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Unidade II
5 ESTRUTURAS SOCIAIS E FUNDIÁRIAS: ONDE ESTÁ O RURAL?
[…]
Agora, estamos pensando principalmente com a cabeça. As soluções pelo labor que acabamos de ver
suscitam sua própria superação intelectual. E como disse Hannah Arendt, embora a superação tenha se
dado como disjunção do social completo em que o atendimento de nossa própria natureza devesse ser
mais do que suficiente, quisemos mais. Sempre flertamos com o ideal fáustico!
Situados, procuramos as pessoas e suas coisas no campo e na cidade, como organismos vivemos, e
daí passamos a elaborar e a estruturar tais experiências; diremos que com a cabeça; mesmo que o corpo
todo seja pensante, a cabeça é, no senso comum, articuladora dos estímulos, dados e informações; plano
da razão técnica, razão prática: construções comuns (utensílios, abrigos) e respostas míticas para a
existência. Estamos falando de soluções corporais, mesmo ao nos referirmos ao intelecto, no nível básico
da sobrevivência, espiritual e físico.
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Unidade II
Agir para resolver problemas no mundo da vida, bem abaixo do fluxo dos pensamentos; das
experiências da vida, avançamos um pouco para as experiências sobre a vida, sobre o modo de processar
os recursos necessários no curso do labor. Cabeça é a “parte” eleita do corpo‑sujeito percipiente das
respostas comportamentais no plano do irrefletido.
É assim que o exercício da razão (metaforicamente na cabeça) leva às realizações técnicas humanas,
em prolongamento das mais elementares já engendradas nos labores, nessa dimensão humana há a
articulação de capacidades, virtualidades e realizações da vida coletiva, pequenas em aglomerações ou
aldeias (MUMFORD, 1965, p. 13‑15).
A vida coletiva evoca evolução de meios, mas também alienação progressiva do habitante político da
pólis, dos vizinhos nos bairros das paróquias, à cidade de distritos vazios e exíguos de intersubjetividade
direta, nas bases de novas vivências empobrecidas de trocas mais imediatas.
As estruturas do título emergem como organização e disposição dos habitantes, seus endereços e
espaços que lhes permeiam. E delas, de suas configurações e conteúdos atuais, perguntamos ao longo
do texto como poderemos tecer novas estratégias para melhorar as coisas, com os olhares, as visões e
buscas necessárias, respostas econômicas e organizacionais, alternativas.
É assim que o ser humano, ao viver e fazer, estabelece relações ambientais e culturais valorizando
suas relações sociais; e organiza formas de trabalho como valor e relações que se territorializam na
variedade de hábitats como soluções socioespaciais: vida tradicionalmente nos meios rurais e nas
cidades, animadas pelo processo de urbanização.
Segundo Mazoyer (2010); Haviland (2011); Mumford (1965); e Pinsky (2011), a vida humana se
manifesta, desde sua aurora até os dias de hoje, como interações multidimensionais de cunho social
entre pessoas, de modo que as combinações das condições espaço‑temporais específicas explicariam a
diversidade de expressões sociais da existência. Nesse caso, todos os agrupamentos, sejam do neolítico
ou da contemporaneidade, apresentam‑se como elaborações e construções determinadas pelo trabalho
que realizam obrigatoriamente como cobrança da vida pela permanência.
O que parece evoluir na espécie homo é a busca do humano (uma existência distintiva entre os
demais seres), por uma busca dessa humanidade, que se expressa primeiro como intuição das diferenças
nas formas de sobrevivência, tanto como coletores, agricultores e domesticadores e transformadores,
até degenerar na cultura antropocêntrica hegemônica.
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SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Apoiamos nosso raciocínio de junção em Raymond Williams (1989), mais especificamente quando
o autor considera tanto sua experiência de habitante de área rural quanto das vidas de seu pai e de seu
avô. Tais experiências patrilineares, trazidas pelas recordações de Raymond Williams, são carregadas
de afetividade, evocativas de sua memória com forte acento geográfico, ao modo de uma cartografia
emocional bastante detalhada em decorrência de suas vivências atravessadas pela espacialidade das
localizações das atividades dos familiares que ele herda de suas raízes parentais.
A afetividade é enaltecida pela patrilinearidade, quando conta do avô, do pai, passando por ele
mesmo, cujas historicidade e territorialidade conhecidas lhes permitem atribuir valores sentimentais
aos lugares ocupados e desocupados por moradia e trabalho dos protagonistas de sua narrativa,
reconhecendo valores diversos, inclusive monetários. Aborda a transformação territorializada das redes
pessoais, institucionais e corporativas constituídas pelos sujeitos de sua história pessoal.
Tais alusões põem‑nos a pensar sobre o quanto até mesmo o trivial nos escapa: o que é o condomínio
ou a rua em que moramos? Muito menos conhecemos os ingredientes e a profusão de aditivos artificiais
do que compramos nos supermercados e o que comemos nas cadeias de fast‑food.
Vamos considerar algumas teorias sobre os espaços sociais rurais e urbanos: as ciências sociais
(sociologia e suas interfaces com a geografia, antropologia, demografia e com as ciências políticas) e
suas linhas de pesquisa das relações nas cidades, nos campos de moradia e cultivo e de seus vínculos.
Neste momento do texto, em que o rural distingue‑se do agrário, tomamos contato com perdas
de ritos e tradições, atropelados por processos políticos de aplanamento social travestidos, fantasiados de
modernização jurídica dos costumes. E fazemos, então, uma guinada em direção à dimensão econômica
da sociedade, falamos de atividades agrárias como setor produtivo, além de modo de vida, dos negócios
do campesinato histórico ao trabalhador rural moderno, há muitas mudanças, como as descritas nos
trabalhos de Margarida Maria Moura, como Os camponeses, Os deserdados da terra e Os herdeiros da
terra. Margarida Maria Moura busca práticas sociais e saberes produtivos próprios ao modo de vida
camponês – embora muitos acadêmicos neguem sua existência – e os apresenta. Ela os registra e
descreve sua dinâmica diante de relações capitalistas de produção, ávidas por assimilação, incorporação
ou subordinação de tudo que estiver no caminho da reprodução ampliada do capital.
Entram em cena também os circuitos produtivos agrários e urbanos, suas interdependências: funções
(extrativas, agropecuárias, comerciais, industriais) e escalas (local, regional e internacional) clássicas e
modernas. A vida urbana como dependente das áreas produtivas e as novas propostas de produção
agrária nas cidades (hortas urbanas, por exemplo).
Tais circuitos são viabilizadores da produção e implicam também uma discussão sobre as ocupações
e migrações, os movimentos populacionais que constituem as tais estruturas. Trata‑se de trabalhadores
do campo e da cidade: novas figuras trabalhistas e localizações de atividades que, como vimos em Maria
José Carneiro (2000), formam a miríade de agentes e grupos econômicos.
Alguns termos dos estudos sobre os espaços rurais são muito importantes, embora sejam também
obstáculos ao conhecimento; como é o caso de aldeamento, área rural, vila, cidade, metrópole, por exemplo.
O trabalho das pessoas dá‑se nos lugares, nos campos e nas cidades, representado ou regulado pelas
necessidades e pelas figuras jurídicas.
Para reforçar o raciocínio das estreitas relações entre as estruturas sociais e fundiárias, evocamos
mais uma vez Ratzel, que posiciona o Estado como sustentáculo da ligação orgânica dos homens com o
solo (isto é, a sociedade com seu ambiente, suas paisagens e até mesmo pátria) e, além disso.
pedaço de terra que pertence ou à sua pessoa ou ao grupo de que ele faz
parte. Quanto ao que diz respeito ao Estado, a geografia política, após longo
tempo, se habituou a fazer entrar em consideração a dimensão do território
ao lado da cifra da população”.
Mas, não só a sociedade e o Estado têm uma base territorial, mas com estas
se relacionam. Por isso, diz Ratzel, “a sociedade é o intermediário pelo qual
o Estado se une ao solo. Segue‑se que as relações da sociedade com o solo
afetam a natureza do Estado em qualquer fase do seu desenvolvimento que
se considere” (SILVA, 1984, p. 104).
Apesar de Henri Lefebvre defender uma visão de realização plena de urbanização das cidades
(desprestigiando o universo rural), serve‑nos sua perspectiva revolucionária, inconformista diante da
normatização da vida social.
Lefebvre auxilia‑nos com sua reflexão sobre o rural e o urbano como produtos de processos sociais
mais amplos (1978; 2001).
Do rural ao urbano
O estudo de uma aglomeração rural, em qualquer país, descobre equilíbrios dos mais sutis
do que em princípio se poderia esperar: são proporcionais às extensões das terras de trabalho,
florestas, pastagens e dos grupos de seres vivos que sobrevivem de seu pedaço da Terra. Este
estudo, quando passa dos simples fatos objetivos aos fatos humanos que lhes dizem respeito,
também descobre que as proporções materiais, sem serem explícita e racionalmente procuradas
pelos homens, não são obtidas cega e mecanicamente, demonstrando uma consciência difícil
de entender e ainda mais difícil de definir. Há aqui uma curiosa mistura de prudência, iniciativa,
desconfiança, credulidade, rotina: sabedoria camponesa.
Esta cidade, que há muito está mergulhada em uma paz cinzenta e reticente, sustentou
lutas ardentes contra senhores, príncipes ou reis. Pouco se manteve desse passado, nada
permanece. Nada e, no entanto, tudo: a forma mesma da cidade.
Lefebvre (2001) ajuda‑nos a trazer também a cidade, pois suas preocupações com a interpretação
das relações sociais punham‑no diante de suas expressões espaciais e, portanto, mais do que entender
a vida nos campos e nas cidades, queria era entender os processos socioespaciais que se moldavam com
os espaços que as atividades humanas ocupavam, aproximando criticamente sua sociologia da filosofia
e da geografia (LEFEBVRE, 1978).
Em O direito à cidade, de 2001, Lefebvre traz o mote das garantias que será retomado nos últimos
anos de maneira mais visível, com os movimentos Occupy de reivindicações alternativas e de mais
espaço político pelo mundo afora, além da maior evidência no centro nervoso das finanças mundiais,
em Wall Street, principalmente, por David Harvey, em seu Cidades rebeldes (2013), como explica:
Em seus trabalhos mais recentes, Harvey coloca o pensamento de Lefebvre como pedra fundamental
do seu próprio, acompanhando, assim, Lefebvre em suas advertências quanto à necessidade de alertar
o leitor quanto ao excesso de normatização da vida social. Em O direito à cidade, Lefebvre explica esse
ponto de vista:
Segundo Lefebvre (2001), para apresentar e expor a problemática urbana, impõe‑se como
ponto de partida incontestável o processo de industrialização que, há um século e meio, é o motor
caracteristicamente moderno das transformações na sociedade. O autor ainda afirma:
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Embora Lefebvre atribua papel central à industrialização moderna para explicar a urbanização,
afirma que ela “não tem por consequência, inevitavelmente, o termo ‘sociedade industrial’, se
quisermos defini‑la” (LEFEBVRE, 2001, p. 11). Acrescentamos que também não poderíamos rotular
a sociedade contemporânea de pós‑industrial, dada sua função fundamental tanto nas cadeias
produtivas, circuitos econômicos, quanto nos fundamentos da vida humana, que transforma
necessidades e matéria em energia e emoções. Vejamos um pouco mais da questão, nas palavras
de Lefebvre:
Dos 29,6% habitantes das zonas urbanas, a maior quantidade (17,7%) vivia em
cidades com menos de 300 mil habitantes. As cidades entre 300 mil e 500 mil habitantes
abarcavam apenas 2% da população mundial. As cidades entre 500 mil e um milhão de
habitantes abarcavam 2,6% da população mundial. Aquelas entre 1 milhão e 5 milhões
de habitantes abrigavam 5,1% da população mundial. As cidades entre 5 milhões e 10
milhões de habitantes absorviam 1,3% da população mundial.
No ano 2000, a percentagem da população rural caiu para 53,4%. Dos 46,6% habitantes
das zonas urbanas na virada do milênio, a maior quantidade (21,9%) ainda vivia em
cidades com menos de 300 mil habitantes. As cidades entre 300 mil e 500 mil habitantes
passaram a abarcar 3,1% da população mundial. As cidades entre 500 mil e 1 milhão de
habitantes abarcavam 4,3% da população mundial. Aquelas entre 1 milhão e 5 milhões
de habitantes abrigavam 9,8% da população mundial. As cidades entre 5 milhões e 10 milhões de
habitantes absorviam 3,4% da população mundial. As megacidades, aquelas com mais
de 10 milhões de habitantes, deram um grande salto para 4,2% da população mundial.
As projeções para o ano 2030 indicam uma maioria da população urbana (60%) sobre
a rural (40%), sendo que 23% deve estar nas cidades com menos de 300 mil habitantes.
As cidades entre 300 mil e 500 mil habitantes devem abarcar 3,8% da população mundial.
As cidades entre 500 mil e um milhão de habitantes devem absorver 6,1% da população
mundial. Aquelas entre 1 milhão e 5 milhões de habitantes devem abrigar 13,4% da
população mundial. As cidades entre 5 milhões e 10 milhões de habitantes devem ser
abrigo de 5,2% da população mundial. As megacidades com mais de 10 milhões de
habitantes devem chegar à casa de 8,6% da população mundial.
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Como mostraram outros autores, a transição urbana acontece de forma sincrônica com
a transição demográfica, sendo que ambas abrem uma grande janela de oportunidade para
a melhoria das condições de vida de todos os cidadãos do mundo. Por exemplo, a esperança
de vida ao nascer da população mundial passou de 47 anos no quinquênio 1950‑55 para
70 anos no quinquênio 2010‑15. A mortalidade infantil caiu de 135 por mil para 37 por
mil no mesmo período. Também houve aumento da renda e dos níveis educacionais dos
habitantes do globo neste período. Portanto, o processo de urbanização e de crescimento
das megacidades tem sido acompanhado por maiores direitos e avanços de cidadania em
relação àqueles das populações rurais.
