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Na modernidade, as relações passaram a ser rompidas por uma força individualizadora. A ideia
de um interesse comum perdeu cada vez mais todo valor prático. Vários fatos recentes,
segundo Bourdieu, quebraram os fundamentos das solidariedades passadas.
A utilização do trabalho se tornou de curto prazo e precária. Funcionários hoje não têm mais o
mesmo vínculo com seus empregadores. Podendo entrar e sair a qualquer momento. Há um
desengajamento e enfraquecimento dos laços, inclusive os do casamento. Os casamentos
estão cada vez mais superficiais e propícios ao divórcio, haja vista tal desengajamento.
As principais fontes de lucro não são os objetos materiais, mas sim as ideias. Estas são
produzidas apenas uma vez, e dependem do número de pessoas atraídas (consumidores) e
não do número de pessoas empregadas. O objeto da competição são os consumidores, e não
os produtores.
No topo da pirâmide de poder do capitalismo leve, circulam aqueles para os quais o espaço
tem pouca ou nenhuma importância. Não possuem fábricas, terras, nem posições
administrativas. Sua riqueza vem de seu conhecimento das leis do labirinto. Vivem em uma
sociedade de valores voláteis, despreocupada com o futuro. Dominam a are de viver no
labirinto.
As novas elites globais e exterritoriais ocupam-se com formas mais soltas de organização que
possam ser formadas, desmanteladas e repostas a curto prazo ou sem aviso prévio.
DIGRESSÃO: PROCRASTINAÇÃO
Pro-crastinar é pôr alguma coisa entre as coisas que pertencem ao amanhã. Para ser destinada
ao amanhã, essa coisa deve ser tirada do presente. Procrastinar é não tomar as coisas como
elas vêm, não agir segundo uma sucessão natural das coisas. Na modernidade, é uma
tentativa de assumir o controle da sequência de eventos e fazê-la diferente do que seria caso
se ficasse dócil e não se resistisse. Procrastinar é, assim, manipular as possibilidades da
presença de uma coisa, deixando, atrasando e adiando seu estar presente, mantendo-a à
distância e transferindo sua imediatez.
Ela deriva seu sentido atual do tempo vivido como peregrinação, ou seja, como um movimento
que se aproxima de um objetivo. Cada presente é avaliado por alguma coisa que vem depois.
O tempo carece de sentido e valor, e é assim falho, deficiente e incompleto. Seu sentido está
adiante.
Viver a vida assim obriga cada presente a servir a alguma coisa que ainda não é, diminuindo a
distância, trabalhando pela proximidade. Mas se a distância desaparecesse e o objetivo fosse
alcançado, o presente perderia tudo o que o fazia significativo e valioso. A racionalidade
instrumental favorecida e privilegiada pela vida do peregrino leva à busca dos meios que
podem realizar o estranho feito de manter o fim dos esforços sempre à vista sem nunca chegar
lá. Sua vida é uma viagem em direção à realização.
A procrastinação reflete essa ambivalência. Procrastina-se para estar mais bem preparado
para captar as coisas que verdadeiramente importam. Mas se captá-las, sua peregrinação
acabará, deixando a vida sem sentido. A procrastinação torna-se seu próprio objetivo.
Uma satisfação instantânea, constante e irrefletida. Sendo instantânea, a satisfação não pode
ser constante, a menos que de curta duração.
Quão frágeis e incertas se tornaram as vidas daqueles já dispensáveis como resultado de sua
dispensabilidade não é muito difícil de imaginar. Ninguém se sente verdadeiramente seguro,
ninguém pode supor que está garantido contra a nova rodada de redução de tamanho.
Flexibilidade é a palavra do dia. Empregos sem segurança, compromissos ou direitos, demissão
sem aviso prévio e nenhum direito à compensação. Ninguém pode se sentir insubstituível.
Na falta de segurança de longo prazo, a satisfação instantânea parece uma estratégia razoável.
O adiamento da satisfação perdeu seu fascínio.
As modas vêm e vão o tempo todo. Os objetos de desejo se tornam obsoletos antes que
possamos aproveitá-los. Condições econômicas e sociais treinam as pessoas a perceber o
mundo como um container cheio de objetos descartáveis. Por que gastar tempo com
consertos que requerem trabalho se é mais fácil substituir?
Num mundo cujo futuro é cheio de riscos e perigos, colocar-se objetivos distantes, abandonar
o interesse privado para aumentar o poder do grupo e sacrificar o presente em nome de uma
felicidade futura não parecem ideias atraentes e razoáveis. Não se pode perder as
oportunidades. Pessoas assim raramente diferenciam peças de automóveis de laços humanos.
Assim, a precarização produzida pelos operadores dos mercados de trabalho acaba sendo
apoiada e reforçada pelas políticas de vida. Há uma decomposição dos laços humanos. Esses
são vistos como algo a ser consumido, e não produzido. No mercado, as mercadorias vêm com
um período de teste. O mesmo se dá nos casamentos. É uma questão de se obter satisfação de
um produto para o consumo. Se não for como desejado, substitui-se, divorcia-se.
Pessoas inseguras tendem a ser irritáveis e são intolerantes com o que funcione como
obstáculo a seus desejos. Se a satisfação instantânea é a única maneira de sufocar o
sentimento de insegurança, não há razão evidente para ser tolerante em relação a alguma
coisa ou pessoa que não tenha óbvia relevância para a busca da satisfação.
Peyrefitte indica a empresa que gera empregos como o lugar por excelência para a
disseminação e cultivo da confiança. No entanto, não há enfrentamento sem confiança. Se o
empregado luta pelos seus direitos, é porque confia no poder do quadro em que seus direitos
se inseriam. Esse, porém, não é mais o caso. Ninguém espera passar o resto da vida na mesma
empresa. É difícil construir a confiança em organizações que estão sendo desmontadas,
reduzidas e reengenheirizadas.
Presos como estão a seus lugares, impedidos de se mover e detidos no primeiro posto de
fronteira seo fizerem, estão numa posição inferior à do capital, o qual se move livre. O capital é
global, e os trabalhadores, locais. O que quer que ganhem hoje lhes pode ser tirado amanhã
sem aviso prévio. E não estão dispostos a arriscar a luta.