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TEORIA

DA IMAGEM

Rafaela Queiroz
Ferreira Cordeiro
Revisão técnica:
Deivison Campos
Bacharel em Filosofia
Mestre em Sociologia da Educação

T314 Teoria da imagem / Rafaela Queiroz Ferreira Cordeiro... [et al.] ;


[revisão técnica: Deivison Campos]. – Porto Alegre :
SAGAH, 2018.
240 p. : il. ; 22,5 cm

ISBN 978-85-9502-320-8

1. Jornalismo. I. Cordeiro, Rafaela Queiroz Ferreira.

CDU 070

Catalogação na publicação: Karin Lorien Menoncin – CRB 10/2147


Relação compreensiva
e a relação com o real
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Apresentar os registros do imaginário, do simbólico e do real do campo


da psicanálise.
„„ Relacionar os três paradigmas da imagem com os registros da
psicanálise.
„„ Interpretar a imagem como representação ou aproximação do real.

Introdução
A imagem é uma forma de expressão humana cuja percepção e inter-
pretação está para além dos sentidos. Ela constitui também um olhar
sobre o sujeito, o mundo e o real. Esse olhar, como você deve imaginar,
é variável ao longo do tempo e também muda de acordo com espaço,
sociedade, contexto, etc. Além disso, a imagem é ainda marcada pelo
olhar do sujeito que a observa e a contempla, pois esse mesmo olhar
é produtor de sentidos sobre ela e sobre o real que ela representa.
A esse respeito, a caracterização da imagem ao longo do tempo, por
meio dos três paradigmas da fotografia – pré-fotográfico, fotográfico e
pós-fotográfico –, permite refletir sobre como as relações entre o sujeito e
a imagem foram se estabelecendo. Para essa reflexão, é fundamental
ainda evocar o campo da psicanálise e os três registros que elabora,
os quais você vai ver neste texto.
Neste capítulo, você vai conhecer um pouco sobre o imaginário, o
simbólico e o real, que são os três registros da psicanálise. Também vai
refletir sobre a relação entre os paradigmas da fotografia e os seus três
registros. Além disso, vai compreender a interpretação da imagem como
2 Relação compreensiva. Relação com o real

um processo contextual, cuja relação com o real é variável conforme o


social e o cultural, por exemplo.

O imaginário, o simbólico e o real da imagem


O cenário do final do século XIX e início do século XX é comumente ca-
racterizado por eventos sociais, políticos e históricos de magnitude global.
A Grande Depressão (anos 1930), a I e a II Guerras Mundiais (1914–1918 e
1939–1945, respectivamente), o aparecimento da primeira bomba nuclear (o
cientista alemão Otto Hahn foi quem descobriu a fissão nuclear em 1938), a
Guerra Fria (1947–1991) entre a ex-URSS e os países vencedores da II Guerra
Mundial e a viagem do homem à Lua (a missão Apollo 8 foi a primeira a alcan-
çar a órbita lunar), entre muitos outros eventos, fazem parte da sua memória,
não é? Ora, os meios de comunicação de massa tiveram papel fundamental na
constituição dessas lembranças na sua mente, mesmo que você estivesse em
estados temporais e físicos bem distantes. A entrada nessa nova era, contudo,
é também associada à revolução científica trazida pelo físico alemão Albert
Einstein (1879–1955). A respeito desse último acontecimento, é importante
enfatizar o seguinte: com a Teoria da Relatividade proposta pelo físico,
passou-se a perceber o tempo e o espaço de forma diversa. Desse modo, o
universo deixa de ser concebido como propunha o matemático e físico inglês
Isaac Newton (1643–1727).
Publicada no mês de junho de 1905, a Teoria Especial da Relatividade,
a qual buscava reconciliar as leis da mecânica com as do eletromagnetismo,
substituiu a antiga concepção linear sobre o tempo. Ora, o modelo temporal
era bem mais complexo do que o que havia se proposto no século XVII.
Conforme Furtado (2009), Einstein afirmava que, se a velocidade da luz
era a mesma para os observadores, isso significava que as dimensões de
tempo e espaço não poderiam ser absolutas, mas variáveis, porque mudavam
conforme o movimento do observador e dos objetos observados. Apesar das
várias implicações trazidas pelo desenvolvimento teórico de Einstein – tais
como a de que matéria e energia são intercambiáveis –, a reflexão elaborada
pelo físico sobre as dimensões do tempo e do espaço trouxe um impacto
significativo para a forma de se conceber o real. Essa noção passa a ganhar
outra dimensão, ainda mais fundamental, para a vida na sociedade ocidental.
É por essa razão que a breve contextualização apresentada (fins do século
XIX e início do século XX) é importante: ela permite que você compreenda
a sua relação com o real – e, por conseguinte, a forma de você se expressar e
Relação compreensiva. Relação com o real 3