Estruturas fundiária e social entrecruzam‑se nas paisagens (onde há trabalho, de que tipo, quanto
e como promove acesso ao seu produto), aí sendo lidas as intenções e os pactos sociais responsáveis
pelos resultados, que, no caso do Brasil, são profundamente desoladores, apesar das melhorias
(insustentáveis sem educação política básica).
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Unidade II
Saiba mais
É muito importante compreender de que forma o tema do acesso à terra é atual. A sociologia deve
procurar as associações ao redor da propriedade e do trabalho, bem como a gama de significados
ou nexos que emergem dessas relações; isto é, vínculos em vários níveis e com formas e motivações
diferentes, como processos mutuamente interferentes. É assim que o trabalho remete ao tempo livre, às
festas, às práticas religiosas, à vida em família, lazeres, convivência, além de demais padrões.
Veremos agora a agroindústria puxando a locomotiva da economia, com seus modelos característicos
de modo controvertido de produção e de trabalho.
É preciso que se diga: somente pensamos cidade e campo em termos regionais, pedindo assim
ajuda aos conhecimentos clássicos da geografia. Cidade e campo são, do ponto de vista territorial,
regiões de nossa estrutura municipal e federativa. Os termos da produção envolvem a lida com o espaço
geográfico quanto às transformações que vão da matéria na natureza à apropriação social dos recursos
no território.
O autor lança seu olhar arguto sobre nosso modelo de desenvolvimento, sublinhando que o forte
aumento na produção nos últimos anos é devido somente em parte a uma melhor recuperação
ambiental, com uso mais eficiente de energia e substituição das fontes escassas pelas abundantes.
Em essência, temos esgotado mais rapidamente os recursos acessíveis que conhecemos. Então, não
deveríamos admitir que muito do que chamamos de produção não é apenas extração?
Mesmo aqueles chamados de recursos renováveis não estão sendo renovados. Apesar de uma
melhor utilização e substituição, o cultivo de madeira, por exemplo, segue ainda atrasado em relação à
exploração e às perdas; as florestas e os extratos mais baixos estão sendo explorados, e a deterioração de
áreas florestais é difundida. Grande parte do mundo está em um período de demanda de madeira, sem
meios conhecidos de substituição (SAUER, 1992). Há alternativas sustentáveis de materiais desenvolvidos
nas últimas décadas, mas sem efetivamente entrar no mercado por outra razão que não a lucratividade,
como é o caso emblemático de nossas embalagens de tetra pak, PET e plásticos em geral.
A agricultura comercial requer um grande capital de giro e depende de um alto grau de mecanização
e adubação. Estimativas apontam que grandes parcelas do lucro líquido das fazendas vão para a compra
de equipamentos duráveis, necessários ou não. Quanto mais se converte a produção agropecuária
tradicional em indústria e negócio, menos resta da antiga atividade com a qual o homem vivia em
harmonia com a sua terra. Falamos com satisfação de liberar a população rural da fazenda para a “vida
livre” nas cidades (esse é o imaginário e a voz generalizada dos cientistas do fenômeno urbano, nem
sempre confirmados na vida efetiva do migrante), e contabilizamos uma economia de horas em pessoas
ocupadas em unidades de produção nas fazendas e em áreas plantadas; resultantes da tecnificação das
atividades agrárias associada aos modelos de titulação e propriedade da terra (dependência financeira
dos canais de crédito e subsídios governamentais). Em algumas áreas, o agricultor fazendeiro está se
tornando um morador da cidade, que contrata uma equipe por curtos períodos para plantio, cultivo
e colheita. O aparato produtivo, tudo aquilo que caracteriza historicamente uma fazenda como
unidade produtiva, do jardim ao estábulo, celeiro, currais e muitos lotes de cultivo da fazenda estão
desaparecendo em muitas regiões, junto com um modo de vida, enquanto as famílias de agricultores
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Os atuais excedentes agrícolas não são prova de que a produção de alimentos não é mais um
problema ou que deixará de ser o maior problema no mundo. Nossa produção tem sido assegurada
aos custos e riscos imprudentes com finalidade de ganho imediato, que substituiu as velhas atitudes
de viver com a terra. A mudança ganhou força especialmente quando motores substituíram animais de
tração. A terra, antes usada para produzir aveia e outros alimentos para animais, estava disponível para
cultivar mais milho, soja, algodão e outras culturas em grande parte para a venda e remessa.
A rotação tradicional de cereais – aveia – trevo, que protege a cobertura do solo e mantém o balanço
de nitrogênio, começou a se desintegrar. A soja plantada moderadamente em 1920, principalmente como
alimento, se tornou uma importante cultura de rendimento. O esgotamento de culturas e exposição do
solo teve impulso na mudança para a agricultura mecanizada; uma pequena parte das melhores terras
é utilizada para pastagem e feno; menos estrume animal e resíduos vegetais que são retornados aos
campos. Sauer (1992) segue expondo razões, não contra a mecanização, mas contra a mudança de
filosofia da produção, esta que atrela modelos de produção, gestão e instrumentos, como fertilizantes
industriais, muitas vezes proibidos em outros países.
Os chamados cultivos em fileiras são os de maior expressão comercial, demandando cuidados durante
a maior parte de seu período de crescimento. Portanto, oferecem pouca proteção à superfície à medida
que crescem, e praticamente nenhuma depois de serem colhidos. Situação ideal seria aquela alcançada
com os estratos, protegendo‑se mutuamente. “Nossa agricultura comercial (ou convencional) em geral é
mantida em expansão através do aumento da exploração da fertilidade dos solos” (SAUER, 1992, p. 22).
O modelo agrário que temos expande suas fronteiras graças às possibilidades de compra de fontes
de nitrogênio, fósforo, potássio e enxofre, reiterando os padrões agroquímicos; esse modo de viver e
produzir não aprende com o ambiente, mas sobre ele, externamente.
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Os modelos agrários de produção funcionam como sistemas agrícolas e pecuários que combinam
técnicas e tradições locais como expressão das relações entre ser humano e meio rural (agropecuária)
e urbano (hortas urbanas e experiências de cultivos residenciais). Aos modelos estão associados perfis
característicos de habitante e trabalhador.
Há o sistema extensivo, método mais utilizado e ainda empregado, antigo como os roçados e as
plantations. Há também o intensivo, presente em algumas áreas do Sul e do Sudeste do País. A tais modelos
correspondem estruturas fundiárias (organização e porte do terreno) e sociais (modo de vida, o habitar e
as relações sociais).
A seguir, vê‑se uma lista dos métodos mais comuns empregados nas atividades agrícolas, com suas
respectivas organizações fundiárias.
• Intensivo: agricultura voltada para o comércio, com uso permanente do solo, rotação de culturas
(por exemplo: soja, milho, trigo e pasto), uso de tecnologia, fertilizantes e defensivos agrícolas, seleção
de espécies e sementes, mecanização, mão de obra pouco numerosa, mas abundante (mais do que o
necessário para um sistema mecanizado), além do predomínio de pequenas e médias propriedades.
• Extensivo: agricultura voltada para subsistência (alimentação básica voltada para o mercado
interno – milho, feijão, arroz, mandioca, pequenas criações, horticultura etc.). Predomínio das
grandes propriedades com pequenos espaços cedidos a terceiros mediante o uso da meiação
(também meação); arrendamento ou posse; uso de técnicas arcaicas de plantio; coivara (queimada);
rotação de solos (roças itinerantes); equipamentos rústicos (enxada, foice, arado); carência de
insumos (falta de adubo, fertilizante e sementes selecionadas) e mão de obra escassa, insuficiente
(mesmo sendo mais numerosa do que no sistema intensivo).
• Plantations: monocultura tropical (cana, café, algodão, cacau, laranja, seringueira) com produção
voltada para a agroindústria e/ou exportação; grandes propriedades; mão de obra assalariada,
numerosa e barata; uso de tecnologia, insumos e rendimento elevado. Recentemente, se expande
no Brasil a silvicultura, que consiste no plantio de árvores com produção voltada para indústria de
papel, celulose, móveis, lenha e madeira de construção.
Saiba mais
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SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Há anos de debates e inúmeros estudos sobre o significado normativo do Estatuto da Terra, tomado
como instrumento modernizador (precarizador) das relações originais de trabalho, com a finalidade de
incorporá‑las ao mercado capitalista de trabalho assalariado, bem como expulsar esses trabalhadores
de suas condições de moradia por herança, agregação, entre inúmeras formas arcaicas (no sentido
literal, não pejorativo), com figuras jurídicas de violência. Pensamento exposto com maestria por
Margarida Maria Moura, nos livros, palestras e aulas citados neste livro‑texto.
• Permanente: cultivo geralmente arbóreo do qual se obtém muitas safras ao longo de muitos
anos. Por exemplo: café, laranja, cacau, manga, uva, algodão arbóreo etc.
• Temporária: cultivo geralmente herbáceo do qual se obtém uma única safra por plantio. Por
exemplo: trigo, soja, milho, sorgo, feijão, arroz, cana, algodão herbáceo etc.
A maior quantidade de terras ocupadas destina‑se às pastagens, seguida pelas matas e florestas e,
em menor proporção, às lavouras. Tais indicadores permitem falar em subaproveitamento do espaço
agrário, embora tenha sido observado no período de aferição do censo um aumento nas áreas dedicadas
às lavouras (IBGE, 2009).
Em 2007, o produto de maior destaque na produção brasileira foi a cana‑de‑açúcar, com mais de
470 milhões de toneladas; enquanto o 2º lugar foi da soja, com mais de 50 milhões de toneladas; e o
3º lugar, o milho, com 40 milhões de toneladas. Na safra de 2007/2008, a produção da cana‑de‑açúcar
atingiu o recorde de 550 milhões de toneladas, com um crescimento aproximado de 15%.
A área aproveitável total do Brasil seria de 269 milhões de hectares, dos quais 68,7 milhões em
estabelecimentos familiares (25,5%) e 200,3 milhões não familiares (74,5%) (IBGE, 2009).
Nas últimas décadas, destaca‑se uma melhoria na utilização do espaço agrário brasileiro a partir do
avanço de cultivos de pastagens, grãos e outros produtos da lavoura temporária e do reflorestamento
associado à silvicultura.
O estudo que nos parece mais interessante acerca dessa composição produtiva é a sua correlação
com as diferentes relações sociais efetivas e possíveis.
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Entretanto, como no meio rural brasileiro, poucos são os proprietários das terras nas quais
trabalham, essa situação acaba gerando os conflitos pela posse da terra envolvendo posseiros, indígenas,
proprietários e, no caso da Amazônia, os seringueiros.
A falta de solução para o problema da terra tem contribuído para multiplicar os conflitos. Os camponeses,
sem terra para cultivar, migram em busca de novas áreas ou constituem grupos invasores que são objeto
de violência e repressão policial, o que agrava a situação no meio rural.
As mais tradicionais são as de produtos de subsistência: mandioca, milho, feijão e arroz, que são hoje
disseminados em todo o País. No entanto, os cinco produtos tradicionais voltados para a exportação e
para a agroindústria são a cana, o tabaco, o café, o cacau e o algodão.
Observação
Um produto ingressado no País apenas no século XX foi a soja, que, em conjunto com a cana,
é o que mais se expande no território. Há inúmeras implicações sociológicas dessas determinações
mercantis de abertura de áreas de cultivo com produtos de apelo econômico; principalmente no que
tange ao valor das vocações produtivas regionais, determinações que não afetam apenas relações
produtivas, mas o universo psicossocial por inteiro. O que é o lugar cujas produções são exóticas,
cultural e ambientalmente?
Muitos dos cultivares cuja demanda é externa nem fazem parte de dietas locais. Qual é a extensão
das consequências dessas “escolhas” de plantio e criação?
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SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Tabela 1
Maiores produtores
Produto Produção Área colhida safra 2004/2005
2004/05 Milhão (t) Milhão (ha) IBGE 2006
Cana 422,9 5,80 SP (60%), PR, MG, AL
Soja 51,18 22,94 MT (35%), PR, GO, MS
Milho 35,11 11,5 PR (24%), MG, MT, SP
Mandioca 25,87 1,90 PA (18%), BA, PR, MA
Laranja 17,85 0,80 SP (81%), BA, SE, MG
Arroz 13,2 3,91 RS (46%), MT, SC, MA
Banana 6,70 0,49 PR (18%), BA, RS, PA
Trigo 4,65 2,36 PR (59%), RS, MS, SP
Algodão 3,66 1,25 MT (46%), BA, GO, SP
Tomate 3,43 0,62 GO (23%), SP, MG, RJ
Feijão 3,02 3,75 PR (19%), MG, BA, SP
Café 2,74 2,32 MG (47%), ES, SP, BA
Coco 2,07 0,29 BA (36%), PA, CE, PE
Sorgo 1,5 0,79 GO (33%), MG, SP, MT
Abacaxi 1,52 0,61 PB (22%), PA, MG, SP
Uva 1,23 0,73 RS (40%), SP, PE, PR
Maçã 0,85 0,35 SC (60%), RS, PR, SP
Cacau 0,21 0,66 BA (66%), PA, RO, ES
Saiba mais
São aquelas de longa duração, que podem proporcionar colheitas por vários anos sucessivos, sem
necessidade de novos plantios. Exemplo: café, cacau, laranja, uva, algodão arbóreo, maçã. Mato Grosso
(Sinop, Sorriso) e Goiás (Rio Verde) destacam‑se pela produção de soja e milho, com uso de tecnologia
de ponta e rotação de culturas, o que permite que se utilize a terra o ano inteiro. Há alternância entre
os cultivos de soja, milho, capim e a pecuária e, de novo, a soja retorna.
