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SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Unidade II
5 ESTRUTURAS SOCIAIS E FUNDIÁRIAS: ONDE ESTÁ O RURAL?

O País inventou a fórmula simples da coerção laboral do homem livre: se a


terra fosse livre, o trabalho tinha que ser escravo; se o trabalho fosse livre,
a terra tinha que ser escrava (MARTINS, 1986, p. 3).

[…]

O fato singular de que a economia do café, no Brasil, tenha florescido


com base no trabalho escravo e tenha tido um segundo desenvolvimento
espetacular com base no trabalho livre constitui referência sociológica de
fundamental relevância para o estudo crítico de um dos complicados temas
das ciências sociais nesse cenário peculiar: o da transição de um modo de
produção a outro (p. 4).

Antônio Candido representou a parentela brasileira sob a forma


de círculos concêntricos: o núcleo seria formado pela família do
“patriarca” (ou do “coronel”), seguindo‑os vários círculos concêntricos
com parentes, agregados etc. Acreditamos que o esquema geométrico
mais adequado seja o da pirâmide truncada, formada internamente
de camadas sociais sobrepostas, divididas entre si pelo dinheiro e pelo
prestígio, pois mostra claramente a subordinação de umas camadas a
outras (QUEIROZ, 1976, p. 189).

5.1 O mapa do texto

Agora, estamos pensando principalmente com a cabeça. As soluções pelo labor que acabamos de ver
suscitam sua própria superação intelectual. E como disse Hannah Arendt, embora a superação tenha se
dado como disjunção do social completo em que o atendimento de nossa própria natureza devesse ser
mais do que suficiente, quisemos mais. Sempre flertamos com o ideal fáustico!

Situados, procuramos as pessoas e suas coisas no campo e na cidade, como organismos vivemos, e
daí passamos a elaborar e a estruturar tais experiências; diremos que com a cabeça; mesmo que o corpo
todo seja pensante, a cabeça é, no senso comum, articuladora dos estímulos, dados e informações; plano
da razão técnica, razão prática: construções comuns (utensílios, abrigos) e respostas míticas para a
existência. Estamos falando de soluções corporais, mesmo ao nos referirmos ao intelecto, no nível básico
da sobrevivência, espiritual e físico.

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Gostamos desse caminho analítico (muito ao gosto de Merleau‑Ponty) e as práticas, as


inteligências práticas de criação, de soluções imediatas de problemas da existência, como criar,
cultivar, coletar etc., trazem‑nos o engenho humano na elaboração/construção de equipamentos,
desenvolvimento de recursos tecnológicos gerais e específicos; a caminho do intelectual, é mais
operacional que reflexivo.

Agir para resolver problemas no mundo da vida, bem abaixo do fluxo dos pensamentos; das
experiências da vida, avançamos um pouco para as experiências sobre a vida, sobre o modo de processar
os recursos necessários no curso do labor. Cabeça é a “parte” eleita do corpo‑sujeito percipiente das
respostas comportamentais no plano do irrefletido.

É assim que o exercício da razão (metaforicamente na cabeça) leva às realizações técnicas humanas,
em prolongamento das mais elementares já engendradas nos labores, nessa dimensão humana há a
articulação de capacidades, virtualidades e realizações da vida coletiva, pequenas em aglomerações ou
aldeias (MUMFORD, 1965, p. 13‑15).

A vida coletiva evoca evolução de meios, mas também alienação progressiva do habitante político da
pólis, dos vizinhos nos bairros das paróquias, à cidade de distritos vazios e exíguos de intersubjetividade
direta, nas bases de novas vivências empobrecidas de trocas mais imediatas.

As estruturas do título emergem como organização e disposição dos habitantes, seus endereços e
espaços que lhes permeiam. E delas, de suas configurações e conteúdos atuais, perguntamos ao longo
do texto como poderemos tecer novas estratégias para melhorar as coisas, com os olhares, as visões e
buscas necessárias, respostas econômicas e organizacionais, alternativas.

É assim que o ser humano, ao viver e fazer, estabelece relações ambientais e culturais valorizando
suas relações sociais; e organiza formas de trabalho como valor e relações que se territorializam na
variedade de hábitats como soluções socioespaciais: vida tradicionalmente nos meios rurais e nas
cidades, animadas pelo processo de urbanização.

5.2 Procurando as pessoas e seus modos de vida

Segundo Mazoyer (2010); Haviland (2011); Mumford (1965); e Pinsky (2011), a vida humana se
manifesta, desde sua aurora até os dias de hoje, como interações multidimensionais de cunho social
entre pessoas, de modo que as combinações das condições espaço‑temporais específicas explicariam a
diversidade de expressões sociais da existência. Nesse caso, todos os agrupamentos, sejam do neolítico
ou da contemporaneidade, apresentam‑se como elaborações e construções determinadas pelo trabalho
que realizam obrigatoriamente como cobrança da vida pela permanência.

O que parece evoluir na espécie homo é a busca do humano (uma existência distintiva entre os
demais seres), por uma busca dessa humanidade, que se expressa primeiro como intuição das diferenças
nas formas de sobrevivência, tanto como coletores, agricultores e domesticadores e transformadores,
até degenerar na cultura antropocêntrica hegemônica.

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Portanto, mais importante do que fazer etnografia de povoados ou de regiões rural‑agrárias de um


lado, ou de aglomerações urbano‑citadinas de outro – como forma de hipostasia dos fluxos temporais
ou monumentalização da história –, é entender as interações humanas como aparentes miscelâneas.

Muito desse amálgama humano (cidades e campos interpenetrando‑se, espacial e temporalmente,


nas formas tão diversas quantas sociedades existem) se deve à complexificação de processos
de várias dimensões sociais, como industrialização (econômica), urbanização, metropolização
(sociológico‑geográficas), socialização e sociabilidade (sociologia e antropologia), institucionalização e
poder (ciência política), globalização ou reticulação ou enredamento de informação, objetos e pessoas
(para o pensamento interdisciplinar).

Apoiamos nosso raciocínio de junção em Raymond Williams (1989), mais especificamente quando
o autor considera tanto sua experiência de habitante de área rural quanto das vidas de seu pai e de seu
avô. Tais experiências patrilineares, trazidas pelas recordações de Raymond Williams, são carregadas
de afetividade, evocativas de sua memória com forte acento geográfico, ao modo de uma cartografia
emocional bastante detalhada em decorrência de suas vivências atravessadas pela espacialidade das
localizações das atividades dos familiares que ele herda de suas raízes parentais.

A afetividade é enaltecida pela patrilinearidade, quando conta do avô, do pai, passando por ele
mesmo, cujas historicidade e territorialidade conhecidas lhes permitem atribuir valores sentimentais
aos lugares ocupados e desocupados por moradia e trabalho dos protagonistas de sua narrativa,
reconhecendo valores diversos, inclusive monetários. Aborda a transformação territorializada das redes
pessoais, institucionais e corporativas constituídas pelos sujeitos de sua história pessoal.

A genealogia dramática de Williams (1989) liga vertical e horizontalmente os lugares, constituindo


lugaridades – ou microterritorialidades, no sentido de essências empregado por Holzer (2013) – pelas
biografias de seus familiares mais próximos que conectam campos e cidades, com a mediação simbólica
da aldeia em que também ele próprio morou, que lhe possibilitou vivenciar essas realidades conceituadas.

Tais alusões põem‑nos a pensar sobre o quanto até mesmo o trivial nos escapa: o que é o condomínio
ou a rua em que moramos? Muito menos conhecemos os ingredientes e a profusão de aditivos artificiais
do que compramos nos supermercados e o que comemos nas cadeias de fast‑food.

Vamos considerar algumas teorias sobre os espaços sociais rurais e urbanos: as ciências sociais
(sociologia e suas interfaces com a geografia, antropologia, demografia e com as ciências políticas) e
suas linhas de pesquisa das relações nas cidades, nos campos de moradia e cultivo e de seus vínculos.

5.3 Cultivando e criando o mundo: além da coleta

As regiões do mundo nas quais os grupos humanos, vivendo exclusivamente


da predação de espécies selvagens, transformaram‑se em sociedades vivendo
principalmente de exploração de espécies domésticas, são finalmente pouco
numerosas, não muito difundidas e bastante afastadas umas das outras.
Elas constituíam o que chamamos centros de origem da revolução agrícola
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neolítica, entendendo que o termo “centro” designa uma área, e não um


ponto de origem. A partir de alguns desses centros, que nomearemos centros
irradiantes, a agricultura, em seguida, se estendeu para a maior parte das
regiões do mundo (MAZOYER, 2010, p. 100).

Neste momento do texto, em que o rural distingue‑se do agrário, tomamos contato com perdas
de ritos e tradições, atropelados por processos políticos de aplanamento social travestidos, fantasiados de
modernização jurídica dos costumes. E fazemos, então, uma guinada em direção à dimensão econômica
da sociedade, falamos de atividades agrárias como setor produtivo, além de modo de vida, dos negócios
do campesinato histórico ao trabalhador rural moderno, há muitas mudanças, como as descritas nos
trabalhos de Margarida Maria Moura, como Os camponeses, Os deserdados da terra e Os herdeiros da
terra. Margarida Maria Moura busca práticas sociais e saberes produtivos próprios ao modo de vida
camponês – embora muitos acadêmicos neguem sua existência – e os apresenta. Ela os registra e
descreve sua dinâmica diante de relações capitalistas de produção, ávidas por assimilação, incorporação
ou subordinação de tudo que estiver no caminho da reprodução ampliada do capital.

Em Os deserdados da terra, são minuciosamente estudadas as formas de desqualificação por meio


da incorporação das relações camponesas aos mercados de trabalho capitalistas, que vão violentamente
assalariá‑los.

Entram em cena também os circuitos produtivos agrários e urbanos, suas interdependências: funções
(extrativas, agropecuárias, comerciais, industriais) e escalas (local, regional e internacional) clássicas e
modernas. A vida urbana como dependente das áreas produtivas e as novas propostas de produção
agrária nas cidades (hortas urbanas, por exemplo).

Tais circuitos são viabilizadores da produção e implicam também uma discussão sobre as ocupações
e migrações, os movimentos populacionais que constituem as tais estruturas. Trata‑se de trabalhadores
do campo e da cidade: novas figuras trabalhistas e localizações de atividades que, como vimos em Maria
José Carneiro (2000), formam a miríade de agentes e grupos econômicos.

Alguns termos dos estudos sobre os espaços rurais são muito importantes, embora sejam também
obstáculos ao conhecimento; como é o caso de aldeamento, área rural, vila, cidade, metrópole, por exemplo.

O trabalho das pessoas dá‑se nos lugares, nos campos e nas cidades, representado ou regulado pelas
necessidades e pelas figuras jurídicas.

Para reforçar o raciocínio das estreitas relações entre as estruturas sociais e fundiárias, evocamos
mais uma vez Ratzel, que posiciona o Estado como sustentáculo da ligação orgânica dos homens com o
solo (isto é, a sociedade com seu ambiente, suas paisagens e até mesmo pátria) e, além disso.

Ratzel fazia, então, a crítica das ciências que tratavam o homem, em


particular a sociologia, e que ignoravam sua ligação com a terra. Assim diz
“… quer seja o homem considerado isoladamente ou em grupo (família,
tribo ou Estado), por toda parte em que se observar, se encontrará algum
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pedaço de terra que pertence ou à sua pessoa ou ao grupo de que ele faz
parte. Quanto ao que diz respeito ao Estado, a geografia política, após longo
tempo, se habituou a fazer entrar em consideração a dimensão do território
ao lado da cifra da população”.

Mas, não só a sociedade e o Estado têm uma base territorial, mas com estas
se relacionam. Por isso, diz Ratzel, “a sociedade é o intermediário pelo qual
o Estado se une ao solo. Segue‑se que as relações da sociedade com o solo
afetam a natureza do Estado em qualquer fase do seu desenvolvimento que
se considere” (SILVA, 1984, p. 104).

Apesar de Henri Lefebvre defender uma visão de realização plena de urbanização das cidades
(desprestigiando o universo rural), serve‑nos sua perspectiva revolucionária, inconformista diante da
normatização da vida social.

Lefebvre auxilia‑nos com sua reflexão sobre o rural e o urbano como produtos de processos sociais
mais amplos (1978; 2001).

Do rural ao urbano

Quantos dos nossos cidadãos, intelectuais, e até mesmo os historiadores ou sociólogos,


percorrem nossas cidades e descobrem sua face original ou incerta extraída de sua monotonia
ou admirando o que houver de pitoresco, e estão cientes de que essas pessoas não podem
ser reduzidas a um amontoado acidental de homens, animais e coisas, que seu exame revela
uma organização complexa, uma estrutura?

O estudo de uma aglomeração rural, em qualquer país, descobre equilíbrios dos mais sutis
do que em princípio se poderia esperar: são proporcionais às extensões das terras de trabalho,
florestas, pastagens e dos grupos de seres vivos que sobrevivem de seu pedaço da Terra. Este
estudo, quando passa dos simples fatos objetivos aos fatos humanos que lhes dizem respeito,
também descobre que as proporções materiais, sem serem explícita e racionalmente procuradas
pelos homens, não são obtidas cega e mecanicamente, demonstrando uma consciência difícil
de entender e ainda mais difícil de definir. Há aqui uma curiosa mistura de prudência, iniciativa,
desconfiança, credulidade, rotina: sabedoria camponesa.

A análise descobre, finalmente, fissuras nessa ordem, incertezas nessa sabedoria,


desequilíbrios mais ou menos duráveis, devidos a causas mais ou menos profundas, como:
problemas, necessidades, tendências, conflitos, adaptações ou inadaptações. Esse organismo,
que nem sempre somos capazes de ver, nos é dado, no entanto, olhando, com sua estrutura
e seu horizonte. Enquanto isso, a consciência dessa comunidade organizada dissimula‑se na
vida dos indivíduos que dela participam: a realidade sensível é tão secreta quanto imediata.
Organização e consciência contêm e continuam sua história; apresentam um passado. Neste
lugar qualquer, existiu e viveu uma pacata vila situada numa colina, existiu muito antes das
cidades tão conhecidas, únicas em manter e monopolizar hoje nossas esperanças e sonhos!
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Esta cidade, que há muito está mergulhada em uma paz cinzenta e reticente, sustentou
lutas ardentes contra senhores, príncipes ou reis. Pouco se manteve desse passado, nada
permanece. Nada e, no entanto, tudo: a forma mesma da cidade.

Adaptado de: Lefebvre (1978, p. 19‑20).

Lefebvre (2001) ajuda‑nos a trazer também a cidade, pois suas preocupações com a interpretação
das relações sociais punham‑no diante de suas expressões espaciais e, portanto, mais do que entender
a vida nos campos e nas cidades, queria era entender os processos socioespaciais que se moldavam com
os espaços que as atividades humanas ocupavam, aproximando criticamente sua sociologia da filosofia
e da geografia (LEFEBVRE, 1978).

Em O direito à cidade, de 2001, Lefebvre traz o mote das garantias que será retomado nos últimos
anos de maneira mais visível, com os movimentos Occupy de reivindicações alternativas e de mais
espaço político pelo mundo afora, além da maior evidência no centro nervoso das finanças mundiais,
em Wall Street, principalmente, por David Harvey, em seu Cidades rebeldes (2013), como explica:

A atual onda de movimentos juvenis em todo o mundo, desde a cidade do


Cairo até Madrid ou Santiago do Chile – para não falar da rebelião nas ruas de
Londres, seguida pelo movimento Occupy. Wall Street iniciado na cidade
de Nova York e que logo se estendeu a inumeráveis cidades estadunidenses
e de todo o mundo – sugere que haja algo político no ar das cidades que se
debatem por expressar‑se (HARVEY, 2013, p. 173, tradução nossa).

Em seus trabalhos mais recentes, Harvey coloca o pensamento de Lefebvre como pedra fundamental
do seu próprio, acompanhando, assim, Lefebvre em suas advertências quanto à necessidade de alertar
o leitor quanto ao excesso de normatização da vida social. Em O direito à cidade, Lefebvre explica esse
ponto de vista:

Porque muito provavelmente cada leitor já terá em mente um conjunto de


ideias sistematizadas ou em vias de sistematização. Muito provavelmente,
cada leitor procura um ‘sistema’ ou encontrou o seu ‘sistema’. O sistema está
na moda, tanto no pensamento quanto nas terminologias e na linguagem.
Ora, todo sistema tende a aprisionar a reflexão, a fechar os horizontes. Este
livro deseja romper os sistemas, não para substituí‑los por um outro sistema,
mas para abrir o pensamento e a ação na direção de possibilidades que
mostrem novos horizontes e caminhos. É contra uma forma de reflexão
que tende para o formalismo que um pensamento que tende para a abertura
trava o seu combate (LEFEBVRE, 2001, p. 9).

Segundo Lefebvre (2001), para apresentar e expor a problemática urbana, impõe‑se como
ponto de partida incontestável o processo de industrialização que, há um século e meio, é o motor
caracteristicamente moderno das transformações na sociedade. O autor ainda afirma:

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Se distinguirmos o indutor e o induzido, pode‑se dizer que o processo


de industrialização é indutor e que se pode contar entre os induzidos
os problemas relativos ao crescimento e à planificação, as questões
referentes à cidade e ao desenvolvimento da realidade urbana, sem
omitir a crescente importância dos lazeres e das questões relativas à
“cultura” (LEFEBVRE, 2001, p. 11).

Embora Lefebvre atribua papel central à industrialização moderna para explicar a urbanização,
afirma que ela “não tem por consequência, inevitavelmente, o termo ‘sociedade industrial’, se
quisermos defini‑la” (LEFEBVRE, 2001, p. 11). Acrescentamos que também não poderíamos rotular
a sociedade contemporânea de pós‑industrial, dada sua função fundamental tanto nas cadeias
produtivas, circuitos econômicos, quanto nos fundamentos da vida humana, que transforma
necessidades e matéria em energia e emoções. Vejamos um pouco mais da questão, nas palavras
de Lefebvre:

Ainda que a urbanização e a problemática do urbano figurem entre


os efeitos induzidos e não entre as causas ou razões indutoras, as
preocupações que essas palavras indicam se acentuam de tal modo que
se pode definir como sociedade urbana a realidade social que nasce à
nossa volta. Esta definição contém uma característica que se toma de
capital importância.

A industrialização fornece o ponto de partida da reflexão sobre nossa


época. Ora, a Cidade preexiste à industrialização. Esta é uma observação
em si mesma banal, mas cujas implicações não foram inteiramente
formuladas. As criações urbanas mais eminentes, as obras mais “belas”
da vida urbana (“belas”, como geralmente se diz, porque são antes
obras do que produtos) datam de épocas anteriores à industrialização.
Houve a cidade oriental (ligada ao modo de produção asiático), a
cidade arcaica (grega ou romana, ligada à posse de escravos), depois
a medieval (numa situação complexa: inserida em relações feudais,
mas em luta contra a feudalidade da terra). A cidade oriental e arcaica
foi essencialmente política: a cidade medieval, sem perder o caráter
político, foi principalmente comercial, artesanal, bancária. Ela integrou
os mercadores outrora quase nômades, relegados para fora da cidade
(LEFEBVRE, 2001, p. 11).

5.4 Cidades gigantes

O século XX nos trouxe fenômenos de metropolização, principalmente das cidades da periferia do


capitalismo. Essas megacidades, segundo Alves (2015), podem ser associadas a estruturas genéricas
concentradas e concentradoras de propriedade e das diversas formas de capital, são muito bem
representadas pela instância de governança internacional, o Fórum Econômico Mundial (FEM). Segue
trecho do texto para ilustrar.
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A urbanização e o crescimento das megacidades

A revista britânica The Economist publicou um mapa interativo com a evolução da


urbanização mundial e das cidades globais no mundo entre 1950 e 2030. Em 1950, 7 em
cada 10 habitantes viviam em áreas rurais (70,4%).

Dos 29,6% habitantes das zonas urbanas, a maior quantidade (17,7%) vivia em
cidades com menos de 300 mil habitantes. As cidades entre 300 mil e 500 mil habitantes
abarcavam apenas 2% da população mundial. As cidades entre 500 mil e um milhão de
habitantes abarcavam 2,6% da população mundial. Aquelas entre 1 milhão e 5 milhões
de habitantes abrigavam 5,1% da população mundial. As cidades entre 5 milhões e 10
milhões de habitantes absorviam 1,3% da população mundial.

Em 1950, as megacidades, aquelas com mais de 10 milhões de habitantes, abarcavam


somente 0,9% da população mundial. Somente as áreas metropolitanas de Nova Iorque e
Tóquio estavam classificadas nesta última categoria. O maior município do Brasil, em 1950,
era a cidade do Rio de Janeiro, com 2,4 milhões de habitantes, superando São Paulo que
tinha 2,2 milhões de habitantes.

No ano 2000, a percentagem da população rural caiu para 53,4%. Dos 46,6% habitantes
das zonas urbanas na virada do milênio, a maior quantidade (21,9%) ainda vivia em
cidades com menos de 300 mil habitantes. As cidades entre 300 mil e 500 mil habitantes
passaram a abarcar 3,1% da população mundial. As cidades entre 500 mil e 1 milhão de
habitantes abarcavam 4,3% da população mundial. Aquelas entre 1 milhão e 5 milhões
de habitantes abrigavam 9,8% da população mundial. As cidades entre 5 milhões e 10 milhões de
habitantes absorviam 3,4% da população mundial. As megacidades, aquelas com mais
de 10 milhões de habitantes, deram um grande salto para 4,2% da população mundial.

A China e a Índia foram os países que apresentaram o maior número de megacidades


no ano 2000. Na América Latina, as áreas metropolitanas do México, São Paulo, Rio de
Janeiro e Buenos Aires passaram a ser consideradas megacidades, assim como a cidade
do Cairo na África.

As projeções para o ano 2030 indicam uma maioria da população urbana (60%) sobre
a rural (40%), sendo que 23% deve estar nas cidades com menos de 300 mil habitantes.
As cidades entre 300 mil e 500 mil habitantes devem abarcar 3,8% da população mundial.
As cidades entre 500 mil e um milhão de habitantes devem absorver 6,1% da população
mundial. Aquelas entre 1 milhão e 5 milhões de habitantes devem abrigar 13,4% da
população mundial. As cidades entre 5 milhões e 10 milhões de habitantes devem ser
abrigo de 5,2% da população mundial. As megacidades com mais de 10 milhões de
habitantes devem chegar à casa de 8,6% da população mundial.

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Quase 9% da população mundial viverá nas 41 megacidades (aqueles com mais de


10 milhões de habitantes) em 2030. A Ásia será responsável por mais da metade das
29 megacidades do mundo. Mas é na África que deve ocorrer o maior crescimento
demográfico e a urbanização mais rápida. Kinshasa, capital da República Democrática
do Congo, verá a sua população aumentar cem vezes a partir de 200 mil habitantes em
1950 para cerca de 20 milhões de habitantes na projeção para 2030. Lagos, a cidade
mais populosa da Nigéria, terá mais de 24 milhões de residentes em 2030, assim como
Cairo no Egito.

Como mostraram outros autores, a transição urbana acontece de forma sincrônica com
a transição demográfica, sendo que ambas abrem uma grande janela de oportunidade para
a melhoria das condições de vida de todos os cidadãos do mundo. Por exemplo, a esperança
de vida ao nascer da população mundial passou de 47 anos no quinquênio 1950‑55 para
70 anos no quinquênio 2010‑15. A mortalidade infantil caiu de 135 por mil para 37 por
mil no mesmo período. Também houve aumento da renda e dos níveis educacionais dos
habitantes do globo neste período. Portanto, o processo de urbanização e de crescimento
das megacidades tem sido acompanhado por maiores direitos e avanços de cidadania em
relação àqueles das populações rurais.

Porém, o crescimento exponencial da população e da economia tem provocado


uma deterioração das condições ambientais do planeta, o que já está comprometendo
o futuro do progresso civilizacional, diante de uma natureza devastada. Diversos
estudos mostram que a concentração urbana é menos danosa do que o espraiamento
demográfico suburbano e rural. Mas os desafios gerados pela especulação imobiliária,
pela imobilidade urbana, pela segregação habitacional, pela demanda de serviços
ambientais e pela poluição exigem soluções urgentes para evitar que as grandes cidades
virem um barril de pólvora, que pode explodir detonando as condições de vida humana
e não humana do planeta.

Adaptado de: Alves (2015).

Dado tamanho dinamismo e agigantamento, assuntos como a relação população e recursos


torna‑se o grande mote do nosso tempo. O texto anterior coloca questões acerca dessa problemática
da quantidade, à qual acrescentamos a da distribuição e do acesso; isto é, a própria questão fundiária,
aqui, sempre presente, permeando nosso livro‑texto.

Estruturas fundiária e social entrecruzam‑se nas paisagens (onde há trabalho, de que tipo, quanto
e como promove acesso ao seu produto), aí sendo lidas as intenções e os pactos sociais responsáveis
pelos resultados, que, no caso do Brasil, são profundamente desoladores, apesar das melhorias
(insustentáveis sem educação política básica).

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Unidade II

Saiba mais

A questão agrária brasileira articula‑se às questões fundiária e da


pobreza, por isso é fundamental estudá‑las. As políticas territoriais estão
na base da geografia da produção e da distribuição de produtos, sendo as
mais importantes à compreensão do modelo de propriedade brasileira a
lei portuguesa de concessão de sesmarias, de 1375, Lei de Terras de 1850
e Estatuto da Terra de 1964. Seguem referências de quatro abordagens
sobre o tema:

HOLSTON, J. Cidadanias insurgentes: disjunções da democracia e da


modernidade no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

JAHNEL, T. C. As leis de terras no Brasil. Boletim Paulista de Geografia. São


Paulo, AGB. n. 65, p. 105‑116, 1987. Disponível em: https://bit.ly/3cnNJ7f.
Acesso em: 21 maio 2019.