construir a imagem, que é um tipo de expressão – a partir de um outro olhar


sobre a temporalidade e a espacialidade.

A famosa Teoria da Relatividade, de Albert Einstein, proposta antes da I Guerra Mundial,


foi desenvolvida enquanto o físico trabalhava no Escritório de Patentes da Suíça. Ele
só passou a ganhar fama a partir de 1916, quando tomou posse de cargos em Praga e
Berlim. Essa teoria ficou pouco conhecida até o astrofísico e astrônomo inglês Arthur
Stanley Eddington (1882–1944) tê-la comprovado, em 1919, por meio de fotografias
tiradas das estrelas ao redor do Sol. Durante um eclipse desse astro, o astrofísico
conseguiu comprovar que as estrelas em torno do Sol modificavam-se sutilmente
enquanto a luz desse astro era curvada pelo seu campo gravitacional – o que só
poderia ser notado durante um eclipse, momento em que o brilho do Sol deixa de
ofuscar as estrelas ao seu redor.
Fonte: Furtado (2009).

Para compreender a noção do real – e suas articulações com as noções


de imaginário e simbólico – é importante fazer referência, primeiramente,
ao campo da psicanálise, o qual influenciou a caracterização de paradigmas
sobre a imagem. É importante você saber, de antemão, que Jacques Marie
Émile Lacan (1901–1981) foi um psiquiatra e psicanalista francês que trouxe
contribuições significativas para a psicanálise. Além das numerosas reflexões
que trouxe para temas de âmbito comum, como o amor e a política, Lacan
reforçou a necessidade de retornar ao fundador desse campo, isto é, ao neu-
rologista e psicanalista austríaco Sigmund Freud (1856–1939), preconizando a
importância da (re)leitura da sua obra. Aliás, foi a partir do legado freudiano
que o francês elaborou os seguintes registros: imaginário, simbólico e real.

Os três registros da psicanálise: o imaginário, o


simbólico e o real
Segundo Roudinesco e Plon (1998a, 1998b, 1998c), a palavra imaginário
deriva do termo latino imago. Ela é comumente empregada nos campos da
filosofia e da psicologia em referência à imaginação, isto é, “[...] à faculdade
de representar coisas em pensamento, independentemente da realidade. ”
(ROUDINESCO; PLON, 1998a, p. 371). Já a expressão simbólico vem da
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antropologia, a qual atribui um valor e uma função simbólica aos elementos


