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PSICANÁLISE, CIÊNCIA E

PROFISSÃO
AULA 2

Profª Giovana Fonseca Madrucci


CONVERSA INICIAL

Um pouco sobre a técnica psicanalítica: o inconsciente e a associação livre


como pilares do fazer psicanalítico

Anteriormente, pudemos compreender o caminho percorrido por Freud


desde seu contato com as pacientes histéricas até o surgimento de uma técnica
e visão de homem inovadoras: a psicanálise. Foi um processo decorrente de
pesquisa e experimentação, bem como foi necessário um olhar crítico de Freud
sobre a atuação médica diante de tais pacientes, dado que teceu críticas à
eficácia do método hipnótico e foi daí que surgiu a associação livre.
Aqui, nesta aula, o objetivo é podermos entender o que sustenta a
concepção de que a associação livre era mais adequada do que a hipnose para
lidar com as questões decorrentes da histeria (e, mais à frente, a neurose).
Dessa forma, podemos discutir a atuação prática do psicanalista, isto é, a
profissão.
Para tanto, nesta aula, abordaremos rapidamente alguns dos conceitos-
chave no desenvolvimento da técnica psicanalítica que levaram à sustentação
da associação livre como metodologia de trabalho no acesso ao conteúdo do
inconsciente. O aprofundamento de tais conceitos se dará mais adiante.
Nestes estudos, os conceitos serão abordados somente de forma que
seja possível compreender de onde vem e o que justifica o uso de determinados
aparatos técnicos e teóricos dentro da psicanálise, pois o objetivo é que se possa
visualizar o “fazer” do psicanalista, como ele atua e o que justifica suas escolhas
tanto técnicas quanto teóricas. Ou seja, em que bases estão fundamentadas o
seu fazer.
Inicialmente, trataremos um pouco mais sobre as críticas de Freud à
metodologia da hipnose como forma de tratamento dos sintomas da histeria. Na
sequência, serão abordados aspectos importantes acerca de como se constitui
o psiquismo para a teoria psicanalítica e a importância do inconsciente em sua
visão de como se constitui o homem.
Nesse ponto de nossa aula, será abordada a primeira noção de aparelho
psíquico postulada por Freud, a da primeira tópica. Nela, compreendemos o
psiquismo constituído em três partes: consciente, pré-consciente e inconsciente.
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Ao tratar das questões relativas ao inconsciente, será necessário que
abordemos quais outros mecanismos psíquicos operam no que concerne ao
adoecimento neurótico. Serão abordados rapidamente conceitos que ampliam a
compreensão sobre a atuação dos conteúdos patógenos provenientes do
inconsciente, tais como: repressão, recalque e resistência. Estes são conceitos-
chave na compreensão da psicodinâmica da primeira tópica

TEMA 1 – DA HIPNOSE À ASSOCIAÇÃO LIVRE (UM POUCO MAIS...)

Como já pudemos trabalhar, houve um percurso histórico, experimental e


clínico até que fosse possível para Freud concluir que a associação livre era a
maneira mais eficaz de se trabalhar com os conteúdos patógenos provenientes
do inconsciente. Inicialmente, eram utilizados o método hipnótico e a sugestão.
Segundo Macedo e Falcão (2005, p. 67), no estado hipnótico, o paciente
descreve cenas e situações que se relacionam com seu sintoma, entrando,
assim, em contato com o material traumático que o estaria causando. Após esse
momento, caberia

ao médico comunicar-lhe o que havia sido dito e descrito, uma vez que
retornando do transe o paciente de nada se lembra. Os sintomas são
esbatidos pelo uso desse método, mas o sujeito não se apropria
ativamente de sua história. Então, no decorrer de seus trabalhos, Freud
vai abandonando a hipnose e se direcionando à necessidade de criar
outra forma de escutar. Surge a associação livre.