MARTINS, J. S. A questão agrária brasileira e o papel do MST. In: STEDILE,


J. P. (org.). A reforma agrária e a luta do MST. Petrópolis: Vozes, 1997.

OSÓRIO, S. L. Na terra, as raízes do atraso. História Viva, n. 1, p. 72‑77,


nov. 2003.

É muito importante compreender de que forma o tema do acesso à terra é atual. A sociologia deve
procurar as associações ao redor da propriedade e do trabalho, bem como a gama de significados
ou nexos que emergem dessas relações; isto é, vínculos em vários níveis e com formas e motivações
diferentes, como processos mutuamente interferentes. É assim que o trabalho remete ao tempo livre, às
festas, às práticas religiosas, à vida em família, lazeres, convivência, além de demais padrões.

Veremos agora a agroindústria puxando a locomotiva da economia, com seus modelos característicos
de modo controvertido de produção e de trabalho.

5.5 Rural agrário e os horizontes do urbano

É preciso que se diga: somente pensamos cidade e campo em termos regionais, pedindo assim
ajuda aos conhecimentos clássicos da geografia. Cidade e campo são, do ponto de vista territorial,
regiões de nossa estrutura municipal e federativa. Os termos da produção envolvem a lida com o espaço
geográfico quanto às transformações que vão da matéria na natureza à apropriação social dos recursos
no território.

Sauer (1992) trata das distorções do nomos na ocupação e na transformação da terra e na


evolução das paisagens pelos usos da agricultura e da pecuária comerciais, ajudando‑nos a explicitar
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a gênese do processo de concentração de capital de sobrevalorização do alimento num mundo


faminto e mal alimentado.

O autor vai ao âmago da sustentabilidade, já na década de 1950, questionando as bases do


desenvolvimento e o teor da insustentabilidade ambiental:

Será que precisamos perguntar se ainda há o problema da escassez de


recursos, um equilíbrio ecológico que alteramos ou [do qual] desdenhamos,
colocando em risco o futuro? Foi astuto o Wordsworth da primeira era
industrial dizendo que “ao obter e gastar recursos, esgotamos nossas
possibilidades?” São nossas habilidades recém‑descobertas de transformação
do mundo, tão bem‑sucedidas no curto prazo, adequadas e utilizadas com
sabedoria, para além da responsabilidade das pessoas que vivem hoje em
dia? Com que propósitos estamos comprometendo o mundo com um ritmo
crescente de mudanças? (SAUER, 1992, p. 21).

O autor lança seu olhar arguto sobre nosso modelo de desenvolvimento, sublinhando que o forte
aumento na produção nos últimos anos é devido somente em parte a uma melhor recuperação
ambiental, com uso mais eficiente de energia e substituição das fontes escassas pelas abundantes.
Em essência, temos esgotado mais rapidamente os recursos acessíveis que conhecemos. Então, não
deveríamos admitir que muito do que chamamos de produção não é apenas extração?

Mesmo aqueles chamados de recursos renováveis não estão sendo renovados. Apesar de uma
melhor utilização e substituição, o cultivo de madeira, por exemplo, segue ainda atrasado em relação à
exploração e às perdas; as florestas e os extratos mais baixos estão sendo explorados, e a deterioração de
áreas florestais é difundida. Grande parte do mundo está em um período de demanda de madeira, sem
meios conhecidos de substituição (SAUER, 1992). Há alternativas sustentáveis de materiais desenvolvidos
nas últimas décadas, mas sem efetivamente entrar no mercado por outra razão que não a lucratividade,
como é o caso emblemático de nossas embalagens de tetra pak, PET e plásticos em geral.

A agricultura comercial requer um grande capital de giro e depende de um alto grau de mecanização
e adubação. Estimativas apontam que grandes parcelas do lucro líquido das fazendas vão para a compra
de equipamentos duráveis, necessários ou não. Quanto mais se converte a produção agropecuária
tradicional em indústria e negócio, menos resta da antiga atividade com a qual o homem vivia em
harmonia com a sua terra. Falamos com satisfação de liberar a população rural da fazenda para a “vida
livre” nas cidades (esse é o imaginário e a voz generalizada dos cientistas do fenômeno urbano, nem
sempre confirmados na vida efetiva do migrante), e contabilizamos uma economia de horas em pessoas
ocupadas em unidades de produção nas fazendas e em áreas plantadas; resultantes da tecnificação das
atividades agrárias associada aos modelos de titulação e propriedade da terra (dependência financeira
dos canais de crédito e subsídios governamentais). Em algumas áreas, o agricultor fazendeiro está se
tornando um morador da cidade, que contrata uma equipe por curtos períodos para plantio, cultivo
e colheita. O aparato produtivo, tudo aquilo que caracteriza historicamente uma fazenda como
unidade produtiva, do jardim ao estábulo, celeiro, currais e muitos lotes de cultivo da fazenda estão
desaparecendo em muitas regiões, junto com um modo de vida, enquanto as famílias de agricultores
85
Unidade II

tornam‑se tão dependentes do merceeiro, do açougueiro, do padeiro, do leiteiro e do vendedor de


combustível como os seus conterrâneos da cidade. Trata‑se de profundas alterações nas paisagens e
nas modalidades de trabalho, isto é, na própria divisão territorial do trabalho, distribuindo as atividades
conforme novas atribuições externas (das grandes sedes do capital) de papéis das categorias profissionais
(o camponês, antes fundamental, cede lugar a funcionários, a equipes contratadas por empreitada e
mesmo terceirizadas); mudança de peso das próprias áreas produtivas nas economias local, regional
e nacional, cada vez mais globalizadas.

Ao se tornar de fato capital, a fazenda, na forma de terras e benfeitorias, exige a manutenção de


registos nos livros de contabilidade sobre os ativos e riscos, o agricultor passa a ser o operador de uma
fábrica especializada em produtos, seja ao ar livre ou não, preocupados com a maximização dos lucros.
O aumento da demanda por capital de giro exige retornos crescentes em dinheiro; talvez isso seja o que
queiramos dizer com as designações “intensiva” e “científica” da agricultura de extração em um grau
crescente (SAUER, 1992).

Os atuais excedentes agrícolas não são prova de que a produção de alimentos não é mais um
problema ou que deixará de ser o maior problema no mundo. Nossa produção tem sido assegurada
aos custos e riscos imprudentes com finalidade de ganho imediato, que substituiu as velhas atitudes
de viver com a terra. A mudança ganhou força especialmente quando motores substituíram animais de
tração. A terra, antes usada para produzir aveia e outros alimentos para animais, estava disponível para
cultivar mais milho, soja, algodão e outras culturas em grande parte para a venda e remessa.

A rotação tradicional de cereais – aveia – trevo, que protege a cobertura do solo e mantém o balanço
de nitrogênio, começou a se desintegrar. A soja plantada moderadamente em 1920, principalmente como
alimento, se tornou uma importante cultura de rendimento. O esgotamento de culturas e exposição do
solo teve impulso na mudança para a agricultura mecanizada; uma pequena parte das melhores terras
é utilizada para pastagem e feno; menos estrume animal e resíduos vegetais que são retornados aos
campos. Sauer (1992) segue expondo razões, não contra a mecanização, mas contra a mudança de
filosofia da produção, esta que atrela modelos de produção, gestão e instrumentos, como fertilizantes
industriais, muitas vezes proibidos em outros países.

A própria ideia de atividades agropecuárias sustentáveis ambientalmente rejeita os aditivos químicos


nocivos à saúde, tendo a vida humana como gabarito da reflexão (ética, antes mesmo da jurídica) e da
ação (gerenciar, lavrar a terra, criar animais).

Os chamados cultivos em fileiras são os de maior expressão comercial, demandando cuidados durante
a maior parte de seu período de crescimento. Portanto, oferecem pouca proteção à superfície à medida
que crescem, e praticamente nenhuma depois de serem colhidos. Situação ideal seria aquela alcançada
com os estratos, protegendo‑se mutuamente. “Nossa agricultura comercial (ou convencional) em geral é
mantida em expansão através do aumento da exploração da fertilidade dos solos” (SAUER, 1992, p. 22).

O modelo agrário que temos expande suas fronteiras graças às possibilidades de compra de fontes
de nitrogênio, fósforo, potássio e enxofre, reiterando os padrões agroquímicos; esse modo de viver e
produzir não aprende com o ambiente, mas sobre ele, externamente.
86
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

5.6 Modelos agrários atuais de produção

Os modelos agrários de produção funcionam como sistemas agrícolas e pecuários que combinam
técnicas e tradições locais como expressão das relações entre ser humano e meio rural (agropecuária)
e urbano (hortas urbanas e experiências de cultivos residenciais). Aos modelos estão associados perfis
característicos de habitante e trabalhador.

Há o sistema extensivo, método mais utilizado e ainda empregado, antigo como os roçados e as
plantations. Há também o intensivo, presente em algumas áreas do Sul e do Sudeste do País. A tais modelos
correspondem estruturas fundiárias (organização e porte do terreno) e sociais (modo de vida, o habitar e
as relações sociais).

A seguir, vê‑se uma lista dos métodos mais comuns empregados nas atividades agrícolas, com suas
respectivas organizações fundiárias.
• Intensivo: agricultura voltada para o comércio, com uso permanente do solo, rotação de culturas
(por exemplo: soja, milho, trigo e pasto), uso de tecnologia, fertilizantes e defensivos agrícolas, seleção
de espécies e sementes, mecanização, mão de obra pouco numerosa, mas abundante (mais do que o
necessário para um sistema mecanizado), além do predomínio de pequenas e médias propriedades.
• Extensivo: agricultura voltada para subsistência (alimentação básica voltada para o mercado
interno – milho, feijão, arroz, mandioca, pequenas criações, horticultura etc.). Predomínio das
grandes propriedades com pequenos espaços cedidos a terceiros mediante o uso da meiação
(também meação); arrendamento ou posse; uso de técnicas arcaicas de plantio; coivara (queimada);
rotação de solos (roças itinerantes); equipamentos rústicos (enxada, foice, arado); carência de
insumos (falta de adubo, fertilizante e sementes selecionadas) e mão de obra escassa, insuficiente
(mesmo sendo mais numerosa do que no sistema intensivo).
• Plantations: monocultura tropical (cana, café, algodão, cacau, laranja, seringueira) com produção
voltada para a agroindústria e/ou exportação; grandes propriedades; mão de obra assalariada,
numerosa e barata; uso de tecnologia, insumos e rendimento elevado. Recentemente, se expande
no Brasil a silvicultura, que consiste no plantio de árvores com produção voltada para indústria de
papel, celulose, móveis, lenha e madeira de construção.

5.7 Formas de exploração da terra

As formas de exploração de terra podem ser classificadas das seguintes maneiras:


• Exploração direta: normalmente, pelo próprio dono e sua família. Como a maioria das propriedades
é de tamanho reduzido, a exploração é feita diretamente pelo proprietário.
• Exploração indireta: feita por meio de parceria (meiação ou terça). O proprietário entra com a terra
e o capital, enquanto o produtor entra com o trabalho e a técnica de produção, dividindo os riscos;
• Exploração por arrendamento: aluguel da terra baseado em acordo, entre arrendador e
arrendatário, que atribui os riscos da produção ao arrendatário;
87
Unidade II

• Exploração por ocupação, posse: o ocupante busca o benefício da usucapião ou grilagem de


terra, que consiste na ocupação mediante o uso de documentação fraudulenta;

• Agronegócio: grandes empreendimentos agropecuários, com o uso de novas tecnologias;


pesquisas agronômicas; assessoramento de órgãos públicos, como a Embrapa; além de apoio
de tecnopolos aliando universidades e produção, como a Escola Superior Luiz de Queiroz (USP
Piracicaba), Unicamp, USP Ribeirão e Institutos da Unesp, entre outros no País.

Saiba mais

Os contratos de arrendamento e parceria rural são instrumentos


criados pelo Estatuto da Terra e de uso comum no meio agrícola. Apesar de
parecidos, possuem uma diferença fundamental em seu conceito.

A principal diferença entre eles está descrita no Decreto n. 59.566/66,


que regulamenta parte do Estatuto da Terra, e que conceitua cada um
desses contratos da seguinte forma: “Art. 3º Arrendamento rural é o
contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra, por
tempo determinado ou não, o uso e gozo de imóvel rural, parte ou partes
do mesmo, incluindo, ou não, outros bens, benfeitorias e ou facilidades, com
o objetivo de nele ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária,
agroindustrial, extrativa ou mista, mediante certa retribuição ou aluguel,
observados os limites percentuais da Lei” (BRASIL, 1966).

Portanto, quando há a figura da remuneração (aluguel) por preço


certo, líquido e predeterminado, independente dos riscos ou do lucro
do arrendatário, se tem o arrendamento rural. Por exemplo, o contrato
que prevê o pagamento de oito sacas de soja por hectare arrendado.
Neste caso, ainda que o arrendatário tenha prejuízo, é devido o valor
do arrendamento.

Já no caso da parceria rural, há o requisito da partilha de riscos, dos


frutos, produtos ou lucros que as partes estipularem. É uma espécie de
sociedade capital‑trabalho, onde o dono da terra entra com o imóvel e
o parceiro com o trabalho, partilhando os lucros ou prejuízos que o
empreendimento possa ter.

LUZ, T. B. S. Conceitos e diferenças: contrato de arrendamento X parceria


rural. Direito Rural, 17 jun. 2015. Disponível em: https://bit.ly/3ocFhuq.
Acesso em: 14 jun. 2019.

88
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Há anos de debates e inúmeros estudos sobre o significado normativo do Estatuto da Terra, tomado
como instrumento modernizador (precarizador) das relações originais de trabalho, com a finalidade de
incorporá‑las ao mercado capitalista de trabalho assalariado, bem como expulsar esses trabalhadores
de suas condições de moradia por herança, agregação, entre inúmeras formas arcaicas (no sentido
literal, não pejorativo), com figuras jurídicas de violência. Pensamento exposto com maestria por
Margarida Maria Moura, nos livros, palestras e aulas citados neste livro‑texto.

5.8 Tipos de lavouras

Podemos classificar os tipos de lavoura em:

• Permanente: cultivo geralmente arbóreo do qual se obtém muitas safras ao longo de muitos
anos. Por exemplo: café, laranja, cacau, manga, uva, algodão arbóreo etc.

• Temporária: cultivo geralmente herbáceo do qual se obtém uma única safra por plantio. Por
exemplo: trigo, soja, milho, sorgo, feijão, arroz, cana, algodão herbáceo etc.

A maior quantidade de terras ocupadas destina‑se às pastagens, seguida pelas matas e florestas e,
em menor proporção, às lavouras. Tais indicadores permitem falar em subaproveitamento do espaço
agrário, embora tenha sido observado no período de aferição do censo um aumento nas áreas dedicadas
às lavouras (IBGE, 2009).

Em 2007, o produto de maior destaque na produção brasileira foi a cana‑de‑açúcar, com mais de
470 milhões de toneladas; enquanto o 2º lugar foi da soja, com mais de 50 milhões de toneladas; e o
3º lugar, o milho, com 40 milhões de toneladas. Na safra de 2007/2008, a produção da cana‑de‑açúcar
atingiu o recorde de 550 milhões de toneladas, com um crescimento aproximado de 15%.

A área aproveitável total do Brasil seria de 269 milhões de hectares, dos quais 68,7 milhões em
estabelecimentos familiares (25,5%) e 200,3 milhões não familiares (74,5%) (IBGE, 2009).

Nas últimas décadas, destaca‑se uma melhoria na utilização do espaço agrário brasileiro a partir do
avanço de cultivos de pastagens, grãos e outros produtos da lavoura temporária e do reflorestamento
associado à silvicultura.

O estudo que nos parece mais interessante acerca dessa composição produtiva é a sua correlação
com as diferentes relações sociais efetivas e possíveis.

5.9 Relações de trabalho

A problemática quanto à qualidade de vida no campo está vinculada às relações de trabalho e


ao tipo de empreendimento rural: pequeno proprietário; grandes empresas; assalariados temporários;
parceiros (trabalham em terra alheia); arrendatários.

89
Unidade II

Assim, as formas predominantes de relação são capitalistas (assalariadas e contratos de trabalho) e


outras, não capitalistas, mas que se subordinam ao sistema. Já vimos como essa relação de incorporação
no mercado de trabalho capitalista, como espécie de formalização, reveste‑se de violência.

Entretanto, como no meio rural brasileiro, poucos são os proprietários das terras nas quais
trabalham, essa situação acaba gerando os conflitos pela posse da terra envolvendo posseiros, indígenas,
proprietários e, no caso da Amazônia, os seringueiros.

A falta de solução para o problema da terra tem contribuído para multiplicar os conflitos. Os camponeses,
sem terra para cultivar, migram em busca de novas áreas ou constituem grupos invasores que são objeto
de violência e repressão policial, o que agrava a situação no meio rural.

5.10 Principais produtos agrícolas

5.10.1 Principais lavouras

As mais tradicionais são as de produtos de subsistência: mandioca, milho, feijão e arroz, que são hoje
disseminados em todo o País. No entanto, os cinco produtos tradicionais voltados para a exportação e
para a agroindústria são a cana, o tabaco, o café, o cacau e o algodão.

Observação

A cada produto principal temos culturas associadas, portanto, há


tradições e tecnologias específicas conforme a região e a classe social
considerada; ou melhor: as classes sociais produzem e reproduzem seus
mundos e, juntas, as sínteses coletivas em lugares e regiões das mais
variadas escalas.

Um produto ingressado no País apenas no século XX foi a soja, que, em conjunto com a cana,
é o que mais se expande no território. Há inúmeras implicações sociológicas dessas determinações
mercantis de abertura de áreas de cultivo com produtos de apelo econômico; principalmente no que
tange ao valor das vocações produtivas regionais, determinações que não afetam apenas relações
produtivas, mas o universo psicossocial por inteiro. O que é o lugar cujas produções são exóticas,
cultural e ambientalmente?

Muitos dos cultivares cuja demanda é externa nem fazem parte de dietas locais. Qual é a extensão
das consequências dessas “escolhas” de plantio e criação?

90
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Tabela 1

Maiores produtores
Produto Produção Área colhida safra 2004/2005
2004/05 Milhão (t) Milhão (ha) IBGE 2006
Cana 422,9 5,80 SP (60%), PR, MG, AL
Soja 51,18 22,94 MT (35%), PR, GO, MS
Milho 35,11 11,5 PR (24%), MG, MT, SP
Mandioca 25,87 1,90 PA (18%), BA, PR, MA
Laranja 17,85 0,80 SP (81%), BA, SE, MG
Arroz 13,2 3,91 RS (46%), MT, SC, MA
Banana 6,70 0,49 PR (18%), BA, RS, PA
Trigo 4,65 2,36 PR (59%), RS, MS, SP
Algodão 3,66 1,25 MT (46%), BA, GO, SP
Tomate 3,43 0,62 GO (23%), SP, MG, RJ
Feijão 3,02 3,75 PR (19%), MG, BA, SP
Café 2,74 2,32 MG (47%), ES, SP, BA
Coco 2,07 0,29 BA (36%), PA, CE, PE
Sorgo 1,5 0,79 GO (33%), MG, SP, MT
Abacaxi 1,52 0,61 PB (22%), PA, MG, SP
Uva 1,23 0,73 RS (40%), SP, PE, PR
Maçã 0,85 0,35 SC (60%), RS, PR, SP
Cacau 0,21 0,66 BA (66%), PA, RO, ES

Adaptada de: IBGE (2009).

Saiba mais

Podemos ver as áreas produtoras no mapa a seguir. Para observação detalhada,


pode ser bastante ampliado em um dos documentos que o replicou. Reiteramos
que a produção diz respeito a regiões e modos de vida característicos.

FOOD AND AGRICULTURE ORGANIZATION OF THE UNITED NATIONS (FAO). The


state of Brazil’s biodiversity for food and agriculture, dez. 2017, p. 27. Disponível em:
https://bit.ly/3yNSXRA. Acesso em: 14 jun. 2019.

5.10.2 Culturas permanentes

São aquelas de longa duração, que podem proporcionar colheitas por vários anos sucessivos, sem
necessidade de novos plantios. Exemplo: café, cacau, laranja, uva, algodão arbóreo, maçã. Mato Grosso
(Sinop, Sorriso) e Goiás (Rio Verde) destacam‑se pela produção de soja e milho, com uso de tecnologia
de ponta e rotação de culturas, o que permite que se utilize a terra o ano inteiro. Há alternância entre
os cultivos de soja, milho, capim e a pecuária e, de novo, a soja retorna.
91
Unidade II

Os seguintes cultivares são testemunhos biológicos da história da ocupação e das variadas formas e
relações de trabalho realizado. São histórias de sobrevivência, de poder, de cativeiro e de liberdade; e no
caso brasileiro, mais que tudo, de concentração.

Lembrete

É preciso que saibamos que, assim como cada espécie cultivada envolveu


uma “civilização”, no sentido aproximado de que havia classes e cadeias
produtivas internacionais associadas pelo produto com hábitos decorrentes,
também cada propriedade rural de grande porte (a regra entre os cidadãos,
exceto escravos, portanto) era um microcosmo social, como conta
detalhadamente Margarida Maria Moura, José de Souza Martins e Antônio
Candido, entre outros citados neste livro‑texto.

5.10.3 Cana‑de‑açúcar

Cultivada inicialmente a partir do século XVI no litoral paulista, sem obter sucesso, foi implantada
na Zona da Mata do Nordeste.

A zona canavieira nordestina se estende do Rio Grande do Norte ao Recôncavo Baiano, onde o clima
tropical úmido, o fértil solo de massapé, a maior proximidade do mercado europeu e o uso da mão de
obra escrava formada por africanos foram fatores que favoreceram a cultura canavieira, principalmente
em Pernambuco, Alagoas e Bahia.

Com a expulsão dos holandeses nos meados do século XVII, a produção da cana entrou em decadência. Após
1930, cresce a produção da cana na Depressão Periférica Paulista e na região de Campos – RJ, onde grande parte
da produção destinava‑se ao consumo interno, enquanto o açúcar da Zona da Mata voltava‑se para a exportação.

No Brasil, são áreas de maior produção: São Paulo, na Depressão Periférica; Norte do Paraná; Zona da
Mata nordestina (PE e AL), além do Triângulo Mineiro e Zona da Mata Mineira (MG) e região de Campos
no norte do estado do Rio de Janeiro.

A cana está presente em todas as regiões, mas São Paulo lidera a produção, com cerca de 60% do
total, seguido por Paraná, Minas Gerais e Alagoas. A cultura teve sua extensão atrelada ao aumento da
demanda do açúcar e álcool. O Brasil se destaca como maior produtor mundial de açúcar (19%) e o
segundo em etanol, após os EUA, com 36%.

Em 1975 foi criado o Proálcool (Programa Nacional do Álcool), visando à expansão do cultivo da
cana para a produção do álcool‑combustível, a fim de reduzir a importação do petróleo, que sofria a sua
primeira grande crise em 1974.

Na atualidade, a expansão do cultivo está associada à necessidade de melhoria nas condições


atmosféricas, com a substituição gradativa dos combustíveis fósseis pelo biocombustível.
92
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

A safra de 2007/2008 alcançou novo recorde na produção da cana, com cerca de 550 milhões de
toneladas/anuais, mantendo o Brasil como o maior produtor mundial e exporta, sobretudo, para os
Estados Unidos, Confederação dos Estados Independentes (CEI) e restante da Europa. As principais áreas
produtoras no estado de São Paulo são apresentadas no Censo agropecuário do IBGE (2009), nas versões
consolidadas, de 2006 (publicada em 2009) e nas preliminares de 2017.

5.10.4 Café

Foi introduzido no País já no século XVIII, da Guiana Francesa para o Pará. Porém só começou a ter
importância comercial a partir do cultivo ao longo do Vale do Paraíba do Sul entre RJ e SP, ainda na
primeira metade do século XIX. Após 1850, alcança a região de Campinas – SP e se expande em direção
às manchas de terra roxa ao longo das Ferrovias Mogiana, Paulista e Sorocabana, até chegar ao norte
do Paraná.

A cafeicultura do século XIX ao XX segue uma rota pelo Vale do Paraíba, norte, noroeste e oeste
paulista, e a fase mais recente em direção ao sul de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro.
Já no início do século XX, o Brasil sofre as primeiras crises de superprodução, os problemas da retração
do mercado durante a Primeira Guerra Mundial e o crash na Bolsa de Valores de Nova York, em 1929
(IBGE, 2009).

Principais crises na economia cafeeira:

• 1ª crise: 1905/1909 – superprodução;

• 2ª crise: 1917 – causada por perturbações trazidas pela Primeira Guerra Mundial;

• 3ª crise: 1921 – problemas de preço no comércio internacional;

• 4ª crise: 1930 – a mais séria, decorrente da queda da Bolsa de Valores de Nova York. A consequência
foi a queima de todo o café estocado.

Em 1937, foi criado, durante o governo de Getúlio Vargas, o IBC (Instituto Brasileiro do Café), para
controlar a produção e promover o bom desempenho do produto dentro da economia.

O Brasil é o maior produtor mundial de café, importante gerador de riquezas desde o início da
sua produção. Podemos classificá‑lo em termos de espécies cultivadas. O café arábica apresenta bom
desenvolvimento em terrenos acima de 900 metros de altitude e produz uma bebida de melhor qualidade.
O estado de Minas Gerais é o maior produtor de café arábica.

O café canephora (robusta ou conilon), mais precoce, resistente e produtivo, é cultivado em terrenos
baixos, principalmente na região de São Gabriel da Palha – ES, com plantas de maior envergadura.
Segundo dados do Censo Agropecuário 2006, a produção de café em grão teve um crescimento de
26%, com redução na área, o que foi compensado pelo maior rendimento médio (IBGE, 2009).

93
Unidade II

Após 1970, com o aumento das taxas de juros e as constantes quebras de safra decorrentes das geadas
em períodos de floração em áreas do sul de São Paulo e norte do Paraná, o café migra para outras terras.
As terras altas do sul de Minas Gerais, Triângulo Mineiro e Zona da Mata Mineira se especializaram na
produção do café arábica e outros cafés finos (gourmet), mais aceitos no mercado mundial.