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Os seguintes cultivares são testemunhos biológicos da história da ocupação e das variadas formas e
relações de trabalho realizado. São histórias de sobrevivência, de poder, de cativeiro e de liberdade; e no
caso brasileiro, mais que tudo, de concentração.
Lembrete
5.10.3 Cana‑de‑açúcar
Cultivada inicialmente a partir do século XVI no litoral paulista, sem obter sucesso, foi implantada
na Zona da Mata do Nordeste.
A zona canavieira nordestina se estende do Rio Grande do Norte ao Recôncavo Baiano, onde o clima
tropical úmido, o fértil solo de massapé, a maior proximidade do mercado europeu e o uso da mão de
obra escrava formada por africanos foram fatores que favoreceram a cultura canavieira, principalmente
em Pernambuco, Alagoas e Bahia.
Com a expulsão dos holandeses nos meados do século XVII, a produção da cana entrou em decadência. Após
1930, cresce a produção da cana na Depressão Periférica Paulista e na região de Campos – RJ, onde grande parte
da produção destinava‑se ao consumo interno, enquanto o açúcar da Zona da Mata voltava‑se para a exportação.
No Brasil, são áreas de maior produção: São Paulo, na Depressão Periférica; Norte do Paraná; Zona da
Mata nordestina (PE e AL), além do Triângulo Mineiro e Zona da Mata Mineira (MG) e região de Campos
no norte do estado do Rio de Janeiro.
A cana está presente em todas as regiões, mas São Paulo lidera a produção, com cerca de 60% do
total, seguido por Paraná, Minas Gerais e Alagoas. A cultura teve sua extensão atrelada ao aumento da
demanda do açúcar e álcool. O Brasil se destaca como maior produtor mundial de açúcar (19%) e o
segundo em etanol, após os EUA, com 36%.
Em 1975 foi criado o Proálcool (Programa Nacional do Álcool), visando à expansão do cultivo da
cana para a produção do álcool‑combustível, a fim de reduzir a importação do petróleo, que sofria a sua
primeira grande crise em 1974.
A safra de 2007/2008 alcançou novo recorde na produção da cana, com cerca de 550 milhões de
toneladas/anuais, mantendo o Brasil como o maior produtor mundial e exporta, sobretudo, para os
Estados Unidos, Confederação dos Estados Independentes (CEI) e restante da Europa. As principais áreas
produtoras no estado de São Paulo são apresentadas no Censo agropecuário do IBGE (2009), nas versões
consolidadas, de 2006 (publicada em 2009) e nas preliminares de 2017.
5.10.4 Café
Foi introduzido no País já no século XVIII, da Guiana Francesa para o Pará. Porém só começou a ter
importância comercial a partir do cultivo ao longo do Vale do Paraíba do Sul entre RJ e SP, ainda na
primeira metade do século XIX. Após 1850, alcança a região de Campinas – SP e se expande em direção
às manchas de terra roxa ao longo das Ferrovias Mogiana, Paulista e Sorocabana, até chegar ao norte
do Paraná.
A cafeicultura do século XIX ao XX segue uma rota pelo Vale do Paraíba, norte, noroeste e oeste
paulista, e a fase mais recente em direção ao sul de Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro.
Já no início do século XX, o Brasil sofre as primeiras crises de superprodução, os problemas da retração
do mercado durante a Primeira Guerra Mundial e o crash na Bolsa de Valores de Nova York, em 1929
(IBGE, 2009).
• 2ª crise: 1917 – causada por perturbações trazidas pela Primeira Guerra Mundial;
• 4ª crise: 1930 – a mais séria, decorrente da queda da Bolsa de Valores de Nova York. A consequência
foi a queima de todo o café estocado.
Em 1937, foi criado, durante o governo de Getúlio Vargas, o IBC (Instituto Brasileiro do Café), para
controlar a produção e promover o bom desempenho do produto dentro da economia.
O Brasil é o maior produtor mundial de café, importante gerador de riquezas desde o início da
sua produção. Podemos classificá‑lo em termos de espécies cultivadas. O café arábica apresenta bom
desenvolvimento em terrenos acima de 900 metros de altitude e produz uma bebida de melhor qualidade.
O estado de Minas Gerais é o maior produtor de café arábica.
O café canephora (robusta ou conilon), mais precoce, resistente e produtivo, é cultivado em terrenos
baixos, principalmente na região de São Gabriel da Palha – ES, com plantas de maior envergadura.
Segundo dados do Censo Agropecuário 2006, a produção de café em grão teve um crescimento de
26%, com redução na área, o que foi compensado pelo maior rendimento médio (IBGE, 2009).
93
Unidade II
Após 1970, com o aumento das taxas de juros e as constantes quebras de safra decorrentes das geadas
em períodos de floração em áreas do sul de São Paulo e norte do Paraná, o café migra para outras terras.
As terras altas do sul de Minas Gerais, Triângulo Mineiro e Zona da Mata Mineira se especializaram na
produção do café arábica e outros cafés finos (gourmet), mais aceitos no mercado mundial.
Por isso, Minas Gerais alcançou o 1º lugar na produção, seguido do Espírito Santo, cujas terras baixas
e de clima mais quente favorecem o cultivo do café conilon, ou robusta, assim chamado devido ao forte
aroma e à sua tintura. As principais áreas produtoras no estado de São Paulo estão representadas no
mapa da Produção Agrícola Brasileira.
Atualmente, a tendência de expansão se faz para fora da área de ação de geada, ou seja, para Minas
Gerais, Mato Grosso do Sul, Bahia e Espírito Santo.
A expansão do café acarretou sensíveis transformações na vida econômica das regiões meridionais
do Brasil. No campo demográfico, o café imprimiu as seguintes características: povoamento do Brasil
Centro‑Meridional, com a formação de frentes pioneiras; estímulo aos fluxos migratórios para o Brasil,
principalmente de italianos (SP); estímulo às migrações internas de outras regiões para o Sudeste e
criação e desenvolvimento de ampla rede de cidades.
O Brasil permanece como o maior produtor mundial, com 2,74 milhões de toneladas em 2007,
destacando‑se Minas Gerais, com 47% da produção nacional, Espírito Santo, São Paulo e Bahia como
os maiores produtores nacionais.
5.10.5 Cacau
Originário da floresta amazônica, o cacaueiro é um arbusto adaptado à sombra das grandes árvores,
em áreas de clima quente e úmido. Encontrou melhores condições de cultivo nos solos argilosos do
litoral sul da Bahia, onde há o clima quente e úmido o ano todo, e o sombreamento propiciado pela
manutenção das árvores mais copadas da Mata Atlântica.
A safra baiana tem importante participação na produção brasileira, enfrentando crises de produção
devido aos fungos da vassoura‑de‑bruxa que atacam os cacaueiros, perdendo‑se a produtividade
(SANTOS FILHO, 2014).
94
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Os estados do Espírito Santo, Rondônia e Pará também apresentam destaque na Organização das
Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), organismo da ONU que, em 2011, apresentou
os maiores produtores mundiais: Costa do Marfim, Indonésia, Gana, Camarões, Brasil, Nigéria e Malásia.
A Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac) é uma autarquia que vem desenvolvendo
estudos para a lavoura do cacau, introduzindo técnicas de enxertia e clonagem para resistir ao fungo da
vassoura‑de‑bruxa. Além do manejo adequado dos produtores.
O Brasil está entre os maiores produtores mundiais de cacau, embora tenha reduzido a participação
e não seja autossuficiente. A cultura foi revitalizada na Amazônia, principalmente nas áreas de frentes
pioneiras de colonização, ampliando a produção na Bahia, Pará e Espírito Santo.
Os principais compradores do cacau brasileiro são, entre outros mercados, Europa, Estados Unidos,
Japão e Argentina, sendo o Pará exportador do cacau orgânico para países da Europa.
• Soja: com um total de 51,18 milhões de toneladas, ocupando 22,9 milhões de hectares, a soja
destaca‑se como o principal produto em grão desenvolvido no Brasil, ocupando a maior área
plantada. Apenas a cana‑de‑açúcar, com 550 milhões de toneladas, supera a produção da soja em
volume, mas ocupa uma área mais reduzida (5,8 milhões ha). O Brasil alcançou a 2ª posição mundial
na produção da soja, após os EUA. A China, que era a 2ª produtora, foi superada pelo Brasil e pela
Argentina. Em 2006, o Brasil exportava principalmente soja e ferro para o mercado chinês.
• Algodão: o Paraná liderou a produção do algodão herbáceo por toda a década de 1980 e pela maior parte
da década de 1990, mas foi superado pela produção do Mato Grosso. Em 2007, a produção nacional do
algodão herbáceo atingiu o patamar de 1,25 milhões de toneladas, das quais o Mato Grosso concentra
46%, seguido da Bahia, Goiás e São Paulo. A atual produção do Paraná é muito reduzida.
• Milho: em 2007, o total da produção foi de 35,1 milhões de toneladas, superado apenas pela soja,
tanto em volume da produção quanto em área plantada (11,5 ha). Os estados do Centro‑Sul – PR,
MG, MT e SP – se destacam na produção brasileira.
• Arroz: a safra do arroz em 2006 chegou a 13,2 milhões de toneladas, em uma área plantada de
3,9 milhões de hectares. Em São Paulo, é tradicional a produção nos Vales dos Rios Ribeira
de Iguape e Paraíba do Sul.
• Banana: no Brasil, a bananicultura é uma atividade bem distribuída nos diversos estados. A safra
de 2006 chegou a 6,7 milhões de toneladas, destacando o Paraná como o maior produtor, com
18% do total nacional, seguido da Bahia, Rio Grande do Sul e Paraná.
95
Unidade II
• Laranja: desde a segunda metade da década de 1980 e por toda a década de 1990, o Brasil liderou
a produção mundial de laranja, por exportar o suco concentrado para diferentes mercados do
Hemisfério Norte. Em 2006, a safra da laranja alcançou 17,8 milhões de toneladas, destacando‑se
São Paulo, com cerca de 80% da produção nacional, seguido da Bahia, Sergipe e Minas Gerais.
Bem como os cultivares importantes de nossa história, com aspectos positivos (ligados a crescimento
econômico) e negativos (manejo das propriedades associado à escravidão, por exemplo), temos uma
importante distribuição da cultura do criador de gado e, claro, do vaqueiro.
Em todas as regiões do País houve disseminação dos rebanhos. Manuel Correa de Andrade faz
importante geografia e sociologia dessa ocupação do território colonial português desde que ocupava
somente a faixa litorânea até sua lenta migração para os sertões, primeiramente no Nordeste, mais tarde
ao Sudeste e Sul.
O início da atividade pecuarista, tanto no sul como no norte do País, esteve prioritariamente vinculado
ao propósito da colonização territorial. Apenas subsidiariamente prestava‑se ao objetivo de alimentar a
pequena mão de obra utilizada na atividade criatória e os contingentes civis e militares engajados nas
missões colonizadoras e de ampliação de fronteiras.
Durante o século XVIII, a Campanha Gaúcha passou a ser área de criação de mulas e bovinos, com
produção voltada para o abastecimento de carne de charque (salgada) e mulas para o transporte do
ouro na região da mineração em Minas Gerais. O transporte da carne se dava em lombos de mulas, por
meio de caminhos de tropeiros que ligavam a Campanha Gaúcha à região da mineração.
Lembrete
Efetivo bovino
Grandes regiões Diferença 1996/2006
e unidades da Número de Absoluta Relativa (%)
Federação Estabelecimentos cabeças
Número de Estabelecimentos Número de
Estabelecimentos cabeças cabeças
Brasil 2.673.176 171.613.337 (‑) 25.021 18.555.062 (‑) 0,9 12,1
Norte 227.585 31.336.290 41.609 14.059.669 22,4 81,4
Rondônia 63.273 8.490.822 8.503 4.553.531 15,5 115,7
Acre 18.626 1.721.660 5.497 874.452 41,9 103,2
Amazonas 13.782 1.154.269 444 420.359 3,3 57,3
Roraima 4.732 480.704 301 80.765 6,8 20,2
Pará 83.163 13.354.858 20.531 7.274.427 32,8 119,6
Amapá 661 57.728 28 (‑) 1.972 4,4 (‑) 3,3
Tocantins 43.348 6.076.249 6.305 858.107 17,0 16,4
Nordeste 972.729 25.326.270 18.908 2.484.542 2,0 10,9
Maranhão 93.263 5.592.007 (‑) 2.438 1.689.398 (‑) 2,5 43,3
Piauí 75.469 1.560.552 4.928 (‑) 143.837 7,0 (‑) 8,4
Ceará 124.456 2.105.441 (‑) 6.347 (‑) 277.033 (‑) 4,9 (‑) 11,6
Rio Grande do Norte 47.480 878.037 (‑) 94 (‑) 76.310 (‑) 0,2 (‑) 8,0
Paraíba 92.024 1.313.662 10.829 (‑) 14.164 13,3 (‑) 1,1
Pernambuco 140.226 1.861.570 8.014 (‑) 69.102 6,1 (‑) 3,6
Alagoas 44.905 886.244 1.868 (‑) 82.218 4,3 (‑) 8,5
Sergipe 40.663 899.298 2.636 (‑) 41.698 6,9 (‑) 4,4
Bahia 314.243 10.229.459 (‑) 488 1.499.506 (‑) 0,2 17,2
Sudeste 542.363 34.059.932 (‑) 24.323 (‑) 1.893.965 (‑) 4,3 (‑) 5,3
Minas Gerais 352.726 19.911.193 (‑) 8.137 (‑) 133.423 (‑) 2,3 (‑) 0,7
Espírito Santo 30.935 1.791.501 (‑) 5.164 2.753 (‑) 14,3 0,2
Rio de Janeiro 30.464 1.924.217 842 110.474 2,8 6,1
São Paulo 128.238 10.433.021 (‑) 11.864 (‑) 1.873.769 (‑) 8,5 (‑) 15,2
Sul 688.605 23.364.051 (‑) 98.647 (‑) 2.855.482 (‑) 12,5 (‑) 10,9
Paraná 211.366 9.053.801 (‑) 31.794 (‑) 847.084 (‑) 13,1 (‑) 8,6
Santa Catarina 147.338 3.126.002 (‑) 31.981 28.651 (‑) 17,8 0,9
Rio Grande do Sul 329.901 11.184.248 (‑) 34.872 (‑) 2.037.049 (‑) 9,6 (‑) 15,4
Centro‑Oeste 241.894 57.526.794 37.432 6.760.298 18,3 13,3
Mato Grosso do Sul 48.274 20.379.721 8.314 625.365 20,8 3,2
Mato Grosso 81.374 19.807.559 19.126 5.369.424 30,7 37,2
Goiás 110.649 17.259.625 9.631 771.235 9,5 4,7
Distrito Federal 1.597 79.889 361 (‑) 5.726 29,2 (‑) 6,7
97
Unidade II
Algumas informações importantes sobre a pecuária leiteira estão contidas na tabela a seguir:
Atentando à produção nacional por estado, nota‑se a superioridade de Minas Gerais em relação
aos demais estados federados. “Com um crescimento de 32% no período de 1999 a 2008, esse estado é
responsável por 25% da produção brasileira ou mais de 7 bilhões de litros de leite produzidos” (SEBRAE,
2010, p. 8). Comparando com o segundo maior produtor, o Rio Grande do Sul, com 3,3 bilhões de litros,
fica ainda mais evidente a referida superioridade.