Algumas questões ainda ficaram em aberto anteriormente, principalmente


alguns pontos clínicos importantes que o fizeram chegar à conclusão de que
apenas “informar” o paciente sobre o que foi tratado em transe hipnótico não
tinha o efeito desejado. Então, voltemos à discussão sobre às críticas de Freud
ao método hipnótico.
Ainda, segundo Macedo e Falcão, Freud se mostrava inconformado com
a conduta médica de sua época e insistia que o paciente devia ser ouvido e, a
partir dessa escuta, pôde tomar alguns posicionamentos clínicos importantes,
entre eles o abandono da hipnose como método de tratamento. Passa a utilizar,
portanto, do discurso do paciente para intervir sobre os conteúdos inconscientes
patógenos.
Ainda sobre as críticas de Freud ao método hipnótico, outra questão
importante é que, pelo fato de o paciente nada recordar daquilo que foi tratado
em transe, faz com que as causas do sintoma (que são de origem psicológica,

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no caso) não sejam trabalhados de maneira eficiente e, então, os sintomas
cessariam apenas temporariamente.
O que Freud percebeu é que era necessário que o sujeito se implicasse
na cena que narra, elaborasse a questão que se iniciou no momento narrado e
isso não era possível pelo método hipnótico. Com a associação livre, o trabalho
seria o de proporcionar que o paciente se recordasse de maneira mais
espontânea e pudesse elaborar as questões surgidas das experiências
traumatizantes que precisaram ser esquecidas.
E, neste ponto da história de como foi desenvolvida a teoria e a técnica
psicanalíticas, adentramos um terreno importante que é o da importância das
lembranças e experiências vividas por um sujeito dentro da psicanálise. De
acordo com Andrade (2015), Freud herdará de Charcot a ideia de que
experiências traumáticas deixariam impressos traços psíquicos duradouros, que
operam de forma determinante e constitutiva daquilo que posteriormente se
denominaria de aparelho psíquico. Aqui, podemos perceber os primeiros passos
daquilo que se denominaria de inconsciente – o maior pilar dentro da teoria
psicanalítica, sua base de trabalho e sua concepção de homem.
Reitera ainda que tais experiências traumatizantes que causam o
adoecimento do sujeito seriam provocadas pelo encontro desse sujeito com o
outro e, sendo assim, o que ficou com algum destaque no discurso freudiano foi
“a problemática da influência”.
Essa problemática nos dá indícios de que era na ação que um sujeito
poderia exercer sobre o outro que estava o núcleo da questão neurótica, ou seja,
nas relações amorosas e afetivas de um indivíduo é que faziam morada as
questões que o adoeciam e aí surgem os primórdios da noção de transferência,
que será melhor trabalhada mais à frente nesta mesma aula.
Com a associação livre, o que entra em análise é o conteúdo manifesto
do discurso e dos sonhos do paciente e, a partir dele, é possível trabalhar o
conteúdo latente, que é o mais importante. Assim, o paciente pode se apropriar
e se deparar com a própria história e elaborar as questões surgidas e, só assim,
os sintomas poderiam perder sua força.
Foster (2010) nos reitera que é o conteúdo manifesto (aquilo que o
paciente relata e descreve) que pode ser comunicado pelo sujeito na associação
livre, seja ela uma comunicação verbal, seja pré-verbal ou não verbal. O
conteúdo manifesto do discurso seria substituto deformado para os

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pensamentos inconscientes e essa deformação é obra das forças defensivas do
ego.
O conteúdo latente seria o conteúdo que origina o conteúdo manifesto,
que foi alterado e vem à tona via formações do inconsciente, tais como atos
falhos, chistes, sonhos e o próprio sintoma.

