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DA IMAGEM
Rafaela Queiroz
Ferreira Cordeiro
Revisão técnica:
Deivison Campos
Bacharel em Filosofia
Mestre em Sociologia da Educação
ISBN 978-85-9502-320-8
CDU 070
Introdução
A imagem é uma forma de expressão humana cuja percepção e inter-
pretação está para além dos sentidos. Ela constitui também um olhar
sobre o sujeito, o mundo e o real. Esse olhar, como você deve imaginar,
é variável ao longo do tempo e também muda de acordo com espaço,
sociedade, contexto, etc. Além disso, a imagem é ainda marcada pelo
olhar do sujeito que a observa e a contempla, pois esse mesmo olhar
é produtor de sentidos sobre ela e sobre o real que ela representa.
A esse respeito, a caracterização da imagem ao longo do tempo, por
meio dos três paradigmas da fotografia – pré-fotográfico, fotográfico e
pós-fotográfico –, permite refletir sobre como as relações entre o sujeito e
a imagem foram se estabelecendo. Para essa reflexão, é fundamental
ainda evocar o campo da psicanálise e os três registros que elabora,
os quais você vai ver neste texto.
Neste capítulo, você vai conhecer um pouco sobre o imaginário, o
simbólico e o real, que são os três registros da psicanálise. Também vai
refletir sobre a relação entre os paradigmas da fotografia e os seus três
registros. Além disso, vai compreender a interpretação da imagem como
2 Relação compreensiva. Relação com o real
Após essa explanação, você está pronto para aprender sobre a relação
entre os três registros trazidos pelo campo da psicanálise e os paradigmas
de imagem. Conforme explicam Santaella e Nöth (1998), há semelhanças tão
significativas entre os registros e os paradigmas que uma correlação entre
eles já parece se impor, isto é, se colocar “por si mesma”, sem a necessidade
de algum “esforço”.
Nos estudos empreendidos sobre o signo, Peirce (2005 apud MELO; MELO, 2014)
propôs a classificação de todo fenômeno – entendido como qualquer coisa que surge
na mente – a partir de três categorias, chamadas de primeiridade, secundidade e
terceiridade. Essas noções referem-se ainda a três fases do processo de percepção
de qualquer signo. De maneira geral, elas se caracterizam como (MELO; MELO, 2014):
Na primeira, ou primeiridade, destaca-se o sentir, isto é, o sentimento. Como per-
cepção primeira, o signo é percebido por elementos referentes à qualidade. Esses
elementos suscitam uma sensação ou um sentimento, tais como cor, forma, volume,
textura, som, etc. (é o quali-signo, o qual faz parte do input visual). O universo dessa
categoria é o do sonho, o da imaginação (GHIZZI, 2009 apud MELO; MELO, 2014) e o
de quando você experiencia algo pela primeira vez, como um cheiro ou um sabor.
Na segunda, ou secundidade, destaca-se o reagir, isto é, a reação. Como percepção
secundária, o signo é decomposto em relações/associações e é notado como “men-
sagem” (é o sin-signo, o qual faz parte do insight representacional). Essa categoria se
dá no conflito entre a consciência e o signo que busca ser entendido, como quando
você percebe uma qualidade de alguma coisa como propriedade de um signo.
Na terceira, ou terceiridade, destaca-se o pensar, isto é, o pensamento. Como
percepção última, o signo é compreendido num contexto geral de significações
(é o legi-signo, o qual faz parte do output comunicacional). Nessa categoria se dá
o próprio processo de mediação entre a primeiridade e a secundidade; e ainda o
de representação e interpretação do mundo.
desprezado o amor da bela ninfa Eco, a qual seleciona uma montanha como
“seu leito de morte”. Assim, Narciso é punido da seguinte forma: ele poderia
amar, mas não lhe seria possível ter o objeto amado. Um dia, observa o seu
reflexo em um lago e admira a forma bela que contempla. Uma das questões
que essa história coloca diz respeito à constituição dos seres humanos como
sujeitos, que passa inevitavelmente pelo outro, pelo olhar do outro, pelo crivo
de outrem, porém esse outro aparece como reduzido a uma imagem de si
mesmo. Em Narciso, sujeito e objeto são colocados em confluência, sendo
um reflexo do outro (AZEVEDO, 2004).