O campo e a cidade, como categorias geográficas, sociológicas, econômicas (em oposição ao caráter
jurídico, que se acentua) vêm perdendo a clareza de suas demarcações por fronteiras e paisagens antes
muito distintas: cada vez mais nas cidades inserem‑se atividades agrárias, e costumes rurais se imiscuem
no modo de vida estritamente urbano, enquanto o campo torna‑se progressivamente urbanizado. Essa
característica está bastante presente nas cidades austríacas, com a uva; e nas japonesas com os cultivares
básicos, como arroz e folhas, em plena área urbana.
Quanto aos surtos de fome que eclodem aqui e ali quando há uma
seca, inundação, tempestade, doença das plantas, dos animais ou dos
homens, ou ainda da guerra, elas não deixam de ser, por outro lado, a
consequência última da pobreza e da subnutrição. Na verdade, esses
acidentes climáticos, biológicos ou políticos levam à fome apenas as
regiões do mundo em que amplas camadas da população sofrem já
de uma pobreza e de uma insegurança alimentar tão grandes que não
dispõem dos meios para lutar de maneira eficaz contra essas catástrofes
e suas consequências.
Essa situação dramática, que não é nova, não está, tampouco, em vias
de melhorar. Certamente, a parte da população subnutrida dentro da
população mundial total diminuiu no decorrer das três últimas décadas
do século XX, mas o número de pessoas subnutridas no mundo não
baixou nem um pouco. É por isso que mais de oitenta chefes de Estado
e de governo, reunidos em Roma em 1996 para a Cúpula Mundial da
Alimentação, comprometeram‑se a “realizar um esforço constante a fim
de erradicar a fome em todos os países e, de imediato, de reduzir pela
metade o número de pessoas subnutridas daqui até mais tardar 2015”. Isso
levava a considerar que o mundo contaria ainda com cerca de 400 milhões
de pessoas subnutridas em 2015. Mas os meios mobilizados para essa
finalidade, não tendo sido nem tão significativos nem tão eficazes quanto
o previsto, cinco anos depois, em 2001, foi preciso reconhecer que o
mundo contaria ainda com 600 a 700 milhões de subnutridos em 2015 e
que, nesse ritmo, seria necessário mais de um século para ver desaparecer
essa catástrofe.
Em nosso mapa corporal, começamos com os pés no chão, situados, assumindo nossas atividades
mais elementares de organismos e apontamos a cabeça como centro da arquitetura de soluções
organizacionais ainda simples. Agora, chegamos às posições da mente, não de uma mente, mas das
mentes de todos interligadas.
Mente, aqui, representa a institucionalização como síntese das ações e regras sociais; daí que um
conjunto de mentes é uma instituição articulada, que incorpora (no sentido literal) o organismo, os
pés situados e a cabeça de nosso mapa; são construtos sociais conectados por intersubjetividades.
Há uma ossatura do social, e há também ligações “invisíveis” entre as pessoas: instituições. Estado como
regulação moderna das forças sociais. Surgimentos e declínios dos agentes.
O nível mental ou institucional como resultado das contradições com as operações anteriores é
fluxo de sínteses entre relações vitais e ideias. E são elas, as instituições sociais:
100
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
• abstrações, quando estão fechadas (ignoradas) para todos quantos não sejam seus criadores,
sendo restritivas;
• construções comuns, coletivas, dos saberes, de respostas míticas àquelas de caráter científico, das
técnicas institucionalizadas às tecnologias em redes, busca incessante de controle da natureza
(reduzida à sistema como ambiente).
Trata‑se, portanto, de institucionalização das práticas sociais situadas, das soluções específicas
e gerais (associações, organizações as mais diversas, daquelas em escalas locais àquelas nos planos
nacional e supranacional, como FAO, OIT – Organização Internacional do Trabalho).
As mentes nas sociedades capitalistas de poder concentrado tendem a certa fragmentação das
consciências de papel e de estrutura; nível expresso nas distâncias que mantém das associações, redes,
tidas como abstrações, além do horizonte das economias de mercado com foco na financeirização, com
decorrente economia internacional com crescimentos dependentes, com assimetrias também crescentes
e espaços de normas e demais abstrações oriundas de ordens cada vez mais distantes dos fins das
cadeias de informações e comandos; fins físicos, onde se encontraria consumidores ou cidadãos; fins
morais, como objetivo ético das ações e serviços econômicos, por exemplo.
O labor como atividades simples e o trabalho social desfigurado em sua unidade, domado e
instrumentalizado, institucionaliza‑se nos horários rígidos de nossos compromissos metropolitanos,
nos cardápios, no tempo linear do descarte dos vividos, “labor quase vestigial”, sob os auspícios das
facilidades tecnológicas de registros banalizados, de vozes, imagens, textos.
O projeto em voga, continuamente prometendo um mundo melhor, vem com nome “modernização”;
“modernização” das atividades tradicionais, leia‑se “descaracterização”, viabilizadas pelas “famílias de
inovações” do momento e em prol do grupo dominante, de algum modo posicionados no Estado. É
assim que se reduz o complexo universo rural‑urbano a circuitos produtivos e gente estereotipada
de macacão, galochas e sotaque interiorano como habitantes do campo; o jeca de outros tempos.
Reduz‑se, como estamos vendo, ao tomar camponês ou lavrador por agricultor ou trabalhador rural,
com enquadramento na legislação trabalhista (redução profissional); reduz‑se ao tomar habitante por
agricultor (redução filosófica, deslocando o existencial/existente da ontologia para as operações de
planejamento, mercadologia e de cartografia).
O citadino também é alvo de reduções e deformações; tomado como cosmopolita e mais sabido que
o “interiorano”, mais para corroborar as imagens de marketing e classes estatísticas de mercado.
101
Unidade II
Modernizações redundam nas intenções que subjazem às mentes interligadas, as redes, com
propósitos de propagação dos princípios e procedimentos do capitalismo em reprodução interescalar.
Trabalho é relação coletiva que articula os seres humanos em todas as dimensões sociais. O ser
social privado, seja individual ou corporativo, atua junto com o Estado de maneiras das mais diversas
nas várias partes do mundo, com algumas características marcantes em cada território nacional. Dentro
dos países, também é bastante heterogêneo, pois, como vimos, segue a história da apropriação dos
ecossistemas e, no caso do Brasil, está na base da própria configuração do Estado‑territorial.
É claro que ao nos candidatarmos a vagas de emprego, por exemplo, estaremos submetendo nossas
habilidades e competências às demandas fracionadas exigidas; agentes contratam partes e como partes
na relação oferecemos partes de nós. Em todas as organizações sociais estaremos em partes, estaremos
aos pedaços. São as faces requeridas nas relações, algumas delas requerendo mais de nós, outras, com
demandas as mais específicas; são os “termos operacionais de uma racionalidade parcial”.
Não se trata, portanto, de discutir a precedência das ações sociais, pois, sem dúvida, quer seja política,
econômica, geográfica, biológica, sociológica; todas as dimensões sociais são integradoras do humano,
tornam‑nos inteiros; todas.
O Estado é o agente privilegiado, regulador das relações sociais e do jogo no qual está incluído junto
com os demais agentes sociais, privados, corporativos paraestatais que, em nosso caso, é caraterizado
por uma imensa desigualdade entre os grupos e por conflitos gerados por interesses distintos.
Já apresentamos algumas definições de Estado em tópicos anteriores, e o que ora se faz necessário
é discutir a força e as fraquezas dessa entidade ubíqua; presente de alguma maneira na vida das
pessoas. Sua presença deveria ser sempre favorável aos habitantes de um lugar ou região, entretanto,
também pode causar transtornos: o Estado é, desse modo, poder de atribuição pública; embora possa se
comportar de outro modo, como instrumento privado.
Aproveitamos o diapasão das citações em epígrafe e seguimos pelos olhares disciplinares que miram
os principais traços e as bases do Estado; traços radicais, como aqueles trazidos pelos antropólogos
(Maurice Godelier e de Pierre Clastres), geógrafos (como Paul Claval), sofisticados, como o da sociologia
de Pierre Bourdieu. Suas colocações abrem caminho para os cientistas políticos (politólogos) e para
economistas (como Robert Heilbroner, da economia política).
É preciso que se diga, alinhando‑nos com Atilio A. Borón (1994), que houve expansões e retrações
históricas das estruturas estatais, o que é corroborado pelas afirmações que destacamos de Paul Claval.
Atilio A. Borón acusa certa negação de sua realidade, principalmente no caso dos britânicos,
advertindo que “a realidade social existe independentemente de nossas capacidades intelectuais para
apreendê‑la” (1994, p. 244). O autor menciona o positivismo reinante (em David Easton, por exemplo),
que considera imprestáveis poder e Estado ao desenvolvimento da pesquisa política. Claro, posto que
não são tangíveis, a não ser como expressão de relações: são tipos, emergem com as forças sociais.
Borón (1994) fala de formações estatais tardias (Alemanha e Itália) em contraposição às anglo‑saxãs
(Estados Unidos da América e Reino Unido), nas quais a iniciativa burguesa inibiu o aparato estatal.
O Estado, que desde os anos 1930 foi um meio ideal de lidar com a crise,
foi convertido ideologicamente no “bode expiatório” e concebido como o
fator que o originou. Antes, nos fatídicos anos 1930, isso fazia parte da
solução. Agora se tornou – nas versões mais ululantes do neoliberalismo – a
totalidade do problema (BORÓN, 1994, p. 187).
Quanto à América Latina, sistema tributário pauperizador e não devolutivo, Borón acentua:
Números sobre a tendência dos salários reais falam por si sobre o alcance
do processo de pauperização sofrido por vastos setores das populares
classes latino‑americanas. É evidente que esta regressão salarial deve ter
um impacto profundo, tanto na economia como na política de nossos
países. Mas o que gostaríamos de destacar com esses dados é a magnitude
da lacuna que separa as necessidades humanas básicas – de crescentes
contingentes da população – da capacidade efetiva de intervenção do
Estado suscetível de produzir políticas compensatórias ou corretivas dos
desequilíbrios gerados pelo capitalismo selvagem. Isso pode ser expresso
graficamente com a metáfora das tesouras: as demandas geradas na
sociedade civil, as insatisfações, as privações e os sofrimentos provocados
tanto pela crise como pelos testes neoliberais postos em prática na região
deram origem a uma verdadeira barragem de reivindicações, facilitada, por
outro lado, pelo clima permissivo das sociedades que reiniciam sua longa
marcha rumo à democracia. Nestas condições, no entanto, a mesma crise
103
Unidade II
Atilio A. Borón (1994, p. 200) faz considerações sobre as dívidas externas insustentáveis “que a
América Latina não pode pagar”, promovendo transferências de gigantescas quantias (97‑99) e
acrescenta a mais importante das constatações de seu livro, que “estes dados [o levantamento exaustivo
apresentado] demonstram, apesar da gritaria neoliberal, a persistente importância do Estado e do gasto
social nos capitalismos metropolitanos”.
Para nossa “perplexidade” diante das declarações sobre a agonia e morte do Estado, pesquisadores
sustentam o seguinte: “como resultado do declínio das políticas econômicas neoliberais e da crise que
atravessam a maioria das economias latino‑americanas, o papel econômico do Estado se verá fortalecido”
(BORÓN, 1994, p. 203).
Claudia Costin define de modo bem direto Estado, Estado nacional e suas partes principais.
104
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
[…]
O Estado brasileiro possui uma administração pública, fixada pelo Decreto‑lei n. 200 de 1967:
Claudia Costin cita Bresser‑Pereira para tipificar a Administração Pública em três formas históricas:
A autora também apresenta em seu livro os modos básicos de alimentação do aparelho estatal, pela
via tributos, e de gastos públicos, via orçamento.
Saiba mais
O Estado deve ser analisado como agente complexo que representa, contém ou deveria conter
todos os demais.
Observação
106
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
O trabalho de Habermas segue por um caminho com o qual convergimos. Compõe o que chamamos
o rol dos “filósofos da esperança”, junto com Michel Serres, Henri Lefebvre, Milton Santos, entre outros.