Por isso, Minas Gerais alcançou o 1º lugar na produção, seguido do Espírito Santo, cujas terras baixas
e de clima mais quente favorecem o cultivo do café conilon, ou robusta, assim chamado devido ao forte
aroma e à sua tintura. As principais áreas produtoras no estado de São Paulo estão representadas no
mapa da Produção Agrícola Brasileira.

Atualmente, a tendência de expansão se faz para fora da área de ação de geada, ou seja, para Minas
Gerais, Mato Grosso do Sul, Bahia e Espírito Santo.

A expansão do café acarretou sensíveis transformações na vida econômica das regiões meridionais
do Brasil. No campo demográfico, o café imprimiu as seguintes características: povoamento do Brasil
Centro‑Meridional, com a formação de frentes pioneiras; estímulo aos fluxos migratórios para o Brasil,
principalmente de italianos (SP); estímulo às migrações internas de outras regiões para o Sudeste e
criação e desenvolvimento de ampla rede de cidades.

No setor de transportes, os efeitos da cafeicultura foram o desenvolvimento de uma rede ferroviária,


sobretudo no estado de São Paulo (Cia. Mogiana de Estradas de Ferro, Cia. Paulista, Cia. Araraquarense,
Cia. Santos–Jundiaí e Cia. Sorocabana, hoje privatizadas) e o aparelhamento do porto de Santos, sendo
que os principais portos exportadores de café são: Santos – SP; Paranaguá – PR e Rio de Janeiro – RJ.

O Brasil permanece como o maior produtor mundial, com 2,74 milhões de toneladas em 2007,
destacando‑se Minas Gerais, com 47% da produção nacional, Espírito Santo, São Paulo e Bahia como
os maiores produtores nacionais.

5.10.5 Cacau

Originário da floresta amazônica, o cacaueiro é um arbusto adaptado à sombra das grandes árvores,
em áreas de clima quente e úmido. Encontrou melhores condições de cultivo nos solos argilosos do
litoral sul da Bahia, onde há o clima quente e úmido o ano todo, e o sombreamento propiciado pela
manutenção das árvores mais copadas da Mata Atlântica.

A safra baiana tem importante participação na produção brasileira, enfrentando crises de produção
devido aos fungos da vassoura‑de‑bruxa que atacam os cacaueiros, perdendo‑se a produtividade
(SANTOS FILHO, 2014).

O solo arenoso da Amazônia desfavorece o cultivo do cacau devido ao processo de lixiviação.


A Bahia sempre foi o maior produtor nacional, com mais de 66% da produção. Os portos de
Malhado (Ilhéus) e Salvador se destacam na exportação do produto, enquanto Itabuna é o maior
centro comercial de cacau na região.

94
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Os estados do Espírito Santo, Rondônia e Pará também apresentam destaque na Organização das
Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), organismo da ONU que, em 2011, apresentou
os maiores produtores mundiais: Costa do Marfim, Indonésia, Gana, Camarões, Brasil, Nigéria e Malásia.

A Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac) é uma autarquia que vem desenvolvendo
estudos para a lavoura do cacau, introduzindo técnicas de enxertia e clonagem para resistir ao fungo da
vassoura‑de‑bruxa. Além do manejo adequado dos produtores.

O Brasil está entre os maiores produtores mundiais de cacau, embora tenha reduzido a participação
e não seja autossuficiente. A cultura foi revitalizada na Amazônia, principalmente nas áreas de frentes
pioneiras de colonização, ampliando a produção na Bahia, Pará e Espírito Santo.

Os principais compradores do cacau brasileiro são, entre outros mercados, Europa, Estados Unidos,
Japão e Argentina, sendo o Pará exportador do cacau orgânico para países da Europa.

Há outros cultivos importantes que devem ser estudados e mapeados, como:

• Soja: com um total de 51,18 milhões de toneladas, ocupando 22,9 milhões de hectares, a soja
destaca‑se como o principal produto em grão desenvolvido no Brasil, ocupando a maior área
plantada. Apenas a cana‑de‑açúcar, com 550 milhões de toneladas, supera a produção da soja em
volume, mas ocupa uma área mais reduzida (5,8 milhões ha). O Brasil alcançou a 2ª posição mundial
na produção da soja, após os EUA. A China, que era a 2ª produtora, foi superada pelo Brasil e pela
Argentina. Em 2006, o Brasil exportava principalmente soja e ferro para o mercado chinês.

• Algodão: o Paraná liderou a produção do algodão herbáceo por toda a década de 1980 e pela maior parte
da década de 1990, mas foi superado pela produção do Mato Grosso. Em 2007, a produção nacional do
algodão herbáceo atingiu o patamar de 1,25 milhões de toneladas, das quais o Mato Grosso concentra
46%, seguido da Bahia, Goiás e São Paulo. A atual produção do Paraná é muito reduzida.

• Trigo: em 2007, a produção do trigo alcançou os 4,60 milhões de toneladas, destacando‑se o


Paraná como o maior produtor, seguido do Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul e São Paulo. Os
estados do Sul (Paraná e Rio Grande do Sul) produzem cerca de 80% da produção nacional.

• Milho: em 2007, o total da produção foi de 35,1 milhões de toneladas, superado apenas pela soja,
tanto em volume da produção quanto em área plantada (11,5 ha). Os estados do Centro‑Sul – PR,
MG, MT e SP – se destacam na produção brasileira.

• Arroz: a safra do arroz em 2006 chegou a 13,2 milhões de toneladas, em uma área plantada de
3,9 milhões de hectares. Em São Paulo, é tradicional a produção nos Vales dos Rios Ribeira
de Iguape e Paraíba do Sul.

• Banana: no Brasil, a bananicultura é uma atividade bem distribuída nos diversos estados. A safra
de 2006 chegou a 6,7 milhões de toneladas, destacando o Paraná como o maior produtor, com
18% do total nacional, seguido da Bahia, Rio Grande do Sul e Paraná.
95
Unidade II

• Laranja: desde a segunda metade da década de 1980 e por toda a década de 1990, o Brasil liderou
a produção mundial de laranja, por exportar o suco concentrado para diferentes mercados do
Hemisfério Norte. Em 2006, a safra da laranja alcançou 17,8 milhões de toneladas, destacando‑se
São Paulo, com cerca de 80% da produção nacional, seguido da Bahia, Sergipe e Minas Gerais.

• Fruticultura: irrigada no Vale do São Francisco, a fruticultura na região destaca‑se, principalmente,


com a produção de mamão (1.800 ha), manga (1.620 ha), cítrus (1.078 ha), goiaba (360 ha) e
coco (990 ha), entre outras, o que representa uma receita anual superior a 100 milhões de reais.
A produção abastece o mercado nacional, principalmente Sul e Sudeste, e exporta limão, manga
e mamão para França, Inglaterra, Canadá e Holanda. O cultivo da manga e da uva concentra‑se
no Vale do São Francisco, com produção voltada para exportação, destacando‑se Juazeiro (BA)
e Petrolina (PE) como grandes produtores.

5.11 Atividade pecuária

Bem como os cultivares importantes de nossa história, com aspectos positivos (ligados a crescimento
econômico) e negativos (manejo das propriedades associado à escravidão, por exemplo), temos uma
importante distribuição da cultura do criador de gado e, claro, do vaqueiro.

Em todas as regiões do País houve disseminação dos rebanhos. Manuel Correa de Andrade faz
importante geografia e sociologia dessa ocupação do território colonial português desde que ocupava
somente a faixa litorânea até sua lenta migração para os sertões, primeiramente no Nordeste, mais tarde
ao Sudeste e Sul.

O início da atividade pecuarista, tanto no sul como no norte do País, esteve prioritariamente vinculado
ao propósito da colonização territorial. Apenas subsidiariamente prestava‑se ao objetivo de alimentar a
pequena mão de obra utilizada na atividade criatória e os contingentes civis e militares engajados nas
missões colonizadoras e de ampliação de fronteiras.

Durante o século XVIII, a Campanha Gaúcha passou a ser área de criação de mulas e bovinos, com
produção voltada para o abastecimento de carne de charque (salgada) e mulas para o transporte do
ouro na região da mineração em Minas Gerais. O transporte da carne se dava em lombos de mulas, por
meio de caminhos de tropeiros que ligavam a Campanha Gaúcha à região da mineração.

Lembrete

É fundamental que se reconheça a importância da identidade entre


estrutura fundiária e social, pois não é possível separá‑las nas interpretações.
A configuração de uma é uma face da outra.

No que se refere ao rebanho de bovinos brasileiro, segundo o IBGE (2009), em 31 de dezembro


de 2006, ele era de 171,6 milhões de cabeças; houve um crescimento de 12,1% em relação ao Censo
Agropecuário de 1996.
96
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Tabela 2 – Estabelecimentos e efetivo bovino, total e diferença


entre os Censos Agropecuários de 1996 e 2006, segundo as
grandes regiões e unidades da federação – 1996/2006

Efetivo bovino
Grandes regiões Diferença 1996/2006
e unidades da Número de Absoluta Relativa (%)
Federação Estabelecimentos cabeças
Número de Estabelecimentos Número de
Estabelecimentos cabeças cabeças
Brasil 2.673.176 171.613.337 (‑) 25.021 18.555.062 (‑) 0,9 12,1
Norte 227.585 31.336.290 41.609 14.059.669 22,4 81,4
Rondônia 63.273 8.490.822 8.503 4.553.531 15,5 115,7
Acre 18.626 1.721.660 5.497 874.452 41,9 103,2
Amazonas 13.782 1.154.269 444 420.359 3,3 57,3
Roraima 4.732 480.704 301 80.765 6,8 20,2
Pará 83.163 13.354.858 20.531 7.274.427 32,8 119,6
Amapá 661 57.728 28 (‑) 1.972 4,4 (‑) 3,3
Tocantins 43.348 6.076.249 6.305 858.107 17,0 16,4
Nordeste 972.729 25.326.270 18.908 2.484.542 2,0 10,9
Maranhão 93.263 5.592.007 (‑) 2.438 1.689.398 (‑) 2,5 43,3
Piauí 75.469 1.560.552 4.928 (‑) 143.837 7,0 (‑) 8,4
Ceará 124.456 2.105.441 (‑) 6.347 (‑) 277.033 (‑) 4,9 (‑) 11,6
Rio Grande do Norte 47.480 878.037 (‑) 94 (‑) 76.310 (‑) 0,2 (‑) 8,0
Paraíba 92.024 1.313.662 10.829 (‑) 14.164 13,3 (‑) 1,1
Pernambuco 140.226 1.861.570 8.014 (‑) 69.102 6,1 (‑) 3,6
Alagoas 44.905 886.244 1.868 (‑) 82.218 4,3 (‑) 8,5
Sergipe 40.663 899.298 2.636 (‑) 41.698 6,9 (‑) 4,4
Bahia 314.243 10.229.459 (‑) 488 1.499.506 (‑) 0,2 17,2
Sudeste 542.363 34.059.932 (‑) 24.323 (‑) 1.893.965 (‑) 4,3 (‑) 5,3
Minas Gerais 352.726 19.911.193 (‑) 8.137 (‑) 133.423 (‑) 2,3 (‑) 0,7
Espírito Santo 30.935 1.791.501 (‑) 5.164 2.753 (‑) 14,3 0,2
Rio de Janeiro 30.464 1.924.217 842 110.474 2,8 6,1
São Paulo 128.238 10.433.021 (‑) 11.864 (‑) 1.873.769 (‑) 8,5 (‑) 15,2
Sul 688.605 23.364.051 (‑) 98.647 (‑) 2.855.482 (‑) 12,5 (‑) 10,9
Paraná 211.366 9.053.801 (‑) 31.794 (‑) 847.084 (‑) 13,1 (‑) 8,6
Santa Catarina 147.338 3.126.002 (‑) 31.981 28.651 (‑) 17,8 0,9
Rio Grande do Sul 329.901 11.184.248 (‑) 34.872 (‑) 2.037.049 (‑) 9,6 (‑) 15,4
Centro‑Oeste 241.894 57.526.794 37.432 6.760.298 18,3 13,3
Mato Grosso do Sul 48.274 20.379.721 8.314 625.365 20,8 3,2
Mato Grosso 81.374 19.807.559 19.126 5.369.424 30,7 37,2
Goiás 110.649 17.259.625 9.631 771.235 9,5 4,7
Distrito Federal 1.597 79.889 361 (‑) 5.726 29,2 (‑) 6,7

Fonte: IBGE (2009, p. 155).

97
Unidade II

Algumas informações importantes sobre a pecuária leiteira estão contidas na tabela a seguir:

Tabela 3 – Ranking dos estados da federação na produção de leite


e taxa de crescimento da atividade no período de 1999 a 2008

Ranking Posição Produção (litros) Crescimento


Estado 1999 2008 1999 2008 (1999‑2008)
Minas Gerais 1º 1º 5.801.063 7.657.305 32%
Goiás 2º 3º 2.066.405 2.873.541 39%
Rio Grande do Sul 3º 2º 1.974.663 3.314.573 68%
São Paulo 4º 6º 1.913.499 1.579.742 ‑17%
Paraná 5º 4º 1.724.918 2.827.931 64%
Santa Catarina 6º 5º 906.540 2.125.856 134,50%
Bahia 7º 7º 672.394 952.414 42%
Rio de Janeiro 8º 13º 457.736 475.592 4%
Mato Grosso 9º 10º 411.391 656.558 59,50%
Mato Grosso do Sul 10º 12º 409.045 496.045 21%
Rondônia 11º 9º 408.750 723.108 77%
Pernambuco 15º 8º 266.172 725.786 173%

Fonte: Sebrae (2010, p. 8).

Atentando à produção nacional por estado, nota‑se a superioridade de Minas Gerais em relação
aos demais estados federados. “Com um crescimento de 32% no período de 1999 a 2008, esse estado é
responsável por 25% da produção brasileira ou mais de 7 bilhões de litros de leite produzidos” (SEBRAE,
2010, p. 8). Comparando com o segundo maior produtor, o Rio Grande do Sul, com 3,3 bilhões de litros,
fica ainda mais evidente a referida superioridade.

O campo e a cidade, como categorias geográficas, sociológicas, econômicas (em oposição ao caráter
jurídico, que se acentua) vêm perdendo a clareza de suas demarcações por fronteiras e paisagens antes
muito distintas: cada vez mais nas cidades inserem‑se atividades agrárias, e costumes rurais se imiscuem
no modo de vida estritamente urbano, enquanto o campo torna‑se progressivamente urbanizado. Essa
característica está bastante presente nas cidades austríacas, com a uva; e nas japonesas com os cultivares
básicos, como arroz e folhas, em plena área urbana.

5.12 Trabalho, institutos e instrumentos de controle social: estado e demais


agentes

Nesse princípio de século XXI, com os aproximadamente seis bilhões de


seres humanos com que conta o planeta, por volta da metade vive na
pobreza, com um poder aquisitivo equivalente a menos de dois dólares
americanos por dia. Perto de dois bilhões sofrem de graves carências de
ferro, iodo, vitamina A, de outras vitaminas ou minerais (aproximadamente
1,5 bilhões de indivíduos têm carência de ferro, 740 milhões têm carência
98
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

de iodo, 200 milhões de vitamina A, de acordo com a Organização das


Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura). Mais de um bilhão
de pessoas não têm acesso à água potável e por volta de 840 milhões
são vítimas de subnutrição, o que significa que elas nem sempre dispõem
de ração alimentar suficiente para cobrir suas necessidades energéticas
básicas, em outras palavras, que elas têm fome quase todos os dias (De
acordo com a FAO, há por volta de 800 milhões de pessoas subnutridas nos
países em desenvolvimento, ou seja, quase um a cada cinco indivíduos, 30
milhões nos países em transição (anteriormente com economia planificada)
e 10 milhões nos países desenvolvidos. Esses números, que são incertos,
devem ser considerados como ordens de grandeza).

Quanto aos surtos de fome que eclodem aqui e ali quando há uma
seca, inundação, tempestade, doença das plantas, dos animais ou dos
homens, ou ainda da guerra, elas não deixam de ser, por outro lado, a
consequência última da pobreza e da subnutrição. Na verdade, esses
acidentes climáticos, biológicos ou políticos levam à fome apenas as
regiões do mundo em que amplas camadas da população sofrem já
de uma pobreza e de uma insegurança alimentar tão grandes que não
dispõem dos meios para lutar de maneira eficaz contra essas catástrofes
e suas consequências.

Essa situação dramática, que não é nova, não está, tampouco, em vias
de melhorar. Certamente, a parte da população subnutrida dentro da
população mundial total diminuiu no decorrer das três últimas décadas
do século XX, mas o número de pessoas subnutridas no mundo não
baixou nem um pouco. É por isso que mais de oitenta chefes de Estado
e de governo, reunidos em Roma em 1996 para a Cúpula Mundial da
Alimentação, comprometeram‑se a “realizar um esforço constante a fim
de erradicar a fome em todos os países e, de imediato, de reduzir pela
metade o número de pessoas subnutridas daqui até mais tardar 2015”. Isso
levava a considerar que o mundo contaria ainda com cerca de 400 milhões
de pessoas subnutridas em 2015. Mas os meios mobilizados para essa
finalidade, não tendo sido nem tão significativos nem tão eficazes quanto
o previsto, cinco anos depois, em 2001, foi preciso reconhecer que o
mundo contaria ainda com 600 a 700 milhões de subnutridos em 2015 e
que, nesse ritmo, seria necessário mais de um século para ver desaparecer
essa catástrofe.

Dessa forma, mesmo reforçados, os meios convencionais de luta contra


a fome mostraram‑se, uma vez mais, incapazes de suplantá‑la em um
prazo suficientemente curto para ser moralmente aceitável, socialmente
suportável e politicamente tolerável. Para reduzir a pobreza extrema,
que chega até a fome e, às vezes, à penúria e à morte, não basta tratar
99
Unidade II

dos sintomas mais alarmantes desses males, é preciso combater suas


causas profundas e, para isso, é preciso apelar para outras análises e
outros meios.

Para começar, é preciso levar em consideração o fato essencial de que


aproximadamente três quartos dos indivíduos subnutridos do mundo
pertencem ao mundo rural. Homens do campo pobres, dentre os quais
encontramos, majoritariamente, camponeses particularmente mal equipados,
instalados em regiões desfavoráveis e em situação difícil, assim como
trabalhadores agrícolas, artesãos e comerciantes que vivem em contato
com eles e que são tão pobres quanto eles. Quanto aos outros subnutridos,
muitos são ex‑camponeses recentemente forçados pela miséria a irem
para os campos de refugiados ou periferias urbanas subequipadas e
subindustrializadas, nas quais eles ainda não puderam encontrar meios de
subsistência satisfatórios. E como o número de pobres e famintos dos campos
não diminui em nada, mesmo que ele caia anualmente em muitas dezenas
de milhões de pessoas em virtude do êxodo rural, é preciso deduzir daí que
um número mais ou menos igual de novos pobres e famintos forma‑se todo
ano nos campos.

A maioria das pessoas que tem fome no mundo não é, portanto, de


consumidores urbanos compradores de alimento, mas de camponeses
produtores e vendedores de produtos agrícolas. E seu número elevado não
é uma simples herança do passado, mas o resultado de um processo, bem
atual, de empobrecimento extremo de centenas de milhões de camponeses
sem recursos (MAZOYER, 2010, p. 26‑27).

5.12.1 Criar e/ou produzir

Em nosso mapa corporal, começamos com os pés no chão, situados, assumindo nossas atividades
mais elementares de organismos e apontamos a cabeça como centro da arquitetura de soluções
organizacionais ainda simples. Agora, chegamos às posições da mente, não de uma mente, mas das
mentes de todos interligadas.

Mente, aqui, representa a institucionalização como síntese das ações e regras sociais; daí que um
conjunto de mentes é uma instituição articulada, que incorpora (no sentido literal) o organismo, os
pés situados e a cabeça de nosso mapa; são construtos sociais conectados por intersubjetividades.
Há uma ossatura do social, e há também ligações “invisíveis” entre as pessoas: instituições. Estado como
regulação moderna das forças sociais. Surgimentos e declínios dos agentes.

O nível mental ou institucional como resultado das contradições com as operações anteriores é
fluxo de sínteses entre relações vitais e ideias. E são elas, as instituições sociais:

100
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

• abstrações, quando estão fechadas (ignoradas) para todos quantos não sejam seus criadores,
sendo restritivas;

• construções comuns, coletivas, dos saberes, de respostas míticas àquelas de caráter científico, das
técnicas institucionalizadas às tecnologias em redes, busca incessante de controle da natureza
(reduzida à sistema como ambiente).

Trata‑se, portanto, de institucionalização das práticas sociais situadas, das soluções específicas
e gerais (associações, organizações as mais diversas, daquelas em escalas locais àquelas nos planos
nacional e supranacional, como FAO, OIT – Organização Internacional do Trabalho).

As mentes nas sociedades capitalistas de poder concentrado tendem a certa fragmentação das
consciências de papel e de estrutura; nível expresso nas distâncias que mantém das associações, redes,
tidas como abstrações, além do horizonte das economias de mercado com foco na financeirização, com
decorrente economia internacional com crescimentos dependentes, com assimetrias também crescentes
e espaços de normas e demais abstrações oriundas de ordens cada vez mais distantes dos fins das
cadeias de informações e comandos; fins físicos, onde se encontraria consumidores ou cidadãos; fins
morais, como objetivo ético das ações e serviços econômicos, por exemplo.

O labor como atividades simples e o trabalho social desfigurado em sua unidade, domado e
instrumentalizado, institucionaliza‑se nos horários rígidos de nossos compromissos metropolitanos,
nos cardápios, no tempo linear do descarte dos vividos, “labor quase vestigial”, sob os auspícios das
facilidades tecnológicas de registros banalizados, de vozes, imagens, textos.

Perda de consciência estrutural promovida pela reprodução de comportamentos desorganizados, por


princípios de desintegração e de estilhaçamento dos saberes dos mestres e trabalhadores conhecedores
de seu ofício, no exercício das atividades produtivas. Aqui (na mente) vislumbramos o momento de
elaboração desse projeto, enquanto no próximo capítulo aproximamo‑nos das mãos sendo adestradas
na execução de tarefas, não de modo contextual, consciente e coerente.

O projeto em voga, continuamente prometendo um mundo melhor, vem com nome “modernização”;
“modernização” das atividades tradicionais, leia‑se “descaracterização”, viabilizadas pelas “famílias de
inovações” do momento e em prol do grupo dominante, de algum modo posicionados no Estado. É
assim que se reduz o complexo universo rural‑urbano a circuitos produtivos e gente estereotipada
de macacão, galochas e sotaque interiorano como habitantes do campo; o jeca de outros tempos.
Reduz‑se, como estamos vendo, ao tomar camponês ou lavrador por agricultor ou trabalhador rural,
com enquadramento na legislação trabalhista (redução profissional); reduz‑se ao tomar habitante por
agricultor (redução filosófica, deslocando o existencial/existente da ontologia para as operações de
planejamento, mercadologia e de cartografia).

O citadino também é alvo de reduções e deformações; tomado como cosmopolita e mais sabido que
o “interiorano”, mais para corroborar as imagens de marketing e classes estatísticas de mercado.

101
Unidade II

Modernizações redundam nas intenções que subjazem às mentes interligadas, as redes, com
propósitos de propagação dos princípios e procedimentos do capitalismo em reprodução interescalar.

5.12.2 Políticas de manutenção da força de trabalho

Trabalho é relação coletiva que articula os seres humanos em todas as dimensões sociais. O ser
social privado, seja individual ou corporativo, atua junto com o Estado de maneiras das mais diversas
nas várias partes do mundo, com algumas características marcantes em cada território nacional. Dentro
dos países, também é bastante heterogêneo, pois, como vimos, segue a história da apropriação dos
ecossistemas e, no caso do Brasil, está na base da própria configuração do Estado‑territorial.

A atribuição de relevância analítica (para estudar a sociedade) e ontológica (como condição de


existência da própria coletividade) ao trabalho não significa que sejamos reduzidos a esse âmbito, não
quando somos muito mais do que seres produtores: sentimos, associamo‑nos com laços dos mais diversos.

É claro que ao nos candidatarmos a vagas de emprego, por exemplo, estaremos submetendo nossas
habilidades e competências às demandas fracionadas exigidas; agentes contratam partes e como partes
na relação oferecemos partes de nós. Em todas as organizações sociais estaremos em partes, estaremos
aos pedaços. São as faces requeridas nas relações, algumas delas requerendo mais de nós, outras, com
demandas as mais específicas; são os “termos operacionais de uma racionalidade parcial”.

Não se trata, portanto, de discutir a precedência das ações sociais, pois, sem dúvida, quer seja política,
econômica, geográfica, biológica, sociológica; todas as dimensões sociais são integradoras do humano,
tornam‑nos inteiros; todas.

O Estado é o agente privilegiado, regulador das relações sociais e do jogo no qual está incluído junto
com os demais agentes sociais, privados, corporativos paraestatais que, em nosso caso, é caraterizado
por uma imensa desigualdade entre os grupos e por conflitos gerados por interesses distintos.

Já apresentamos algumas definições de Estado em tópicos anteriores, e o que ora se faz necessário
é discutir a força e as fraquezas dessa entidade ubíqua; presente de alguma maneira na vida das
pessoas. Sua presença deveria ser sempre favorável aos habitantes de um lugar ou região, entretanto,
também pode causar transtornos: o Estado é, desse modo, poder de atribuição pública; embora possa se
comportar de outro modo, como instrumento privado.