A Psicanálise, ao retomar uma démarche científica, vai subverter o


sujeito suposto e excluído, a um só tempo, pela ciência, e trabalhar a
partir da inclusão do sujeito no campo de sua experiência, inclusão que
curiosamente se faz, não por acaso ou contingência, pela via do
inconsciente: retirado da condição de excluído, condição própria ao
sujeito da ciência, o sujeito da psicanálise só pode ser incluído como
sujeito do inconsciente. (Elia, 1999)

De acordo com Macedo e Falcão (2005, p. 68), ao associar livremente, o


sujeito fala desse inconsciente, que até então ainda lhe é desconhecido e
irrompe em sua fala quando a lógica da consciência se rompe. O que aparece
no discurso da associação livre é: “a lógica do inconsciente, do processo
primário. A partir de sonhos, atos-falhos, chistes, esquecimentos, ambiguidades,
contradições, essa lógica vai se desvelando e os conteúdos sendo significados
com a ajuda da interpretação”.
Até aqui, muito temos falado sobre “o inconsciente”. Podemos afirmar
que o trabalho com o inconsciente é a premissa fundamental da psicanálise, é
dele que surgem os sintomas e é com ele que precisamos nos haver no
tratamento da neurose. Surge então a necessidade de entender mais
profundamente esse inconsciente de que trata a psicanálise, porque ele foi se
tornando tão importante e como se deu sua descoberta e sistematização por
Freud.

TEMA 2 – O INCONSCIENTE E AS PRIMEIRAS NOÇÕES DE TOPOLOGIA


PSÍQUICA

Como dito anteriormente, a descoberta do inconsciente se deu porque,


segundo Freud (1923), haveria no psiquismo dos sujeitos (na época as pacientes
histéricas) ideias muito fortes, que fariam todos os efeitos das ideias da
consciência, mas que não necessariamente se tornavam conscientes, apesar de
ter os mesmos efeitos das ideias conscientes na vida mental e no
comportamento do indivíduo. A esse conjunto de ideias que não podiam se tornar

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conscientes, mas tinham efeitos conscientes, Freud denominou de inconsciente.
Como assim?
Do contato com as pacientes histéricas foi possível observar que havia
ideias muito fortes, carregadas também de um afeto muito intenso, mas que não
estavam de nenhuma forma acessíveis à consciência, apesar de estarem
fazendo todos os efeitos que as ideias conscientes comuns podem fazer.
Um exemplo importante aconteceu durante o atendimento da paciente
Anna O. Em seu processo de adoecimento, durante algumas semanas, ela
manifestava uma recusa em beber qualquer tipo de líquido, hidratava-se e
saciava a sede pelo consumo de frutas. Durante o estado hipnótico (que, como
sabemos, levava o paciente a rememorar o momento traumatizante), recorda-se
de um momento que viveu na qual ela se enoja ao ver um cachorro bebendo
água de um copo. Logo depois, pediu água.
Esse exemplo nos mostra que nem tudo na vida psíquica é consciente,
pois Anna não sabia o que causava nela a recusa em beber líquidos, só soube
após se lembrar do que sentiu e pensou quando viu o cachorro beber água. A
partir dessa premissa, Freud (1923) nos situa das primeiras noções de topologia
psíquica.
Topologia por quê? Topologia pois daí nasce a primeira ideia de como era
constituído o psiquismo do ser humano, quais instâncias seriam presentes e
atuantes na constituição psíquica de um sujeito. Dentro da psicanálise, podemos
chamar essa primeira noção de aparelho psíquico de “Primeira Tópica do
aparelho psíquico freudiano”. Nesse primeiro momento, Freud divide o
psiquismo em três partes: consciente, pré-consciente e inconsciente. O que seria
cada uma dessas partes constituintes do aparelho psíquico?
Pensem na imagem de um iceberg. Na ponta, no lugar mais visível, estaria
a consciência. Um pouco abaixo da consciência, estaria o pré-consciente. E na
parte mais funda, o inconsciente. Mas tudo é parte de uma mesma estrutura. Do
que se tratam, portanto, cada uma dessas “partes” constituintes do psiquismo?
Como atuam e quais os seus efeitos práticos na vida psíquica de um sujeito?
Segundo Freud (1923):