Segundo Leonardo Jorge da Hora Pereira (2013, p. 72), Jürgen Habermas acredita numa “repolitização
[a relação entre as classes se repolitiza, sem que a economia continue a assegurar a integração social]
das relações de produção”; repolitização que “cria uma necessidade extra de legitimação”. Desse modo,
Habermas vai enfatizar as crises oriundas da relação entre o subsistema administrativo e o subsistema
sociocultural; de um lado, crise administrativa, de outro, crises de legitimação e de motivação.
A crise administrativa
[...]
[...]
A crise de legitimação
[...] Ora, segundo Habermas, “a expansão da atividade estatal tem por consequência
indireta um aumento desmedido da necessidade de legitimação”, uma vez que “evidências
culturais que eram até aqui condições marginais de aplicação do sistema político entram no
domínio da planificação da administração.
[...]
A crise de motivação
em uma atitude privada na vida pública dos cidadãos, bem como em sua vida profissional
e familiar. A tese de Habermas é a de que estes modelos de motivação são destruídos em
razão de uma dinâmica interna às sociedades do capitalismo tardio. Para defender essa
tese, ele deve mostrar não só o esgotamento das tradições que sustentam tais atitudes,
mas também que o capitalismo não pode mobilizar novos recursos de motivação a fim de
substituir funcionalmente os primeiros.
econômico e político. Este último aspecto é aquele que explicita mais nitidamente este
efeito, já que o capitalismo tardio (tal como outras formas de organização social baseadas
numa estrutura de classes) precisa estabilizar a contradição fundamental de uma produção
socializada apropriada segundo interesses particulares (não universalizáveis). Por isso, a
eventual propagação da ética comunicativa universal nos processos de socialização é
um elemento fundamental para a deflagração de uma crise de motivação no seio do
capitalismo tardio.
Habermas afirma que existem duas possíveis saídas para a crise de legitimação/motivação:
“Ou bem as estruturas de classes latentes do capitalismo tardio são transformadas, ou bem
a exigência de legitimação à qual é submetido o sistema administrativo é suprimida. Isto
só poderia se realizar se a integração da natureza interna fosse reorganizada de maneira
geral segundo um outro modo de socialização, isto é, se ela fosse descolada das normas
que reclamam uma justificação”. É bom insistir, porém, que, se ele ainda fala de uma
transformação da estrutura de classes, ele não o faz a partir do paradigma da revolução
ou do “essencialismo” da luta de classes. Apesar de não ser tão claro em relação a uma
estratégia política mais concreta, tudo indica que tratar‑se‑ia antes de buscar uma saída
democrática para tais impasses, o que só seria possível mediante uma politização das massas
e o reavivamento da esfera pública. Não se trata, portanto, de se limitar ao proletariado como
polo de luta contra a dominação de classe, pois outros movimentos, como o estudantil,
mereceram a atenção de Habermas nesse período”.
Observação
Na apresentação, o autor fala dos descaminhos do Iluminismo, pois, como escritor e ensaísta,
demonstra os benefícios da pré‑escrita, bem como seus malefícios instrumentais de nosso letramento
moderno, utilitário. Assim:
O trabalho adestrado, o fazer domesticado; as mãos guiadas “de fora” (do sujeito), eis o mote deste
lugar no texto.
Chegamos a um ponto delicado do percurso; adestramento dos saberes e fazeres, longo espectro que
vai das inúmeras tradições aos ofícios “civilizacionais” de mestres da criação de utensílios e objetos de
morar, vestir. A síntese do que queremos dizer está na mensagem de agradecimento de Hans Magnus
Enzensberger pelo prêmio recebido; o título da conferência que, num primeiro momento, causa espanto
até que o entendemos quando elogia o analfabetismo.
Isso tudo deixa de ser uma questão de estatística para se tornar um caso de
classificação e de estigmatização. Já é possível reconhecer a figura do subumano
por trás da figura do analfabeto. Uma pequena minoria radical monopolizou a
civilização e adota atitudes discriminatórias contra todos os que não dançam
segundo suas melodias. A minoria pode ser definida com exatidão. Os homens
dominam as mulheres, os brancos os negros, os ricos os pobres, os vivos os mortos.
O que os “líderes comunitários” dos tempos guilherminos não desconfiavam
deveria ser bastante claro aos seus netos, nós que somos crianças escaldadas: o
Iluminismo pode se transformar em perseguição, a civilização em barbárie.
Sua provocação é endereçada à alfabetização instrumental, ler para ligar‑desligar, botões on/off
das máquinas.
E provável que a maioria das teorias que foram formuladas sobre esse
fenómeno estejam erradas. Eu sei do que estou falando, porque há menos
de vinte anos atribuí maravilhosas possibilidades de emancipação à mídia
eletrônica. Uma tal esperança, apesar de não ser fundamentada, pelo
menos tinha a vantagem da ousadia. Não se pode afirmar o mesmo das
reflexões de um sociólogo norte‑americano, que atualmente são motivo
de muitas discussões:
Quando uma população deixa que sua atenção seja desviada por
trivialidades, quando a vida cultural é redefinida como uma série
interminável de entretenimentos, quando a discussão pública se torna
uma forma de comunicação infantil, quando, resumindo, um povo se
transforma em espectador e seus assuntos públicos em números de varie
dades, uma nação se encontra em perigo — a morte da cultura torna‑se
uma clara possibilidade .
Enzensberger segue apontando, de modo arguto, as mazelas do poder e de seus braços culturais,
não a cultura real, dos discursos legitimadores dos regimes de poder, dissociados de compromissos, de
fato, republicanos.
Acusa mudanças suscitadas por aplanamentos culturais, por “desprestígio popular” das belas artes,
e pela alteração na correlação de poder dos grupos sociais.
É possível que haja os que deploram tal situação. Não tenho a menor vontade
de fazer isso. Afinal de contas, as ervas daninhas também são uma minoria
e todos os jardineiros sabem que é muito difícil exterminá‑las. A literatura
continuará proliferando, enquanto mantiver uma certa dose de tenacidade,
de astúcia, de habilidade de se concentrar, de obstinação e de boa memória
(ENZENSBERGER, 1995, p. 53‑54).
Fragmentação do trabalho e da consciência que dele se pudesse ter, aqui, não apenas como componente
institucional (mental), mas como trabalho localizado nos lugares de agronegócios, corporações verticais
de atividades, com especialização contínua das atividades (fragmentação e seleção daquilo que interessa
às relações de trabalho), sob o funcionalismo. A todo momento estamos sob a máxima dos “hábitos
apropriados”. Temos assim mercados de trabalho violentos, descritos em seus estratagemas por Margarida
Maria Moura, Robert Kurz, Márcio Pochmann, Ricardo Antunes.
As histórias típicas das sociedades rurais vão se perdendo e, quanto a isso, já nos alertava Monteiro
Lobato, na década de 1930:
115
Unidade II
E o que se pode dizer da extensão dos efeitos de hierarquizantes, o capital no topo/a obediência no
topo? O labor é dominado, processo conduzido pelos projetos e realizações de poder, da Antiguidade à
modernidade capitalista. Qual é o espaço para a excelência, para os mestres em seus ofícios?
Estamos diante de lugares rurais que deveriam ser somente caracterizados pelas poliatividades, e
não pelo “agro”; tampouco por atividades estritamente tecnológicas (comumente urbanas, das cidades).
A orientação nos vem de Graziano da Silva, de José Eli da Veiga, de Ricardo Abramovay, entre outros.
E para complicar ainda mais, existem infinidades de configurações possíveis de ocorrências do
urbano no rural e do rural no urbano, por razões geográficas (espaços disponíveis ou estratégicos),
culturais (tradições ou sínteses e sincretismos), políticas (imposição, dominação, “desterritorializações”)
etc. É preciso ver o agrário nas cidades, como nos exemplos das hortas em Tokyo, da viticultura em
Viena, das hortas urbanas em diversas partes do mundo.
Também é bem oportuno estudarmos as áreas de monoculturas de soja, laranja, as criações de espécie
única, cada vez mais tecnificados (SANTOS, 1994; 1996). Milton Santos, nos textos citados, aponta‑nos
o campo como tendo as condições mais favoráveis às modernizações capitalistas; modernizações,
normalmente com determinações externas aos lugares (chamados de verticalidades por Milton Santos).
Tais processos são disruptivos, proporcionam fios de desenvolvimentos, no sentido preciso, exato da
palavra (de desenvolver ou afastas), trazendo‑nos ao mundo das relações sem sentido. Como ficam os
projetos se o mundo não tem sentido? Deveríamos pedir ajuda a Jean‑Paul Sartre, para quem todos
somos projetos (1987).
Há uma reflexão geográfico‑antropológico (geografia cultural) que se aproxima dos diversos âmbitos
sociais por sua dinâmica espacial, das territorialidades (entre outros, GOYCOCHEA apud DE DAVID, 2017,
p. 21). Territorialidades, percepção, globalização articuladora.
Canclini fala da confiança e de sua falta; confiança cuja importância é imensa como cimento
psicossocial do conhecimento e das relações. Sua reflexão vai ao encontro da visão de modernidade de
Hans Magnus Enzensberger: promete emancipar, expandir, renovar, democratizar.
116
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Temáticas que, em conduções políticas divergentes, tornam‑se ambíguas, confusas quanto aos
seus fins verdadeiros, como é o caso dos sincretismos simbólico‑religiosos, hibridismos culturais, e da
sociodiversidade em geral (DE DAVID, 2017, p. 34), o que se torna problemático quanto aos caminhos
da socialização; é assim que a educação passa a ser arena de combate pelas consciências. Contudo,
nosso enfoque deveria ser muito mais a cultura do que a educação; cultura humanista, ética,
democrática, nas bases estruturantes dos institutos e instâncias educacionais. A questão educacional
é, na verdade, cultural.
A alusão de Milton Santos (1996) a uma “sociedade dos tradutores” vai direto ao ponto: há uma
espécie de camada que se vem interpondo entre as pessoas e suas consciências sobre os objetos.
O que significa que os mundos dos objetos colocados diante de nós tornam‑se realidades parciais
e fragmentárias para os observadores e usuários, requerendo toda sorte de manuais das mãos de
novos especialistas, os técnicos que sabem escrevê‑los uns para os outros em jargão próprio, e
aqueles que vão traduzir esses cadernos complicados em cartilhas para os usuários, em geral , isto
é, todos os outros.
As implicações desse mundo de coisas desconhecidas por dentro, e na cadeia de acontecimentos cuja
expressão material, objetiva, é insignificante, indicando possibilidades tanto de aprendizado quanto de
embrutecimento. Podemos aprender com esse amontoado de informações, bem como sermos soterrados
por elas e, paradoxalmente, isolarmo‑nos politicamente.
O isolamento social dos indivíduos é o contrário de vida política, convívio; é o caos social. E aí é que
entram as complicações geradas pela enorme quantidade de “redes” e “conexões” nas quais estamos
envolvidos. Há uma célebre anedota sociológica de Zygmunt Bauman sobre o que denominou “amizade
Facebook”: ele disse que ninguém tem aquela lista enorme de amigos na rede.
Quanto aos conflitos entre camponeses e capitalistas, não há diálogo, apenas contradições profundas
e incorporação do primeiro pelas relações que enredam os segundos. Como é possível estudarmos tal
assimilação sem preconceitos? Como a igualdade jurídica pode ser tão violenta? Haverá em algum
tempo, de fato, espaço para a diversidade?
Segue um pouco de cor na imagem que estamos evocando, na letra da banda Skank.
A cerca
117
Unidade II
Maledicência, eu já tô acostumado
Até dizem que o senhor é incapacitado
Eu tomo chuva, tomo ar puro de manhã
Minha saúde é de ferro, pergunte para sua irmã
118
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Perdas de qualidade de vida tanto na cidade quanto no campo passam pela segregação, as divisões,
as cercas; daí a importância de as identificarmos e localizarmos todas as formas de separação social.
Da estrutura social estática, passamos à sociedade em movimento. A vida torna‑se possível com o
exercício do prazer, da amizade, da fraternidade, e com o trabalho das pessoas nos lugares, nos campos
e nas cidades, representado ou regulado pelas figuras jurídicas. Contudo, nesse nível da regulação, o
trabalho adquire valor e dimensões abstratas, legais e econômicas.
Agora, também como grupos econômicos, Estado e demais agentes sociais jogam conforme
regras chanceladas pelo poder público, embora o caráter público de um Estado não seja natural, mas
conquistado, construído pelo trabalho coletivo, de um lado, e o ser social privado, corporativo, de outro;
que formam a própria configuração econômica do Estado‑territorial/nacional. Resumindo a ideia: a
quem esse aparato público atende, de fato, com suas portarias, leis, sentenças e decretos, considerados
os três poderes?
Williams fala das transformações sofridas pela vida rural, com impossibilidade, porém, de identificar
evolução linear, do tipo “o que passou, passou”; pois ela reaparece de várias maneiras, mantêm‑se e
pode até parecer que deixou de existir; porém, estará sempre lá. Segue citação do autor:
O que o autor encontra no material de sua pesquisa é uma idealização dos valores feudais e
imediatamente pós‑feudais, de uma ordem de relações sociais estáveis e recíprocas, com características
assumidamente totalizantes (1989). Reflete sobre os impactos da nova ordem da agricultura capitalista,
imposta com sucesso às antigas estruturas.
As transformações de que nos falam Raymond Williams (1989) e Margarida Maria Moura (1988;
1986; 1978), envolvem dois mundos antagônicos que passam a se chocar e interpenetrar‑se, até que
119
Unidade II
um pareça sucumbir soterrado pelas novas formas sociais em geral (costumes e atividades produtivas),
jurídicas e econômicas, em particular (títulos de propriedade, equivalências monetárias em lugar de
compromisso e favores).
