na qual se encontra
o indivíduo: situações que privam o homem de sua humanidade. A utopia nos situa no futuro,
todavia, ela nasce no seio de uma determinada sociedade a partir de uma condição histórica
real no tempo presente. Assim a existência do pensamento utópico contempla vestígios e
persistências no seio desta própria sociedade que lhe serve de abrigo; localiza-se na existência
das forças criativas latentes em todas as sociedades, surge da consciência da existência da
alienação, posta-se em direção a realização do humano, o que requer a consciência da
totalidade do mundo.
Referências
CARLOS, Ana Fani A. “La utopía de la gestión democrática de la ciudad”. Scripta Nova. Revista electrónica
de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2005, vol. IX, núm.
194 (01). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-194-01.htm>
_____.Le retour de la dialectique – 12 mots clés pour le monde moderne. Paris: Messidor/Editions
Sociales, 1986.
De maneira contraditória, Brasília foi também atacada como sendo um desvio irracional,
barroco e até surrealista da estética sóbria e socialmente útil do padrão modernista. O designer
e arquiteto suíço Max Bill, vanguardista e modernista, atacou já em 1953 a arquitetura brasileira
para ser “individualista”, “antissocial”, com um “barroquismo excessivo” e “bárbaro”. Para
Bruno Zevi o ano seguinte, se tratava de uma arquitetura “escapista”, “histérica” e que refletia
o “estado de incerteza do país”. Todas as acusações contra Brasília estão já aqui, e serão
retomadas com força depois da inauguração da cidade. Talvez seja o historiador da arquitetura
italiano Manfredo Tafuri que, em 1979, resumiu melhor essa percepção, falando do plano piloto
de Lucio Costa como algo “alegórico infantil” e da arquitetura de Oscar Niemeyer como
“maneirista” e “caprichosa”.
Todo esse percurso nos permitirá de revelar a dimensão política da epistemologia, isso é, os
efeitos políticos da historiografia da arquitetura, nesse caso a arquitetura de Brasília. De um
lado, negar a dimensão barroca de Brasília para reduzir a cidade ao plano de Le Corbusier para
Paris (o que é a posição do antropólogo norte-americano James Holston) talvez não significa
nada mais do que projetar esquemas de pensamentos do “norte” sobre as singularidades do
“sul”, negando assim essa singularidade. Do outro lado, insistir na sua dimensão barroca com a
habitual intenção pejorativa (o que é a posição do arquiteto suíço Max Bill) pode corresponder
à uma visão “orientalista” do capitalismo periférico, visão já denunciada por Edward Said e que,
aqui, aparece na sua versão depreciativa, a do outro como um bárbaro sanguinário obcecado
com a ideia de mostrar seus ornamentos com ostentação. De um lado como do outro, as análises
as vezes pertinentes parecem limitadas pelo etnocentrismo dos interpretes. Interpretar Brasília
como essencialmente modernista e barroca pode permitir de destacar a estética barroca da
modernidade como a chance de uma modernidade alternativa, a modernidade do barroco,
negada tanto pela historiografia como pela história mesmo, desde o golpe de 1964 que acabou
com os projetos utópicos do urbanismo progressista no Brasil. Pretendo propor, assim, uma
viagem no espaço de Brasília e na história da sua recepção, tentando descodificar, no espaço e
no tempo, os signos de um futuro perdido.
Referências
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.
FERRO, Sergio. Arquitetura e trabalho livre. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
FORTY, Adrian; ANDREOLI, Elisabetta. Arquitetura moderna brasileira. Londres: Phaidon, 2004.
KIM, Lina; WESELY, Michael. Arquivo Brasília. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
LUCIO, Costa. Um modo de ser moderno. São Paulo, Cosac Naify, 2005.
PEDROSA, Mario. Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília. São Paulo, Perspectiva, 1981.
WÖLFFLIN, Henrich. Conceitos fundamentais da história da arte. São Paulo: Martin Fontes, 1989.