1) Consciente – na consciência, estariam as percepções (imediatas,


principalmente) e pensamentos que levam a uma ação (por exemplo: o
pensamento “estou com fome”). Ele surge da sensação corporal de fome
e esse comando consciente leva a buscar por comida.
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2) Pré-consciente – no pré-consciente, estariam todos os conteúdos que
puderam ser apreendidos pelo sujeito durante a sua vida, suas
percepções. Memórias e conhecimentos armazenados. Por exemplo:
como executar uma conta, como falar uma língua estrangeira etc. Os
conteúdos do pré-consciente não são acessíveis à consciência todo o
tempo, para não sobrecarregar o aparelho psíquico. Entretanto, podem
ser acessadas a qualquer momento. São ideias inconscientes no sentido
descritivo e não dinâmico.
3) Inconsciente – no inconsciente, ficam armazenados os sentimentos e
desejos mais primitivos do sujeito, tais como: medos irracionais, impulsos
sexuais inaceitáveis, motivações egoístas, impulsos destrutivos, entre
outras coisas. É no inconsciente também que se localizam os conteúdos
da sexualidade infantil, que são fundamentais no desenvolvimento da
neurose.

De acordo com Krauze (2011), Freud defendeu a concepção do


inconsciente "sistemático", isto é, como sistema situado "abaixo" do sistema pré-
consciente separado pela barreira do recalque, sede do processo primário no
qual não opera nem a negação, nem a lógica, nem a causalidade e nem a
temporalidade linear.
Com as concepções acerca do inconsciente, nascem alguns outros
problemas clínicos importantes a serem resolvidos. Na experiência hipnótica, foi
possível visualizar que havia forças psíquicas (em termos dinâmicos) que
operavam causando e mantendo os sintomas neuróticos. Seriam elas as forças
da repressão, do recalque e da resistência. Antes de seguirmos discorrendo
sobre cada uma delas, é necessário responder a um questionamento, que pode
ainda não ter ficado tão claro: Como opera o sintoma?
O sintoma seria uma formação do inconsciente, que está sob efeito da
repressão, do recalque e da resistência. Passemos então a uma melhor
compreensão do que é o sintoma e por que ele é tão importante no trabalho do
psicanalista. Todos esses conceitos serão mais bem aprofundados e
trabalhados durante os anos de estudo. Estão sendo citados neste momento
para que você possa entender o que faz um psicanalista, com base em que
conceitos e aparatos teóricos se dá a prática do analista, o que sustenta sua
práxis.

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TEMA 3 – A FORMAÇÃO DO SINTOMA: REPRESSÃO, RECALQUE E
RESISTÊNCIA

Nos aprofundemos, então, em quais são os pilares de sustentação do


sintoma e como trabalhamos com eles. Maia, Medeiros e Fontes (2012) nos
situam que a concepção de sintoma se altera com o tempo na obra de Freud.
Inicialmente, no período das primeiras investigações psicanalíticas, ele concebe
a histeria como decorrentes de restos de eventos com potencial traumatizante
que haviam sido “esquecidos” na vida mental consciente e, com isso, se
expressam no corpo causando paralisias, dores inexplicáveis, cegueira etc.

Observando os casos descritos por Breuer e Freud, nota-se que os


eventos traumáticos que suas pacientes conseguem recordar sob
hipnose e relacionar com seus sintomas são marcados por sentimentos
de vergonha, menos-valia, rejeição. Diante de um pensamento que não
é compatível com os ideais sociais e pessoais, as pacientes histéricas
transformam o afeto ligado a essa ideia, retirando dela a excitação que
a acompanha. Esse afeto liberto busca satisfação em outro objeto e
encontra-a no sintoma. (p. 45)