São imensos contingentes de pessoas que devem ceder suas moradias (e boa parte de pertences) de
agregados às terras e famílias de senhores de terras para empregarem‑se sob as novas leis trabalhistas e
procurar lugares onde morar em novas condições (MOURA, 1988). E como diz Williams:
Williams (1989) adverte para os perigos de dirigirmos as críticas ao sistema presente para relações
que não existem mais, adotando parâmetros falsos. Afirma o autor que privilegiar relações que não
mais existem, virtudes de um mundo rural que não mais existe do modo idealizado por “movimentos
intelectuais do século XX” que transferem valores e padrões do campo de outras épocas, tornando‑se
“valores de uma posição explicitamente reacionária: em defesa dos padrões tradicionais de propriedade,
ou no ataque à democracia em nome do sangue e da terra” (WILLIAMS, 1989, p. 57‑58).
um poder local paternal com uma legislação nacional que vise a proteger
certas formas de propriedade e trabalho surgidas recentemente – parece
fundamentar‑se com pesos quase iguais, na rejeição da arbitrariedade do
feudalismo, numa rejeição categórica da nova arbitrariedade do dinheiro e na
tentativa de estabilizar urna ordem transitória, na qual os pequenos proprietários
devem ser protegidos dos cercamentos, mas também da ociosidade de seus
trabalhadores. Assim, uma ordem moral é abstraída do legado feudal e da
dissolução do feudalismo, buscando impor‑se do modo ideal com condições
inerentemente instáveis. A santidade da propriedade tem de coexistir com
violentas mudanças de relações de propriedade, e um ideal de caridade deve
conviver com relações de trabalho rigorosas tanto no velho sistema quanto no
novo (WILLIAMS, 1989, p. 68).
E como esse trabalho abstrato promove certo desenvolvimento exógeno, voltado para fora das
regiões que recebem investimentos e mudanças; para fora, vai o grosso dos benefícios e a riqueza;
dentro, ficam os problemas.
O peso das normas começa por aí e passam pelas mudanças ambientais não negociadas pelas
comunidades, impostas àqueles que têm suas atividades nativas, autóctones, originais da ocupação do
lugar, também chamadas de vernáculas. Na cidade, os procedimentos são parecidos, pois tudo se passa
como movimento inexorável da história, modernização contra a qual não se pode opor.
120
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
O ambiente é moldado para atender aos interesses externos, então, faremos as seguintes análises
teórico‑metodológicas sobre a avaliação de impacto socioambiental ligada à ocupação e apropriação
social dos recursos naturais.
Estamos tratando dos problemas ambientais desde o início do texto, porém, neste momento, eles
devem ficar mais evidentes. Poluição, envenenamento, toxidade são eventos com possibilidades de
diagnósticos sistêmicos, a partir de uma ótica de gerenciamento ambiental de recursos tomados como
elementos dos sistemas e cadeias produtivas convencionais. Entretanto, o tema da disciplina requer que
sejamos radicais já nas concepções do problema em suas causas. Sendo, então, mais incisivos, somos
levados às visões alternativas de organização do espaço rural, com revisões alternativas e participativas
nos modelos de gestão e de planejamento ambiental.
A construção do conhecimento agroecológico ocorre com base em utopias, no melhor sentido da palavra.
Saiba mais
É necessário nos perguntarmos sobre os caminhos que tomamos para podermos discutir outros, e o
que nos interessa produzir e consumir.
É preciso, assim, ir além de modos e exotismos. Crosby (1993) expõe de modo interessante a irradiação
dos padrões alimentares de boa parte do mundo a partir da Europa, o que explicaria também os circuitos
produtivos de alimentos, insumos, cardápios inteiros baseados em regiões que milhões de pessoas
nunca viram, forçando ecossistemas de modo artificial a produzirem espécies exóticas. O agravante
desse processo de séculos é a visão que se adquiriu de “solos pobres”, quando na verdade os solos não
deveriam ter eficiência com cultivares estrangeiros; é o caso dos solos de nossas florestas tropicais,
que não são adequados ao plantio de espécies do gosto do colonizador europeu. Esse processo moldou
a estrutura fundiária e as bases agropecuárias dos povos subjugados pelas armadas e pelo comércio
português, espanhol e britânico.
121
Unidade II
Uma lista sem fim de situações mostrando a negação da complexidade alimentar poderia ser
citada, como lanchonetes, restaurantes, supermercados vendendo reduções simplificadas de pratos
anteriormente comuns, habitualmente mais complexos e preparados em casa; trata‑se do reino do
funcional, do prazer fácil, quase sempre solitário, do comer apressado. Não há lugar para pratos
complexos, pois a experiência tanto para o preparo quanto para comê‑los não estará disponível.
Claro que estamos num terreno perigoso para se achar o verdadeiro hábito em meio às imposições
de povos conquistadores e as consequentes transformações de estruturas milenares. Os “problemas
com a revolução verde” na forma de envenenamento dos rios e dos solos também são descritos por
Standage (2010).
Comemos o que nos dizem as grandes empresas agroalimentares, influenciados por modismos e
propagandas. No Brasil, a legislação ambiental básica é da década de 1980.
É somente em 2000 que se chega à lei que instaura o SNUC (Sistema Nacional de Unidades de
Conservação), que define as áreas de preservação em unidades de proteção integrais e com permissões
graduais e funcionais de usos. É um instrumento de política ambiental que pode ser muito útil, mas
também apenas mais uma lei.
Lembrete
No coro das acusações às inovações tecnológicas abstratas (desvinculadas das regiões e populações
reais), segue o trecho de Lima:
Diante desse diagnóstico (de que a crise fora gerada, em grande medida, em
decorrência do próprio padrão científico‑tecnológico. O que, segundo alguns
pensadores, exigiria uma nova configuração do conhecimento socialmente
produzido sobre o mundo – social e natural), a atual relação entre sociedade
e natureza parece ter por base uma nova escassez. Não mais uma relação
fundadora do que é irredutivelmente humano como a categoria trabalho
em Marx (1975). Pelo contrário, a principal clivagem que a sociedade
contemporânea parece ter construído, na sua relação com o seu substrato
natural, é uma “escassez limitante” do texto humano. Não é mais a natureza
do ambiente local (a intempérie, os fenômenos naturais, a sazonalidade, os
desastres naturais) que está a desafiar a capacidade e criatividade cultural
de um grupo humano em particular. Hoje são os limites de regeneração da
Terra como um todo, que parecem se impor ao texto colocado em marcha
pela moderna sociedade industrial: suas relações de produção, seus padrões
de consumo; seu padrão tecnológico; sua densidade demográfica; sua
hierarquização e desqualificação de saberes e culturas (LIMA, 2004, p. 5).
122
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Na lista de problemas, devemos assinalar que a desigualdade social em todos os níveis está na base
de todos eles, perpetuando‑os. Assim, a questão da propriedade deve ser discutida quando se considera
o desenvolvimento sustentável e as formas de produção sustentáveis.
Ladislau Dowbor (2010a) faz algumas considerações sobre a questão da propriedade que o modelo
convencional enrijeceu e não parece ceder facilmente aos apelos da razão. Não é abrir mão da
propriedade, mas repensá‑la de acordo com os princípios da sustentabilidade real.
Para dar um exemplo trazido pelos autores (Gar Alperovitz e Lew Daly, do
livro Apropriação indébita: como os ricos estão tomando a nossa herança
comum, Editora SENAC), quando a Monsanto adquire controle exclusivo sobre
determinada semente, como se a inovação tecnológica fosse um aporte apenas
dela, esquece o processo que sustentou estes avanços? “O que eles nunca levam
em consideração, é o imenso investimento coletivo que carregou a ciência
genética dos seus primeiros passos até o momento em que a empresa toma a
sua decisão. Todo o conhecimento biológico, estatístico e de outras áreas sem
o qual nenhuma das sementes altamente produtivas e resistentes a doenças
poderia ter sido desenvolvida – todas as publicações, pesquisas, educação,
treinamento e ferramentas técnicas relacionadas sem os quais a aprendizagem
e o conhecimento não poderiam ter sido comunicados e fomentados em
cada estágio particular de desenvolvimento, e então passados adiante e
incorporados, também, por uma força de trabalho de técnicos e cientistas – tudo
isto chega à empresa sem custo, um presente do passado. Ao apropriar‑se do
direito sobre o produto final, e ao travar desenvolvimentos paralelos, a empresa
canaliza para si gigantescos lucros da totalidade do esforço social, que ela não
teve de financiar. Trata‑se de um pedágio sobre o esforço dos outros”
Uma joia a respeito da propriedade, comenta Dowbor, é um texto de 1813, de Thomas Jefferson, cujo
mote está nesta citação:
Se há uma coisa que a natureza fez que é menos suscetível que todas as outras
de propriedade exclusiva, esta coisa é a ação do poder de pensamento que
chamamos de ideia. Que as ideias devam se expandir livremente de uma pessoa
para outra, por todo o globo, para a instrução moral e mútua do homem, e
o avanço de sua condição, parece ter sido particularmente e benevolente
desenhada pela natureza, quando ela as tornou, como o fogo, passíveis de
expansão por todo o espaço, sem reduzir a sua densidade em nenhum ponto, e
como o ar no qual respiramos, nos movemos e existimos fisicamente, incapazes
de confinamento, ou de apropriação exclusiva. Invenções não podem, por
natureza, ser objeto de propriedade (DOWBOR, 2010a, p. 55).
123
Unidade II
Saiba mais
A ocupação é ligada à topografia (relevo, solos) e à hidrografia (cursos d’água) e as paisagens são
basicamente caracterizadas pelo relevo, tanto original quanto aquele que já foi transformado. Se é alto
ou baixo; subida ou descida; se o rio é veloz ou lento: eis os altos e baixos do terreno que todo mundo,
se não vê, sente.
Tal reflexão torna‑se fundamental, dado que planejadores e projetistas, quase sempre tão afeitos
a critérios essencialmente econômicos, costumam modelar geometricamente essa estrutura original,
vendo linhas retas, quadrados e círculos (formas perfeitas) onde não existem, originalmente. É mais
difícil lidar (gerenciar) com a realidade diversa, do que inventar uma outra, iludindo‑se com a aparente
facilidade das matemáticas. O técnico, como o gestor, tem horror ao variado, nesse caso o não geométrico
é tido como irregular, acidentado, numa desvalorização da natureza, daí o urbanismo a serviço da
racionalização da natureza.
Nasce, assim, um mundo tecnicamente distanciado das tais formas originais – um meio técnico
científico informacional, segundo Milton Santos (1996) –, uma colina vira uma ladeira; um vale vira
uma avenida; um rio vira canal; o ar vira atmosfera; uma várzea vira área de risco quando alaga; uma
árvore em frente a uma loja vira estorvo. Ah, também, tem aquela de que folhas no chão são sujeira –
verdadeiro, no caso da cimentação generalizada dos pisos da cidade.
É importante que se diga que a consideração sistêmica da natureza leva ao tratamento das
coisas como unidades planetárias; assim é, resumidamente, com as estruturas geológicas (cadeias,
placas tectônicas), com o sistema atmosférico (circulação de ar, ventos e correntes continentais),
com as correntes marinhas, as quais, para serem compreendidas/entendidas, demandam o estudo
dos oceanos, com os ecossistemas, que, em sua biodiversidade, não são estritamente locais, posto
que todos esses sistemas são abertos.
124
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Temos, assim, o uso da ecologia subordinada aos interesses dos investidores, não do humano de
modo geral. É o negócio com o ambiente, sem preocupação ambiental, que anima os modelos trazidos
anteriormente, bem como as metodologias de diagnóstico ambiental e seus instrumentos, como
avaliações de impacto ambiental, a reciclagem como negócio, a ideia de pegadas ecológicas.
Os sistemas e as cadeias produtivas uniformizadoras e concentradoras, convencionais, com sua
economia e tecnologia duras derivam dessa concepção.
É difícil ver algumas dessas cercas, mas todas elas existem. Uma cerca
virtual é erguida em torno das escolas na Zâmbia quando uma “taxa
de usuário” de educação é introduzida por sugestão do Banco Mundial,
deixando as salas de aula fora do alcance de milhões de pessoas. Uma
cerca é erguida em torno da agricultura familiar no Canadá quando as
políticas do governo transformam a agricultura de pequena escala em
um artigo de luxo, impossível de custear em um cenário de preços de
mercadorias em baixa e fazendas industriais. É uma cerca real, embora
invisível, que é erguida em torno da água potável em Soweto quando
os preços chegam às alturas devido à privatização, e os moradores são
obrigados a se valer de fontes contaminadas. E há uma cerca erguida em
torno da própria ideia da democracia quando a Argentina ouve que não
pode contrair um empréstimo do FMI a menos que reduza ainda mais os
gastos sociais, privatize a maior parte dos recursos e elimine o apoio à
indústria local, tudo isso em meio a uma crise econômica aprofundada
por essas mesmas políticas. Essas cercas, é claro, são tão antigas quanto
o colonialismo. “Tais operações usurárias colocam barras em torno das
nações livres”, escreveu Eduardo Galeano em As veias abertas da América
Latina. Ele se referia aos termos de um empréstimo britânico à Argentina
em 1824.
[…]
É preciso refletir sobre a citação de Naomi Klein sobre as cercas modernas, expressas principalmente
nas cidades, no meio urbano.
126
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
A expressão da modernidade nas cidades, nos casos de sociedades desiguais, dá‑se por meio de
instalações sofisticadas de alto custo para os seus usuários tanto residentes quanto circunstanciais,
isto é, aqueles que nelas moram, trabalham ou simplesmente as visitam na condição de viajantes ou
turistas, todos convivendo com problemas que em maior ou menor escala subsistem e se expandem.
Modernidade que, via de regra, não traz os devidos compromissos com as soluções democráticas,
submetendo e criando formas para atender os interesses determinantes dos grupos que se associam
para governar. Decorre daí que os problemas são vivenciados de modo desigual e têm impactos distintos
nos diferentes grupos sociais e áreas do espaço urbano.