5.12.3 Estado: figura de poder e política consolidada historicamente

Imersos nas formas‑Estado, compreenderemos facilmente que as


sociedades indígenas recorram a poderosos mecanismos para inibir o pleno
desenvolvimento delas – que já estão lá e atuam, presentes na aparente
ausência. Da mesma forma e inversamente, as sociedades indígenas nos
concederão as grades de inteligibilidade para que compreendamos a
atuação das forças antiEstado entre nós, inibidas e, contudo, presentes na
aparente ausência. Tudo estará em tudo e reciprocamente […]: Estado entre
102
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

os indígenas; antiEstado entre nós; Clastres nos dilemas da antropologia


contemporânea e às avessas (BARBOSA, 2004, p. 533‑534).

Aproveitamos o diapasão das citações em epígrafe e seguimos pelos olhares disciplinares que miram
os principais traços e as bases do Estado; traços radicais, como aqueles trazidos pelos antropólogos
(Maurice Godelier e de Pierre Clastres), geógrafos (como Paul Claval), sofisticados, como o da sociologia
de Pierre Bourdieu. Suas colocações abrem caminho para os cientistas políticos (politólogos) e para
economistas (como Robert Heilbroner, da economia política).

É preciso que se diga, alinhando‑nos com Atilio A. Borón (1994), que houve expansões e retrações
históricas das estruturas estatais, o que é corroborado pelas afirmações que destacamos de Paul Claval.

Atilio A. Borón acusa certa negação de sua realidade, principalmente no caso dos britânicos,
advertindo que “a realidade social existe independentemente de nossas capacidades intelectuais para
apreendê‑la” (1994, p. 244). O autor menciona o positivismo reinante (em David Easton, por exemplo),
que considera imprestáveis poder e Estado ao desenvolvimento da pesquisa política. Claro, posto que
não são tangíveis, a não ser como expressão de relações: são tipos, emergem com as forças sociais.

Borón (1994) fala de formações estatais tardias (Alemanha e Itália) em contraposição às anglo‑saxãs
(Estados Unidos da América e Reino Unido), nas quais a iniciativa burguesa inibiu o aparato estatal.

O Estado, que desde os anos 1930 foi um meio ideal de lidar com a crise,
foi convertido ideologicamente no “bode expiatório” e concebido como o
fator que o originou. Antes, nos fatídicos anos 1930, isso fazia parte da
solução. Agora se tornou – nas versões mais ululantes do neoliberalismo – a
totalidade do problema (BORÓN, 1994, p. 187).

Quanto à América Latina, sistema tributário pauperizador e não devolutivo, Borón acentua:

Números sobre a tendência dos salários reais falam por si sobre o alcance
do processo de pauperização sofrido por vastos setores das populares
classes latino‑americanas. É evidente que esta regressão salarial deve ter
um impacto profundo, tanto na economia como na política de nossos
países. Mas o que gostaríamos de destacar com esses dados é a magnitude
da lacuna que separa as necessidades humanas básicas – de crescentes
contingentes da população – da capacidade efetiva de intervenção do
Estado suscetível de produzir políticas compensatórias ou corretivas dos
desequilíbrios gerados pelo capitalismo selvagem. Isso pode ser expresso
graficamente com a metáfora das tesouras: as demandas geradas na
sociedade civil, as insatisfações, as privações e os sofrimentos provocados
tanto pela crise como pelos testes neoliberais postos em prática na região
deram origem a uma verdadeira barragem de reivindicações, facilitada, por
outro lado, pelo clima permissivo das sociedades que reiniciam sua longa
marcha rumo à democracia. Nestas condições, no entanto, a mesma crise
103
Unidade II

que potencializa as renovadas demandas sociais reduz significativamente as


capacidades do Estado para produzir as políticas necessárias para resolver,
ou pelo menos aliviar, as dificuldades aludidas. O resultado é um acúmulo
alarmante de tensões que poderiam levar a um quadro de ingovernabilidade
generalizada do regime democrático, sua deslegitimação acelerada e sua
provável desestabilização, com os riscos de uma inesperada reintegração de
governos autoritários de diferentes tipos (BORÓN, 1994, p. 195).

Atilio A. Borón (1994, p. 200) faz considerações sobre as dívidas externas insustentáveis “que a
América Latina não pode pagar”, promovendo transferências de gigantescas quantias (97‑99) e
acrescenta a mais importante das constatações de seu livro, que “estes dados [o levantamento exaustivo
apresentado] demonstram, apesar da gritaria neoliberal, a persistente importância do Estado e do gasto
social nos capitalismos metropolitanos”.

Numa análise mais pormenorizada, pode‑se comprovar que nem o presidente


Ronald Reagan nem a primeira‑ministra Margaret Thatcher cumpriram suas
promessas de efetivar cortes drásticos nos orçamentos fiscais. Se algo foi
provado com a sua gestão é que mesmo o discurso mais neoliberal não
conseguiu ressuscitar os mortos diligentemente enterrados por Keynes há
mais de meio século. Os ideólogos e propagandistas das virtudes do mercado
podem falar, mas suas palavras desaparecem no ar antes da verdade
efetiva das coisas. Se o Estado continua a pesar na economia, é porque a
acumulação capitalista foi “estatificada” e exige cada vez mais o apoio dos
poderes públicos para sobreviver. A história do défice fenomenal do governo
dos EUA é demasiado conhecida para se repetir mais uma vez: em 1985, era
equivalente a 5,3% do PIB, enquanto a do Reino Unido, por outro lado,
era de 3,1%. Como os déficits aberrantemente keynesianos se reconciliam
com um discurso dogmaticamente neoliberal? (BORÓN, 1994, p. 201).

Para nossa “perplexidade” diante das declarações sobre a agonia e morte do Estado, pesquisadores
sustentam o seguinte: “como resultado do declínio das políticas econômicas neoliberais e da crise que
atravessam a maioria das economias latino‑americanas, o papel econômico do Estado se verá fortalecido”
(BORÓN, 1994, p. 203).

Claudia Costin define de modo bem direto Estado, Estado nacional e suas partes principais.

Em sua versão moderna, o Estado contém um conjunto de organismos de


decisão (Parlamento e governo) e de execução (Administração Pública).
Nessa concepção, a organização estatal possui uma dimensão legiferante,
associada à produção de normas que regerão a vida social, e uma dimensão
administrativa, associada ao cotidiano da gestão das instituições e das
relações políticas. Assim, o Estado é mais amplo que o governo ou que a
Administração Pública, como veremos um pouco mais adiante.

104
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Numa outra classificação, o Estado é integrado por três poderes, a que


correspondem três funções básicas: o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
O primeiro estabelece as leis a serem seguidas por uma sociedade. O Executivo, por
sua vez, tem por responsabilidade impor e fiscalizar a aplicação dessas leis,
além de regulamentar, nas bases por elas previstas, a legislação aprovada
pelo Legislativo, implementar políticas públicas, coletar impostos para o
desempenho das funções do Estado e de seus componentes. O Judiciário, por
fim, detém a capacidade de julgar, na maioria dos casos, a correta aplicação
da lei e das penas correspondentes a seu desrespeito.

Investido desses três poderes, o Estado possui um caráter ambíguo: designa


o comando da comunidade, como autoridade soberana que se exerce sobre
um povo e um território determinados e, ao mesmo tempo, representa,
por meio de uma pessoa que o encarna, a Nação. Essa pessoa é o chefe
de Estado, correspondente, num país como o nosso, ao presidente, e, num
regime monarquista como o inglês, ao rei ou à rainha.

[…]

Bresser‑Pereira (2004, p. 4) estabelece uma distinção entre Estado‑nação


e Estado. Para ele, enquanto o Estado‑nação é o “ente político soberano
no concerto das demais nações, o Estado é a organização que, dentro
desse país” tem o poder de legislar e tributar a sociedade. O autor associa
ao Estado tanto uma dimensão de organização com “poder extroverso
sobre a sociedade que lhe dá origem e legitimidade” quanto o sistema
constitucional‑legal, “dotado de coercibilidade sobre todos os membros do
Estado nacional” (COSTIN, 2010, p. 8‑15).

O Estado brasileiro possui uma administração pública, fixada pelo Decreto‑lei n. 200 de 1967:

Uma definição operacional de Administração Pública decorre do que vimos


anteriormente sobre o Estado. Inclui o conjunto de órgãos, funcionários
e procedimentos utilizados pelos três poderes que integram o Estado, para
realizar suas funções econômicas e os papéis que a sociedade lhe atribuiu no
momento histórico em consideração. Assim, temos dois qualificativos para
associar a esta afirmação: a Administração Pública não existe só no Executivo
e ela muda constantemente, pois as expectativas da sociedade em relação a
ela e às disputas que se fazem na esfera política para fazer valer propostas
diferentes de atuação estatal também são cambiantes (COSTIN, 2010, p. 27).

Claudia Costin cita Bresser‑Pereira para tipificar a Administração Pública em três formas históricas:

Segundo Bresser‑Pereira (1998, p. 20‑22), há três formas de administrar


o Estado: a administração patrimonialista, a administração pública
105
Unidade II

burocrática e a administração pública gerencial, que outros autores chamam


de pós‑burocrática. O autor tira o qualificativo de pública da administração
patrimonialista, pois esta não visaria o interesse público (2010, p. 31).

A autora também apresenta em seu livro os modos básicos de alimentação do aparelho estatal, pela
via tributos, e de gastos públicos, via orçamento.

Saiba mais

Entre inúmeros autores, há dois textos bastante didáticos sobre o papel


do Estado da qual vimos falando. Um tem ênfase na dimensão econômica;
outro, na dimensão política:

HEILBRONER, R. Natureza e lógica do capitalismo. São Paulo: Ática, 1988.

BORÓN, A. Estado, capitalismo e democracia na América Latina. Rio de


Janeiro: Paz e Terra, 1994.

O Estado deve ser analisado como agente complexo que representa, contém ou deveria conter
todos os demais.

Observação

O Estado, normalmente também chamado de Estado territorial ou


Estado nacional, não é algo natural, é histórico e, portanto, tem data de
nascimento. O Estado‑nação, nos moldes convencionais, nasce na Europa
com a formação dos reinos modernos, que se transformaram nos países
que conhecemos, sejam eles ainda monarquias como o Reino Unido, ou
republicanos, como França, Espanha, Portugal, Rússia.

6 CIDADANIA SELETIVA: DIVISÃO E DETERMINAÇÃO DO TRABALHO

Como vimos, a motivação mais importante para a manutenção dos sistemas


de ação social do capitalismo tardio consiste em uma atitude privada na
vida pública dos cidadãos, bem como em sua vida profissional e familiar. A
tese de Habermas é a de que estes modelos de motivação são destruídos em
razão de uma dinâmica interna às sociedades do capitalismo tardio. Para
defender essa tese, ele deve mostrar não só o esgotamento das tradições
que sustentam tais atitudes, mas também que o capitalismo não pode
mobilizar novos recursos de motivação a fim de substituir funcionalmente
os primeiros.

106
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Naquilo que concerne às tradições culturais ligadas aos modelos de motivação


da atitude privada, Habermas afirma que se trata de uma mistura entre
elementos tradicionais burgueses e pré‑capitalistas (PEREIRA, 2013, p. 76).

O trabalho de Habermas segue por um caminho com o qual convergimos. Compõe o que chamamos
o rol dos “filósofos da esperança”, junto com Michel Serres, Henri Lefebvre, Milton Santos, entre outros.

Segundo Leonardo Jorge da Hora Pereira (2013, p. 72), Jürgen Habermas acredita numa “repolitização
[a relação entre as classes se repolitiza, sem que a economia continue a assegurar a integração social]
das relações de produção”; repolitização que “cria uma necessidade extra de legitimação”. Desse modo,
Habermas vai enfatizar as crises oriundas da relação entre o subsistema administrativo e o subsistema
sociocultural; de um lado, crise administrativa, de outro, crises de legitimação e de motivação.

A crise administrativa

No capitalismo tardio, a contradição fundamental do capitalismo passa do sistema


econômico para o sistema administrativo em virtude da crescente intervenção estatal e
do amortecimento das perturbações engendradas pelas disfunções econômicas. Com isso,
o ciclo econômico dá lugar à inflação e a uma crise crônica no setor das finanças públicas.
Nesse contexto, o Estado tem de dar conta de duas tarefas fundamentais: ele deve incentivar
a manutenção do movimento de acumulação de capital, bem como assegurar a lealdade das
massas. Ora, a socialização da produção que, como antes, é orientada por objetivos privados,
comporta exigências que o aparelho de Estado não pode satisfazer porque são paradoxais. A
necessidade de ampliar a capacidade de planificação do Estado a fim de realizar o interesse
geral dos capitalistas (a manutenção do sistema) se choca com a necessidade de manter
um espaço de liberdade de investimento aos capitalistas individuais. Assim, a planificação
estatal entra num movimento oscilatório entre uma ampliação da sua autonomia em face
dos seus destinatários e uma submissão a interesses particulares. Donde a impossibilidade
estrutural do Estado capitalista se tornar um “capitalista coletivo ideal.

[...]

A tese de Habermas é que os problemas de planificação não são produzidos prioritariamente


por déficits de racionalidade administrativa, mas antes por um déficit de motivação [...].

[...]

Habermas aposta muito mais na disfuncionalidade crescente entre a economia


e a administração, de um lado, e a cultura e a personalidade, de outro. Para ele, os
questionamentos e conflitos sociais não dependem do colapso da economia ou do Estado
planificador para eclodirem. De acordo com o seu conceito geral de crise, os problemas de
regulação têm a sua importância e dão objetividade às crises; no entanto, as crises só são
efetivamente deflagradas quando estes problemas sistêmicos suscitam efeitos específicos
na consciência dos sujeitos, na medida em que a integração social é posta em perigo.
107
Unidade II

A crise de legitimação

Apesar da ruptura do “véu” do fetichismo da mercadoria e da repolitização das relações


de produção, o Estado teve de manter uma parte de inconsciência a fim de que suas
funções de planificação não lhe imponham responsabilidades que ele não poderia aceitar
sem esvaziar seus caixas. Assim, ainda que as tendências de crise fiscal persistam, quando
se trata de gastar de modo racional os recursos, para Habermas, a atividade do Estado
encontra limites efetivos; mas estes dependem das legitimações disponíveis. Agora, passa a
ser preciso justificar a cobrança fiscal, diferente segundo as camadas sociais, e a utilização
particularista dos recursos, que uma política de afastamento das crises utiliza e esgota. Disso
resulta a necessidade funcional de tornar o sistema administrativo o mais independente
possível do sistema de legitimação, o que explica a necessidade de manter o privatismo dos
cidadãos enquanto um recurso de motivação fundamental da ação capitalista.

[...] Ora, segundo Habermas, “a expansão da atividade estatal tem por consequência
indireta um aumento desmedido da necessidade de legitimação”, uma vez que “evidências
culturais que eram até aqui condições marginais de aplicação do sistema político entram no
domínio da planificação da administração.

[...]

A planificação da educação, a planificação urbana, aquela do sistema de saúde e da


família exigem uma justificação universal (já que o Estado representa – em tese – todos
os cidadãos) para esferas caracterizadas precisamente por seu poder de auto‑justificação.
Isto gera a tomada de consciência do caráter contingente não apenas dos conteúdos da
tradição, mas também das técnicas de transmissão, isto é, de socialização. Assim, em todos
os planos, a planificação administrativa implica involuntariamente uma perturbação e uma
publicidade que enfraquecem o potencial de justificação de tradições que perderam seu
caráter espontâneo. Segundo Habermas, “uma vez que seu caráter indiscutível foi destruído,
as pretensões de validade só podem ser estabilizadas por discussões. A desestabilização
das evidências culturais favorece, portanto, a politização de domínios da vida cotidiana
que podiam até aqui ser confiados à vida privada. Mas isto comporta um perigo para o
privatismo dos cidadãos, assegurado de maneira informal pelas estruturas da opinião
pública. Habermas identifica os signos desta evolução nos esforços de participação e na
aparição de modelos diferentes, em particular nos domínios culturais como a escola e a
universidade, a imprensa, a Igreja, o teatro, as editoras etc.

A crise de motivação

Os argumentos que depõem a favor da existência de uma crise de motivação


dizem respeito a mudanças na própria esfera sociocultural, que acabam por ameaçar a
complementaridade que existe entre as exigências do aparato estatal e as expectativas de
legitimação e as necessidades dos membros da sociedade. Como vimos, a motivação mais
importante para a manutenção dos sistemas de ação social do capitalismo tardio consiste
108
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

em uma atitude privada na vida pública dos cidadãos, bem como em sua vida profissional
e familiar. A tese de Habermas é a de que estes modelos de motivação são destruídos em
razão de uma dinâmica interna às sociedades do capitalismo tardio. Para defender essa
tese, ele deve mostrar não só o esgotamento das tradições que sustentam tais atitudes,
mas também que o capitalismo não pode mobilizar novos recursos de motivação a fim de
substituir funcionalmente os primeiros.

Naquilo que concerne às tradições culturais ligadas aos modelos de motivação da


atitude privada, Habermas afirma que se trata de uma mistura entre elementos tradicionais
burgueses e pré‑capitalistas. Seu pressuposto é o de que “as sociedades capitalistas foram
sempre dependentes de condições marginais culturais que elas não podiam engendrar
a partir delas mesmas: elas parasitam as reservas de tradições”. Para defender sua tese,
Habermas tenta então mostrar que estas duas fontes culturais, as reservas de tradição
pré‑burguesas e as burguesas estão esgotadas. As imagens de mundo tradicionalistas
foram enfraquecidas continuamente no curso da evolução do capitalismo, já que elas eram
inconciliáveis, sobretudo, com a extensão dos domínios onde predomina a ação racional
com respeito a fins. Mas, mesmo os elementos das ideologias burguesas que favorecem as
orientações privatistas perdem o seu lugar em razão das transformações sociais. A ideologia
da performance é posta em questão pelo descompasso entre a formação escolar e o sucesso
profissional. O individualismo possessivo desmorona pelo aumento da parte dos bens de uso
coletivos (os transportes, os lazeres, a saúde, a educação etc.) entre os bens de consumo.
Enfim, a orientação para valores de troca é minada em consequência do enfraquecimento
da socialização do mercado.

De acordo com o diagnóstico habermasiano, a erosão das reservas de tradição


pré‑capitalistas e capitalistas engendra estruturas normativas “residuais” que não são
adequadas à reprodução do privatismo na vida cívica e na vida profissional‑familiar. Temos
aqui um exemplo claro daquilo que Habermas estabeleceu como um possível efeito da
interação entre a evolução sistêmica e a evolução do âmbito sociocultural: na medida
em que a lógica de desenvolvimento deste último é independente da primeira, temos
que a transformação da esfera sociocultural induzida justamente pelo desenvolvimento
sistêmico faz com que ela se torne disfuncional em relação aos imperativos da economia
e da administração, ameaçando assim a coerência de conjunto do capitalismo tardio. Há,
portanto, uma espécie de conflito entre os valores propostos pela esfera sociocultural e os
valores necessários para a manutenção dos sistemas político e econômico estruturados em
classes. Entre os elementos tornados dominantes na tradição cultural, é necessário mencionar
o cientificismo na dimensão cognitiva ou teórica, a arte pós‑aurática na dimensão estética
e, sobretudo, a moral universalista na dimensão prático‑moral.

O advento de uma ética comunicativa, segundo a qual apenas interesses universalizáveis


são passíveis de serem aceitos numa discussão coletiva livre de constrangimentos, é
certamente o mais importante entre os elementos culturais derivados das ideologias
burguesas que produzem um efeito de bloqueio no desenvolvimento dos sistemas
109
Unidade II

econômico e político. Este último aspecto é aquele que explicita mais nitidamente este
efeito, já que o capitalismo tardio (tal como outras formas de organização social baseadas
numa estrutura de classes) precisa estabilizar a contradição fundamental de uma produção
socializada apropriada segundo interesses particulares (não universalizáveis). Por isso, a
eventual propagação da ética comunicativa universal nos processos de socialização é
um elemento fundamental para a deflagração de uma crise de motivação no seio do
capitalismo tardio.

Habermas afirma que existem duas possíveis saídas para a crise de legitimação/motivação:
“Ou bem as estruturas de classes latentes do capitalismo tardio são transformadas, ou bem
a exigência de legitimação à qual é submetido o sistema administrativo é suprimida. Isto
só poderia se realizar se a integração da natureza interna fosse reorganizada de maneira
geral segundo um outro modo de socialização, isto é, se ela fosse descolada das normas
que reclamam uma justificação”. É bom insistir, porém, que, se ele ainda fala de uma
transformação da estrutura de classes, ele não o faz a partir do paradigma da revolução
ou do “essencialismo” da luta de classes. Apesar de não ser tão claro em relação a uma
estratégia política mais concreta, tudo indica que tratar‑se‑ia antes de buscar uma saída
democrática para tais impasses, o que só seria possível mediante uma politização das massas
e o reavivamento da esfera pública. Não se trata, portanto, de se limitar ao proletariado como
polo de luta contra a dominação de classe, pois outros movimentos, como o estudantil,
mereceram a atenção de Habermas nesse período”.

Fonte: Pereira (2013, p. 72‑78).

6.1 Alfabetização finalitária: atalhos da redução

Talvez os senhores se perguntem que motivos teria justamente um escritor de


defender a causa dos que não sabem ler... Mas a resposta é bastante óbvia: foi
o analfabeto que inventou a literatura. Suas formas elementares, do mito à
canção de ninar, do conto de fadas ao canto, da oração à charada, são todas
mais antigas que a escrita. Sem a transmissão oral não existiria a poesia, e sem
os analfabetos não haveria livros (ENZENSBERGER, 1995, p. 44).

Em conferência provocativa, Hans Magnus Enzensberger toca em pontos nevrálgicos, fundamentais


da construção cultural totalitária do Ocidente.

Observação

A conferência, que teve grande repercussão, foi publicada no livro


Mediocridade e loucura, com o título “O elogio ao analfabetismo”.

ENZENSBERGER, H. M. Elogio ao analfabetismo. In: ENZENSBERGER, H.


M. Mediocridade e loucura: e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1995.
110
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Na apresentação, o autor fala dos descaminhos do Iluminismo, pois, como escritor e ensaísta,
demonstra os benefícios da pré‑escrita, bem como seus malefícios instrumentais de nosso letramento
moderno, utilitário. Assim:

A meta perseguida pela alfabetização da população nada teve a ver com


o Iluminismo. Os filantropos e os sacerdotes da cultura que a defendiam
foram apenas cúmplices de uma indús­tria capitalista, exigindo que o Estado
colocasse à sua disposição trabalhadores treinados. O lema “O bom, o
verdadeiro e o belo”, ao qual os editores patriarcais da época Biedermeier
tanto se referiam, e que seus descendentes gostam de citar ainda hoje,
nunca foi a meta principal. O esforço nunca tratou de abrir um cami­nho
para a “cultura escrita” e muito menos de libertar as pessoas para que
falassem por si mesmas. O que estava em jogo era um tipo completamente
diferente de progresso. Ele consistia em domesticar os analfabetos, esta
“classe mais inferior de pessoas”, acabando com a imaginação e a teimosia
deles, passando‑se desde então a explorar não apenas sua força muscular e
suas habilidades, como também seus cérebros.

No entanto, antes que se eliminassem os analfabetos, era preciso que eles


fossem definidos, localizados e expostos. O con­ceito do analfabetismo não é
antigo. Sua invenção pode ser data­da com bastante exatidão. A palavra surgiu
pela primeira vez numa publicação inglesa de 1876, espalhando‑se depois
rapida­mente por toda a Europa. Na mesma época Edison inventou a lâmpada,
Siemens, a locomotiva elétrica, Linde, a máquina de refrigeração, Bell, o telefone,
e Otto, o motor a gasolina. A relação é óbvia (ENZENSBERGER, 1995, p. 47‑48).

O trabalho adestrado, o fazer domesticado; as mãos guiadas “de fora” (do sujeito), eis o mote deste
lugar no texto.

Chegamos a um ponto delicado do percurso; adestramento dos saberes e fazeres, longo espectro que
vai das inúmeras tradições aos ofícios “civilizacionais” de mestres da criação de utensílios e objetos de
morar, vestir. A síntese do que queremos dizer está na mensagem de agradecimento de Hans Magnus
Enzensberger pelo prêmio recebido; o título da conferência que, num primeiro momento, causa espanto
até que o entendemos quando elogia o analfabetismo.

Além disso, o triunfo da educação popular na Europa coincide com a


expansão máxima do colonialismo. Isso tampouco é um mero acaso. Nas
enciclopédias da época pode‑se ler a afirmação de que a quantidade dos
analfabetos “comparada com a população total de um país é uma indicação
do estado cultural de uma nação”. “Ele é mais baixo nos países eslavos e
entre os negros dos Estados Unidos… No patamar superior encontram‑se
os estados germânicos, os brancos dos Estados Unidos da América e a raça
finlandesa.” E também não pode faltar a informação de que “os homens, em
média”, se encontram “acima das mulheres”.
111
Unidade II

Isso tudo deixa de ser uma questão de estatística para se tornar um caso de
classificação e de estigmatização. Já é possível reconhecer a figura do subumano
por trás da figura do analfabeto. Uma pequena minoria radical monopolizou a
civilização e adota atitudes discriminatórias contra todos os que não dançam
segun­do suas melodias. A minoria pode ser definida com exatidão. Os homens
dominam as mulheres, os brancos os negros, os ricos os pobres, os vivos os mortos.
O que os “líderes comunitários” dos tempos guilherminos não desconfiavam
deveria ser bastante claro aos seus netos, nós que somos crianças escaldadas: o
Iluminismo pode se transformar em perseguição, a civilização em barbárie.

Os senhores perguntar‑se‑ão por quais motivos lhes estou apresentando


problemas que atualmente têm um interesse apenas histórico. Bem, esta
pré‑história conseguiu nesse meio tempo nos alcançar. A vingança dos
excluídos não deixa de apresentar traços de humor negro. O analfabetismo
que conseguimos exterminar, como todos sabem, retornou, mas numa
forma que nada mais tem de admirável (ENZENSBERGER, 1995, p. 48‑49).

Sua provocação é endereçada à alfabetização instrumental, ler para ligar‑desligar, botões on/off
das máquinas.