da cultura. Destacam-se nesse campo de estudo os trabalhos do sociólogo
francês Marcel Mauss (1872–1950) e do antropólogo francês Claude Lévi-
-Strauss (1908–2009). Este último, inclusive, desenvolve noções trazidas por
aquele, como a de função simbólica. Faz isso a partir da articulação com o
estruturalismo trazido pela contribuição da linguística, em especial pela obra
do linguista suíço Ferdinand de Saussure (1857–1913). Ainda, o termo real
surge do vocabulário da filosofia.
Embora seja bem difícil sintetizar essas três noções e as relações esta-
belecidas entre elas sem comprometer a complexidade e a densidade dessa
elaboração teórica – elaboração esta que apresenta diferentes “fases” ou de-
senvolvimentos –, você pode considerar, de forma bem geral, o seguinte: o
imaginário, que passou a ser usado por Lacan a partir de 1936, diz respeito a
uma relação dual com a imagem do semelhante. Essa noção está relacionada
ao estádio do espelho (como você vai ver mais adiante), que é uma reflexão
importantíssima para a psicanálise no tocante à construção do eu, da relação
entre o eu e o outro e da imagem e (in)completude dos homens. Empregado
em associação com as categorias do real e do simbólico, a partir do ano de
1953, o imaginário passa a ser definido, na reflexão trazida por Lacan, “[...]
como o lugar do eu por excelência [...]”, o espaço dos “[...] fenômenos de ilusão,
captação e engodo [...]” (ROUDINESCO; PLON, 1998a, p. 371).
Conforme Roudinesco e Plon (1998c), também a partir de 1936, Lacan faz
uso do termo simbólico para se referir a um sistema de representação que se
baseia na linguagem. A partir de 1953, essa noção torna-se inseparável das do
imaginário e do real, constituindo uma estrutura. Na categoria do simbólico,
Lacan fez uso da teorização de Lévi-Strauss. Desse modo, o inconsciente
elaborado por Freud passa a ser retomado como o “[...] lugar de uma mediação
comparável à do significante no registro da língua [...]” (ROUDINESCO;
PLON, 1998c, p. 714-715). Além da referência ao conceito de significante –
que é o motor da função simbólica –, o simbólico também inclui a foraclusão
– processo psicótico pelo qual o simbólico some – e o Nome-do-Pai, o qual
se liga à função paterna – tal função pode ser observada na sua integração a
uma lei que proíbe o incesto.
Quanto ao termo real, este passou a ser introduzido a partir de 1953, sendo
comumente associado ao que é impossível de ser simbolizado e representado.
É importante não confundir o real da psicanálise com a noção de uso comum
de realidade. Para a elaboração dessa categoria, Lacan recorreu tanto ao campo
da filosofia como ao conceito de Freud de realidade psíquica (ROUDINESCO;
PLON, 1998b). Ainda se valeu das reflexões elaboradas pelo cientista social
Relação compreensiva. Relação com o real 5

francês-polonês Émile Meyerson (1859–1933) sobre a ciência do real e das


considerações do pensador francês Georges Bataille (1897–1962) sobre a
ciência do irrecuperável (heterologia). Essas três conceituações foram funda-
mentais para a elaboração do real por Lacan, noção esta que é associada a um
“resto” que escapa ao discurso (matema) e que é impossível de ser transmitido
(ROUDINESCO; PLON, 1998b).
A propósito, a primeira “teoria” do imaginário de Lacan sofreu influência
dos trabalhos do filósofo e psicólogo francês Henri Wallon (1879–1962), do
filósofo e matemático inglês Bertrand Russel (1872–1970), do biólogo alemão
Jakob von Uexküll (1864–1944), entre outros. Em 1938, o psicanalista constrói
o imaginário não mais como um fato psíquico “simples”, mas como uma
imago, ou seja, como um “[...] conjunto de representações inconscientes [...]”
(ROUDINESCO; PLON, 1998a, p. 371). Em 1953, Lacan define essa noção
como uma espécie de engano que se relaciona à experiência de uma cliva-
gem do sujeito, da alienação e das “[...] ilusões do eu [...]” (ROUDINESCO;
PLON, 1998a, p. 371). Nesse momento, o simbólico surge como o espaço
do significante, e o real como o impossível, que não pode ser simbolizado
(ROUDINESCO; PLON, 1998a).

Os três paradigmas da imagem


Os registros do imaginário, do simbólico e do real, sistematizados por Lacan
a partir das reflexões freudianas para caracterizar o funcionamento estrutural
psíquico, são retomados na construção dos três paradigmas da imagem. Estes
podem ser resumidos, de maneira bem geral, da seguinte forma (SANTAELLA;
NÖTH, 1998):

„„ Paradigma pré-fotográfico: abarca as imagens artesanais, tais como


o desenho, a pintura e a gravura.
„„ Paradigma fotográfico: refere-se às imagens que têm uma relação
dinâmica com o objeto que retomam, trazendo de alguma forma um
rastro ou uma pista do objeto indicado.
„„ Paradigma pós-fotográfico: engloba as imagens sintéticas ou infográ-
ficas, as quais são realizadas por meio da computação.