Não é possível caracterizar a vida urbana sem falar do que nela funciona mal, por isso segue uma
relação de alguns dos importantes problemas de moradia, preço da terra, segurança, trabalho e emprego,
transporte, educação, saneamento e fronteiras, que atormentam a vida dos governos e da sociedade:
6.5.1 Habitação
A cidade industrial pujante convive com déficits habitacionais, desde suas origens. A consolidação e
o enfrentamento dos processos que levam à favelização das autoconstruções como moradia urbana
e ao aumento dos moradores de rua ou sem-teto são acontecimentos mundiais e que existem mesmo
em países com grande crescimento econômico (até mesmo considerados desenvolvidos), configurando
um dos sérios problemas decorrentes da globalização do capitalismo. A fragmentação do tecido social
é equiparada àquela do espaço:
127
Unidade II
Observação
Toda vez que ele chegava a ***, a primeira coisa que sua mãe fazia era levá‑lo
ao terraço (ele, com uma saudade indolente, distraída e logo inapetente,
teria ido embora sem subir até lá): — Agora vou lhe mostrar as novidades — e
indicava as novas construções. — Ali os Sampieri estão levantando mais um
andar, aquele lá é o prédio novo de um pessoal de Novara, e as freiras, até as
freiras — lembra o jardim com bambus que a gente via lá embaixo? —, agora
veja o buraco que elas fizeram, quem sabe quantos andares vão querer
erguer com essas fundações! E a araucária da vila Van Moen, a mais linda da
Riviera: agora a empresa Baudino comprou toda a área, e uma árvore que
devia ter sido tombada pela prefeitura virou madeira de lenha; aliás, seria
impossível transplantá‑la, quem sabe até onde iam as raízes. Agora venha
ver desse lado: a gente já não tinha vista para o nascente, mas veja o novo
telhado que apareceu; pois bem, agora o sol da manhã chega meia hora
depois (CALVINO, 2002, p. 12).
Observação
128
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Além dos problemas mais óbvios ligados a assaltos e crimes, temos também a insegurança e o risco
de desabamentos, enchentes, alagamentos, que apontam para condições degradantes da vida urbana
que fragilizam o ser humano, causando doenças, matando ou mutilando, e têm sido frequentes em
muitas cidades.
Cada sociedade deve refletir profundamente sobre a corresponsabilidade estatal (União, estados
e municípios) com a segurança, nas dimensões pública e privada, modalidades de defesa civil (contra
acidentes) e de polícias civil e militar (violência). Essa situação provoca insegurança social e psíquica,
destruição ou depredação física com profundos abalos morais, além dos custos elevados com serviços
policiais e equipamentos de segurança – violência que tende a se transmutar para ludibriar e, assim,
perdurar e se alastrar.
Olhar a cidade apenas pelas janelas (da casa ou do carro) implica não vê‑la. E ao não a apreender, tal
como é, restam as imagens do que é vivido exteriormente, como o “de fora”, que está, infelizmente, “lá
fora”. Este é o lugar do medo, da negação e do horror ao outro.
[…] meninos e meninas são presas fáceis da patologia social que rege o
imaginário popular e aponta‑os como “bandidos do futuro” (OLIVEIRA,
1991, p. 8).
(baixo crescimento, recessão, inflação). Para alguns autores, como Paul Singer (1996), nossa realidade
é mais apropriadamente interpretada pelo conceito de precarização. De qualquer modo, são processos
que transformam trabalhadores em cidadãos de segunda categoria, integrantes dos circuitos inferiores
da economia, dependentes ou aptos à assistência do Estado ou propensos a atividades marginais
ou clandestinas, erroneamente denominadas informais (SANTOS, 1994, p. 95) e, até mesmo, aquelas
infratoras e criminosas. São processos de precarização, segundo Paul Singer:
Observação
130
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Há que se considerar que no sistema tributário atual essa estrutura produtiva não garante crescentes
(e justas) contribuições fiscais ao Estado (haveria que adequá‑lo) e não se obtém seguridade social para
os seus praticantes. São atividades que, embora escondam feixes de relações subterrâneas, permitem a
sobrevivência a milhões de habitantes das cidades e das áreas rurais conexas:
Observação
Produto de escolhas valorizadas historicamente e composto por ruas, avenidas, túneis e viadutos,
é palco de conflitos permanentes entre o aumento de veículos em circulação e o espaço cada vez mais
exíguo para o seu trânsito.
131
Unidade II
A história do sistema é a própria história das soluções territoriais da ocupação dos lugares:
loteamentos para assentamentos, parcelamento para habitações, arruamento para circulação; portanto,
a questão da mobilidade envolve diretamente a da habitação, do trabalho e do lazer (fruir e fluir).
Seguindo essa linha, o trecho de “Não verás país nenhum”, de Ignácio de Loyola Brandão, pode nos
ajudar a imaginar nosso futuro com os automóveis.
— Aqui foi mais fácil fechar a estrada. Tem quinhentos quilômetros de carros.
132
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
— Foi uma semana tão louca. Pensei que o país ia explodir. Pela primeira
vez os brasileiros se revoltaram. Vi gente se armar e sair à rua tentando
formar grupos.
Entre um Passat e um Corcel, paramos. De que ano são estes carros? Nunca
fui bom para marcas. Nem sequer aprendi a dirigir. Me achava distraído
demais, comodista. Adelaide gostava, apanhava o carro do pai, saíamos aos
domingos para a praia ou um piquenique à beira da estrada […].
— Quem ia pensar que um dia íamos nos sentar entre os carros nesta estrada?
— Quase fiquei louco, Souza, naquela noite. Queria matar, pegar alguém.
Buzinavam, aceleravam. Podia ver o ar preto de fumaça. A maioria esgotou
a gasolina e o álcool do tanque. Ninguém desligava o motor. Pela manhã,
as pessoas continuavam dentro dos carros. Como se pertencessem a ele.
Câmbio, volante, freio, condutor. Esperavam, não sei o quê.
— Na minha rua teve gente que não acreditou no noticiário, tirou o carro da
garagem, pela manhã, e foi embora. Voltou a pé.
— Teve motorista que ficou uma semana, duas, sem abandonar o carro.
De vez em quando batiam, pedindo para ir ao banheiro. Recusei, para
133
Unidade II
todos. O que estavam pensando? Que fossem para suas casas. As famílias
traziam mudas de roupas, café, comida. E o desespero quando souberam
que não circulariam mais? Choravam diante do automóvel, inconsoláveis,
lamentando como se fosse parente morto. Mulheres desmaiavam, histéricas.
É um setor essencial para suprir as atividades produtivas da mão de obra e garantir a circulação
e o acesso de pessoas à escola, compras e lazer. Os transportes urbanos são intermodais, sobre pneus
(ônibus, táxis), sobre trilhos (trens e metrôs) e aéreos (helicópteros). Em muitas cidades, os serviços são
insuficientes, aumentando os tempos de espera e de viagem, além de oferecer situações de desconforto
e risco aos seus usuários. Mas, como diz Eduardo A. Vasconcellos,
Eduardo A. Vasconcellos (1999) afirma que na sociologia urbana não se pode mais tratar o transporte
como questão de engenharia de origens e destinos (p. 39‑40), tornando‑se mais abrangente como
questão comportamental e sociopolítica (p. 57), pois envolve cultura, política e economia na circulação
como consumo coletivo: da via, dos meios para dela se apropriar e dos lugares por onde ela passa e para
onde ela leva. Matta faz a seguinte observação:
134
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Esses dois fatores andam juntos, pois muitas doenças são provocadas pela ausência ou pela
limitação de serviços de coleta, tratamento e destinação de esgotos, bem como dos serviços de
tratamento e distribuição de água. Há ainda inúmeros casos de cidades que despejam seus esgotos
in natura em rios e córregos que representam mananciais para abastecimento de outras cidades, situadas a
jusante ou mais abaixo do curso do rio. A água é na atualidade um bem escasso e a sua utilização
múltipla, para abastecimento, diluição de esgotos e geração de energia. Muitas cidades, como São
Paulo, por exemplo, têm mostrado resultados críticos em relação à saúde pública e à preservação do
meio ambiente. Além desse aspecto, outro de igual importância é o atendimento médico hospitalar
e o acompanhamento preventivo da saúde dos moradores, cuja qualidade e presteza variam de
cidade para cidade, de país para país, conforme a renda local e as políticas vigentes para o setor. É
interessante notar que a medicina teve sua história, desde a fundação com Hipócrates, associada aos
conhecimentos ambientais, posto que a topografia, os cursos d’água, o clima e a direção dos ventos,
além dos estilos de vida, dejetos e descartes humanos contribuíam para gerar padrões epidêmicos
(COSTA, 1997). A autora acrescenta que:
6.5.9 Educação
A educação é condição básica para o exercício da cidadania, um serviço prestado pelo Estado e,
em muitos casos, também pela iniciativa privada. Além da disponibilidade de vagas e da qualidade dos
cursos ministrados, a localização das escolas e sua acessibilidade à população têm sido um problema
enfrentado principalmente nos centros urbanos dos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. A
escola constitui para a maioria dos jovens uma primeira experiência de uso coletivo de um benefício
público, de apreensão de conhecimentos e do convívio com um patrimônio da cultura urbana, referências
nem sempre apreciáveis, em virtude da precariedade existente.
135
Unidade II
Observação
Alguns dos maiores problemas estão ligados ao gigantismo das estruturas urbanas e da complexidade
de seu funcionamento e alimentação desses sistemas técnicos, como apresenta Milton Santos (2004,
p. 72) e Mike Davis, no trecho a seguir:
Ainda segundo Mike Davis (2007, p. 413), sabemos mais sobre as florestas tropicais do que sobre
ecologia urbana.
Limites, demarcações e fronteiras entre cidades apresentam casos em que os marcos geográficos foram
incorporados pela urbanização, com suas edificações, vias e outras intervenções que alteraram a paisagem
natural. É o processo de conurbação, em que as cidades coincidem no mesmo território, confundindo moradores
e usuários e, em geral, provocando problemas quanto à identidade do local (qual é a minha cidade?), acesso
aos serviços públicos (cidade atendendo demandas de outras cidades) e arrecadação fiscal (dupla cobrança).
136
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Observação
A cidade e o bairro, tanto paroquial de origem periurbana e rural (originados ao redor de uma igreja
matriz, no caso das cidades de colonização portuguesa) quanto de origem industrial ou migratória,
esvaziaram‑se dos vínculos próximos, do reconhecimento nos objetos e no entorno que tinha sentido
e era facilmente mapeável Gottdiener (1993, p. 264); Seabra (2001, p. 82). Seus limites e demarcações
vinham das vidas e das relações de parentesco, trabalho compartilhado e vizinhança.
De atributos vivenciais, cidades e bairros tornaram‑se nós de redes e distritos para o pensamento
planejador; aqui, os limites, diferentes das vilas, dos bairros e das cidades, são atribuídos exteriormente
num mapa por um burocrata. Contudo, todo evento e toda ação comum tomam lugar histórico, e
sempre convém indagar diante de um acontecimento: de onde vem e até onde vai o lugar (de sua
ocorrência)? (CAMACHO, 2008, p. 104).
Os lugares de convívio vão até onde conheço os moradores de meu cotidiano; simples. Hoje, vão
até onde as linhas do mapa me mostram, ou a voz gravada do aparelho de GPS.
Até ontem, os objetos nos podiam falar diretamente; hoje, nós os miramos
e eles nada nos dizem, se não houver a possibilidade de uma tradução”
(SANTOS, 1996, p. 180).
Se pude compreender como nasce em mim esta vaga (de uma relação do
visível consigo mesmo que me atravessa e me transforma em vidente…),
como o visível que está acolá é simultaneamente minha paisagem, com
mais razão posso compreender que alhures ele também se fecha sobre si
mesmo, e que haja outras paisagens além da minha (MERLEAU-PONTY,
2005, p. 137).
137
Unidade II
Os vários momentos dessa relação de poder que opõem e alinham os agentes sociais é a própria
história dos usos dos recursos, das motivações aos impactos e, destas, às respostas públicas e privadas.
Usos, aqui, são ações que tomam recursos ambientais e transformam o espaço social; toda ação
territorializa‑se como condição essencial.
Assim como o processo de urbanização do qual falamos é responsável pela estruturação social
(ordenamento e organização das sociedades) em todas as suas dimensões, moldando países (e até
mesmo criando-as) como mercados solváveis, também é responsável pela produção das formas
(aparência, modo como as coisas nos chegam) e funções (atividades procedentes das formas) mais ou
menos urbanas, isto é, da imensa variedade que vai das cidades intensamente urbanizadas aos espaços
estritamente agrários. Complementando nossa abordagem dos processos de urbanização e globalização,
as formas e funções são nosso foco a seguir; isto é, as ações e atividades basicamente urbanas, e de suas
razões, do modo como aparecem. Estrutura, processo, função e forma são trabalhados detalhadamente
em Milton Santos (1985).
Observação
Como serão nossas cidades daqui a 40 anos neste ritmo, alguém consegue
imaginar? (MORSOLIN, 2015).
140
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
O que se está afirmando é que há sempre vozes numa frequência laboriosamente investida de
eficácia na pretensão do alcance das cabeças, das mentes. A maneira tem a racionalidade toda própria
da mensagem eficaz, posto que seja redundante e repetitiva, como as rotinas que tenta inculcar, imputar,
no fim, às mãos produtoras, que operam máquinas e calculadoras.
As motivações promovidas pela mensagem única, unilateral são um comando para a ação dirigida
de produzir riqueza, detalhe fundamental para uma sociedade homogênea.
Crise do fordismo
taylorismo
(década de 1970)
Reetruturação
capitalista
Redimensionamento
do processo produtivo
e reorganização do
trabalho na produção
Precarização das
Crise do mundo condições e
do trabalho Desemprego e relações de trabalho
informalidade
Desenvolvimento Geração de
econômico trabalho e renda
Economia solidária
Práticas sociais são monitoradas com letreiros e justificativas de segurança pública (os números de
capital e de pessoas investidos nessa tarefa são exorbitantes), tudo visando às normatizações para o
“mundo determinado” de Maurice Merleau‑Ponty.