XAVIER, Alberto; KATINSKY, Julio. Brasília: Antologia crítica. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
XAVIER, Alberto. Depoimento de uma geração: Arquitetura moderna Brasileira. São Paulo: Cosac Naify,
2003.
Outra fonte:
https://www.vitruvius.com.br
Apesar dessa questão não ser explorada pela historiografia, formulamos a hipótese de que Henri
Lefebvre corrobora com a crítica ao caráter homogeneizador da modernidade capitalista
colocada por Benjamin, evidenciada nos violentos apagamentos da memória e da experiência
coletiva, das diferenças e particularidades. Em conformidade com Benjamin, o Lefebvre reforça
a centralidade do espaço para reprodução capitalista, especialmente no século XX, e avança
quando parte da necessidade de compreensão de seu processo de produção, elucidando a
temporalidade histórica do estabelecimento das relações sociais, para o entendimento das
contradições da sociedade de seu tempo (o método regressivo-progressivo). Lefebvre atualiza
o pensamento marxista na medida em que reconhece o capitalismo enquanto processo
civilizatório da sociedade em sua totalidade, implicando na compreensão do cotidiano
instaurado no período pós-guerras na Europa, enquanto momento/lugar possível de
transformação social, pois é nele que residem, paralelamente, as privações e as possibilidades
de transformação da realidade concreta. A propósito desta afirmação Lefebvre aponta que A
revolução não se define [...] unicamente no plano econômico, político ou ideológico, porém mais
concretamente pela eliminação do cotidiano (LEFEBVRE, 1991, p.43-44). Portanto, no
estabelecimento de outras relações sociais em uma sociedade renovada, em um novo espaço.
Uma revolução que não produz um novo espaço não chega ao fim de si
mesma; falha; ela não muda a vida; ela modifica somente as superestruturas
ideológicas, as instituições, os dispositivos políticos. Uma transformação
revolucionária se verifica por sua capacidade criativa de obras na vida
cotidiana, na linguagem, no espaço, uma não necessariamente no mesmo
ritmo da outra (LEFEBVRE, 2000, p.66)8.
Nesse sentido, o esforço científico que sistematize os interesses dos oprimidos ganha força ao
revelar um possível papel de educação libertadora na construção da cidadania e, por
consequência, na condução do processo de transformação social. Isto, porque, a compreensão
crítica dos processos históricos pelos vencidos da história constitui-se enquanto etapa
necessária à mobilização social na perspectiva de luta pela transformação da sua própria
realidade.
Referências
BETTO, Frei. O que é comunidade Eclesial de Base. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981. Disponível
em:<http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/freibetto/livro_betto_o_que_e_cebs.pdf>.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin: os cacos da história. n-1 edições, 2018.[1982]
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991.
LÖWY, Michel. A revolução é o freio de emergência: ensaios sobre Walter Benjamin. São Paulo:
Autonomia Literária, 2019.
_______. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses sobre o conceito de história. São
Paulo: Boitempo, 2005.
O texto tem o objetivo de analisar o tempo presente e encontrar neste elementos com os quais
seja possível formular utopias concretas, isto é, construídas desde agora como experimentação
de outros mundos possíveis. Em nossa perspectiva, será necessário identificar de saída que a
última década é marcada pela experiência de crises, o que coloca amplos setores da população
em situações de grande vulnerabilidade. Isso implica perceber em que medida as democracias
capitalistas preservam a estabilidade de 1% e são incapazes de gerar formas de vida
minimamente dignas para “os outros 99%”. Ainda que sejam dolorosos, tais momentos trazem
lições históricas importantes. Mostramos ainda que as atuais condições de vida são urbanas e
uma utopia concreta precisa assumir tal ponto como fundamental.