Conforme Santaella e Nöth (1998), há quatro níveis de que depende o


processo de signos/linguagem. São eles: (1) meios de produção, (2) meios
de conservação, (3) meios de exposição e difusão e (4) meios de recepção.
No caso da linguagem imagística, esses níveis se referem à percepção, à
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contemplação, à observação e à fruição, respectivamente. Pensar sobre


esses “níveis” é importante porque, ao observar como eles se manifestam em
cada paradigma apontado, você pode compreender as mudanças que foram
ocorrendo de um paradigma a outro até se chegar a uma ruptura e, assim, ao
surgimento do paradigma subsequente. Dentro desse panorama, esses autores
apontam que há semelhanças entre os três registros psicanalíticos e os três
paradigmas da imagem. Observe:

„„ Pré-fotográfico: está para o imaginário.


„„ Fotográfico: está para o real.
„„ Pós-fotográfico: está para o simbólico.

Após essa explanação, você está pronto para aprender sobre a relação
entre os três registros trazidos pelo campo da psicanálise e os paradigmas
de imagem. Conforme explicam Santaella e Nöth (1998), há semelhanças tão
significativas entre os registros e os paradigmas que uma correlação entre
eles já parece se impor, isto é, se colocar “por si mesma”, sem a necessidade
de algum “esforço”.

Os (três) paradigmas da imagem e os três


registros da psicanálise
É importante você saber, de antemão, que deve ter cuidado ao se referir a
distintos campos de estudo, como o da psicanálise, o qual trata de um sujeito
de outra ordem, que é a do inconsciente, do desejo. No processo de retomadas
teóricas, o estudioso/pesquisador pode “escorregar” na tendência à “pasteu-
rização” ou homogeneização de diferentes perspectivas teóricas em torno da
tentativa de se definir um objeto teórico específico (CORDEIRO, 2017). Você
precisa, portanto, estar atento à generalização que realiza dos discursos teó-
ricos para além dos seus campos iniciais de atuação. Isso também é discutido
por Santaella e Nöth (1998, p. 188). Para eles, como o discurso psicanalítico
adquiriu uma espécie de “especificidade própria”, frequentemente transpõe-se
suas questões teóricas para outros campos. No entanto, a ressalva que esses
dois autores supracitados fazem a respeito da relação entre os três registros
com os três paradigmas da imagem é fundamental para você compreender
tal reflexão numa perspectiva dialogal e relacional, e não de uma “adaptação”
sem sentido de uma disciplina sobre outra: ao fazer uma apresentação dos três
registros, Lacan literalmente afirmou que esses três registros bem distintos do
Relação compreensiva. Relação com o real 7

Imaginário, Real e Simbólico são os registros essenciais da realidade humana,


chamando-os também de categorias conceituais (SANTAELLA; NÖTH, 1998).
Desse modo, esses três registros, também nomeados de categorias conceituais,
são caracterizados como universais. Além disso, Santaella também aponta uma
analogia entre os três registros e o modelo lógico triádico do filósofo norte-
-americano Charles Sanders Peirce (1839–1914), constituído pelas categorias
primeiridade, secundidade e terceiridade.