Essa história auxilia Freud na teorização que elabora sobre o narcisismo, a
qual é retomada por Lacan posteriormente no famoso estádio do espelho: aqui
se coloca, além da constituição do eu, da completude, a relação especular com
o outro (SANTAELLA; NÖTH, 1998). A “identidade” é construída – a partir
da analogia que o psicanalista francês faz entre o bebê (dos seis aos 18 meses)
e a sua imagem projetada no espelho – por meio de um jogo que se dá entre o
eu e o outro; jogo esse, é importante você perceber, que ocorre ao longo de toda
a vida, nas relações sociais. “Senhor e servo do imaginário, o eu se projeta nas
imagens em que se espelha: imaginário da natureza, imaginário do corpo, da
mente, e das relações sociais” (SANTAELLA; NÖTH, 1998, p. 190). As relações
passam, desse modo, a se dar conforme essa imagem que é constantemente
repetida porque é por meio dessa imago que a subjetividade é fundada.
A relação que o paradigma pré-fotográfico mantém com o registro do
imaginário é ora idílica, ora conflituosa, da mesma forma que a relação que
o desenho e/ou a pintura, isto é, a imagem artesanal, mantém com o corpo,
o objeto, a natureza, etc. Como essa produção implica a presença do corpo –
seja da mão, seja do olhar – e do objeto representado, a imaginação do artista
é a responsável por expressar essa imagem. Esta é, assim, ilusória, porque
incompleta, mesmo que pretenda uma completude, e mítica, porque suspensa
na temporalidade após realizada (SANTAELLA; NÖTH, 1998). Ademais, ela
é uma imagem singular, um olhar específico, um ponto de vista que é levado
para o espectador com ela se identificar.
A respeito do real, Santaella e Nöth (1998) retomam que ele, sendo o
impossível, o impossível de ser simbolizado, ou seja, o que não é possível de
ser capturado pelo simbólico, está para o paradigma fotográfico. Ora, entre o
objeto e a sua imagem, há a falta. Dito de outro modo, não há uma adequação
entre as partes do seu corpo e a “matriz imaginária” que você pode ter dele.
Assim, como se articula o mundo do imaginário com o mundo do real em cada
um? O paradigma fotográfico se deu nesse choque entre o imaginário e o real.
Foi nesse encontro conflituoso que a fotografia e os seguintes desdobramentos
Relação compreensiva. Relação com o real 9
É importante você notar que, embora seja “redutor” dividir a história da imagem e os
seus desdobramentos em três grandes momentos, os paradigmas citados e discutidos
pelos autores devem ser observados como pontos de partida. Eles podem levar você
a refletir sobre como a relação dos seres humanos com a imagem tem se modificado
ao longo da história.
da comunicação. O uso excessivo das redes sociais pelas pessoas tem trazido
uma questão antiga, mas muito cara aos estudos que envolvem campos como
os da filosofia, da linguagem e do discurso, que é a seguinte: o que torna uma
imagem “real” ou mais ou menos “real”? É importante destacar que esse
real está entre aspas porque é empregado aqui no sentido de “realidade”, e
não no da psicanálise discutido anteriormente. Logo, por que uma imagem
de um corpo excessivamente magro parece real para muitos, enquanto uma
dissimulação para outros? Por que há tanta controvérsia a respeito das imagens
fake veiculadas pela mídia? Ora, a imagem é, como você sabe, experimentada
por meio dos sentidos. No entanto, alguns a percebem como parte constitutiva
que é socialmente representada pelas pessoas a respeito do mundo; outros,
como o próprio mundo, como se este existisse, já de antemão, “pronto” para
ser observado.
Naturalmente, você não precisa responder a essas questões. Elas servem
para que você possa pensar o seguinte: a imagem é uma das formas utilizadas
para expressar a realidade e a sua relação com ela. Conforme explicam Bec-
cari e Portugal (2013), “[...] há muitas formas de olhar para o mundo [...]”. E
isso não diz respeito apenas a uma categorização social, herdada a partir das
experiências com os pares, desde a infância, e dos contatos com as numerosas
instituições sociais e políticas ao longo da vida; mas também pela própria
forma como o olhar se projeta. O ato de ver é, portanto, fundamental nesse
processo e dialoga com os filtros, os julgamentos coletivamente construídos,
aos quais poucas vezes as pessoas têm acesso e compreensão consciente. Sem
querer entrar numa discussão de cunho tautológico, essa reflexão pontua que
a forma de olhar, isto é, de projetar a visão, interfere também na constituição
das pessoas como seres humanos. Além disso, ela permite dizer que o como
“se habita” já é parte de um olhar que não só observa e contempla, mas que,
ao ver, produz sentido. Isso é, inclusive, parte crucial do debate levantado na
obra cinematográfica de produção nacional e internacional chamada A janela
da alma (MIRÁ FILMES, 2014).
Relação compreensiva. Relação com o real 11
Figura 1. Dependendo do contexto em que é usada esta imagem, ela pode apresentar
uma modalidade alta ou baixa quanto ao real.
Fonte: Daniel de Castro Ribeiro/Shutterstock.com.
13 Relação compreensiva. Relação com o real
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Leitura recomendada
RIVERA, T. Cinema, imagem e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
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