Ainda segundo as autoras, a compreensão acerca do que seria o sintoma


vai se transformando e aprofundando. Elas nos situam que Freud, no Rascunho
K, “As neuroses de defesa”, sintetiza que o curso tomado pela doença nas
neuroses de recalcamento é, em geral, desta maneira: o paciente sofre uma
experiência sexual prematura e traumática, de intensa comoção psíquica que,
devido ao seu teor (a “moral” do paciente não aceita tal vivência ou desejo),
acaba por ser recalcada.
Devido às contingências da vida desse sujeito, vem à tona a lembrança
de tal evento e há um movimento de recalque e, assim, surge um sintoma
primário. “O estabelecimento do sintoma promove um período de relativa
tranquilidade psíquica, por contar com uma defesa eficiente, embora o paciente
passe a conviver com a dor do sintoma primário”.
O sintoma, então, seria uma formação do inconsciente, que diz respeito
às vivências de um sujeito e como ele se posiciona diante delas. Ele se forma
devido a uma força psíquica denominada repressão. Diante de uma vivência ou
um impulso (um desejo muito profundo) desagradável para o sujeito por ser
incompatível com sua “moral” e com aquilo que ele pensa sobre si mesmo, a
repressão atua fazendo com que a lembrança/impulso seja jogada e

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armazenada no inconsciente, de maneira que o sujeito não precise lidar com
aquilo que lhe é desagradável.
De acordo com o Dicionário de Psicanálise Laplanche e Pontalis (2001, p.
457), repressão é uma “operação psíquica que tende a fazer desaparecer da
consciência um conteúdo desagradável ou inoportuno [...]. Neste sentido, o
recalque seria uma modalidade especial de repressão”.
O movimento de “armazenamento” dos conteúdos no inconsciente é
denominado de recalque. Então, a repressão seria a força que causa o recalque,
que é o armazenamento dos conteúdos indesejáveis pelo sujeito no
inconsciente. A ideia não perde sua força, mesmo sendo recalcada. Ainda no
Dicionário de Psicanálise Laplanche e Pontalis (2001, p. 430), encontra-se como
definição para recalque “Operação pela qual o sujeito procura repelir ou manter
no inconsciente representações (pensamentos, imagens, recordações) ligadas
a uma pulsão”.
Por isso, então, surgem os sintomas. Os sintomas são o resultado de um
movimento de recalcamento causado pela repressão. Sendo fortes, tais ideias
se esforçam para “se libertar”, elas precisam de uma via de expressão. Para que
as ideias inconscientes venham a ser tornar conscientes é que o psicanalista faz
seu trabalho.
Voltando à questão do método hipnótico, em termos psicodinâmicos, foi
possível a Freud verificar que uma outra força atuava, uma força que se
esforçava para manter a ideia patógena recalcada. Era a resistência. A
resistência é que trata de manter a ideia que não pode vir à consciência no
inconsciente.
“Chama-se de resistência a tudo que nos atos e palavras do analisando,
durante o tratamento psicanalítico, se opõe ao acesso deste ao seu inconsciente”
(Laplanche; Pontalis, 2001, p. 458). A contribuição do método hipnótico foi que
se verificou que, ao reduzirem as resistências (em função do transe), o paciente
podia entrar em contato com as lembranças e vivências que o fizeram adoecer.
Então, o que deve ser feito pelo analista é um esforço no sentido de fazer
reduzir as resistências, para que, assim, o sujeito possa se haver com a ideia
(ou as ideias) que causaram os sintomas. Uma das maneiras de diminuir o
impacto de resistência, mantendo o paciente consciente, é a associação livre.
Nela, o analista pode trazer à tona os conteúdos do inconsciente por meio do

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entendimento e da interpretação das formações do inconsciente, que serão
tratadas no item a seguir.