Nos estudos empreendidos sobre o signo, Peirce (2005 apud MELO; MELO, 2014)
propôs a classificação de todo fenômeno – entendido como qualquer coisa que surge
na mente – a partir de três categorias, chamadas de primeiridade, secundidade e
terceiridade. Essas noções referem-se ainda a três fases do processo de percepção
de qualquer signo. De maneira geral, elas se caracterizam como (MELO; MELO, 2014):
„„ Na primeira, ou primeiridade, destaca-se o sentir, isto é, o sentimento. Como per-
cepção primeira, o signo é percebido por elementos referentes à qualidade. Esses
elementos suscitam uma sensação ou um sentimento, tais como cor, forma, volume,
textura, som, etc. (é o quali-signo, o qual faz parte do input visual). O universo dessa
categoria é o do sonho, o da imaginação (GHIZZI, 2009 apud MELO; MELO, 2014) e o
de quando você experiencia algo pela primeira vez, como um cheiro ou um sabor.
„„ Na segunda, ou secundidade, destaca-se o reagir, isto é, a reação. Como percepção
secundária, o signo é decomposto em relações/associações e é notado como “men-
sagem” (é o sin-signo, o qual faz parte do insight representacional). Essa categoria se
dá no conflito entre a consciência e o signo que busca ser entendido, como quando
você percebe uma qualidade de alguma coisa como propriedade de um signo.
„„ Na terceira, ou terceiridade, destaca-se o pensar, isto é, o pensamento. Como
percepção última, o signo é compreendido num contexto geral de significações
(é o legi-signo, o qual faz parte do output comunicacional). Nessa categoria se dá
o próprio processo de mediação entre a primeiridade e a secundidade; e ainda o
de representação e interpretação do mundo.

De acordo com Santaella e Nöth (1998), o imaginário é o registro que mais


se relaciona aos problemas da imagem. Tal registro corresponde ao ego, ao
eu do sujeito. É aqui que se encontra o narcisismo como um investimento
libidinal. A definição freudiana sobre o narcisismo remete ao mito grego de
Narciso. Ovídio (43 a.C–18 d.C.) conta que esse personagem mitológico grego
era conhecido pela sua beleza. Filho do deus do rio Cefiso e da ninfa Liríope,
Narciso é punido com uma maldição imputada por Afrodite porque ele havia
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desprezado o amor da bela ninfa Eco, a qual seleciona uma montanha como
“seu leito de morte”. Assim, Narciso é punido da seguinte forma: ele poderia
amar, mas não lhe seria possível ter o objeto amado. Um dia, observa o seu
reflexo em um lago e admira a forma bela que contempla. Uma das questões
que essa história coloca diz respeito à constituição dos seres humanos como
sujeitos, que passa inevitavelmente pelo outro, pelo olhar do outro, pelo crivo
de outrem, porém esse outro aparece como reduzido a uma imagem de si
mesmo. Em Narciso, sujeito e objeto são colocados em confluência, sendo
um reflexo do outro (AZEVEDO, 2004).
Essa história auxilia Freud na teorização que elabora sobre o narcisismo, a
qual é retomada por Lacan posteriormente no famoso estádio do espelho: aqui
se coloca, além da constituição do eu, da completude, a relação especular com
o outro (SANTAELLA; NÖTH, 1998). A “identidade” é construída – a partir
da analogia que o psicanalista francês faz entre o bebê (dos seis aos 18 meses)
e a sua imagem projetada no espelho – por meio de um jogo que se dá entre o
eu e o outro; jogo esse, é importante você perceber, que ocorre ao longo de toda
a vida, nas relações sociais. “Senhor e servo do imaginário, o eu se projeta nas
imagens em que se espelha: imaginário da natureza, imaginário do corpo, da
mente, e das relações sociais” (SANTAELLA; NÖTH, 1998, p. 190). As relações
passam, desse modo, a se dar conforme essa imagem que é constantemente
repetida porque é por meio dessa imago que a subjetividade é fundada.
A relação que o paradigma pré-fotográfico mantém com o registro do
imaginário é ora idílica, ora conflituosa, da mesma forma que a relação que
o desenho e/ou a pintura, isto é, a imagem artesanal, mantém com o corpo,
o objeto, a natureza, etc. Como essa produção implica a presença do corpo –
seja da mão, seja do olhar – e do objeto representado, a imaginação do artista
é a responsável por expressar essa imagem. Esta é, assim, ilusória, porque
incompleta, mesmo que pretenda uma completude, e mítica, porque suspensa
na temporalidade após realizada (SANTAELLA; NÖTH, 1998). Ademais, ela
é uma imagem singular, um olhar específico, um ponto de vista que é levado
para o espectador com ela se identificar.
A respeito do real, Santaella e Nöth (1998) retomam que ele, sendo o
impossível, o impossível de ser simbolizado, ou seja, o que não é possível de
ser capturado pelo simbólico, está para o paradigma fotográfico. Ora, entre o
objeto e a sua imagem, há a falta. Dito de outro modo, não há uma adequação
entre as partes do seu corpo e a “matriz imaginária” que você pode ter dele.
Assim, como se articula o mundo do imaginário com o mundo do real em cada
um? O paradigma fotográfico se deu nesse choque entre o imaginário e o real.
Foi nesse encontro conflituoso que a fotografia e os seguintes desdobramentos
Relação compreensiva. Relação com o real 9

