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A angústia e sua tarefa de ligação

A angústia e sua tarefa de ligação1


Ana Maria Portugal Maia Saliba
Resumo
O texto propõe pensar as relações entre a angústia e a vida pulsional como apoiadas no
princípio de ligação – Bindung –, primordial ao princípio de prazer. Passando pela teoria da
Segunda Tópica freudiana e com os efeitos da insistência do Real na clínica, conclui com
observações sobre a topologia lacaniana dos nós, propondo a angústia como a vida do Real.

Palavras-Chave
Angústia – Pulsão de vida – Pulsão de morte – Princípio de ligação – Topologia lacaniana
dos nós

o(s)
“Pede-se fechar olho(s).”
um
Freud2

Para introduzir e explicar sua arti- marcam a mesma hiância, uma mesma
culação sobre as relações entre angústia negação e impossibilidade?
e objeto, com a frase: “a angústia não é O fato é que Freud não faz a cone-
sem objeto”, Lacan, na lição VII do Se- xão, a não ser no título: Angústia e vida
minário da Angústia, refere-se ao início pulsional.
da Conferência 32 de Freud, “Angústia Inicia definindo sua fala a partir de
e vida pulsional”.3 concepções – Auffassungen – para comu-
Dois temas são aí agrupados: a an- nicar as novidades sobre a angústia e as
gústia e a vida pulsional. Podemos olhar pulsões fundamentais – Grundtriebe. Es-
um, ou outro, ou os dois em sua con- clarece que partir de concepções signi-
junção disjuntiva. Ficam perguntas: os fica “introduzir as representações abstra-
temas são relacionados, ou apenas jus- tas corretas, cuja aplicação ao material
tapostos por trazerem novidades, deven- bruto da observação permite fazer bro-
do ser encarados isoladamente? Se es- tar neste, ordem e transparência.”4
tão propositalmente juntos, como um Surge uma hipótese: a angústia se-
recai sobre o outro? Ou será que os dois ria o material bruto – como queixa prin-
cipal da maioria dos neuróticos; a cas-
tração e as pulsões seriam concepções,
1
Estas notas foram apresentadas na Jornada de Car-
téis do Aleph Escola de Psicanálise, 2005, sendo, representações abstratas. Se essa é uma
posteriormente, ampliadas e complementadas. hipótese válida, em que aspecto a cas-
2
FREUD, Carta a Fliess nº 50, de 2/11/1896. In
MASSON, 1986.
3
Por tomarmos como referência o texto em alemão,
preferimos traduzir desta maneira o título de
4
FREUD, 1933, GW p.87, ESB, p.103. A paginação
Freud: “Angst und Triebleben”, diferente da Edi- constante das notas refere-se à edição alemã, se
ção Standard Brasileira, que propõe: “Ansiedade acompanhadas de GW, e à edição brasileira, se
e a vida instintual”. acompanhadas de ESB.

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tração e as pulsões trazem “ordem e conseqüências da dissecção da persona-