TEMA 4 – AS FORMAÇÕES DO INCONSCIENTE

Muito comentamos acerca da importância da escuta do inconsciente pela


via da associação livre. Entretanto, uma pergunta vem à tona: como se faz
possível tal escuta? A resposta é: pelas formações do inconsciente que
emergem no discurso do sujeito e pela transferência entre analista/analisando.
Primeiramente, tratemos daquilo que denominamos de formações do
inconsciente. Aprendemos que os conteúdos do inconsciente, por mais que
estejam sob o efeito do recalque e da resistência, precisam de uma via de
expressão. As vias de expressão encontradas são: os sintomas, os sonhos, os
atos falhos e os chistes.
Sobre os sintomas, é necessário ter em mente que são versões cifradas
e distorcidas do conteúdo inconsciente que necessita de expressão para fora do
psiquismo. Na histeria, por exemplo, há o movimento de conversão. Ou seja, o
conteúdo vem para a consciência em forma de um sintoma físico (uma paralisia
por exemplo). Nas neuroses em geral, o sintoma passa por uma espécie de
cifração e encontra expressão na consciência de maneira que ela não se dê
conta do que se trata realmente tal conteúdo.
As formações do inconsciente, para não serem reconhecidas na vida
consciente, passam por processos de transformação e cifração. Tais processos
são conhecidos por condensação e deslocamento. Na condensação, segundo
Laplanche e Pontalis (2001, p. 87), “Uma representação única representa por si
só várias cadeias associativas, em cuja intersecção ela se encontra” – ou seja,
numa única imagem ou palavra, vários outros estão presentes.
Um bom exemplo é uma imagem surreal na qual você pode ver um cavalo
com pés de galinha e tromba de elefante. Uma só imagem contém várias
imagens agregadas. Nos conteúdos inconscientes, pode ocorrer o mesmo.
Já o deslocamento se define no fato de “a importância, o interesse, a
intensidade de uma representação ser suscetível de se destacar dela para
passar a outras representações originariamente pouco intensas, ligadas à
primeira por uma cadeia associativa” (Laplanche; Pontalis, 2001, p. 116). Por
exemplo: num sonho, a imagem que aparece é a de uma pessoa, mas, no final

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das contas, a mensagem a ser transmitida diz respeito à outra. Ou seja, uma
pessoa substitui a outra no sonho, para que a mensagem continue “cifrada”.
A partir desses mecanismos de transformação do conteúdo original
proveniente do inconsciente, podemos pensar nas outras formações do
inconsciente pelo qual o psicanalista trabalha o sofrimento e os sintomas do
sujeito. Aqui, utilizaremos as definições que constam no Dicionário de
Psicanálise Laplanche e Pontalis (2001).

1 Ato falho: quando se diz algo querendo dizer outra coisa. Ex.: trocar o
nome de uma pessoa pelo de outra. “Fala-se de atos falhos [...] para as
ações que o sujeito habitualmente consegue realizar bem, e cujo fracasso
ele tende a atribuir apenas à distração ou ao acaso” (p. 44).
2 Chistes: um chiste, por definição, é uma espécie de gracejo, “piadinha”.
Freud, em Os Chistes e sua relação com o inconsciente, de 1905, nos
situa que, por meio de um chiste, é possível expressar os conteúdos do
inconsciente. Aquela máxima de dizer brincando o que realmente se quer
dizer. A verdade inconsciente aparece em forma de “piadinha” e, assim,
fica disfarçada, pois a intenção consciente é o gracejo e não o contato
com o conteúdo do inconsciente. É uma piadinha que “escapa”, quase
que inevitavelmente.
3 Sonhos: os sonhos merecem um capítulo à parte na história da
psicanálise e sobre a sua relação com o inconsciente, o que não é nosso
objetivo aqui. Mas devido aos conteúdos dos sonhos, a partir de uma
leitura freudiana de que um sonho seria “a realização de um desejo”
(1900), é possível interpretar conteúdos provenientes do inconsciente, ou
melhor, é possível chegar ao seu conteúdo latente. Trabalha-se com os
sonhos a partir de seu conteúdo manifesto, para, assim, chegar ao
conteúdo latente. A partir da narrativa dos sonhos, tendo em mente o
processo de transformação ao qual são submetidos (de condensação e
deslocamento), pode-se chegar ao conteúdo latente (original) deles.

Tendo tratado rapidamente sobre as formações e como é possível


trabalhar com elas dentro da clínica psicanalítica, passemos a outro aspecto
muito importante do método: a transferência.