surgiram. Há nesses gêneros um corte, um recorte, um fragmento apenas que é


capturado no tempo-espaço. Com o modelo fotográfico, a utopia da completude
entre o mundo e a imagem cai por terra. Sobre essa relação, veja o enunciado
de Santaella (1996, p. 180 apud SANTAELLA; NÖTH, 1998, p. 192):

Quanto mais um aparelho ou máquina se aperfeiçoa no registro mimético dos


objetos e situações, mais evidente se torna sua impossibilidade de ser igual
àquilo que registra. Há um descompasso entre o ritmo do mundo, matéria
vertente do vivido, e a capacidade do registro. A febre da vida não cabe em
imagens. Sob as vestes da imagem, algo cai. Esse algo é o real, que insiste
na sua irredutibilidade.

Santaella e Nöth (1998) discorrem sobre o simbólico, que é o espaço da


linguagem, da estrutura, da lei e da cultura, do grande Outro – o qual inclui
a lei paterna, a mediação, o significante que falta, entre outros. Conforme
expõem os autores, o simbólico e a sua relação com a imagem, o paradigma
pós-fotográfico, são marcados pela dimensão externa desse olhar do grande
Outro. Esse paradigma inclui as imagens numéricas, computadorizadas, as
quais são criadas por meio de um cálculo aritmético. Não é mais necessária a
presença no tempo e no espaço do sujeito espectador e do objeto que representa.
O olhar do sujeito se reduz “[...] a um ponto geométrico [...]” (MARTINHOL,
1993, p. 99 apud SANTAELLA; NÖTH, 1998, p. 193).

É importante você notar que, embora seja “redutor” dividir a história da imagem e os
seus desdobramentos em três grandes momentos, os paradigmas citados e discutidos
pelos autores devem ser observados como pontos de partida. Eles podem levar você
a refletir sobre como a relação dos seres humanos com a imagem tem se modificado
ao longo da história.

A interpretação da imagem como mais ou


menos real
Nas sociedades ocidentais de maneira geral, as imagens se apresentam como
formas de expressão típicas. Aliás, elas vêm constituindo novamente – nova-
mente porque o uso das imagens é anterior ao das letras – um protótipo básico
10 Relação compreensiva. Relação com o real

da comunicação. O uso excessivo das redes sociais pelas pessoas tem trazido
uma questão antiga, mas muito cara aos estudos que envolvem campos como
os da filosofia, da linguagem e do discurso, que é a seguinte: o que torna uma
imagem “real” ou mais ou menos “real”? É importante destacar que esse
real está entre aspas porque é empregado aqui no sentido de “realidade”, e
não no da psicanálise discutido anteriormente. Logo, por que uma imagem
de um corpo excessivamente magro parece real para muitos, enquanto uma
dissimulação para outros? Por que há tanta controvérsia a respeito das imagens
fake veiculadas pela mídia? Ora, a imagem é, como você sabe, experimentada
por meio dos sentidos. No entanto, alguns a percebem como parte constitutiva
que é socialmente representada pelas pessoas a respeito do mundo; outros,
como o próprio mundo, como se este existisse, já de antemão, “pronto” para
ser observado.
Naturalmente, você não precisa responder a essas questões. Elas servem
para que você possa pensar o seguinte: a imagem é uma das formas utilizadas
para expressar a realidade e a sua relação com ela. Conforme explicam Bec-
cari e Portugal (2013), “[...] há muitas formas de olhar para o mundo [...]”. E
isso não diz respeito apenas a uma categorização social, herdada a partir das
experiências com os pares, desde a infância, e dos contatos com as numerosas
instituições sociais e políticas ao longo da vida; mas também pela própria
forma como o olhar se projeta. O ato de ver é, portanto, fundamental nesse
processo e dialoga com os filtros, os julgamentos coletivamente construídos,
aos quais poucas vezes as pessoas têm acesso e compreensão consciente. Sem
querer entrar numa discussão de cunho tautológico, essa reflexão pontua que
a forma de olhar, isto é, de projetar a visão, interfere também na constituição
das pessoas como seres humanos. Além disso, ela permite dizer que o como
“se habita” já é parte de um olhar que não só observa e contempla, mas que,
ao ver, produz sentido. Isso é, inclusive, parte crucial do debate levantado na
obra cinematográfica de produção nacional e internacional chamada A janela
da alma (MIRÁ FILMES, 2014).
Relação compreensiva. Relação com o real 11