transparência” à angústia? lidade psíquica (Segunda Tópica) sobre
Interessante é que também no iní- a teoria da angústia, pois, o eu sendo a
cio do texto de 1914 sobre as pulsões única sede da angústia, sofre este afeto
“Pulsões e Destinos das Pulsões”, há uma por suas dependências, tanto do mundo
introdução sobre o método de pesquisa externo quanto do Isso e do Supereu.
das ciências e da psicanálise a partir de Esta é uma nova concepção – lem-
conceitos fundamentais – Grundbegriffe bremos a postulação de Freud: “repre-
– que nas ciências conjecturais não po- sentações abstratas, que aplicadas ao
dem ser bem definidos a priori, e que, à material bruto permitem ordem e trans-
medida que são lançados sobre o mate- parência” – e, com ela, destacou-se a
rial empírico, vão se tornando mais pre- função da angústia como sinal, pôde ser
cisos. Assim é o conceito de pulsão. vislumbrado de que material bruto ela
Retomando sua conferência anteri- se origina, e a diferença entre angústia
or sobre o tema da angústia, a de n° 25, real e neurótica ficaram mais esclareci-
define-a como um estado afetivo – das. A virada na teoria – de que não é o
Affektzustand, ou como vestígio de afe- recalque que provoca a angústia, mas o
to – Affektspur – de experiências, tanto contrário, a angústia é que o causa –
pessoais como da humanidade, transmi- provém dos resultados do complexo de
tidas por herança, ambas reações à imi- Édipo, na medida em que a situação de
nência de um perigo. Distingue ainda a perigo interna – perigo pulsional, se tor-
preparação da angústia – Angstbereits- na um perigo externo: a relação apaixo-
chaft, do desenvolver da angústia – An- nada da criança com a mãe, acarretan-
gstentwickelung, que vem a ser, propria- do, por intervenção de um terceiro, a
mente, sua irrupção. Esta pode limitar- castração; embora este não seja um pe-
se a um sinal, ou pode repetir toda a si- rigo real, a ameaça de castração recebe
tuação do trauma. o crédito da criança por estar na fase
Na angústia neurótica, que é mais fálica e diante da diferença sexual.
enigmática, pode surgir um estado geral Além disso, as três instâncias agora
de ansiedade (nervosismo) – Ängstli- postuladas definem funções diferentes.
chkeit; ou uma ligação a um conteúdo Uma parte separada do Eu se constitui
determinado, como nas fobias, nas quais como Isso, sem condição de acesso à lin-
é possível perceber alguma relação com guagem e responsável pelo caráter de
algo externo; e, na histeria e outras for- força constante da pulsão. Outra instân-
mas graves de neurose, o ataque de an- cia se destaca por ser herdeira do com-
gústia não exibe qualquer relação com plexo de Édipo, o Supereu, provindo do
um perigo externo. A associação ao re- Ideal do Eu, com exigências éticas e
calque poderia explicar essa falta de re- morais e, por outro lado, em comunica-
lação, pois este processo incide sobre um ção direta com as aspirações do Isso. A
perigo interno, a libido, perigo que não outra instância, o Eu, participa dos pro-
é reconhecido como consciente. Em tais cessos inconscientes e pré-conscientes,
circunstâncias, a formação de um sin- sendo responsável pelo importante aces-
toma pode ser uma boa solução para que so à palavra, mas, em contrapartida, é a
o sujeito não seja assolado pela angús- sede dos afetos, e, fundamentalmente,
tia. da angústia.
Terminando seu comentário com A associação da Segunda Tópica
uma afirmação de que faltou algo nes- com os efeitos do complexo de Édipo e
tas articulações, Freud reflete sobre as de castração tem grande destaque na
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nova teoria da angústia, que toma um de angústia se impõe como correlato de