Essa figura, que há muito tempo domina o palco da sociedade, é o analfabeto


secundário. Ele é uma pessoa de sorte, pois não sofre com a perda de
memória; o fato de ele não ter uma mente própria o exime de pressões; sabe
dar valor à sua incapacidade de se concentrar em alguma coisa; acha que é
uma vantagem não saber e não compreender o que está acontecendo com
ele. Ele é ativo. E adaptável. Apresenta uma considerável determinação em
conseguir se impor. Não precisamos, portanto, nos preocupar com ele. O fato
de o analfabeto secundário não ter ideia de que é um analfabeto secundário
contribui para seu bem‑estar. Ele se considera bem informado, consegue
decodificar instruções, pictogramas e cheques e se movimenta num mundo
que o isola de qual­quer desafio à sua confiança. É impensável que ele possa
ficar frustrado pelo seu ambiente. Afinal de contas, foi este ambiente que o
gerou e o formou para garantir sua própria sobrevivência sem problemas.

O analfabeto secundário é o produto de uma nova fase da industrialização.


Uma economia cujo problema não é mais a produção, mas sim a venda,
já não necessita de um contingente disciplinado de reserva. Ela precisa de
consumidores qualificados. Na medida em que os clássicos trabalhadores
de produção e funcionários de escritório se tornam supérfluos, o mesmo
ocorre com o treinamento rígido ao qual eles eram sujeitados, e o
analfabetismo passa a ser uma algema da qual é necessário se livrar o mais
depressa possível. Simultaneamente com a formulação desse problema,
nossa tecnologia também desenvolveu a solução ade­quada. A mídia ideal
para o analfabeto secundário é a televisão (ENZENSBERGER, 1995, p. 49‑50).
112
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Normas, manuais e determinações. Mãos em processo contínuo de domesticação ou adestramento.


Domesticação das mãos, do corpo todo na lida com as coisas, com os seres e consigo. Sob o pano
de fundo da adequação, dá‑se metódica e contínua aplicação das normas às partes do corpo e das
experiências que interessam às organizações.

E provável que a maioria das teorias que foram formuladas sobre esse
fenómeno estejam erradas. Eu sei do que estou falando, porque há menos
de vinte anos atribuí maravilhosas possibilidades de emancipação à mídia
eletrônica. Uma tal esperança, apesar de não ser fundamentada, pelo
menos tinha a vantagem da ousadia. Não se pode afirmar o mesmo das
reflexões de um sociólogo norte‑americano, que atualmente são motivo
de muitas discussões:

Quando uma população deixa que sua atenção seja desviada por
trivialidades, quando a vida cultural é redefinida como uma série
interminável de entretenimentos, quando a discussão pública se torna
uma forma de comunicação infantil, quando, resumindo, um povo se
transforma em espectador e seus assuntos públicos em números de varie­
dades, uma nação se encontra em perigo — a morte da cul­tura torna‑se
uma clara possibilidade .

Apenas a terminologia se modificou; nos demais aspectos, os argumentos


do norte‑americano, em 1985, são idênticos aos do suíço que, em 1795,
publicou um Apelo à Nação, visando alertá‑la para o colapso iminente
da cultura. E claro que a argumentação central de Postman está correta:
a televisão é apenas bobagem com molho. Estranho é apenas o fato de
ele ver isto como sendo uma objeção. A televisão deve seu charme, sua
irresistibilidade, seu sucesso justamente à sua imbecilidade. Um outro
tique que pode ser observado nos apologistas da cultura da leitura é ainda
mais estranho. Saber em qual mídia a imbecilidade é produzida parece ter
importância máxima para eles; se ela aparece impressa em preto no branco,
então obviamente trata‑se de um tesouro cultural; mas caso for disseminada
via antenas ou cabos, então “a nação está em perigo”. Bem, todos os que
acreditam cegamente na crítica cultural são responsáveis pelo que fazem
(ENZENSBERGER, 1995, p. 50).

Enzensberger segue apontando, de modo arguto, as mazelas do poder e de seus braços culturais,
não a cultura real, dos discursos legitimadores dos regimes de poder, dissociados de compromissos, de
fato, republicanos.

Por outro lado, pode‑se presumivelmente constatar que o projeto histórico


do Iluminismo tenha falhado nesse sentido. No retrospecto, o slogan
“Cultura para todos” parece ser bastante cómico. Menos ainda temos à
vista uma cultura sem classes. Pelo contrário, podemos prever uma situação
113
Unidade II

na qual existam ambientes culturais cada vez mais acentuadamente


diferenciados, que não conheçam mais um espaço público comum. Quero
até arriscar a afirmação de que a população se dividirá em castas culturais
cada vez mais distintas. (E claro que estou usando este termo de forma
descritiva, sem qualquer implicação sistemática.) Essas castas já não
podem mais ser descritas com a ajuda do modelo marxista tradicional,
segundo o qual a cultura dominante é a cultura da classe dominante.
Ocorre um distanciamento cada vez maior entre a posição econômica da
classe e sua consciência.

Na maior parte dos casos as principais posições na política e na economia são


ocupadas pelos analfabetos secundários. Nesse sentido, basta uma simples
referência ao atual presidente dos Estados Unidos e ao atual chanceler
da Alemanha. Por outro lado, neste país, tal como nos Estados Unidos,
pode‑se encontrar, sem qualquer esforço, bandos enormes de motoristas
de táxi, de tra­balhadores avulsos, vendedores de jornais e beneficiários do
sistema de previdência social que, por causa de sua aguda conscientização
dos problemas, seus padrões culturais e seus amplos conhe­cimentos, teriam
avançado consideravelmente em qualquer outra sociedade. Mas até uma tal
justaposição deixa de atingir o alvo pretendido — o fato de que não se pode
mais fazer atribuições desprovidas de ambiguidade; pois também podem
ser encontra­dos zumbis entre professores desempregados e funcionários no
escritório do presidente da república que, além de saberem ler e escrever,
também são capazes até de pensar de modo produtivo (ENZENSBERGER,
1995, p. 52).

Acusa mudanças suscitadas por aplanamentos culturais, por “desprestígio popular” das belas artes,
e pela alteração na correlação de poder dos grupos sociais.

Mas isso também significa que, em questões de cultura, o determinismo social


já deixou de ter importância. O assim chamado privilégio educacional perdeu
seu aspecto assustador. Se os pais de ambos são analfabetos culturais, o
filho do casal proeminente deixa de ter qualquer vantagem sobre o filho
dos operários. No futuro, a casta cultural à qual se pertencerá irá depender
muito mais da escolha pessoal que da origem que se tenha (ENZENSBERGER,
1995, p. 52‑53).

Enzensberger reafirma a importância da cultura e de seu braço de ofício, a literatura:

De tudo isso, chego à conclusão de que a cultura no nosso país [Alemanha]


se depara com uma situação completamente nova. A reivindicação de
validade universal, sempre declarada, mas nunca implementada, pode
ser esquecida. Os governantes, a maioria dos quais são analfabetos
secundários, perderam qualquer interesse por ela. A consequência é que
114
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

ela já não precisa e nem pode servir a qualquer interesse governante. A


cultura não fornece mais legitimação a coisa alguma. Ela está fora do
âmbito das leis, o que também é uma forma de liberdade. Uma tal cultura
precisa se manter a par­tir dos seus próprios recursos, e quanto antes
compreender isso, melhor será.

Ah, e outra coisa: a questão de saber se os senhores homenagearam um


anacronismo – quase nos esquecemos disso! No que diz respeito à literatura,
acredito que ela esteja sendo menos afetada pelas mudanças que esbocei
do que se poderia pensar. Na realidade, ela sempre foi um tema para uma
minoria. A quantidade dos que se dedicam a ela provavelmente se manteve
constante no decorrer dos dois últimos séculos. O que mudou foi apenas a
formação desse grupo. Já não é mais uma marca de privilégio de classe se
interessar por ela, mas também não é mais uma obrigação de classe fazer isso.
A vitória do analfabetismo secundário somente pode radicalizar a literatura.
Ela provoca uma situação na qual a leitura será puramente voluntária. Assim
que essa leitura deixar de ser um símbolo de status, um código social, um
programa educacional, apenas aqueles que não conseguem se manter longe
da literatura travarão conhecimento com ela.

É possível que haja os que deploram tal situação. Não tenho a menor vontade
de fazer isso. Afinal de contas, as ervas daninhas também são uma minoria
e todos os jardineiros sabem que é muito difícil exterminá‑las. A literatura
continuará proliferando, enquanto mantiver uma certa dose de tenacidade,
de astúcia, de habilidade de se concentrar, de obstinação e de boa memória
(ENZENSBERGER, 1995, p. 53‑54).

6.2 As mãos no trabalho esfacelado

Fragmentação do trabalho e da consciência que dele se pudesse ter, aqui, não apenas como componente
institucional (mental), mas como trabalho localizado nos lugares de agronegócios, corporações verticais
de atividades, com especialização contínua das atividades (fragmentação e seleção daquilo que interessa
às relações de trabalho), sob o funcionalismo. A todo momento estamos sob a máxima dos “hábitos
apropriados”. Temos assim mercados de trabalho violentos, descritos em seus estratagemas por Margarida
Maria Moura, Robert Kurz, Márcio Pochmann, Ricardo Antunes.

O corpo assim enquadrado, encaixado, submetido e ajustado, desenvolve‑se (que é o contrário do


que seria desejável fazer) dominado pelo excesso de mediações normativas do capitalismo globalizado,
em busca incessante de eficiência dos processos de reprodução, em redes que coadunam padronização
e customização). Desenvolver, aqui, é antípoda de envolver‑se, enraizar‑se.

As histórias típicas das sociedades rurais vão se perdendo e, quanto a isso, já nos alertava Monteiro
Lobato, na década de 1930:

115
Unidade II

Não posso deixar de marcar que o maravilhamento vivido em meio àquele


mundo que lhe chegava pelas páginas do Journal des Voyages, [aventura
de leitor descrita por Lobato, em jornais na casa de seu avô] cheio de
aventura e plasticidade imaginativa, visualmente cativante por conta das
ilustrações estampadas nos volumes, ele próprio recriaria, anos mais tarde,
para encantar jovens gerações de brasileiros e fazer deles leitores atentos e
curiosos, fisgados pelos enredos, cenários e personagens do Sítio do Picapau
Amarelo. E devo também acrescentar que, apesar de paisagisticamente
ambientado no interior do Brasil, o sítio condensa, em seu imaginário,
as principais referências do universo cultural do Ocidente, uma vez que
Lobato fez questão de reunir, em suas histórias, boa parte das expressões
eruditas e populares que marcaram a nossa civilização – na antiguidade
ou na atualidade, em forma de lendas, personagens míticos ou heróis dos
quadrinhos ou do cinema (AZEVEDO, 2012, p. 19‑20).

E o que se pode dizer da extensão dos efeitos de hierarquizantes, o capital no topo/a obediência no
topo? O labor é dominado, processo conduzido pelos projetos e realizações de poder, da Antiguidade à
modernidade capitalista. Qual é o espaço para a excelência, para os mestres em seus ofícios?

Estamos diante de lugares rurais que deveriam ser somente caracterizados pelas poliatividades, e
não pelo “agro”; tampouco por atividades estritamente tecnológicas (comumente urbanas, das cidades).
A orientação nos vem de Graziano da Silva, de José Eli da Veiga, de Ricardo Abramovay, entre outros.
E para complicar ainda mais, existem infinidades de configurações possíveis de ocorrências do
urbano no rural e do rural no urbano, por razões geográficas (espaços disponíveis ou estratégicos),
culturais (tradições ou sínteses e sincretismos), políticas (imposição, dominação, “desterritorializações”)
etc. É preciso ver o agrário nas cidades, como nos exemplos das hortas em Tokyo, da viticultura em
Viena, das hortas urbanas em diversas partes do mundo.

Também é bem oportuno estudarmos as áreas de monoculturas de soja, laranja, as criações de espécie
única, cada vez mais tecnificados (SANTOS, 1994; 1996). Milton Santos, nos textos citados, aponta‑nos
o campo como tendo as condições mais favoráveis às modernizações capitalistas; modernizações,
normalmente com determinações externas aos lugares (chamados de verticalidades por Milton Santos).
Tais processos são disruptivos, proporcionam fios de desenvolvimentos, no sentido preciso, exato da
palavra (de desenvolver ou afastas), trazendo‑nos ao mundo das relações sem sentido. Como ficam os
projetos se o mundo não tem sentido? Deveríamos pedir ajuda a Jean‑Paul Sartre, para quem todos
somos projetos (1987).

Há uma reflexão geográfico‑antropológico (geografia cultural) que se aproxima dos diversos âmbitos
sociais por sua dinâmica espacial, das territorialidades (entre outros, GOYCOCHEA apud DE DAVID, 2017,
p. 21). Territorialidades, percepção, globalização articuladora.

Canclini fala da confiança e de sua falta; confiança cuja importância é imensa como cimento
psicossocial do conhecimento e das relações. Sua reflexão vai ao encontro da visão de modernidade de
Hans Magnus Enzensberger: promete emancipar, expandir, renovar, democratizar.
116
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Temáticas que, em conduções políticas divergentes, tornam‑se ambíguas, confusas quanto aos
seus fins verdadeiros, como é o caso dos sincretismos simbólico‑religiosos, hibridismos culturais, e da
sociodiversidade em geral (DE DAVID, 2017, p. 34), o que se torna problemático quanto aos caminhos
da socialização; é assim que a educação passa a ser arena de combate pelas consciências. Contudo,
nosso enfoque deveria ser muito mais a cultura do que a educação; cultura humanista, ética,
democrática, nas bases estruturantes dos institutos e instâncias educacionais. A questão educacional
é, na verdade, cultural.

A alusão de Milton Santos (1996) a uma “sociedade dos tradutores” vai direto ao ponto: há uma
espécie de camada que se vem interpondo entre as pessoas e suas consciências sobre os objetos.
O que significa que os mundos dos objetos colocados diante de nós tornam‑se realidades parciais
e fragmentárias para os observadores e usuários, requerendo toda sorte de manuais das mãos de
novos especialistas, os técnicos que sabem escrevê‑los uns para os outros em jargão próprio, e
aqueles que vão traduzir esses cadernos complicados em cartilhas para os usuários, em geral , isto
é, todos os outros.

As implicações desse mundo de coisas desconhecidas por dentro, e na cadeia de acontecimentos cuja
expressão material, objetiva, é insignificante, indicando possibilidades tanto de aprendizado quanto de
embrutecimento. Podemos aprender com esse amontoado de informações, bem como sermos soterrados
por elas e, paradoxalmente, isolarmo‑nos politicamente.

O isolamento social dos indivíduos é o contrário de vida política, convívio; é o caos social. E aí é que
entram as complicações geradas pela enorme quantidade de “redes” e “conexões” nas quais estamos
envolvidos. Há uma célebre anedota sociológica de Zygmunt Bauman sobre o que denominou “amizade
Facebook”: ele disse que ninguém tem aquela lista enorme de amigos na rede.

6.3 Campos do capital, da urbanização disruptiva

Quanto aos conflitos entre camponeses e capitalistas, não há diálogo, apenas contradições profundas
e incorporação do primeiro pelas relações que enredam os segundos. Como é possível estudarmos tal
assimilação sem preconceitos? Como a igualdade jurídica pode ser tão violenta? Haverá em algum
tempo, de fato, espaço para a diversidade?

Segue um pouco de cor na imagem que estamos evocando, na letra da banda Skank.

A cerca

Fazendo cerca na Fazenda do Rosário


Resto de toco velho mandado pelo vigário

Meu camarada, eu moro aqui do lado


O terreno que tu cerca já tá cercado

117
Unidade II

Não entendi a assertiva do compadre


Se é lei chama o doutor
Se é milagre chama o padre

É muito simples, tu veja ali na frente


Tá vendo o laranjal, minha cerca passa rente

Que dia quente, tem feito muito calor


Daqui a pouco meu vizinho vê um disco voador

Se visse até pedia para descer


Quem sabe se um marciano
Consegue te esclarecer

Ô meu compadre, cê tá vendo assombração


Cê num é advogado, cê num é tabelião

Nem por isso eu deixei de fazer o justo


So o sujeito enxerga torto
O direito dá um susto

Tu cerca a terra, tu cerca até o mundo


Então cerca a tua filha, toda noite aqui no fundo

Pois te conto um segredo


Cê não conta pra ninguém
Andam vendo tua mulher
com o dono do armazém

Maledicência, eu já tô acostumado
Até dizem que o senhor é incapacitado
Eu tomo chuva, tomo ar puro de manhã
Minha saúde é de ferro, pergunte para sua irmã

Nunca se está a salvo da falação alheia


Eis que um tipo parvo vem falar na minha oreia
Martelo prego, torniqueto com serrote
Acerca do homem cego, quem tem vista dá o mote

Terequitem, ô pra cá você não vem


Terequitem, que eu conserto a ti também

Fonte: Rosa; Amaral; Furtado (1994).

118
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Perdas de qualidade de vida tanto na cidade quanto no campo passam pela segregação, as divisões,
as cercas; daí a importância de as identificarmos e localizarmos todas as formas de separação social.

Da estrutura social estática, passamos à sociedade em movimento. A vida torna‑se possível com o
exercício do prazer, da amizade, da fraternidade, e com o trabalho das pessoas nos lugares, nos campos
e nas cidades, representado ou regulado pelas figuras jurídicas. Contudo, nesse nível da regulação, o
trabalho adquire valor e dimensões abstratas, legais e econômicas.

Agora, também como grupos econômicos, Estado e demais agentes sociais jogam conforme
regras chanceladas pelo poder público, embora o caráter público de um Estado não seja natural, mas
conquistado, construído pelo trabalho coletivo, de um lado, e o ser social privado, corporativo, de outro;
que formam a própria configuração econômica do Estado‑territorial/nacional. Resumindo a ideia: a
quem esse aparato público atende, de fato, com suas portarias, leis, sentenças e decretos, considerados
os três poderes?

Williams fala das transformações sofridas pela vida rural, com impossibilidade, porém, de identificar
evolução linear, do tipo “o que passou, passou”; pois ela reaparece de várias maneiras, mantêm‑se e
pode até parecer que deixou de existir; porém, estará sempre lá. Segue citação do autor:

Mas a mudança é tão ampla e complexa, mesmo sem levarmos em


conta as importantes variações regionais, que parece não haver um
ponto onde possamos situar com firmeza a transição entre épocas
nitidamente diferentes.

Os relatos historiográficos mais detalhados indicam que em toda a parte


muitas formas, práticas e sensibilidades antigas sobreviveram em períodos
nos quais o sentido geral das novas tendências já era claro e decisivo. E
então o que parece ser uma velha ordem, uma sociedade tradicional, começa
a aparecer, a ressurgir, numa profusão desconcertante de datas diversas: na
prática como uma ideia, até certo ponto baseada na experiência, que pode
ser tomada como padrão para a avaliação das mudanças contemporâneas.
A estrutura de sentimentos dentro da qual esta referência ao passado deve
ser entendida, portanto, não é basicamente uma questão de explicação
e análise histórica. O que é realmente importante é este tipo específico
de reação à mudança, e isso tem causas sociais mais concretas e mais
interessantes (WILLIAMS, 1989, p. 56).

O que o autor encontra no material de sua pesquisa é uma idealização dos valores feudais e
imediatamente pós‑feudais, de uma ordem de relações sociais estáveis e recíprocas, com características
assumidamente totalizantes (1989). Reflete sobre os impactos da nova ordem da agricultura capitalista,
imposta com sucesso às antigas estruturas.

As transformações de que nos falam Raymond Williams (1989) e Margarida Maria Moura (1988;
1986; 1978), envolvem dois mundos antagônicos que passam a se chocar e interpenetrar‑se, até que
119
Unidade II

um pareça sucumbir soterrado pelas novas formas sociais em geral (costumes e atividades produtivas),
jurídicas e econômicas, em particular (títulos de propriedade, equivalências monetárias em lugar de
compromisso e favores).

São imensos contingentes de pessoas que devem ceder suas moradias (e boa parte de pertences) de
agregados às terras e famílias de senhores de terras para empregarem‑se sob as novas leis trabalhistas e
procurar lugares onde morar em novas condições (MOURA, 1988). E como diz Williams:

A ênfase dada à obrigação, à caridade, à porta aberta aos pobres da vizinhança


é contrastada, numa forma bem conhecida de radicalismo retrospectivo,
com a investida capitalista, a redução utilitarista de todas as relações sociais
a uma ordem impiedosa baseada no dinheiro (WILLIAMS, 1989, p. 56).

Williams (1989) adverte para os perigos de dirigirmos as críticas ao sistema presente para relações
que não existem mais, adotando parâmetros falsos. Afirma o autor que privilegiar relações que não
mais existem, virtudes de um mundo rural que não mais existe do modo idealizado por “movimentos
intelectuais do século XX” que transferem valores e padrões do campo de outras épocas, tornando‑se
“valores de uma posição explicitamente reacionária: em defesa dos padrões tradicionais de propriedade,
ou no ataque à democracia em nome do sangue e da terra” (WILLIAMS, 1989, p. 57‑58).

Trata, também, de um projeto cujo ideal proposto é a associação de

um poder local paternal com uma legislação nacional que vise a proteger
certas formas de propriedade e trabalho surgidas recentemente – parece
fundamentar‑se com pesos quase iguais, na rejeição da arbitrariedade do
feudalismo, numa rejeição categórica da nova arbitrariedade do dinheiro e na
tentativa de estabilizar urna ordem transitória, na qual os pequenos proprietários
devem ser protegidos dos cercamentos, mas também da ociosidade de seus
trabalhadores. Assim, uma ordem moral é abstraída do legado feudal e da
dissolução do feudalismo, buscando impor‑se do modo ideal com condições
inerentemente instáveis. A santidade da propriedade tem de coexistir com
violentas mudanças de relações de propriedade, e um ideal de caridade deve
conviver com relações de trabalho rigorosas tanto no velho sistema quanto no
novo (WILLIAMS, 1989, p. 68).

E como esse trabalho abstrato promove certo desenvolvimento exógeno, voltado para fora das
regiões que recebem investimentos e mudanças; para fora, vai o grosso dos benefícios e a riqueza;
dentro, ficam os problemas.

O peso das normas começa por aí e passam pelas mudanças ambientais não negociadas pelas
comunidades, impostas àqueles que têm suas atividades nativas, autóctones, originais da ocupação do
lugar, também chamadas de vernáculas. Na cidade, os procedimentos são parecidos, pois tudo se passa
como movimento inexorável da história, modernização contra a qual não se pode opor.

120
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

O ambiente é moldado para atender aos interesses externos, então, faremos as seguintes análises
teórico‑metodológicas sobre a avaliação de impacto socioambiental ligada à ocupação e apropriação
social dos recursos naturais.

Estamos tratando dos problemas ambientais desde o início do texto, porém, neste momento, eles
devem ficar mais evidentes. Poluição, envenenamento, toxidade são eventos com possibilidades de
diagnósticos sistêmicos, a partir de uma ótica de gerenciamento ambiental de recursos tomados como
elementos dos sistemas e cadeias produtivas convencionais. Entretanto, o tema da disciplina requer que
sejamos radicais já nas concepções do problema em suas causas. Sendo, então, mais incisivos, somos
levados às visões alternativas de organização do espaço rural, com revisões alternativas e participativas
nos modelos de gestão e de planejamento ambiental.

A construção do conhecimento agroecológico ocorre com base em utopias, no melhor sentido da palavra.

Todos os debates sobre os transgênicos dividem os contendores em basicamente dois lados:


aqueles que se alinham a favor de uma saída tecnológica para especialização e fortalecimento de
espécies contra tudo aquilo que veem como obstáculos ao desenvolvimento, além dos problemas
de produtividade (estão pensando em escala); e, de outro, aqueles que temem efeitos indesejáveis ou
impactos do uso à saúde, não previstos pelas pesquisas com tempo ainda insuficiente para avaliação
da eficiência ambiental (não econômica).

Saiba mais

Sobre essa questão da tecnologia, muito interessantes são as declarações


de Carlo Petrini. Leia o artigo na íntegra em:

PETRINI, C. O direito ao alimento. Tradução de Moisés Sbardelotto.


Revista IHU On‑line, Rio Grande do Sul, 12 dez. 2013. Disponível em: https://
bit.ly/3AVZ6Of. Acesso em: 21 maio 2019.

É necessário nos perguntarmos sobre os caminhos que tomamos para podermos discutir outros, e o
que nos interessa produzir e consumir.

É preciso, assim, ir além de modos e exotismos. Crosby (1993) expõe de modo interessante a irradiação
dos padrões alimentares de boa parte do mundo a partir da Europa, o que explicaria também os circuitos
produtivos de alimentos, insumos, cardápios inteiros baseados em regiões que milhões de pessoas
nunca viram, forçando ecossistemas de modo artificial a produzirem espécies exóticas. O agravante
desse processo de séculos é a visão que se adquiriu de “solos pobres”, quando na verdade os solos não
deveriam ter eficiência com cultivares estrangeiros; é o caso dos solos de nossas florestas tropicais,
que não são adequados ao plantio de espécies do gosto do colonizador europeu. Esse processo moldou
a estrutura fundiária e as bases agropecuárias dos povos subjugados pelas armadas e pelo comércio
português, espanhol e britânico.

121
Unidade II

Uma lista sem fim de situações mostrando a negação da complexidade alimentar poderia ser
citada, como lanchonetes, restaurantes, supermercados vendendo reduções simplificadas de pratos
anteriormente comuns, habitualmente mais complexos e preparados em casa; trata‑se do reino do
funcional, do prazer fácil, quase sempre solitário, do comer apressado. Não há lugar para pratos
complexos, pois a experiência tanto para o preparo quanto para comê‑los não estará disponível.
Claro que estamos num terreno perigoso para se achar o verdadeiro hábito em meio às imposições
de povos conquistadores e as consequentes transformações de estruturas milenares. Os “problemas
com a revolução verde” na forma de envenenamento dos rios e dos solos também são descritos por
Standage (2010).