141
Unidade II
Desse modo, surge a questão das liberdades possíveis, tratadas no próximo passo.
Ao nos referirmos à cidadania seletiva, tocamos num ponto nodal da estrutura social brasileira, qual
seja, a intensa hierarquia de posições ou status quo: o que é trazido neste trabalho tanto pela sociologia
quanto pela economia rural‑urbana, com o humano aos pedaços (mãos, cabeças e mentes direcionadas
com propósitos), controlado por aparato técnico com vistas ao seu encaixamento na realização da
moderna economia internacional globalizada, nas múltiplas escalas.
Exemplo de aplicação
Há uma cidadania formal e real para os habitantes dos espaços rural e urbano. Há expectativa de
acesso ao consumo e uma idealização de cidadania na base da socialização e das demais relações
entre os agentes concretos; com o agravante do terrivelmente veloz envelhecimento direcionado,
seletivo dos objetos e das ideias.
O conceito de lugar presente no segundo tópico veio com a vivência, que é uma certa consciência
da existência, e com a pesquisa, transformando‑se, na passagem do mundo indeterminado para o
determinado, em objeto empobrecido da ciência; transição da totalidade de possíveis para a totalidade
ao modo do meio técnico‑científico informacional, de Milton Santos, totalidade considerada no seu
movimento estrutural e nas intencionalidades; também da vida cotidiana normatizada, estudada
por Henri Lefebvre (1981). Tal normatização é importante quando se tenta entender os labirintos de
verdadeiras experiências comportamentais a que somos lançados pela educação de modo geral, pelo
marketing, pelas campanhas publicitárias.
Claro que a vida cotidiana dá‑se em meio a atavismos, entretanto, é, também, lugar de evidências.
Para Lefebvre (1981), considerando toda a turbulência factual e cognitiva dos primeiros anos século XX,
e a despeito de todas as mudanças da modernidade, haveria continuidades, e o cotidiano é tido por ele
como lugar das permanências, que reforçariam nossa ênfase na atitude natural ou mundana da vida.
142
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
6.6.1 Cidadania seletiva para os habitantes dos espaços rural e urbano: o peso da
norma
Nesse cenário, Santos (1978b), em texto intitulado “A totalidade do diabo”, ajuda‑nos a entender
criticamente os núcleos difusores das transformações sociais ou modernizações, os motores
das inovações.
Temos que nos perguntar: o que aconteceu com os vínculos homem‑natureza? Vínculos e
geograficidades. No campo, tais vínculos sempre foram estereotipados e representados em tons de idílio
e de engessamento da dinâmica histórica das relações e dos papéis sociais dos agentes (arte e senso
comum).
É um percurso geográfico e sociológico que vai do mito, da labuta mítica ou labor contínuo, às
técnicas de distanciamento das coisas nas cidades, mais ou menos como vimos olhando para essa
relação com Raymond Williams (1989 apud Santos, 1978).
A questão posta logo na introdução do texto (SANTOS, 1978b, p. 53) é se “podem os objetos
geográficos desempenhar um papel instrumental, levando a efeito transformações na sociedade?”, ao
que o autor passa à argumentação de que as tais transformações são algo como inovações de estilo dos
processos capitalistas de dominação de territórios; uma espécie de metamorfose do planejamento da
década dos anos de 1950, subordinador das formações socioeconômicas.
143
Unidade II
Para tanto, Milton Santos (1978b), na mesma obra, recorre ao arcabouço teórico da geografia
nova que vinha formulando com os fatos vivenciados nos países em que estava trabalhando, mais
especificamente Venezuela e Tanzânia.
Aponta a reificação dos objetos como aquela realizada por Schumpeter (1943; 1970, p. 12 apud
Santos, 1978b), para quem estes mesmos seriam, eles próprios, os difusores de mudanças. Mostra o
equívoco da interpretação da realidade a partir da consideração das categorias de estrutura, processo,
função e forma, que permitiriam tratar dos tais objetos como portadores de seu contexto e conteúdo
social; estes, sim, difusores das inovações. Seu raciocínio, no artigo, é apresentado da seguinte maneira:
as formas como ferramenta do capital.
Fica claro de que planejamento se está tratando: aquele a serviço das forças dominantes/hegemônicas
do capitalismo. Daí que suas estratégias carreguem seus desígnios, através das formas espaciais, por
exemplo. Refere‑se às mesmas, em sua potencialidade, como “cavalos de Troia”. E, como tais é que
intentam mudar as estruturas das formações socioeconômicas em que são implantadas. É este o ardil
que suplanta a visibilidade explícita do planejamento que substitui.
Dois seriam os atributos principais dessas formas, vislumbradas no momento em que escreve o
trabalho (meados da década dos 1970): um valor agregado crescente, além de maior especialização.
O que resulta, parece, em certa fixidez no território, no caso do primeiro, dificultando sua apropriação
por outros sujeitos e ações, que não as projetadas, da parte do segundo. A instalação dos objetos se
daria de modo mais sutil com relação aos resultados, quando comparada ao planejamento antecedente
e, também não necessitaria tocar na estrutura socioespacial dos países. Tais processos podem ser
percebidos no filme Adeus, Lênin!, de 2003.
• Substituição e alterações das formas para responderem mais velozmente aos processos necessários
à reprodução ampliada do capital.
• Projetos.
Descreve o processo que virá a denominar “verticalidades” (de uma temporalidade e totalidade
para outra).
Esse tema, o das formas espaciais instaladas no território, foi pormenorizado no último trabalho de
Milton Santos e María Laura Silveira, chamado de O Brasil: território e sociedade no início do século XXI,
de 2002.
144
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Há, como já vimos, uma linha majoritária em ciências sociais que toma como absolutas as tendências
de realização plena da urbanização. Dentre os representantes dessa perspectiva importante, estão
intelectuais como Milton Santos, que deixa clara sua posição sobre a Reforma Agrária, tantas vezes
reiterada, alertando para sua finalidade verdadeira. Ele lembra que a propriedade da terra é forma e
que agregar capital à agricultura é a verdadeira razão dos programas de ajuda. As duas estratégias de
planejamento envolvendo a tecnologia são:
Mas outras determinantes estão em ação, além das externas. As forças endógenas devem ser
consideradas territorialmente, pois cada região é cobiçada pelos agentes econômicos diferencialmente,
dependendo do que tenha a oferecer ao mercado, querendo fazê‑lo ou não.
É nesse ínterim que é possível entender o eterno debate entre aqueles que não veem o camponês
(ou o veem como obsoleto), tendo sido incorporado ao movimento ampliado do capital, e os que
nele depositam a sobrevivência de formas tradicionais como continentes de valores importantes à
moralização do capitalismo.
Lembrete
Ao tratar das ingerências do Banco Mundial na realidade desrespeitada dos povos, é interessante
considerar os comentários de H. M. Enzensberger em seu livro Mediocridade e loucura (1995), no
capítulo “Bilhões de todo mundo, uni‑vos”. Alguns elementos nesse processo de desorganização para
reorganização modernizante são, conforme o autor, projetos habitacionais, estruturas montadas para “extrair
sobrevalor gerado pelos pobres”.
Henri Lefebvre mostra as nuances dos processos de destruição da cidade tida por obra coletiva.
A grande crítica é dirigida ao uso das formas sociais como instrumentos dessa acumulação e dominação
(SANTOS, 2002); o que fica evidente também com a identificação do padrão corporativo de valorização e
divisão territorial do trabalho, que segrega espaços (SANTOS, 1994), ao produzir, destruir e reproduzir espaços
como negócios (CARLOS; VOLOCHKO; ALVAREZ, 2015; VALLEJO, 2015). O processo de destruição e valorização
capitalista da cidade é também trazido pelo interessante “especulação imobiliária”, de Ítalo Calvino (2002).
145
Unidade II
Mais especificamente, temos o caminho da fenomenologia que se põe para desvendar o lugar pela
experiência (HOLZER, 2012), além de nossa maior aliada na “desobstrução do real”, a antropologia
(etnografia); isto é, encarregando‑se do problema antigo das imagens infiéis da realidade.
Marcel Mauss, em “Ensaio sobre a dádiva” (1923‑1924), obra fundamental à teoria antropológica,
trata de pesquisas das formas arcaicas de vínculos e trocas de referência econômica. Estabelece
comparações entre sistemas de dons das sociedades da Polinésia, Melanésia e noroeste americano, e
apresenta as bases dessas trocas: a obrigação de dar, receber e retribuir. Mauss estuda formas arcaicas
da troca, contudo generaliza sua racionalidade (da dádiva) às sociedades modernas (ocidentais, em geral).
147
Unidade II
• Movimentos culturais e ocupação de espaços por diferentes grupos (agregados por idades, renda,
representações, procura por lazeres, entre outros motivos).
• A expectativa de consumo e ideal de/sombra da cidadania na base das relações entre os agentes
concretos; o envelhecimento direcionado dos objetos e das ideias.
• Relações sociotécnicas e cultura: mudanças nas relações sociais globais/do conjunto social, na
relação com a terra, nos vínculos sociais a ela e ao produto do trabalho, transformam‑se os rituais.
Saiba mais
Agora, vamos observar as imagens satíricas que brincam com nossas mazelas urbanas dos artistas
Isay Weinfeld e Marcio Kogan, elas são muito interessantes.
[…]
148
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Figura 6
A proposta do projeto de lixovia, feito para São Paulo, é a instalação de cestos de lixo contínuos
nas avenidas. Com eles, o ato, tão corriqueiro de jogar lixo pela janela do carro se tornaria um gesto
civilizado (LOBO, 2001, p. 20).
Nossos emaranhados anéis viários são representados na figura a seguir. Trata‑se de uma “solução
para facilitar o trânsito de veículos em Paris. Uma aplicação inconfundível do know‑how – e, no caso,
do savoir‑faire – paulistano” (LOBO, 2001, p. 21).
149
Unidade II
150
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
Mesmo que o Rio Tietê venha a ser despoluído, que paisagem as pessoas que navegarem nele vão
ver? Adotando barcos sem janelas, este projeto é econômico, pois dispensa a reurbanização das avenidas
marginais (LOBO, 2001).
151
Unidade II
Resumo
152
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
153
Unidade II
Exercícios
Figura 10
A charge de Miguel Paiva, publicada no dia da promulgação da atual Constituição brasileira, aponta
para a contradição entre realidade social e garantias legais.
No Brasil, o acesso aos direitos de cidadania é limitado fundamentalmente pelo seguinte fator:
A) Formação profissional.
B) Demanda habitacional.
C) Distribuição da riqueza.
D) Crescimento da população.
E) Garantias constitucionais indevidas.
A) Alternativa incorreta.
Justificativa: não é o profissionalismo que está na raiz do problema, ele próprio uma consequência.
B) Alternativa incorreta.
Justificativa: não se trata de tal assunto; também é consequência.
154
SOCIOLOGIA RURAL E URBANA
C) Alternativa correta.
Justificativa: a distribuição da riqueza está nas bases da seletividade, desde aquela de cunho
educacional até a consciência e acesso aos serviços jurídicos. A charge de Miguel Paiva ironiza,
criticamente, essa contradição, a situação de péssima distribuição e, portanto, de acesso aos serviços e
condições garantidos pela constituição, mas não de fato. Cabe, também, uma discussão sobre o caráter
privado do Estado, cujos objetivos não são atender às necessidades referidas.
D) Alternativa incorreta.
E) Alternativa incorreta.
Figura 11
EDRA. Especulação Imobiliária. Diário de Caratinga, cartunista EDRA. Sábado, 12 de fevereiro de 2011.
Disponível em: https://bit.ly/3PxBKT6. Acesso em: 30 jan. 2019.
A Zona Portuária do Rio de Janeiro vem recebendo muitos investimentos públicos e privados
com o objetivo de promover sua renovação física e funcional. Considerando a charge, a nova
dinâmica espacial pode ter a seguinte consequência sobre o processo de urbanização nessa região
da metrópole carioca:
155
Unidade II
A) Alternativa correta.
Justificativa: a ação de expulsão apresentada é uma das faces dos processos de gentrificação ou
“requalificação”, “reabilitação” de áreas “decadentes”. Tudo muito controverso. Os investimentos na zona
portuária do Rio de Janeiro tendem a valorizar a região. É mais uma área abandonada pelos governos
sem vocação de poderes públicos, passando a ser ocupada por pessoas de baixa renda que não tinham
condições financeiras de morarem em outras regiões. Na onda da gentrificação, os investimentos na zona
portuária torná‑la‑ão uma região com acesso a serviços públicos e revitalizada em termos estéticos, o
que atrai empresas e pessoas de nível social elevado. No entanto, infelizmente, tais operações urbanas
não beneficiam as pessoas que moram na região há décadas, uma vez que elas serão fatalmente expulsas
pela especulação imobiliária que já começou no local, como mostra a charge. Essa é uma face perversa
do desenvolvimento, que revitaliza espaços abandonados às custas da exclusão da população local.
B) Alternativa incorreta.
Justificativa: não há nada na charge que denote tal processo, pelo contrário, as ações de modernização
capitalistas operam no sentido de expandirem as atividades comerciais.
C) Alternativa incorreta.
Justificativa: não há nada na charge que denote tal processo; normalmente as atividades industriais,
estrito senso, são empurradas para as franjas das cidades.
D) Alternativa incorreta.
Justificativa: não há nada na charge que denote tal processo, ao contrário, as ações de modernização
capitalistas operam no sentido da expansão dos transportes.
E) Alternativa incorreta.
Justificativa: a gentrificação tem objetivado requalificar áreas nos parâmetros de agregação de valor
nos moldes capitalistas, tomando trechos dos espaços urbanos como mercadorias.
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