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TEMA 5 – A TRANFERÊNCIA E O MÉTODO PSICANALÍTICO

Um conceito muito importante para o método psicanalítico é o da


transferência. Com a percepção de que havia algum nível de sugestionabilidade
no que tange à técnica hipnótica, foi possível concluir que a presença do outro
na vida psíquica do sujeito era determinante tanto no surgimento quanto no
tratamento dos sintomas. Sendo assim, surge um dispositivo clínico denominado
de transferência.
Laplanche e Pontalis (2001, p. 514) definem a transferência como “o
processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados
objetos no quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles, e
eminentemente no quadro da relação analítica”. Ou seja, os conteúdos psíquicos
inconscientes se reproduzem na relação analítica e, a partir desse conteúdo que
se reproduz, é possível trazer à tona tais conteúdos e assim trabalhá-los.
Palhares (2008, p. 100) nos situa que ela nos diz de algo vivo. Surge,
então, a partir da situação analítica e induz o analista a produzir uma resposta
emocional frente ao seu paciente. Trata-se de um encontro que enlaça duas
pessoas – e envolve, portanto, afetos, sentimentos, vivências inconscientes que
vão engendrar mutualidade. Sendo assim, estamos falando que o tratamento
psicanalítico se insere, portanto, numa lógica de intersubjetividade.

Dessa forma, consideramos o efeito da presença de um outro na vida


psíquica de cada participante do encontro. Estamos, portanto, não só
no domínio do intrapsíquico, mas, observando o efeito causado pelo
outro, incorporamos a noção de externalidade como participante das
vivências internas. Daí surgem as condições para situarmos uma
definição terapêutica da técnica psicanalítica, articulando os
movimentos intrapsíquicos e interpsíquicos, inserindo-os num contexto
relacional. A dinâmica desses movimentos vai valorizar a problemática
da contratransferência, isto é, o trabalho analítico passa a considerar
os afetos do analista presentes na situação analítica. Os desafios
frente a esses obstáculos vão permitir que analista e analisando
busquem, cada um no seu papel e função, superar a prova da análise.

Aqui, então, para fecharmos a parte teórica de nossa aula, podemos


concluir que o inconsciente se faz presente num tratamento psicanalítico de
muitas formas, e cabe ao analista saber reconhecer as minúcias de cada uma
delas. Desde os sonhos até o estabelecimento de uma relação (ou neurose) de
transferência, os conteúdos do inconsciente tentam se fazer ouvidos e
expressados. Entretanto, como poderemos perceber mais à frente, mesmo que
tais conceitos tenham sua nascente na experiência clínica, é possível extrapolar

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a clínica e trazer a prática psicanalítica para uma prática em extensão, em que
os preceitos técnicos e éticos sejam levados em conta no entendimento de
homem e dos fenômenos que dizem respeito ao humano.

NA PRÁTICA

Na experiência clínica como psicanalista, é possível perceber claramente


os efeitos práticos de cada uma das questões trabalhadas durante a aula.
Trabalhando-se atualmente somente com a clínica particular e, no atendimento
tradicional de psicanálise, visualizamos como é importante o efeito do
inconsciente na vida de um sujeito. Quando um paciente nos procura, ele está
em sofrimento (assim como as histéricas de Freud) e escutá-lo tem um efeito
muito importante em sua vida. A partir da escuta, o paciente pode questionar-se
sobre aquilo que causa seu sofrimento, elaborar as questões.
Mas, claro, assim como foi tratado em aula, não é um processo tão
simples, ele demanda bastante trabalho tanto por parte do paciente quanto por
parte do analista. Vencer as resistências do paciente diante do conteúdo que
precisa vir à tona e ser elaborado pode ser um processo bastante moroso. Nem
sempre o paciente está preparado para enfrentar aquilo que o faz sofrer.
O sintoma faz um papel deveras importante de “solucionar” um conflito
psíquico e nem sempre é fácil se haver com um conflito. Solucionar? Sim, pois
o sintoma é um tipo de compromisso do sujeito com o próprio desejo, dado que
é uma forma de não renunciar a ele. Por isso, apesar de apontarmos para o
conteúdo inconsciente pela via de suas formações, as resistências continuam
operando e o segredo é fazer com que elas sejam as mínimas possíveis.