Comemos o que nos dizem as grandes empresas agroalimentares, influenciados por modismos e
propagandas. No Brasil, a legislação ambiental básica é da década de 1980.

É somente em 2000 que se chega à lei que instaura o SNUC (Sistema Nacional de Unidades de
Conservação), que define as áreas de preservação em unidades de proteção integrais e com permissões
graduais e funcionais de usos. É um instrumento de política ambiental que pode ser muito útil, mas
também apenas mais uma lei.

Lembrete

É sempre bom reiterar a já citada entrevista sobre movimento


internacional, com vistas à qualificação da saúde, que combate a modificação
genética dos organismos ao jornal italiano do engajado chef Carlo Petrini.

No coro das acusações às inovações tecnológicas abstratas (desvinculadas das regiões e populações
reais), segue o trecho de Lima:

Diante desse diagnóstico (de que a crise fora gerada, em grande medida, em
decorrência do próprio padrão científico‑tecnológico. O que, segundo alguns
pensadores, exigiria uma nova configuração do conhecimento socialmente
produzido sobre o mundo – social e natural), a atual relação entre sociedade
e natureza parece ter por base uma nova escassez. Não mais uma relação
fundadora do que é irredutivelmente humano como a categoria trabalho
em Marx (1975). Pelo contrário, a principal clivagem que a sociedade
contemporânea parece ter construído, na sua relação com o seu substrato
natural, é uma “escassez limitante” do texto humano. Não é mais a natureza
do ambiente local (a intempérie, os fenômenos naturais, a sazonalidade, os
desastres naturais) que está a desafiar a capacidade e criatividade cultural
de um grupo humano em particular. Hoje são os limites de regeneração da
Terra como um todo, que parecem se impor ao texto colocado em marcha
pela moderna sociedade industrial: suas relações de produção, seus padrões
de consumo; seu padrão tecnológico; sua densidade demográfica; sua
hierarquização e desqualificação de saberes e culturas (LIMA, 2004, p. 5).
122
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Na lista de problemas, devemos assinalar que a desigualdade social em todos os níveis está na base
de todos eles, perpetuando‑os. Assim, a questão da propriedade deve ser discutida quando se considera
o desenvolvimento sustentável e as formas de produção sustentáveis.

Ladislau Dowbor (2010a) faz algumas considerações sobre a questão da propriedade que o modelo
convencional enrijeceu e não parece ceder facilmente aos apelos da razão. Não é abrir mão da
propriedade, mas repensá‑la de acordo com os princípios da sustentabilidade real.

Para dar um exemplo trazido pelos autores (Gar Alperovitz e Lew Daly, do
livro Apropriação indébita: como os ricos estão tomando a nossa herança
comum, Editora SENAC), quando a Monsanto adquire controle exclusivo sobre
determinada semente, como se a inovação tecnológica fosse um aporte apenas
dela, esquece o processo que sustentou estes avanços? “O que eles nunca levam
em consideração, é o imenso investimento coletivo que carregou a ciência
genética dos seus primeiros passos até o momento em que a empresa toma a
sua decisão. Todo o conhecimento biológico, estatístico e de outras áreas sem
o qual nenhuma das sementes altamente produtivas e resistentes a doenças
poderia ter sido desenvolvida – todas as publicações, pesquisas, educação,
treinamento e ferramentas técnicas relacionadas sem os quais a aprendizagem
e o conhecimento não poderiam ter sido comunicados e fomentados em
cada estágio particular de desenvolvimento, e então passados adiante e
incorporados, também, por uma força de trabalho de técnicos e cientistas – tudo
isto chega à empresa sem custo, um presente do passado. Ao apropriar‑se do
direito sobre o produto final, e ao travar desenvolvimentos paralelos, a empresa
canaliza para si gigantescos lucros da totalidade do esforço social, que ela não
teve de financiar. Trata‑se de um pedágio sobre o esforço dos outros”

Se não é legítimo, pelo menos funciona? A compreensão do caráter particular


do conhecimento como fator de produção já é antiga (DOWBOR, 2010a, p. 55).

Uma joia a respeito da propriedade, comenta Dowbor, é um texto de 1813, de Thomas Jefferson, cujo
mote está nesta citação:

Se há uma coisa que a natureza fez que é menos suscetível que todas as outras
de propriedade exclusiva, esta coisa é a ação do poder de pensamento que
chamamos de ideia. Que as ideias devam se expandir livremente de uma pessoa
para outra, por todo o globo, para a instrução moral e mútua do homem, e
o avanço de sua condição, parece ter sido particularmente e benevolente
desenhada pela natureza, quando ela as tornou, como o fogo, passíveis de
expansão por todo o espaço, sem reduzir a sua densidade em nenhum ponto, e
como o ar no qual respiramos, nos movemos e existimos fisicamente, incapazes
de confinamento, ou de apropriação exclusiva. Invenções não podem, por
natureza, ser objeto de propriedade (DOWBOR, 2010a, p. 55).

123
Unidade II

Saiba mais

Ladislau Dowbor é uma importante referência sobre o assunto da propriedade:

DOWBOR, L. Da propriedade intelectual à economia do conhecimento


(Primeira Parte). Economia global e gestão, Lisboa, v. 15, n. 1, 2010a.
Disponível em: https://bit.ly/3uXAkcz. Acesso em: 21 maio 2019.

DOWBOR, L. Da propriedade intelectual à economia do conhecimento


(Segunda parte). Economia global e gestão, Lisboa, v. 15, n. 2, set. 2010b.
Disponível em: https://bit.ly/3PCVg0o. Acesso em: 21 maio 2019.

A ocupação é ligada à topografia (relevo, solos) e à hidrografia (cursos d’água) e as paisagens são
basicamente caracterizadas pelo relevo, tanto original quanto aquele que já foi transformado. Se é alto
ou baixo; subida ou descida; se o rio é veloz ou lento: eis os altos e baixos do terreno que todo mundo,
se não vê, sente.

As sociedades estabelecem‑se nos lugares adaptando‑se, interferindo de muitas maneiras,


solucionando problemas e satisfazendo necessidades; a isso se dá o nome de territorialização dos
processos sociais. É gênese mais ou menos comum dos bairros e aldeamentos urbanos.

Tal reflexão torna‑se fundamental, dado que planejadores e projetistas, quase sempre tão afeitos
a critérios essencialmente econômicos, costumam modelar geometricamente essa estrutura original,
vendo linhas retas, quadrados e círculos (formas perfeitas) onde não existem, originalmente. É mais
difícil lidar (gerenciar) com a realidade diversa, do que inventar uma outra, iludindo‑se com a aparente
facilidade das matemáticas. O técnico, como o gestor, tem horror ao variado, nesse caso o não geométrico
é tido como irregular, acidentado, numa desvalorização da natureza, daí o urbanismo a serviço da
racionalização da natureza.

Nasce, assim, um mundo tecnicamente distanciado das tais formas originais – um meio técnico
científico informacional, segundo Milton Santos (1996) –, uma colina vira uma ladeira; um vale vira
uma avenida; um rio vira canal; o ar vira atmosfera; uma várzea vira área de risco quando alaga; uma
árvore em frente a uma loja vira estorvo. Ah, também, tem aquela de que folhas no chão são sujeira –
verdadeiro, no caso da cimentação generalizada dos pisos da cidade.

É importante que se diga que a consideração sistêmica da natureza leva ao tratamento das
coisas como unidades planetárias; assim é, resumidamente, com as estruturas geológicas (cadeias,
placas tectônicas), com o sistema atmosférico (circulação de ar, ventos e correntes continentais),
com as correntes marinhas, as quais, para serem compreendidas/entendidas, demandam o estudo
dos oceanos, com os ecossistemas, que, em sua biodiversidade, não são estritamente locais, posto
que todos esses sistemas são abertos.

124
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Temos, assim, o uso da ecologia subordinada aos interesses dos investidores, não do humano de
modo geral. É o negócio com o ambiente, sem preocupação ambiental, que anima os modelos trazidos
anteriormente, bem como as metodologias de diagnóstico ambiental e seus instrumentos, como
avaliações de impacto ambiental, a reciclagem como negócio, a ideia de pegadas ecológicas.
Os sistemas e as cadeias produtivas uniformizadoras e concentradoras, convencionais, com sua
economia e tecnologia duras derivam dessa concepção.

6.4 Cidades esfaceladas: bairros e distritos

Alguns meses atrás, enquanto vasculhava rapidamente meu clipping de


colunas em busca de um dado perdido, percebi alguns temas e imagens
recorrentes. O primeiro era a cerca. A imagem surgia repetidamente:
barreiras separando as pessoas de recursos que antes eram públicos,
excluindo‑as das tão necessárias terra e água, restringindo sua capacidade
de atravessar as fronteiras, expressar sua discordância política, fazer
manifestações nas ruas, até impedir que os políticos sancionem políticas
que beneficiem as pessoas que os elegem.

É difícil ver algumas dessas cercas, mas todas elas existem. Uma cerca
virtual é erguida em torno das escolas na Zâmbia quando uma “taxa
de usuário” de educação é introduzida por sugestão do Banco Mundial,
deixando as salas de aula fora do alcance de milhões de pessoas. Uma
cerca é erguida em torno da agricultura familiar no Canadá quando as
políticas do governo transformam a agricultura de pequena escala em
um artigo de luxo, impossível de custear em um cenário de preços de
mercadorias em baixa e fazendas industriais. É uma cerca real, embora
invisível, que é erguida em torno da água potável em Soweto quando
os preços chegam às alturas devido à privatização, e os moradores são
obrigados a se valer de fontes contaminadas. E há uma cerca erguida em
torno da própria ideia da democracia quando a Argentina ouve que não
pode contrair um empréstimo do FMI a menos que reduza ainda mais os
gastos sociais, privatize a maior parte dos recursos e elimine o apoio à
indústria local, tudo isso em meio a uma crise econômica aprofundada
por essas mesmas políticas. Essas cercas, é claro, são tão antigas quanto
o colonialismo. “Tais operações usurárias colocam barras em torno das
nações livres”, escreveu Eduardo Galeano em As veias abertas da América
Latina. Ele se referia aos termos de um empréstimo britânico à Argentina
em 1824.

As cercas sempre foram parte do capitalismo, a única forma de se


proteger adequadamente de eventuais bandidos, mas os duplos padrões
que as sustentam têm, ultimamente, se tornado cada vez mais ruidosos.
A desapropriação de bens corporativos pode ser o maior pecado que
qualquer governo socialista comete aos olhos dos mercados financeiros
125
Unidade II

internacionais (pergunte a Hugo Chávez da Venezuela, ou a Fidel Castro


de Cuba). Mas a proteção da vantagem garantida a empresas em acordos de
livre comércio não se estende aos cidadãos da Argentina que depositaram
as economias de toda uma vida em contas no Citibank, no Scotiabank e no
HSBC e agora descobrem que a maior parte de seu dinheiro simplesmente
desapareceu. Nem a veneração do mercado pela riqueza privada abrange
os funcionários americanos da Enron, que descobriram que tinham sido
“excluídos” de suas carteiras de aposentadoria privatizadas, incapazes
de vender mesmo quando os executivos da Enron estavam lucrando
freneticamente com suas próprias ações.

Enquanto isso, algumas cercas muito necessárias estão sob ataque: na


corrida pela privatização, as barreiras que antes existiam entre muitos
espaços públicos e privados mantendo a publicidade fora das escolas, por
exemplo, o interesse no lucro fora da assistência médica, ou evitando que
distribuidores servissem puramente de veículos promocionais para outras
empresas de seus proprietários – foram quase todas derrubadas. Cada
espaço público protegido veio abaixo, apenas para ser fechado novamente
pelo mercado.

Outra barreira de interesse público sob grave ameaça é a que separa as


safras geneticamente modificadas de safras que ainda não foram alteradas.
As gigantes das sementes foram tão inacreditavelmente incompetentes na
tarefa de evitar que suas sementes adulteradas fossem levadas a campos
vizinhos e criassem raízes, além de polinizarem por cruzamento, que em
muitas partes do mundo sequer há a opção de comer alimentos sem
componentes geneticamente modificados – todo o suprimento de alimentos
foi contaminado. As cercas que protegem o interesse público parecem
estar desaparecendo rapidamente, enquanto aquelas que restringem nossa
liberdade continuam se multiplicando (KLEIN, 2003, p. 5‑6).

[…]

As empresas de segurança fazem seus maiores negócios nas cidades


onde o abismo entre ricos e pobres é maior – Johannesburgo, São
Paulo, Nova Délhi –, vendendo portões de ferro, carros blindados e
elaborados sistemas de alarme, e alugando exércitos de seguranças
particulares. Os brasileiros, por exemplo, gastam 4,5 bilhões de dólares
por ano em segurança particular, e os quatrocentos mil seguranças
armados superam em número os policiais em uma proporção de quase
4 para 1 (KLEIN, 2003, p. 9).

É preciso refletir sobre a citação de Naomi Klein sobre as cercas modernas, expressas principalmente
nas cidades, no meio urbano.
126
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

A expressão da modernidade nas cidades, nos casos de sociedades desiguais, dá‑se por meio de
instalações sofisticadas de alto custo para os seus usuários tanto residentes quanto circunstanciais,
isto é, aqueles que nelas moram, trabalham ou simplesmente as visitam na condição de viajantes ou
turistas, todos convivendo com problemas que em maior ou menor escala subsistem e se expandem.
Modernidade que, via de regra, não traz os devidos compromissos com as soluções democráticas,
submetendo e criando formas para atender os interesses determinantes dos grupos que se associam
para governar. Decorre daí que os problemas são vivenciados de modo desigual e têm impactos distintos
nos diferentes grupos sociais e áreas do espaço urbano.

Não é possível caracterizar a vida urbana sem falar do que nela funciona mal, por isso segue uma
relação de alguns dos importantes problemas de moradia, preço da terra, segurança, trabalho e emprego,
transporte, educação, saneamento e fronteiras, que atormentam a vida dos governos e da sociedade:

6.5 Problemas urbanos: a vida na cidade

6.5.1 Habitação

A cidade é o hábitat, local de moradia. Com o rápido crescimento da população urbana e a


expansão da economia de mercado, as demandas por habitação são cada vez maiores. Milhões
de pessoas não conseguem se instalar adequadamente e acabam gerando ocupações precárias e
clandestinas, como favelas e loteamentos irregulares; ocupações e invasões de imóveis por sem‑teto,
cortiços e moradores de rua. A clandestinidade decorre da inexistência de documentos legais, como
contrato de compra e venda, locação ou cessão. A fragilidade dessas alternativas é identificada
pelo caráter provisório das instalações; pela ausência ou insuficiência de serviços básicos: água,
luz e esgoto, que demandam soluções improvisadas, muitas vezes perigosas. Há promiscuidade
entre público e privado nos vários níveis de relações sociais, refletida na distribuição e utilização de
equipamentos comuns.

A cidade industrial pujante convive com déficits habitacionais, desde suas origens. A consolidação e
o enfrentamento dos processos que levam à favelização das autoconstruções como moradia urbana
e ao aumento dos moradores de rua ou sem-teto são acontecimentos mundiais e que existem mesmo
em países com grande crescimento econômico (até mesmo considerados desenvolvidos), configurando
um dos sérios problemas decorrentes da globalização do capitalismo. A fragmentação do tecido social
é equiparada àquela do espaço:

O trabalho de especialização acabou por gerar uma fragmentação do


espaço: o habitar, a habitação e o habitat, da competência da arquitetura;
a cidade, o espaço urbano, da competência do urbanismo; o espaço
em sentido amplo (regional, nacional, mundial) para os planificadores
[geógrafos] e economistas. Ora, torna‑se, por isso, necessário ultrapassar
estas divisões e procurar, no pensamento reflexivo, uma unidade da prática
social (PROENÇA, 2011, p. 52‑53).

127
Unidade II

6.5.2 Especulação imobiliária

Observação

Especular, no presente caso, é apostar no jogo que passa a chamar


mercado imobiliário; cujos valores são artificiais, e não relativos ao trabalho
concreto envolvido na construção e na manutenção de casas.

Trata‑se de desdobramento da questão habitacional. Ocorre por meio da ação de investidores de


capital no mercado imobiliário que provocam a expulsão ou desapropriação de moradores e proprietários
de imóveis em favor de novos empreendimentos. Obras públicas, como a abertura de avenidas ou a
construção de metrôs e a implantação de instalações privadas, como shoppings e condomínios de luxo,
resultam muitas vezes em problemas sociais decorrentes da necessidade de reassentamento de famílias
e realocação de atividades econômicas. Além da famigerada “destruição criativa” do empreendedorismo
imobiliário há os impactos agudos das ações expropriativas nas escalas locais, removendo história com
as casas e prédios envelhecidos. Além das indicações de vídeos ao fim do texto, segue trecho de romance
de Ítalo Calvino sobre o assunto:

Toda vez que ele chegava a ***, a primeira coisa que sua mãe fazia era levá‑lo
ao terraço (ele, com uma saudade indolente, distraída e logo inapetente,
teria ido embora sem subir até lá): — Agora vou lhe mostrar as novidades — e
indicava as novas construções. — Ali os Sampieri estão levantando mais um
andar, aquele lá é o prédio novo de um pessoal de Novara, e as freiras, até as
freiras — lembra o jardim com bambus que a gente via lá embaixo? —, agora
veja o buraco que elas fizeram, quem sabe quantos andares vão querer
erguer com essas fundações! E a araucária da vila Van Moen, a mais linda da
Riviera: agora a empresa Baudino comprou toda a área, e uma árvore que
devia ter sido tombada pela prefeitura virou madeira de lenha; aliás, seria
impossível transplantá‑la, quem sabe até onde iam as raízes. Agora venha
ver desse lado: a gente já não tinha vista para o nascente, mas veja o novo
telhado que apareceu; pois bem, agora o sol da manhã chega meia hora
depois (CALVINO, 2002, p. 12).

Observação

Os asteriscos presentes na citação estão no texto original e sugerem


atribuição de anonimato à cidade em pauta; remetendo à ideia de cidade
fictícia, genérica ou ainda da cidade que o leitor queira, com características
semelhantes àquelas descritas por Ítalo Calvino.

128
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

6.5.3 Violência, insegurança e medo

Além dos problemas mais óbvios ligados a assaltos e crimes, temos também a insegurança e o risco
de desabamentos, enchentes, alagamentos, que apontam para condições degradantes da vida urbana
que fragilizam o ser humano, causando doenças, matando ou mutilando, e têm sido frequentes em
muitas cidades.

Cada sociedade deve refletir profundamente sobre a corresponsabilidade estatal (União, estados
e municípios) com a segurança, nas dimensões pública e privada, modalidades de defesa civil (contra
acidentes) e de polícias civil e militar (violência). Essa situação provoca insegurança social e psíquica,
destruição ou depredação física com profundos abalos morais, além dos custos elevados com serviços
policiais e equipamentos de segurança – violência que tende a se transmutar para ludibriar e, assim,
perdurar e se alastrar.

Olhar a cidade apenas pelas janelas (da casa ou do carro) implica não vê‑la. E ao não a apreender, tal
como é, restam as imagens do que é vivido exteriormente, como o “de fora”, que está, infelizmente, “lá
fora”. Este é o lugar do medo, da negação e do horror ao outro.

Considerados como os propagadores da violência, os meninos e meninas são


sempre vistos como suspeitos e temidos nas ruas, nos meios de transportes
e nos estabelecimentos comerciais. Entretanto, são constantemente vítimas
da violência, pois ainda hoje essa questão é tratada pela sociedade como um
‘caso de polícia’. Tal situação é evidenciada, até mesmo, pela denominação
que recebem (“pequenos bandidos”, “pivetes” e “trombadinha”); pela
afirmação de uma suposta “carreira criminosa” a que estariam destinados; e
pelos constantes pedidos de recolhimento dos grupos, feitos pela população
e autoridades públicas (CASTRO; SILVA; BOMFIM, 1991, 24‑25).

[…] meninos e meninas são presas fáceis da patologia social que rege o
imaginário popular e aponta‑os como “bandidos do futuro” (OLIVEIRA,
1991, p. 8).

6.5.4 Desemprego e precarização do trabalho

Desemprego e precarização do trabalho estão ligados a processos de contração do mercado de


empregos (trabalho formal) ou simples degradação das condições gerais de trabalho. Primeiramente,
é preciso distinguir trabalho e emprego, pois enquanto este é o trabalho empregado em atividade
juridicamente formal, aquele é qualquer atividade desempenhada socialmente que produza resultados,
com ou sem valor de mercado: a pessoa que cuida das tarefas de casa como limpeza, alimentação e
manutenção dos bens trabalha sem que tais funções tornem‑se, necessariamente, um emprego.

Desemprego e precarização geram quantidades significativas de famílias que têm dificuldades ou


não conseguem assegurar as condições elementares para manterem a qualidade de vida. O desemprego
é provocado por mudanças da estrutura produtiva (automação, cibernética) e por crises conjunturais
129
Unidade II

(baixo crescimento, recessão, inflação). Para alguns autores, como Paul Singer (1996), nossa realidade
é mais apropriadamente interpretada pelo conceito de precarização. De qualquer modo, são processos
que transformam trabalhadores em cidadãos de segunda categoria, integrantes dos circuitos inferiores
da economia, dependentes ou aptos à assistência do Estado ou propensos a atividades marginais
ou clandestinas, erroneamente denominadas informais (SANTOS, 1994, p. 95) e, até mesmo, aquelas
infratoras e criminosas. São processos de precarização, segundo Paul Singer:

O desemprego estrutural, causado pela globalização, é semelhante em seus


efeitos ao desemprego tecnológico: ele não aumenta necessariamente
o número total de pessoas sem trabalho, mas contribui para deteriorar o
mercado de trabalho para quem precisa vender sua capacidade de produzir.
Neste sentido, a Terceira Revolução Industrial e a globalização se somam.
[...]

Talvez melhor do que a palavra “desemprego”, seja precarização do trabalho


a descrição adequada do que está ocorrendo. Os novos postos de trabalho,
que estão surgindo em função das transformações das tecnologias e da
divisão internacional do trabalho, em sua maioria não oferecem ao seu
eventual ocupante as compensações usuais que as leis e contratos coletivos
vinham garantindo. Para começar, muitos destes postos são ocupações por
conta própria, reais ou apenas formais. Os primeiros resultam muitas vezes
do fato de que o possuidor de um microcomputador pode viver da prestação
de diversos serviços a empresas, sem qualquer contrato além da transação
pontual (SINGER, 1996, p. 8).

Observação

O termo precarização seria mais aplicável à nossa realidade, pois


desemprego supõe níveis de emprego anteriores, que nunca tivemos, em
nossa formação social em patamares como dos europeus (os franceses
utilizam desqualificação). Para Paul Singer, somente se pode falar de
desemprego a partir de expulsão do mercado de trabalho formal, condição
que o Brasil não conheceu.

6.5.5 Os circuitos da economia e a informalidade

A ideia de informalidade de atividades traria uma outra, a da formalidade ou normalidade de outras


funções, que levaria a uma outra, a de que teríamos atividades dentro e fora das normas e das formas,
assim como estariam dentro e fora da forma correta as pessoas que as exercem, os instrumentos e
circuitos espaciais que as comportam (CAMACHO, 1997). A lógica social constituinte do circuito superior
e inferior da economia (teoria desenvolvida por Milton Santos (1977, 1979, 1994)) proporciona local e
regionalmente volumes de pessoas e fluxos de mercadorias envolvidas.

130
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Os circuitos inferiores, além de representarem setores populacionais com atividades tradicionais,


absorvem imensos contingentes de desempregados ou trabalhadores transbordados para o mercado
subordinado e complementar ao circuito superior, cada vez mais visível e agregado às paisagens urbanas
– como nas Ramblas e no Mercat de Sant Josep de la Boqueria, em Barcelona, no Mercado de Queijos de
Alkmaar, na Holanda, em Khan el‑Kalili, no Cairo, Egito, Jaipur, na Índia, na 25 de março, em São Paulo,
entre muitas outras.

Há que se considerar que no sistema tributário atual essa estrutura produtiva não garante crescentes
(e justas) contribuições fiscais ao Estado (haveria que adequá‑lo) e não se obtém seguridade social para
os seus praticantes. São atividades que, embora escondam feixes de relações subterrâneas, permitem a
sobrevivência a milhões de habitantes das cidades e das áreas rurais conexas:

A existência de uma massa populacional com salários muito baixos,


dependendo de trabalho ocasional para viver, ao lado de uma minoria
com altos salários, cria na sociedade urbana uma distinção entre os que
têm permanente acesso aos bens e serviços oferecidos e os que, mesmo
apresentando necessidades similares, não podem satisfazê‑las. Isto cria
ao mesmo tempo diferenças qualitativas e quantitativas de consumo.
Estas diferenças são, ambas, causa e efeito da existência, isto é, da criação
ou manutenção, nestas cidades, de dois sistemas de fluxo que afetam a
fabricação, a distribuição e o consumo de bens e serviços.

Um destes dois sistemas de fluxo é o resultado direto da modernização


e diz respeito a atividades criadas para servir ao progresso tecnológico e
à população que dele se beneficia. O outro é também um resultado da
modernização, mas um resultado indireto, visto que concerne àqueles
indivíduos que só parcialmente se beneficiam, ou absolutamente não se
beneficiam, do recente progresso técnico e das vantagens a ele ligadas
(SANTOS, 1979, p. 37).

Observação

A ideia de informalidade funcionaria mais ou menos assim: a atividade


de camelô considerada informal (fora da norma ou da forma correta) tornaria
informal também as pessoas que nela trabalham, assim como os espaços
ocupados e os objetos utilizados; sendo uma espécie de transferência da
qualidade negativa de anormalidade ou informalidade.