matiz subjetivo, ao indicar, por meio de um perigo pulsional, aí estamos diante
um sinal, que está se aproximando o li- de seu lugar na estrutura, como um pon-
mite do que pode ser expresso e apreen- to crucial que exigirá o trabalho de liga-
dido pelo sujeito. A partir dessa experi- ção.
ência, ele pode prosseguir, tentando ela- Prosseguindo a Conferência 32, ao
borar e construir substitutos, ou então, falar das pulsões, Freud retoma suas re-
pode recuar e incrementar suas inibi- servas, propondo: “A teoria das pulsões
ções. é, por assim dizer, nossa mitologia. As
Por outro lado, a nova teoria da an- pulsões são entidades míticas, grandio-
gústia como sinal, sendo causadora do sas em sua imprecisão.”5 Se, anterior-
recalque recoloca em cena as primeiras mente, tomamos as pulsões como con-
concepções de Freud sobre o trabalho cepções, cabe bem compará-las agora à
psíquico – a chamada elaboração psíqui- estrutura do mito. Freud refere-se a
ca – que consistia em traduzir em pala- como se comporta o pensamento popu-
vras as experiências traumáticas de afe- lar, que vai inventando pulsões ad hoc, e
tos. Os resíduos dessa elaboração conti- depois as dispensa, trazendo para nós a
nuariam insistindo e pulsando, exigin- suspeita de que, por trás disto, há algo
do que uma borda fosse construída em “sério e poderoso”.
torno deles. E agora esse resíduo perma- Quanto a isto, a psicanálise a prin-
nece como um afeto principal, ponto cípio foi modesta, seguindo o rumo das
crucial para o aparelho definir seu des- grandes necessidades: a fome e o amor.
tino. Posteriormente, com a teoria do narci-
Tendo sua sede no Eu, como instân- sismo mostrou que ambos trabalhavam
cia, a angústia continua sendo um pon- numa mesma direção, dispondo do mes-
to de oscilação: ou é um estado afetivo mo tipo de energia: a libido. Foi o estu-
ou um vestígio de afeto; afeto que pode do da repetição, contradizendo o prin-
ser ou preparado ou desenvolvido, mar- cípio de prazer, que levou à suspeita de
cando o sujeito ou num estado de ner- um novo antagonismo, prosseguindo na
vosismo, de medo e expectativa de um proposta de dois tipos diferentes de pul-
perigo, ou de total desequilíbrio e des- sões: as pulsões sexuais – Eros, cuja fi-
controle, sem relação com qualquer pe- nalidade é a formação de unidades cada
rigo externo. São muitos ous, muitas vi- vez mais abrangentes; e as pulsões agres-
cissitudes. Quanto a esta nova teoria, sivas, fundadas numa tendência a res-
Freud bem poderia ter escrito: A angús- tabelecer um estado anterior de coisas,
tia e suas vicissitudes. ao que se acrescenta a finalidade da des-
Mas é que no percurso de uma teo- truição.
ria à outra, as articulações freudianas se Reservando-lhes o nome de pulsão
detiveram no estudo da repetição, pro- de morte, caracteriza-as pelos fenôme-
pondo, na virada de 1920, mais além do nos da repetição e das dificuldades que
princípio de prazer o princípio de liga- impõem à tarefa analítica, quando se
ção – Bindung –, sendo, talvez, sua reto- expressa o sentimento inconsciente de
mada o fator responsável por esta diver- culpa, “que podemos classificar como um
sidade. Se a angústia é um estado e um desejar masoquista”,6 ou seja, “a inde-
desenvolvimento, não houve ligação; se
é um vestígio, uma preparação ou um
sinal, estamos falando de ligação. Es- 5
FREUD, 1933, GW p.101, ESB, p.119.
pecialmente na neurose, em que o afeto 6
FREUD, 1933, GW, p.115; ESB, p.135.