Nossa primeira grande crise foi econômica, deflagrada em 2007-2008 pela irresponsabilidade
de bancos estadunidenses, com impactos imediatos no sistema financeiro de todo o mundo. Os
Estados nacionais interviram para estabilizar os mercados e impuseram, como saída, medidas
de austeridade fiscal que, em linhas gerais, significaram lançar nas camadas populares os ônus
da estabilização. Não por acaso, desde 2011 assistimos a uma onda de protestos como o 15M
espanhol, os Occupy, os estudantes secundaristas e a Greve Geral de 2017 no Brasil, o Nuit
Debout e os coletes amarelos na França e, em 2019, os estudantes chilenos. Estas turbulências
continuam latentes, pois as saídas propostas pelas autoridades reiteram o mais do mesmo.
A segunda grande crise foi de saúde pública, vivida em 2020 na pandemia da COVID-19. Trata-
se de uma questão complexa cujos desdobramentos ainda são imprevisíveis, mas algumas lições
já merecem destaque: em problemas dessa ordem as saídas precisam ser coordenadas e
cooperadas, o que somente é possível através de ações do poder público e da sociedade
organizada. É imprescindível a presença de um Estado que oriente os investimentos de acordo
com as necessidades sociais prioritárias. A iniciativa privada e atores do mercado, no melhor dos
casos, seguiram orientações e destinaram parte de suas produções para o fim determinado
como prioritário mas, em muitos outros casos, reforçaram a fragmentação e desorganização
social ao impor cálculos econômicos em momentos nos quais o valor fundamental era a garantia
da vida. Demissões, chantagens políticas mostraram em que medida a burguesia nacional se
exime de responsabilidade tão logo veja risco de queda em sua taxa de lucro.
É preciso ousar dizer: nosso momento histórico tornou gritante os limites democráticos
intransponíveis sob marcos capitalistas. Ao pensamento crítico, por sua vez, não basta dizer não,
mas recolocar horizontes de uma forma de vida digna para todas e todos. E mais do que isso,
instituir no cotidiano as práticas com as quais se experiencia uma história por ser construída
desde agora.
Portanto, para formular uma utopia concreta atualmente é preciso saber pensar e agir no
interior de crises. Isso implica perceber que nessas situações a sociedade engendra, ao mesmo
tempo, o pior e o melhor em termos civilizatórios.
Uma utopia concreta precisa saber ler as desigualdades, os conflitos de classe – com dimensões
de gênero e de raça -- através do espaço urbano. Mesmo entre teóricos sociais e filosofias
críticas do campo progressista ainda há um déficit espacial nesse sentido.
Dito de outro modo, precisamos conseguir identificar onde estão as forças vivas e os sujeitos
dispostos a construir esses “espaços outros” que mencionamos acima. O caldo de mobilizações
de 2011 em diante nos mostra que há formas urbanas de “constituir classe” e a geração de
atores que entrou em cena nesse período já esboça muitas dessas intuições. E nem sempre
precisamos de massas nas ruas. As iniciativas de movimentos sociais e de comunidades
mostraram, ao longo da pandemia, uma capacidade organizativa e de agência ímpar na solução
de problemas complexos. Os mapas digitais colaborativos digitais mobilizaram e orientaram as
práticas solidárias que se multiplicavam dia a dia.
Referências
ARRUZZA, Cíntia; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: ed. Boitempo,
2019.
CARLOS, A. Fani. “A luta é urbana, o caminho está ainda sendo construído”. 2013b. Disponível em:
<http://gesp.fflch.usp.br/node/197>. Acesso em 08 abr. 2018.
COLOSSO, Paolo. Disputas pelo direito à cidade: outros personagens em cena. Tese de doutorado.
Faculdade de Filosofia Letras e Ciencias Humanas. São Paulo: USP, 2019.
FEDERICI, Silvia. O ponto zero da revolução. São Paulo: ed. Elefante, 2019.
KLEIN, Naomi. Não basta dizer não. Rio de Janeiro: ed. Bertrand Brasil, 2017
MARICATO, Erminia. “É a questão urbana, estúpido”. In: Cidades Rebeldes. São Paulo: Boitempo, 2013
PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Amanhã vai ser maior: o que aconteceu com o Brasil e possíveis rotas de
fuga para a crise. São Paulo: ed. Planeta, 2019