6.5.6 Sistema viário

Produto de escolhas valorizadas historicamente e composto por ruas, avenidas, túneis e viadutos,
é palco de conflitos permanentes entre o aumento de veículos em circulação e o espaço cada vez mais
exíguo para o seu trânsito.
131
Unidade II

A história do sistema é a própria história das soluções territoriais da ocupação dos lugares:
loteamentos para assentamentos, parcelamento para habitações, arruamento para circulação; portanto,
a questão da mobilidade envolve diretamente a da habitação, do trabalho e do lazer (fruir e fluir).

Nas cidades, principalmente nas metrópoles, os congestionamentos constantes acarretam


prejuízos, devido à lentidão e atrasos, e provocam o aumento da poluição da atmosfera. A urbanização
foi viabilizada de maneira efetiva pela expansão do sistema baseado no transporte por veículos
pneumáticos, de implantação mais rápida para os resultados políticos. C. L. Wright fala da “cultura do
automóvel” com seu campo simbólico e comportamental (1988, p. 13), e fala da perda das ruas para
todos os veículos sobre pneus (1988, p. 26‑27).

Seguindo essa linha, o trecho de “Não verás país nenhum”, de Ignácio de Loyola Brandão, pode nos
ajudar a imaginar nosso futuro com os automóveis.

[…] — E agora? — eu disse, olhando para a frente.

A freeway estava coalhada de carros. De uma amurada a outra, nenhum


espaço. Ao luar, via os radiadores enegrecidos, capôs corroídos, vidros partidos
ou cobertos de pó, faróis vazados. Surgiram de repente, ao rastejarmos pela
lombada. Na sua imobilidade davam a sensação de velocidade

Fantasmagóricos, como esqueletos de dinossauros em museus. Bando de


monstros, mortos subitamente em pleno ataque. Uma vez, criança, fui ver
um velho desenho animado. Se chamava Fantasia. A cena que mais me
impressionava era a do desespero dos animais pré‑históricos em fuga.

Comida e água tinham‑se acabado em seus hábitats. Eles partiam em


manadas, estranhos e gigantescos animais, fustigados pela fome e pelo sol.
Iam caindo e o tempo se encarregava de sepultá‑los, torná‑los esqueletos
descarnados, espécie desaparecida, transformada agora em fóssil.

Isso me vem à cabeça ao ver esses velhos carros, talvez os últimos do


grande sonho brasileiro. Logo depois do Notável Congestionamento, as
fábricas foram fechadas e milhares de pessoas ficaram nas ruas. Os que
trabalhavam na fabricação e os que viviam das indústrias paralelas. Um
tempo de grande dor.

— Pois é, restos do Notável Congestionamento.

— Eu sei, só me espanta porque já retiraram os carros de quase todos os lugares.

— Aqui foi mais fácil fechar a estrada. Tem quinhentos quilômetros de carros.

132
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

— Foi uma semana tão louca. Pensei que o país ia explodir. Pela primeira
vez os brasileiros se revoltaram. Vi gente se armar e sair à rua tentando
formar grupos.

— E os Civiltares prestaram o primeiro grande serviço ao governo. Estavam


preparados. Eles tinham organização, e não nós. [...].

Ele rastejou à minha frente, mandando segui‑lo. No meio da pista havia


um buraco estreito debaixo dos carros. Passei por pneus estourados,
havia um forte cheiro de metal enferrujado. Cromados descascados, a lua
batia na lataria opaca, sem nenhum reflexo. Seguíamos, ofegantes, suados.

Entre um Passat e um Corcel, paramos. De que ano são estes carros? Nunca
fui bom para marcas. Nem sequer aprendi a dirigir. Me achava distraído
demais, comodista. Adelaide gostava, apanhava o carro do pai, saíamos aos
domingos para a praia ou um piquenique à beira da estrada […].

As migrações tinham começado, passou a despencar gente em São Paulo.


Multidões.

Primeiro os que tinham posses. Tiveram sorte, se instalaram. Suportaram o


Período Agudo da Especulação Imobiliária. As construtoras também estavam
no fim, não se autorizava mais projeto. Não havia terreno vago. As casas
estavam no chão, substituídas por edifícios.

— Quem ia pensar que um dia íamos nos sentar entre os carros nesta estrada?

— Estão aí, mortos. Lata velha.

— Os carros ficaram parados dois anos em frente à minha casa.

— Você morava quase no centro. O meu bairro foi pouco afetado.

— Quase fiquei louco, Souza, naquela noite. Queria matar, pegar alguém.
Buzinavam, aceleravam. Podia ver o ar preto de fumaça. A maioria esgotou
a gasolina e o álcool do tanque. Ninguém desligava o motor. Pela manhã,
as pessoas continuavam dentro dos carros. Como se pertencessem a ele.
Câmbio, volante, freio, condutor. Esperavam, não sei o quê.

— Na minha rua teve gente que não acreditou no noticiário, tirou o carro da
garagem, pela manhã, e foi embora. Voltou a pé.

— Teve motorista que ficou uma semana, duas, sem abandonar o carro.
De vez em quando batiam, pedindo para ir ao banheiro. Recusei, para
133
Unidade II

todos. O que estavam pensando? Que fossem para suas casas. As famílias
traziam mudas de roupas, café, comida. E o desespero quando souberam
que não circulariam mais? Choravam diante do automóvel, inconsoláveis,
lamentando como se fosse parente morto. Mulheres desmaiavam, histéricas.

— Tenho fotos dessas semanas. Rostos patéticos, expressões perplexas. Como


se tivessem sido postas ao mundo de repente. Não era ódio, raiva, irritação.
Era derrota, tristeza, interrogação. Tanto olhar apalermado! (BRANDÃO,
2012, p. 115‑119).

6.5.7 Transporte coletivo, individual e o trânsito

É um setor essencial para suprir as atividades produtivas da mão de obra e garantir a circulação
e o acesso de pessoas à escola, compras e lazer. Os transportes urbanos são intermodais, sobre pneus
(ônibus, táxis), sobre trilhos (trens e metrôs) e aéreos (helicópteros). Em muitas cidades, os serviços são
insuficientes, aumentando os tempos de espera e de viagem, além de oferecer situações de desconforto
e risco aos seus usuários. Mas, como diz Eduardo A. Vasconcellos,

é impossível, no trânsito atender a todos os interesses ao mesmo tempo, no


mesmo espaço, pois ao procurar melhorar a fluidez afeta‑se a segurança
e a acessibilidade; ao procurar aumentar a segurança afeta‑se a fluidez...
(1992, p. 22).

Há também o transporte de cargas, circulando e estacionando pela cidade, inclusive transporte de


cargas perigosas, tais como combustíveis, ácidos e gases. Muitas cidades, principalmente nos países
subdesenvolvidos ou emergentes, não dispõem de mecanismos de controle desses carregamentos.
Movimentos sociais, como o “Cidades para pessoas”, “Cidades sustentáveis”, “Recriar.com”, defendem
a qualificação das relações sociais nas cidades com controle democrático no uso do automóvel e estão
baseados no conceito de saúde, privilegiando pedestrianismo e ciclismo na locomoção.

Eduardo A. Vasconcellos (1999) afirma que na sociologia urbana não se pode mais tratar o transporte
como questão de engenharia de origens e destinos (p. 39‑40), tornando‑se mais abrangente como
questão comportamental e sociopolítica (p. 57), pois envolve cultura, política e economia na circulação
como consumo coletivo: da via, dos meios para dela se apropriar e dos lugares por onde ela passa e para
onde ela leva. Matta faz a seguinte observação:

Desligando o motor. Punição e obediência: A questão dos limites. Um dos dados


mais curiosos do trabalho é a constatação paradoxal de que todos concordam
que os motoristas irresponsáveis devem ser severamente punidos. O problema,
porém, é que tal opinião radical ocorre ao lado da visão (igualmente majoritária)
de acordo com a qual não há ninguém que obedeça às regras no Brasil – eis a
gravidade do achado (MATTA, 2012, p. 110).

134
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

6.5.8 Saneamento e saúde

Esses dois fatores andam juntos, pois muitas doenças são provocadas pela ausência ou pela
limitação de serviços de coleta, tratamento e destinação de esgotos, bem como dos serviços de
tratamento e distribuição de água. Há ainda inúmeros casos de cidades que despejam seus esgotos
in natura em rios e córregos que representam mananciais para abastecimento de outras cidades, situadas a
jusante ou mais abaixo do curso do rio. A água é na atualidade um bem escasso e a sua utilização
múltipla, para abastecimento, diluição de esgotos e geração de energia. Muitas cidades, como São
Paulo, por exemplo, têm mostrado resultados críticos em relação à saúde pública e à preservação do
meio ambiente. Além desse aspecto, outro de igual importância é o atendimento médico hospitalar
e o acompanhamento preventivo da saúde dos moradores, cuja qualidade e presteza variam de
cidade para cidade, de país para país, conforme a renda local e as políticas vigentes para o setor. É
interessante notar que a medicina teve sua história, desde a fundação com Hipócrates, associada aos
conhecimentos ambientais, posto que a topografia, os cursos d’água, o clima e a direção dos ventos,
além dos estilos de vida, dejetos e descartes humanos contribuíam para gerar padrões epidêmicos
(COSTA, 1997). A autora acrescenta que:

O discurso médico‑higienista é uma das formas como o discurso


ambientalista se manifestou no passado. O discurso médico do século
XIX tem uma forte conotação ambientalista. A natureza e o ambiente
construído são considerados os grandes responsáveis pelos problemas
de saúde que enfrentava a população no século XIX, principalmente nas
áreas urbanas.

O discurso higiênico do final do século XIX se transforma em discurso ecológico


no final do século XX Saúde pública, higienismo (COSTA, 1997, p. 158‑159).

6.5.9 Educação

A educação é condição básica para o exercício da cidadania, um serviço prestado pelo Estado e,
em muitos casos, também pela iniciativa privada. Além da disponibilidade de vagas e da qualidade dos
cursos ministrados, a localização das escolas e sua acessibilidade à população têm sido um problema
enfrentado principalmente nos centros urbanos dos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. A
escola constitui para a maioria dos jovens uma primeira experiência de uso coletivo de um benefício
público, de apreensão de conhecimentos e do convívio com um patrimônio da cultura urbana, referências
nem sempre apreciáveis, em virtude da precariedade existente.

A cidade é o lugar em que o mundo se move mais; e os homens também.


A copresença ensina aos homens a diferença. Por isso, a cidade é o lugar
da educação e da reeducação. Quanto maior a cidade, mais numeroso e
significativo o movimento, mais vasta e densa a copresença e também
maiores as lições e o aprendizado (SANTOS, 1994, p. 83).

135
Unidade II

6.5.10 Sistemas condutores de energia e alimentação das cidades

Geração, distribuição e planejamento de energia elétrica e de gás são fundamentais ao processo


de desenvolvimento de uma cidade e mesmo de uma região ou país, pois dela depende a maioria das
demandas atuais da economia e da vida social. As cidades modernas dispõem de redes de distribuição de
eletricidade e de gás encanado, além da iluminação pública de ruas, avenidas e praças. Esses benefícios do
progresso urbano nem sempre são extensivos às periferias e às ocupações irregulares ou clandestinas.
Para Mike Davis, ainda que Ernst Bloch “tivesse consciência aguda dos perigos iminentes do fascismo e de
uma nova guerra mundial”, afirma que ele “insistia em que a estrutura mais profunda do medo urbano
não é a guerra aérea de Wells, e sim o afastamento e a distância da paisagem natural” (DAVIS, 2007, p. 19).

Observação

Mike Davis faz menção ao famoso programa de rádio do filme “A


Guerra dos Mundos”, de Orson Welles, no qual anuncia uma invasão ao
nosso planeta, propondo uma experiência comportamental e estética com
a população que acredita que a Terra estava sendo invadida por alienígenas.

Alguns dos maiores problemas estão ligados ao gigantismo das estruturas urbanas e da complexidade
de seu funcionamento e alimentação desses sistemas técnicos, como apresenta Milton Santos (2004,
p. 72) e Mike Davis, no trecho a seguir:

A complexidade infraestrutural cada vez maior, como os americanos


tiveram consciência de modo sofrido depois do 11 de setembro, simplesmente
multiplica o número de nódulos críticos onde é possível a falha catastrófica
de sistemas.

No entanto, as cidades ricas têm maior capacidade de exportar suas


condições naturais para mais adiante. Los Angeles, por exemplo, captura
água e energia e exporta poluição, lixo sólido e recreação de fim de
semana num vasto âmbito de estados do oeste e na Baja Califórnia
(DAVIS, 2007, p. 412‑413).

Ainda segundo Mike Davis (2007, p. 413), sabemos mais sobre as florestas tropicais do que sobre
ecologia urbana.

6.5.11 Fronteiras urbanas

Limites, demarcações e fronteiras entre cidades apresentam casos em que os marcos geográficos foram
incorporados pela urbanização, com suas edificações, vias e outras intervenções que alteraram a paisagem
natural. É o processo de conurbação, em que as cidades coincidem no mesmo território, confundindo moradores
e usuários e, em geral, provocando problemas quanto à identidade do local (qual é a minha cidade?), acesso
aos serviços públicos (cidade atendendo demandas de outras cidades) e arrecadação fiscal (dupla cobrança).
136
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Observação

Conurbação é junção de cidades em metrópoles. Com o crescimento,


é comum que cidades separadas passem a se “encostar” ao se expandir,
conectando‑se ao menos fisicamente.

A cidade e o bairro, tanto paroquial de origem periurbana e rural (originados ao redor de uma igreja
matriz, no caso das cidades de colonização portuguesa) quanto de origem industrial ou migratória,
esvaziaram‑se dos vínculos próximos, do reconhecimento nos objetos e no entorno que tinha sentido
e era facilmente mapeável Gottdiener (1993, p. 264); Seabra (2001, p. 82). Seus limites e demarcações
vinham das vidas e das relações de parentesco, trabalho compartilhado e vizinhança.

De atributos vivenciais, cidades e bairros tornaram‑se nós de redes e distritos para o pensamento
planejador; aqui, os limites, diferentes das vilas, dos bairros e das cidades, são atribuídos exteriormente
num mapa por um burocrata. Contudo, todo evento e toda ação comum tomam lugar histórico, e
sempre convém indagar diante de um acontecimento: de onde vem e até onde vai o lugar (de sua
ocorrência)? (CAMACHO, 2008, p. 104).

Os lugares de convívio vão até onde conheço os moradores de meu cotidiano; simples. Hoje, vão
até onde as linhas do mapa me mostram, ou a voz gravada do aparelho de GPS.

Até ontem, os objetos nos podiam falar diretamente; hoje, nós os miramos
e eles nada nos dizem, se não houver a possibilidade de uma tradução”
(SANTOS, 1996, p. 180).

Se pude compreender como nasce em mim esta vaga (de uma relação do
visível consigo mesmo que me atravessa e me transforma em vidente…),
como o visível que está acolá é simultaneamente minha paisagem, com
mais razão posso compreender que alhures ele também se fecha sobre si
mesmo, e que haja outras paisagens além da minha (MERLEAU-PONTY,
2005, p. 137).

Seguindo a lista de problemas no plano da territorialização dos projetos sociais (conflitantes),


da política espacializada, é preciso frisar que as cidades, apesar de serem entidades públicas que
expressam de modo genérico as ações de coletividades e individualidades que nelas habitam e
trabalham, são construídas por investimentos de agentes públicos e privados cujas consonância
e dissonância oscilam conforme o mercado dos interesses dominantes coexistentes. Entender
a problemática urbana envolve a observação permanente dos seus espaços construídos, dos
movimentos cotidianos de sua população, da dinâmica de sua economia cujos conteúdos
estruturadores provêm de diversas escalas e, sobretudo, das ondas e dos ventos políticos que
viabilizam os demais valores, morais e econômicos.

137
Unidade II

Os vários momentos dessa relação de poder que opõem e alinham os agentes sociais é a própria
história dos usos dos recursos, das motivações aos impactos e, destas, às respostas públicas e privadas.
Usos, aqui, são ações que tomam recursos ambientais e transformam o espaço social; toda ação
territorializa‑se como condição essencial.

Assim como o processo de urbanização do qual falamos é responsável pela estruturação social
(ordenamento e organização das sociedades) em todas as suas dimensões, moldando países (e até
mesmo criando-as) como mercados solváveis, também é responsável pela produção das formas
(aparência, modo como as coisas nos chegam) e funções (atividades procedentes das formas) mais ou
menos urbanas, isto é, da imensa variedade que vai das cidades intensamente urbanizadas aos espaços
estritamente agrários. Complementando nossa abordagem dos processos de urbanização e globalização,
as formas e funções são nosso foco a seguir; isto é, as ações e atividades basicamente urbanas, e de suas
razões, do modo como aparecem. Estrutura, processo, função e forma são trabalhados detalhadamente
em Milton Santos (1985).

Observação

Solvável, solvível e solvente são sinônimos. Segundo o Grande


dicionário Houaiss da língua portuguesa (2012), os termos definem o que
pode pagar o que deve; solvável, solvente, que se pode solver; que se pode
pagar; solvente, devedor que paga ou pode pagar o que deve; devedor cujo
ativo é superior ao passivo. Seus sentidos estão na base da visão do sistema
bancário (e financeiro, em geral) que reduz seu interesse dentre todos
os agentes (tanto internacionais quanto nacionais, países e governos)
àqueles que, de fato, podem pagar pelo que tomarem de empréstimo:
enfim, os clientes pagadores.

6.6 A sociedade determinada: mensagem e vozes da normatização

“O bem‑estar da população e a qualidade de vida não estão sendo


cuidados em nenhum lugar do mundo pelos processos de urbanização em
massa que acontecem há 30 anos, sendo a desigualdade o maior motor da
segregação urbana”, ressaltou D. Harvey durante um seminário realizado
em São Paulo.

Está se destruindo o conceito cidade como espaço em que seus


habitantes convivem, devido ao desenvolvimento insustentável, efeitos do
neoliberalismo, urbanização militarizada, especulação imobiliária, falta de
mobilidade e de liberdade embalados como um mero conceito político.

[...] tudo é submetido a um cálculo monetário no qual nós não importamos,


mas o dinheiro sim, e isso é o centro de um processo de urbanização que
está sendo impulsionado pelo poder do valor monetário.
138
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Como serão nossas cidades daqui a 40 anos neste ritmo, alguém consegue
imaginar? (MORSOLIN, 2015).

A costas dobradas ligam‑se como prolongamentos e aplicações de toda a diretividade e adestramento


de comportamentos e movimentos descritos no passo anterior, como uma poderosa mensagem de
ordem “fordista‑taylorista”. Antes era o adestramento da ação; agora se trata da sujeição ou
envergamento das costas por uma mensagem repetitiva, tácita e continuamente difundida por meio
de axiologias flexíveis, mas próprias ao pensamento subordinado e cordato.

Sob o modo capitalista de produção, o modelo de acumulação gestado


durante a Segunda Revolução Industrial tornou‑se predominante até
meados da década de 1970, sendo considerado como uma forma de
extração de mais‑valia por meio da produção de bens industriais em larga
escala (fordista) e de controle científico e gerencial do trabalho inserido no
processo produtivo (taylorista).

Fordista porque é derivado da implantação de esteiras rolantes de montagem


para a fabricação do Modelo “T” na indústria automobilística de Henry Ford,
em 1914, com a proposição da jornada de oito horas e o pagamento de
cinco dólares por dia de trabalho como forma de incentivar a demanda
efetiva por produtos de consumo das indústrias da época.

O fordismo passou a ser considerado um modelo de acumulação


baseado na intrínseca articulação entre produção em massa, por meio
da estandardização e da padronização dos produtos e equipamentos de
produção, dos ganhos de economia de escala e da configuração de um
conjunto de medidas institucionais, econômicas e sociais que possibilitaram
a consolidação e ampliação desse modelo de acumulação no pós‑guerra,
intrinsecamente articulado às políticas keynesianas de incentivo à demanda
efetiva, no sentido de manutenção da acumulação de mais‑valia relativa
naquele período histórico do capitalismo.

Já o taylorismo deriva de seu inventor, o engenheiro Taylor (1865‑1915),


no decorrer do modo de produção capitalista em sua fase industrial e
baseia‑se no radical aumento da “produtividade do trabalho por meio da
decomposição de cada processo de trabalho em movimentos componentes
e da organização de tarefas de trabalho fragmentadas segundo padrões
rigorosos de tempo e estudo do movimento” (HARVEY, 1996, p. 121 apud
MELO, 2014, p. 62).

Colocado em outros termos, o taylorismo caracteriza‑se pelo rigoroso


controle social do trabalho no processo produtivo como forma de extrair
o máximo de mais‑valia e produtividade do trabalhador sob as condições
e relações capitalistas de produção e consumo, configurando‑se como “a
139
Unidade II

mais decisiva medida simples na divisão do trabalho tomada pelo modo


capitalista de produção. Inerente a esse modo de produção desde os inícios, e
se desenvolve, sob a gerência capitalista, por toda a história do capitalismo”
(BRAVERMAN, 1987, p. 112 apud MELO, 2014, p. 63).

Assim, o taylorismo é compreendido como um método de organização


do trabalho permeado pela estrita separação entre as atividades de
concepção e execução de tarefas, engendrando a parcelização do
trabalho. Cabe ao trabalhador realizar apenas alguns gestos simples e
rotineiros no processo produtivo, comandados pela gerência científica
do trabalho, isto é, todo o processo de trabalho passou a ser controlado
pela administração capitalista por meio da elaboração científica de um
conjunto de normas, regras e fórmulas a serem seguidas pelo trabalhador
no processo produtivo.

Contudo, como bem destacou Braverman (1987), o taylorismo representa


muito mais que o controle dos movimentos dos trabalhadores no processo
de extração de mais‑valia relativa, constituindo‑se em uma teoria
representativa da configuração e consubstanciação do próprio modo
capitalista de produção ou da natureza do processo de trabalho capitalista.
Da mesma forma, o taylorismo é a realização ampliada das características
descritas por Marx (1988) sobre a natureza do trabalho no capitalismo,
representadas pela parcelização de tarefas, especialização de funções,
incorporação do saber técnico no maquinismo, o homem tornado apêndice
da máquina, o caráter despótico da direção, entre outras formas de controle
do trabalho e de extração ampliada e permanente de mais‑valia relativa no
processo produtivo.

Ao contrário do postulado e tido como verdade absoluta, derivada da


interpretação equivocada da literatura sobre a produção industrial e a
incorporação da maquinaria na grande indústria, o taylorismo não pode ser
considerado estritamente como uma forma de organização e de gerência
do trabalho dentro das fábricas, em detrimento do fordismo que é associado
com a ideia da construção de uma nova sociedade, conformando‑se mesmo
como o modelo de acumulação hegemônico no pós‑guerra. Ambos são
complementares e funcionais ao processo de extração de mais‑relativa,
por meio da intensificação do trabalho no interior do processo produtivo.
Segundo Braverman (1987), o fordismo representa o aprofundamento
e a aplicação privilegiada dos princípios tayloristas, tratando‑se de um
desenvolvimento historicamente crucial dos métodos formulados por Taylor,
levados a cabo na produção em massa e na estandardização da produção
fordista para o consumo em massa.

140
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Assim sendo, os princípios complementares e articulados do taylorismo


e do fordismo (tido como modelo de acumulação do pós‑guerra)
representaram a intensificação do trabalho no interior do processo
produtivo por meio do emprego de inúmeros trabalhadores, possibilitando
a acumulação ampliada de capital, articulada a aplicação das políticas
keynesianas de regulação da demanda efetiva, sem a necessidade do
aprofundamento do desenvolvimento das forças produtivas, no período do
pós‑guerra com a “aliança” de classes que engendrou “os anos dourados
do capitalismo” (MELO, 2014, p. 62‑65).

O que se está afirmando é que há sempre vozes numa frequência laboriosamente investida de
eficácia na pretensão do alcance das cabeças, das mentes. A maneira tem a racionalidade toda própria
da mensagem eficaz, posto que seja redundante e repetitiva, como as rotinas que tenta inculcar, imputar,
no fim, às mãos produtoras, que operam máquinas e calculadoras.

As motivações promovidas pela mensagem única, unilateral são um comando para a ação dirigida
de produzir riqueza, detalhe fundamental para uma sociedade homogênea.

Crise do fordismo
taylorismo
(década de 1970)

Reetruturação
capitalista

Globalização Terceira resolução


mundialização do capital Políticas industrial e tecnológica
neoliberais

Redimensionamento
do processo produtivo
e reorganização do
trabalho na produção
Precarização das
Crise do mundo condições e
do trabalho Desemprego e relações de trabalho
informalidade

Desenvolvimento Geração de
econômico trabalho e renda
Economia solidária

Figura 5 – Estrutura da análise proposta

Fonte: Melo (2014, p. 62).

Práticas sociais são monitoradas com letreiros e justificativas de segurança pública (os números de
capital e de pessoas investidos nessa tarefa são exorbitantes), tudo visando às normatizações para o
“mundo determinado” de Maurice Merleau‑Ponty.
141
Unidade II

Desse modo, surge a questão das liberdades possíveis, tratadas no próximo passo.

A mensagem de que falamos apregoa reduções progressivas: redução de perspectivas de crianças


e jovens, redução dos já reduzidos direitos, redução das condições de trabalho, isto é, execução das
funções do capital; produtivismo instrumental.

Alusões às perdas, degradação de condições sociais consolidadas (econômicas, políticas e culturais)


sempre mobilizam fileiras de pessoas alinhadas às tais constatações e aquelas contrárias; ápice
contemporâneo das racionalidades instrumentais ou parciais. Ressurge uma questão recorrente: há
perdas ou simples transformações sociais?

Ao nos referirmos à cidadania seletiva, tocamos num ponto nodal da estrutura social brasileira, qual
seja, a intensa hierarquia de posições ou status quo: o que é trazido neste trabalho tanto pela sociologia
quanto pela economia rural‑urbana, com o humano aos pedaços (mãos, cabeças e mentes direcionadas
com propósitos), controlado por aparato técnico com vistas ao seu encaixamento na realização da
moderna economia internacional globalizada, nas múltiplas escalas.