A imagem como construção do real


É importante que você pense de forma “mais concreta” essa relação entre a
imagem e o suposto real, dentro de uma concepção social da realidade. Isto
é, você deve considerar a realidade como um processo em construção pelos
sujeitos – e não como algo já dado, como geralmente é tomada pelas ciências
naturais, embora esse movimento tenha se modificado ao longo dos anos. Isso
leva à reflexão levantada por Mota-Ribeiro e Coelho (2011) sobre a modalidade
da imagem. Segundo esses autores, a modalidade da imagem é um aspecto da
dimensão interacional, o qual se relaciona com a credibilidade das imagens,
no sentido de como a mensagem é construída. Baseando-se em Kress e van
Leeuwen (2006 apud MOTA-RIBEIRO; COELHO, 2011), os marcadores
visuais das imagens permitem que elas sejam interpretadas como mais ou
menos reais, ou seja, como mais ou menos “credíveis”. É interessante você
notar que, na perspectiva desses autores, uma modalidade elevada remete
para o real e uma baixa, para a possibilidade. No entanto, isso não diz respeito
necessariamente ao fato de a cena ser representada de forma fantasiosa, pois
uma imagem com fantasmas, por exemplo, pode ter uma modalidade elevada
caso seja representada como “real”. Para isso, o autor/produtor da imagem
deve usar elementos visuais que possam atribuir credibilidade a ela.
A credibilidade faz parte de uma construção social, coletiva. Dito de outro
modo, os elementos usados para construir uma mensagem visual como real
podem ser interpretados de forma diferente por outro grupo social. Assim,
enquanto um confere uma modalidade alta àquela mensagem, outros podem
atribuir uma baixa. Nesse sentido, “[...] a credibilidade varia de sociedade
para sociedade, uma vez que é culturalmente marcada [...]” (KRESS; VAN
LEEUWEN, 1996 apud MOTA-RIBEIRO; COELHO, 2011). Além disso,
dentro de uma mesma cultura, o próprio padrão de credibilidade pode variar.
Essa variação também é histórica, pois se dá ao longo do tempo. Logo, é
importante você ter como ponto de partida essa reflexão sobre a relação entre
a imagem e o real como uma dinâmica de representação, e não como uma
correspondência objetiva.
Portanto, dentro de cada cultura, é possível encontrar diferentes formas
de observar uma mesma imagem. Assim, os padrões que caracterizam uma
imagem mais “real” são contextuais, relacionais e variam conforme o tempo, o
espaço, o sujeito que a vê, a situação de interação entre os sujeitos, entre outros
elementos. Por fim, refletir sobre a relação entre imagem e real é importante
para evitar prévios julgamentos e atitudes, bem como o uso da violência pela
violência. Essa reflexão também é essencial para trabalhar a relação entre o
eu e o outro – o meu olhar e o outro olhar – de forma mais ética e democrática
diante do que está sendo veiculado na mídia.
Relação compreensiva. Relação com o real 12

Figura 1. Dependendo do contexto em que é usada esta imagem, ela pode apresentar
uma modalidade alta ou baixa quanto ao real.
Fonte: Daniel de Castro Ribeiro/Shutterstock.com.
13 Relação compreensiva. Relação com o real

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Leitura recomendada
RIVERA, T. Cinema, imagem e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
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