Um exemplo clínico: tive certa vez um paciente que tinha como questão
uma certa incapacidade de trabalhar e, por vezes, também de se
relacionar com as pessoas. Ele não assumia as questões básicas da
vida, tais como o autocuidado e a organização da sua agenda. Passa
a atuar na análise de maneira com que eu me sinta quase que “forçada”
a cuidar de seus horários por ele (faltando, não cumprindo os
combinados de pagamento etc.).

Ele narra uma forte necessidade de se manter como aquele que


necessita do cuidado da mãe, aquele que nunca sai de seu controle e,
toda vez que é convocado a tomar uma atitude 100 % autônoma, tem
crises e não consegue cumprir com os deveres e combinados.
(Madrucci, [S.d.])

Essa breve narrativa nos situa sobre como é possível acessar o


inconsciente via transferência e como a formação dos sintomas diz de uma

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solução do sujeito para um conflito de difícil elaboração. O paciente reproduz na
cena analítica sua posição de dependência, que nos faz ter a necessidade de
cuidar de sua organização para que ele possa estar presente nas sessões sem
falta.

FINALIZANDO

E, assim como em outra ocasião, vamos aos principais tópicos a serem


memorizados desta aula.

1) A maior crítica de Freud com relação à questão da hipnose era que não
fazia o sujeito se haver com o conteúdo que havia sido recalcado. Diante
disso, opta pelo método da associação livre como forma de trazer tal
conteúdo à tona e, assim, o paciente possa elaborar a questão que o está
adoecendo – o trabalho do analista é o de facilitar essa elaboração.
2) As primeiras noções de topologia psíquica são as da Primeira Tópica, que
consideram o psiquismo formado por consciente, pré-consciente e
inconsciente. O objetivo de um tratamento analítico seria poder trazer
para a consciência os conteúdos que foram armazenados (recalcados) no
inconsciente. A ética que guia um analista é a do desejo, a do sujeito do
inconsciente.
3) Os mecanismos de repressão, recalque e resistência são os mecanismos
que atuam para tornar e manter (no caso da resistência) uma ideia
inconsciente. Para trazer à tona os conteúdos desse inconsciente, o
analista se vale da escuta de suas formações (sintomas, chistes, atos
falhos e sonhos) por meio da associação livre. A escuta do analista deve
ser dirigida no sentido de ir aos poucos desdobrando o conteúdo latente
de tais formações.
4) Para que seja possível o acesso ao que está armazenado no
inconsciente, é necessário que o analista trabalhe para que as
resistências sejam as mínimas possíveis, por isso a associação livre é tão
importante – é uma forma de “driblar” as resistências.
5) Há uma compreensão de que a relação estabelecida entre os sujeitos
deixa marcas duradouras na subjetividade de um indivíduo. Levando isso
em conta, uma das formas de acesso ao inconsciente é a transferência.
Esta atua de maneira que o sujeito reproduza os conteúdos recalcados

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na relação terapêutica, atuando, assim, tanto como uma forma de
resistência (por insistir na manutenção do sintoma) quanto como uma
forma que permite (pela intersubjetividade) que o analista vivencie na
relação com o paciente aquilo que o está adoecendo. Ele reproduz os
traumas e fantasias de suas relações com o outro.

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REFERÊNCIAS

ANDRADE, T. de. Da hipnose à psicanálise: clínica, ciência e política. 2015.


136 p. Mestrado em Psicologia Social – Universidade Federal do Sergipe. São
Cristóvão, SE; 2015.

ELIA, L. A transferência na pesquisa em psicanálise: lugar ou excesso?.


Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 12, n. 3, 1999. Disponível em:
<https://doi.org/10.1590/S0102-79721999000300015>. Acesso em: 1º dez.
2021.

FOSTER, M. Associação livre de ideias: via régia para o inconsciente – a


especificidade do método. J. psicanal., São Paulo, v. 43, n. 79, p. 201-216, dez.
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