Exemplo de aplicação

Recomendamos o tratamento didático dos temas da determinação (sociedade determinada:


mensagem e vozes da normatização), dos espaços sociais normatizados, com as abordagens sobre
taylorismo, fordismo e pós‑fordismo.

Há uma cidadania formal e real para os habitantes dos espaços rural e urbano. Há expectativa de
acesso ao consumo e uma idealização de cidadania na base da socialização e das demais relações
entre os agentes concretos; com o agravante do terrivelmente veloz envelhecimento direcionado,
seletivo dos objetos e das ideias.

O conceito de lugar presente no segundo tópico veio com a vivência, que é uma certa consciência
da existência, e com a pesquisa, transformando‑se, na passagem do mundo indeterminado para o
determinado, em objeto empobrecido da ciência; transição da totalidade de possíveis para a totalidade
ao modo do meio técnico‑científico informacional, de Milton Santos, totalidade considerada no seu
movimento estrutural e nas intencionalidades; também da vida cotidiana normatizada, estudada
por Henri Lefebvre (1981). Tal normatização é importante quando se tenta entender os labirintos de
verdadeiras experiências comportamentais a que somos lançados pela educação de modo geral, pelo
marketing, pelas campanhas publicitárias.

Claro que a vida cotidiana dá‑se em meio a atavismos, entretanto, é, também, lugar de evidências.
Para Lefebvre (1981), considerando toda a turbulência factual e cognitiva dos primeiros anos século XX,
e a despeito de todas as mudanças da modernidade, haveria continuidades, e o cotidiano é tido por ele
como lugar das permanências, que reforçariam nossa ênfase na atitude natural ou mundana da vida.

142
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Indo mais longe, pondo a utopia em perspectiva, poder‑se‑ia propor a


construção de uma cidade lúdica, uma cidade modelo, cujo centro, o
núcleo essencial, seria dedicada a jogos de todos os tipos, sendo também
a cultura visto como um grande jogo. No centro, tudo que é próprio ao
esporte, ao jogo, desde jogos de azar até jogos sérios, teatro dramático
naturalmente, realizando uma realidade que existia na cidade velha. Em
torno deste núcleo, poderia ter elementos residenciais divertimento,
trabalho, as, empresas. Uma cidade da ficção científica. Ainda se pode
ir mais longe. Tente imaginar uma cidade onde a vida diária seria
completamente transformada, onde os homens seriam donos da sua vida
quotidiana que transformariam à sua vontade, seriam livres no que diz
respeito à cotidianidade, dominando‑a completamente (LEFEBVRE, 1978,
p. 145, tradução nossa).

6.6.1 Cidadania seletiva para os habitantes dos espaços rural e urbano: o peso da
norma

As práticas socioespaciais e percepções dirigidas pelo cotidiano normalizado envolvem tensão e


posteriormente veremos as reações dos afetados, que ocorrem por meio de movimentos e organizações
sociais e manifestações políticas: multiplicidade de projetos; tanto no campo com a agricultura
familiar diante das novas ruralidades e a reconstrução dos espaços rurais planificados para a produção
extrovertida quanto na cidade com a industrialização e, depois, com a imensa complexidade da oferta
de serviços, como já foi apresentado com as referências ao trabalho de R. L. Corrêa.

Nesse cenário, Santos (1978b), em texto intitulado “A totalidade do diabo”, ajuda‑nos a entender
criticamente os núcleos difusores das transformações sociais ou modernizações, os motores
das inovações.

Temos que nos perguntar: o que aconteceu com os vínculos homem‑natureza? Vínculos e
geograficidades. No campo, tais vínculos sempre foram estereotipados e representados em tons de idílio
e de engessamento da dinâmica histórica das relações e dos papéis sociais dos agentes (arte e senso
comum).

É um percurso geográfico e sociológico que vai do mito, da labuta mítica ou labor contínuo, às
técnicas de distanciamento das coisas nas cidades, mais ou menos como vimos olhando para essa
relação com Raymond Williams (1989 apud Santos, 1978).

A questão posta logo na introdução do texto (SANTOS, 1978b, p. 53) é se “podem os objetos
geográficos desempenhar um papel instrumental, levando a efeito transformações na sociedade?”, ao
que o autor passa à argumentação de que as tais transformações são algo como inovações de estilo dos
processos capitalistas de dominação de territórios; uma espécie de metamorfose do planejamento da
década dos anos de 1950, subordinador das formações socioeconômicas.

143
Unidade II

Para tanto, Milton Santos (1978b), na mesma obra, recorre ao arcabouço teórico da geografia
nova que vinha formulando com os fatos vivenciados nos países em que estava trabalhando, mais
especificamente Venezuela e Tanzânia.

Aponta a reificação dos objetos como aquela realizada por Schumpeter (1943; 1970, p. 12 apud
Santos, 1978b), para quem estes mesmos seriam, eles próprios, os difusores de mudanças. Mostra o
equívoco da interpretação da realidade a partir da consideração das categorias de estrutura, processo,
função e forma, que permitiriam tratar dos tais objetos como portadores de seu contexto e conteúdo
social; estes, sim, difusores das inovações. Seu raciocínio, no artigo, é apresentado da seguinte maneira:
as formas como ferramenta do capital.

As classificações são elas mesmas instrumentos de dominação, demonstrações de poder, o que é


patente já nas denominações de subdesenvolvimento e atraso, maquiadas de atributos de cientificidade.

Fica claro de que planejamento se está tratando: aquele a serviço das forças dominantes/hegemônicas
do capitalismo. Daí que suas estratégias carreguem seus desígnios, através das formas espaciais, por
exemplo. Refere‑se às mesmas, em sua potencialidade, como “cavalos de Troia”. E, como tais é que
intentam mudar as estruturas das formações socioeconômicas em que são implantadas. É este o ardil
que suplanta a visibilidade explícita do planejamento que substitui.

Dois seriam os atributos principais dessas formas, vislumbradas no momento em que escreve o
trabalho (meados da década dos 1970): um valor agregado crescente, além de maior especialização.
O que resulta, parece, em certa fixidez no território, no caso do primeiro, dificultando sua apropriação
por outros sujeitos e ações, que não as projetadas, da parte do segundo. A instalação dos objetos se
daria de modo mais sutil com relação aos resultados, quando comparada ao planejamento antecedente
e, também não necessitaria tocar na estrutura socioespacial dos países. Tais processos podem ser
percebidos no filme Adeus, Lênin!, de 2003.

Trata de três mecanismos viabilizadores dessas mudanças:

• Novas formas, geradoras de novas funções.

• Substituição e alterações das formas para responderem mais velozmente aos processos necessários
à reprodução ampliada do capital.

• Projetos.

Descreve o processo que virá a denominar “verticalidades” (de uma temporalidade e totalidade
para outra).

Esse tema, o das formas espaciais instaladas no território, foi pormenorizado no último trabalho de
Milton Santos e María Laura Silveira, chamado de O Brasil: território e sociedade no início do século XXI,
de 2002.

144
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

6.6.2 Ações sobre o mundo rural

Há, como já vimos, uma linha majoritária em ciências sociais que toma como absolutas as tendências
de realização plena da urbanização. Dentre os representantes dessa perspectiva importante, estão
intelectuais como Milton Santos, que deixa clara sua posição sobre a Reforma Agrária, tantas vezes
reiterada, alertando para sua finalidade verdadeira. Ele lembra que a propriedade da terra é forma e
que agregar capital à agricultura é a verdadeira razão dos programas de ajuda. As duas estratégias de
planejamento envolvendo a tecnologia são:

• integração da produção agrária ao capitalismo global;

• da reprodução simples e ampliada do capital à intensificação da concentração de capital.

Mas outras determinantes estão em ação, além das externas. As forças endógenas devem ser
consideradas territorialmente, pois cada região é cobiçada pelos agentes econômicos diferencialmente,
dependendo do que tenha a oferecer ao mercado, querendo fazê‑lo ou não.

É nesse ínterim que é possível entender o eterno debate entre aqueles que não veem o camponês
(ou o veem como obsoleto), tendo sido incorporado ao movimento ampliado do capital, e os que
nele depositam a sobrevivência de formas tradicionais como continentes de valores importantes à
moralização do capitalismo.

Lembrete

Entre estes autores, estudiosos das formas camponesas, já foram citados


José de Souza Martins, Margarida Maria Moura, Ariovaldo Umbelino de
Oliveira, Bernardo Mançano Fernandes, entre outros.

6.6.3 Ações sobre o meio urbano

Ao tratar das ingerências do Banco Mundial na realidade desrespeitada dos povos, é interessante
considerar os comentários de H. M. Enzensberger em seu livro Mediocridade e loucura (1995), no
capítulo “Bilhões de todo mundo, uni‑vos”. Alguns elementos nesse processo de desorganização para
reorganização modernizante são, conforme o autor, projetos habitacionais, estruturas montadas para “extrair
sobrevalor gerado pelos pobres”.

Henri Lefebvre mostra as nuances dos processos de destruição da cidade tida por obra coletiva.

A grande crítica é dirigida ao uso das formas sociais como instrumentos dessa acumulação e dominação
(SANTOS, 2002); o que fica evidente também com a identificação do padrão corporativo de valorização e
divisão territorial do trabalho, que segrega espaços (SANTOS, 1994), ao produzir, destruir e reproduzir espaços
como negócios (CARLOS; VOLOCHKO; ALVAREZ, 2015; VALLEJO, 2015). O processo de destruição e valorização
capitalista da cidade é também trazido pelo interessante “especulação imobiliária”, de Ítalo Calvino (2002).
145
Unidade II

6.6.4 A fenomenologia do mercado

Aqui cabe a argumentação de Milton Santos (o espaço e a totalidade do diabo; e em natureza


do espaço) sobre o movimento espacial da história (e das categorias na história) para explicar as
formas‑conteúdo e, com essa noção, explicar o movimento aludido (SANTOS, 2002; 1996).

Mais especificamente, temos o caminho da fenomenologia que se põe para desvendar o lugar pela
experiência (HOLZER, 2012), além de nossa maior aliada na “desobstrução do real”, a antropologia
(etnografia); isto é, encarregando‑se do problema antigo das imagens infiéis da realidade.

Quanto à antropologia, interessam as reflexões alternativas sobre as relações sociais de troca.

Marcel Mauss, em “Ensaio sobre a dádiva” (1923‑1924), obra fundamental à teoria antropológica,
trata de pesquisas das formas arcaicas de vínculos e trocas de referência econômica. Estabelece
comparações entre sistemas de dons das sociedades da Polinésia, Melanésia e noroeste americano, e
apresenta as bases dessas trocas: a obrigação de dar, receber e retribuir. Mauss estuda formas arcaicas
da troca, contudo generaliza sua racionalidade (da dádiva) às sociedades modernas (ocidentais, em geral).

Nas então denominadas sociedades arcaicas, contratos são firmados


entre diferentes clãs e tribos por meio da troca coletiva de presentes,
configurando um sistema de dádivas estabelecido entre coletividades, e não
entre indivíduos. No lugar de reduzir essas transações a meros escambos,
Mauss mostra que tais relações de troca carregam consigo uma dimensão
moral que confere sentido às relações sociais. As trocas cerimoniais
que compõem os sistemas da dádiva não são meras trocas prosaicas de
presentes, mas prestações e contraprestações a serviço de novas alianças
e do fortalecimento das antigas. No interior desses sistemas de prestações,
que ele denomina “totais”, circulam “amabilidades, banquetes, ritos,
serviços, mulheres, crianças, festas, danças” etc. e não exclusivamente
objetos e bens valiosos. Sua finalidade última é a comunhão entre as
partes, sendo o mercado apenas um de seus momentos. Em função de
extrapolarem a esfera econômica, apresentando‑se como a materialização
da vida social em suas variadas dimensões, tais fenômenos permitem
a Mauss sugerir a noção de fato social total, um dos grandes achados
teóricos do Ensaio.

Propondo a superação de um ponto de vista economicista, Mauss observa


que os bens em circulação são inseparáveis de seus proprietários, não se
confundindo com objetos utilitários. Segundo o autor, as coisas possuem
uma substância moral própria, alma ligada à matéria espiritual do doador,
que tende a retornar ao seu antigo dono que, ao doá‑la, também se doa.
Há, portanto, uma virtude que compele as dádivas a circularem, sendo
a própria coisa dada uma garantia de sua retribuição. Longe de inertes,
os objetos das prestações são dotados de agência e intencionalidades, de
146
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

modo que a circulação das coisas, pessoas e serviços mobiliza também


uma troca constante de matéria espiritual ou hau. Nesse sistema, almas,
pessoas e coisas se misturam; tudo pode ser objeto de troca e nada pode
ser recusado.

As noções de honra e prestígio perpassam a economia da dádiva, sendo


essenciais para garantir a circularidade e reversibilidade das trocas. Ao realizar
uma prestação, o grupo doador ocupa momentaneamente uma posição
superior em relação ao donatário, cumprindo a primeira obrigação de dádiva e
estabelecendo uma dívida. Além do eventual rompimento de alianças, recusar o
bem ofertado significa reconhecer uma posição inferior em relação ao doador e
admitir a incapacidade de retribuir à altura o que lhe foi dado (noção de crédito
presente no sistema da dádiva). Visando inverter ou restabelecer hierarquias
entre os grupos, o donatário deve oferecer uma contraprestação superior ou
equivalente ao que foi recebido, cumprindo a obrigação de retribuir. É isso que
ocorre com os taonga na Polinésia, com os vaygu’a na Melanésia e com os cobres
brasonados no noroeste americano, para citar alguns dos muitos exemplos
abordados no Ensaio. Esses bens circulam entre clãs e tribos seguindo a regra
de que, quanto mais grandiosas as doações, maior prestígio concedido a seus
doadores. No entanto, prestações devem ser retribuídas, se não imediatamente,
em momento posterior, assumindo um caráter disfarçadamente desinteressado.
O caráter híbrido dessas prestações e contraprestações, segundo o qual elas são
simultaneamente livres e obrigatórias, desinteressadas e interessadas é outro
aspecto importante da análise de Mauss.

No jogo da dádiva, com suas prescrições e proibições, a não retribuição coloca


em risco a própria persona, fazendo da honra uma questão fundamental na
constituição tanto das relações como dos próprios papéis sociais. O prestígio
de um chefe ou clã está diretamente relacionado a sua generosidade e a sua
capacidade em retribuir as dádivas aceitas, sob pena de perder sua posição e
sofrer graves penalidades. Referindo‑se ao potlatch do noroeste americano,
Mauss indica uma forma extrema e agonística da troca, marcado pelo excesso e
pelo sacrifício, que será mais tarde retomada por Georges Bataille (1897‑1962).

O Ensaio sobre a dádiva inaugura uma profícua tradição de estudos sobre


a reciprocidade e a circulação das coisas, ampliando o tema da aliança,
central na Antropologia francesa a partir da obra de Claude Lévi‑Strauss, e
que conhece leituras específicas nos trabalhos de Maurice Godelier (1934)
e de Pierre Bourdieu (1930‑2002). O surgimento da revista M.A.U.S.S.
(Mouvement anti‑utilitariste dans les sciences sociales), criada no início da
década de 1980, e que aborda questões contemporâneas à luz do paradigma
da dádiva, é mais uma evidência da vitalidade do texto maussiano e de suas
repercussões contemporâneas (SERTÃ; ALMEIDA, 2016).

147
Unidade II

6.6.5 Sensação das perdas

• Movimentos culturais e ocupação de espaços por diferentes grupos (agregados por idades, renda,
representações, procura por lazeres, entre outros motivos).

• A expectativa de consumo e ideal de/sombra da cidadania na base das relações entre os agentes
concretos; o envelhecimento direcionado dos objetos e das ideias.

• Fragmentação do fazer, de sua inteligência e do conhecimento do corpo todo.

• Relações sociotécnicas e cultura: mudanças nas relações sociais globais/do conjunto social, na
relação com a terra, nos vínculos sociais a ela e ao produto do trabalho, transformam‑se os rituais.

Saiba mais

As imagens e o imaginário interferem na visão que se tem de si,


individualmente, em grupos, de modos diferentes, e de quem vê o lugar de
fora. É assim que o texto de Hobsbawm trabalha a ideia do tipo, do caubói
como personagem “americano” (estadunidense) em sua universalidade.

HOBSBAWM, E. O caubói americano: um mito internacional? In:


HOBSBAWM, E. Tempos fraturados: cultura e sociedade no século XX. São
Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Agora, vamos observar as imagens satíricas que brincam com nossas mazelas urbanas dos artistas
Isay Weinfeld e Marcio Kogan, elas são muito interessantes.

Assim anunciam seu trabalho:

As propostas arquitetônicas e urbanísticas apresentadas nesta exposição


procuram traduzir antigos anseios de nossa sociedade através de uma visão
crítica e realista.

Esta cidade é constantemente forçada a civilizar‑se, muitas vezes, chegando


aferir a própria natureza de seus habitantes.

Soluções importadas do Primeiro Mundo não encontram respaldo entre


a população.

A implantação das faixas de pedestres é um ato de pura provocação.

[…]

148
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Até quando durará o cinismo de nossos dirigentes que insistem na


despoluição do Rio Tietê? Daqui a alguns anos, com um pouco de sorte,
talvez possamos encontrar, dentro do novo rio, um robusto salmão
constrangido ao ver, através das águas cristalinas, as velhas favelas que
o rodeiam.

Qual é o sentido de tudo isso?

Estamos aqui para tentar colaborar, humildemente, com pequenas


sugestões que aperfeiçoarão a verdadeira vocação desta cidade: o caos
(LOBO, 2001, p. 21).

Nossa gana em andar de carro, sujando a cidade:

Figura 6

Fonte: Lobo (2001, p. 20).

A proposta do projeto de lixovia, feito para São Paulo, é a instalação de cestos de lixo contínuos
nas avenidas. Com eles, o ato, tão corriqueiro de jogar lixo pela janela do carro se tornaria um gesto
civilizado (LOBO, 2001, p. 20).

Nossos emaranhados anéis viários são representados na figura a seguir. Trata‑se de uma “solução
para facilitar o trânsito de veículos em Paris. Uma aplicação inconfundível do know‑how – e, no caso,
do savoir‑faire – paulistano” (LOBO, 2001, p. 21).

149
Unidade II

Figura 7 – “O Arco do Triunfo Viário”

Fonte: Lobo (2001, p. 21).


Nossos ex‑rios, sujos ou enterrados, na figura a seguir, “aproveitados”:

Figura 8 – Bateaux mouches blindados

Fonte: Lobo (2001, p. 22).

150
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

Mesmo que o Rio Tietê venha a ser despoluído, que paisagem as pessoas que navegarem nele vão
ver? Adotando barcos sem janelas, este projeto é econômico, pois dispensa a reurbanização das avenidas
marginais (LOBO, 2001).

Figura 9 – Casa de detenção, detenção em casa

Fonte: Lobo (2001, p. 23).


“Com seus enormes muros, pesadas grades, cercas eletrificadas e imponentes guaritas, a Casa
de Detenção de São Paulo influenciou toda uma geração de arquitetos, cujos projetos de mansões
estão espalhados pelos mais elegantes bairros da cidade. Uma foi concebida para não deixar sair; a
outra, para não deixar entrar” (LOBO, 2001, p. 23).

151
Unidade II

Resumo

Das colocações teóricas do primeiro tópico e das situações concretas


trabalhadas no segundo, nesta unidade passamos pelos usos ou atividades
(que reúnem o ser humano e o ambiente ainda num território colonial
português), delineando as formas dos agentes públicos e privados
(Estado, corporações e demais cidadãos, sejam eles investidores ou
não) já sob as normas de um Estado brasileiro, mais efetivo no controle
da ocupação e dos usos e costumes.

Exploramos a desigualdade social, os interesses e conflitos, a questão da


segurança e da violência real e percebida.

Vimos que as soluções privadas, em si mesmas, são normalmente parciais


e dualistas, enquanto as públicas são portadoras de legitimidade. Há muitas
crenças, idílios e distorções nas causas da segregação socioespacial. O foco
é político.

Em seguida, faz‑se um balanço entre o trabalho coletivo e o ser social


privado, corporativo; a configuração econômica do Estado‑territorial/nacional.
As estruturas sociais e fundiárias são trazidas numa perspectiva histórica e
regional da propriedade e mediação territorial. O foco é econômico.

O direito à terra, no campo e na cidade, é apresentado por meio de


costumes e leis, reformas e planos reguladores das relações sociais com
base nas noções de público (riqueza da vida social) e privado (relações
sociais degradadas), correlacionando (equiparando) as estruturas social
e fundiária. Destaque para os grupos políticos.

Apresenta‑se a produção agrária como modo de vida e como negócio:


campesinato histórico e trabalhador rural moderno; como porta para refletir
sobre os circuitos produtivos agrários e urbanos, suas interdependências:
funções (extrativas, agropecuárias, comerciais, industriais) e escalas
(local, regional e internacional) clássicas e modernas. A vida urbana como
dependente das áreas produtivas e as novas propostas de “produção agrária
nas cidades” (hortas urbanas, por exemplo), bem como as ocupações e
migrações, os movimentos populacionais constituem as tais estruturas.

Discutimos os aspectos simbólico‑normativos nas bases das motivações


populacionais nos lugares classificados como rurais e urbanos (viver e
trabalhar nos lugares), assim como as experiências daí advindas (percepção
e padrões culturais), além do plano normativo, da cidadania pelo trabalho

152
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

social (teórico). Há paradoxos desafiadores, como o trabalhador agregado


que tem maior margem de manobra do que o registrado como trabalhador
rural. Falamos do adestramento das mãos no trabalho; trabalho para os
outros, seja nos campos ou nas cidades.

Ao final, consideramos as determinações das ações e da consciência,


explicitando as imposições sobre a vontade na vida rural e urbana. Do
adestramento da ação, passamos à sujeição ou envergamento das costas
por uma mensagem repetitiva e tácita, continuamente difundida por meio
de axiologias flexíveis, mas próprias ao pensamento subordinado e cordato.

153
Unidade II

Exercícios

Questão 1. (UERJ 2010, adaptada)

Figura 10

A charge de Miguel Paiva, publicada no dia da promulgação da atual Constituição brasileira, aponta
para a contradição entre realidade social e garantias legais.

No Brasil, o acesso aos direitos de cidadania é limitado fundamentalmente pelo seguinte fator:

A) Formação profissional.
B) Demanda habitacional.
C) Distribuição da riqueza.
D) Crescimento da população.
E) Garantias constitucionais indevidas.

Resposta correta: alternativa C.

Análise das alternativas

A) Alternativa incorreta.
Justificativa: não é o profissionalismo que está na raiz do problema, ele próprio uma consequência.
B) Alternativa incorreta.
Justificativa: não se trata de tal assunto; também é consequência.
154
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA

C) Alternativa correta.

Justificativa: a distribuição da riqueza está nas bases da seletividade, desde aquela de cunho
educacional até a consciência e acesso aos serviços jurídicos. A charge de Miguel Paiva ironiza,
criticamente, essa contradição, a situação de péssima distribuição e, portanto, de acesso aos serviços e
condições garantidos pela constituição, mas não de fato. Cabe, também, uma discussão sobre o caráter
privado do Estado, cujos objetivos não são atender às necessidades referidas.

D) Alternativa incorreta.

Justificativa: o crescimento populacional não explica os problemas de exclusão.

E) Alternativa incorreta.

Justificativa: são garantias que emanam de direitos humanos, respaldados eticamente.

Questão 2. (UERJ 2014, adaptada)

Figura 11

EDRA. Especulação Imobiliária. Diário de Caratinga, cartunista EDRA. Sábado, 12 de fevereiro de 2011.
Disponível em: https://bit.ly/3PxBKT6. Acesso em: 30 jan. 2019.

A Zona Portuária do Rio de Janeiro vem recebendo muitos investimentos públicos e privados
com o objetivo de promover sua renovação física e funcional. Considerando a charge, a nova
dinâmica espacial pode ter a seguinte consequência sobre o processo de urbanização nessa região
da metrópole carioca:

A) Mudança do perfil social.

B) Degradação do setor comercial.

155
Unidade II

C) Aumento da atividade industrial.

D) Redução da acessibilidade viária.

E) A gentrificação é sempre um processo de melhoria social universal.

Resposta correta: alternativa A.

Análise das alternativas

A) Alternativa correta.

Justificativa: a ação de expulsão apresentada é uma das faces dos processos de gentrificação ou
“requalificação”, “reabilitação” de áreas “decadentes”. Tudo muito controverso. Os investimentos na zona
portuária do Rio de Janeiro tendem a valorizar a região. É mais uma área abandonada pelos governos
sem vocação de poderes públicos, passando a ser ocupada por pessoas de baixa renda que não tinham
condições financeiras de morarem em outras regiões. Na onda da gentrificação, os investimentos na zona
portuária torná‑la‑ão uma região com acesso a serviços públicos e revitalizada em termos estéticos, o
que atrai empresas e pessoas de nível social elevado. No entanto, infelizmente, tais operações urbanas
não beneficiam as pessoas que moram na região há décadas, uma vez que elas serão fatalmente expulsas
pela especulação imobiliária que já começou no local, como mostra a charge. Essa é uma face perversa
do desenvolvimento, que revitaliza espaços abandonados às custas da exclusão da população local.

B) Alternativa incorreta.

Justificativa: não há nada na charge que denote tal processo, pelo contrário, as ações de modernização
capitalistas operam no sentido de expandirem as atividades comerciais.

C) Alternativa incorreta.

Justificativa: não há nada na charge que denote tal processo; normalmente as atividades industriais,
estrito senso, são empurradas para as franjas das cidades.

D) Alternativa incorreta.

Justificativa: não há nada na charge que denote tal processo, ao contrário, as ações de modernização
capitalistas operam no sentido da expansão dos transportes.

E) Alternativa incorreta.

Justificativa: a gentrificação tem objetivado requalificar áreas nos parâmetros de agregação de valor
nos moldes capitalistas, tomando trechos dos espaços urbanos como mercadorias.

156

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