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sejável reação terapêutica negativa”.7 A corda que amarra cada registro: do Sim-
pulsão de morte é tomada aqui em toda bólico surge o sintoma; do Imaginário,
sua grandiosidade, e, “de uma forma a inibição; e do Real, a angústia. Do
inesperada, emergimos do submundo outro lado do prolongamento da corda
psíquico para o mercado aberto.”8 que cerne o Real está a letra ?? para
Estas são as novidades sobre a “vida” marcar a possibilidade da escrita.12
pulsional, agora marcada pela morte, Estas considerações nos levam ainda
pelo devorar e ser devorado, cujos efei- a esclarecer o fato de termos postulado a
tos são felizmente atenuados e preser- relação entre a angústia e a vida pulsio-
vados ou encobertos9 por sua fusão às nal (com a inclusão da pulsão de morte)
pulsões de Eros. na exigência do trabalho de ligação indi-
Seria a presença desse real incurá- cada por elas. Não parece ser à toa que o
vel que fez Freud justapor os dois temas, verbo usado por Freud para dizer da liga-
angústia e vida pulsional? ção – binden – comporta também os sig-
A angústia, não sendo mais resulta- nificados: atar e amarrar. Da ligação va-
do do recalque, e sim, sua pré-condição, mos, pois, à amarração dos nós.
aproxima-se da pulsão de morte, pois é Com isso, é hora de voltar ao sonho
o que do real não engana. Mesmo sen- de Freud – citado em nossa epígrafe –
do o Eu a sua sede, o desenvolvimento sonhado após os funerais do pai. A an-
da angústia se dá pela retirada da ocu- gústia está bem neste ponto onde cabe
pação pré-consciente (representação- a alternativa “ou”: ou fechamos os dois
palavra) ao representante pulsional (Tri- olhos, isto é, morremos, ou podemos
ebrepräsentanz),10 restabelecendo um es- manter apenas um olho aberto, toleran-
tado anterior de coisas, estado de ener- do as hiâncias que o Real nos impõe.
gia livre e difusa, expressão da pulsão de No entanto, muito resta ainda por
morte. Mas, ao mesmo tempo, e, para- dizer. ϕ
doxalmente, a angústia é o afeto que não
permite o retorno à quietude e exige do ANXIETY AND ITS
aparelho que se faça a ligação. FUNCTION IN BINDING
Com isso, podemos dizer que a an-
gústia é a “vida” do Real, o que nos leva Abstract
a entender, em parte, o que Lacan pro- We can think that the relations between
põe em sua conferência “A terceira”11 e anxiety and instinctual life stands upon the
nos seminários que a seguem, ao correr “binding principle” – Bindung – that is
do Seminário XXII, R. S. I. Nestas pas- more primitive than the pleasure principle.
sagens, com o recurso da topologia dos Passing through the second topographical
nós, Lacan coloca a palavra “vida” fa- theory, and with the effects of the insisten-
zendo furo na consistência do Real e nos ce of the Real acting in the clinical work,
dá uma indicação a respeito dos três our conclusion stands upon lacanian knots
nomes freudianos: inibição, sintoma e topology, and proposes anxiety as the life
angústia. Estes se inserem como uma inside the Real.
cunha, cada um no prolongamento da
Keywords
7
Ibidem, GW, p.117; ESB, p.136.
Anxiety – Instinct of life – Instinct of death –
8
Ibidem, GW, p.118; ESB, p.137. Binding principle – Lacanian knots topology
9
Freud usa o termo alemão verhüten, que significa:
evitar, impedir, acobertar, preservar.
10
FREUD, 1925, GW, p.120, ESB, p.114.
11
LACAN, 1974, p.104. 12
LACAN, 1974-1975. Lição de 21/01/1975.

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Bibliografia
FREUD, S. “Hemmung, Symtom und Angst”
(1926 [1925]). In Gesammelte Werke. Frankfurt
am Main: Fischer Verlag, 1976. v.XIV.
FREUD, S. “Inibições, sintomas e ansiedade”
(1926[1925]). In Obras completas. Trad. Jayme
Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XX.
FREUD, S. “Angst und Triebleben” (1933). In
Gesammelte Werke. 7te.Aufl. Frankfurt am
Main: Fischer Verlag, 1979. v. XV.
FREUD, S. “Ansiedade e vida instintual”
(1933). In Obras completas. Trad. Jayme Salo-
mão. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. XXII.
LACAN, J. Le Séminaire, Livre X. L’Angoisse
(1962-1963). Paris: Seuil, 2004.
LACAN, J. “La tercera” (1974). In Intervencio-
nes y textos 2. Trad. Julieta Sucre et alii. Buenos
Aires: Manantial, 1988.
LACAN, J. Seminário XXII. R.S.I. (1974-1975).
Inédito.
MASSON, J.M. A correspondência completa de
Sigmund Freud para Wilhelm Fliess 1887-1904.
Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Imago, 1986.

RECEBIDO EM 30/05/2006
APROVADO EM 03/07/2006

SOBRE A AUTORA

Ana Maria Portugal Maia Saliba


Psicanalista. Membro da Escola Letra Freudiana

Endereço para correspondência:


Ana Maria Portugal Maia Saliba
Rua Levindo Lopes, 333/507 - Savassi
30140-911 - BELO HORIZONTE - MG
Tel.: (31) 3281-0715
E-mail: anaportugal@brfree.com.br

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