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G. H. Hardy
Em Defesa de um Matemático
Tradução
LUÍS CARLOS BORGES
Martins Fontes
São Paulo 2000
Esta obra foi publicada originalmente em inglês com o título
A MATHEMATICIAN’S APOLOGY,
por press Syndicate of the University of Cambridge.
Copyright © C. P. Snow 1967 para o prefácio.
Copyright © 2000, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.
1a edição
setembro de 2000
Tradução
LUÍS CARLOS BORGES
Revisão da tradução
Marcelo Brandão Cipolla
Revisão gráfica
Célia Regina Camargo
Sandra Rodrigues Garcia
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial (6957-7653)
G. H. H.
18 de julho de 1940
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E continuara:
Quando lhe disse que fora ver Johnson [seu homônimo] cavalgar três
cavalos, ele disse: “Tal homem, meu senhor, deve ser encorajado, pois o
seu desempenho mostra a medida do poder humano...”
Seria melhor dizer algo aqui sobre essa questão da idade, já que ela é
particularmente importante para os matemáticos. Nenhum matemático deve
jamais esquecer que a matemática, mais que qualquer outra arte ou ciência,
é feita para os jovens. Para dar um exemplo simples, num nível
relativamente humilde, a idade de eleição para a Royal Society é, em média,
mais baixa para os matemáticos.
É fácil encontrar exemplos muito mais impressionantes. Pensemos, por
exemplo, na carreira de um homem que certamente foi um dos três maiores
matemáticos do mundo. Newton renunciou à matemática aos cinquenta
anos e já tinha perdido o seu entusiasmo muito antes; aos quarenta, já sabia
sem sombra de dúvida que os seus dias mais criativos estavam terminados.
Suas maiores ideias, o cálculo diferencial e a lei da gravitação, surgiram em
1666, quanto ele tinha vinte e quatro anos - “naqueles dias eu estava na flor
da idade para a invenção e importava-me com a matemática e a filosofia
mais do que em qualquer outra época desde então”. Fez grandes descobertas
até quase os quarenta anos (a “órbita elíptica” aos trinta e sete), mas, depois,
limitou-se a polir e aperfeiçoar.
Galois morreu com vinte e um anos, Abel com vinte e sete, Ramanujan
com trinta e três, Riemann com quarenta. Houve homens que fizeram bons
trabalhos bem mais tarde; o grande ensaio de Gauss sobre a geometria
diferencial foi publicado quando ele tinha cinquenta anos (embora as ideias
fundamentais tivessem surgido dez anos antes). Não conheço nenhum
grande avanço matemático realizado por um homem com mais de cinquenta
anos. Se um homem de idade madura perde o interesse pela matemática e a
deixa de lado, é improvável que a perda seja muito séria para a matemática
ou para ele mesmo.
Tampouco é provável que o ganho seja apreciável; a história posterior
dos matemáticos que deixaram a matemática não é especialmente
animadora. Newton tornou-se um Chefe da Casa da Moeda bastante
competente (quando não estava brigando com ninguém). Painlevé não foi
muito bem sucedido como premiê da França. A carreira política de Laplace
cobriu-o de desonra, mas não é justo citá-lo como exemplo, pois ele foi
mais desonesto que incompetente e nunca “renunciou” realmente à
matemática. É muito difícil encontrar na história um matemático de
primeira categoria que tenha abandonado a matemática e alcançado a
excelência em qualquer outro campo (Pascal parece ser um caso à parte). Talvez já
tenha havido jovens que teriam sido matemáticos de primeira se tivessem se
atido à matemática, mas eu nunca ouvi falar de nenhum caso desse tipo. E
tudo isso é plenamente confirmado pela minha limitada experiência. Todos
os jovens matemáticos de talento que conheci foram fiéis à matemática, não
por falta de ambição, mas por excesso; todos perceberam que só a
matemática lhes poderia abrir o caminho para algum grau de
reconhecimento nesta vida.
E:
Tudo isso é “retórica”, mas a substância do que foi dito ainda me parece
verdadeira, e posso desenvolver esse assunto imediatamente, sem prejuízo
de nenhuma das outras questões que estou deixando em aberto.
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Deve estar claro agora que, para conseguirmos fazer algum progresso,
teremos de apresentar exemplos de teoremas matemáticos “de verdade”,
teoremas que todo matemático admitirá serem de primeira categoria. E,
nesse ponto, as restrições sob as quais estou escrevendo me impõem uma
severa desvantagem. Por um lado, meus exemplos precisam ser muito
simples e inteligíveis para um leitor que não possua nenhum conhecimento
especializado de matemática; não podem reclamar nenhuma explicação
preliminar elaborada; e o leitor deve ser capaz de acompanhar não só os
enunciados, mas também as provas. Essas condições excluem, por exemplo,
muitos dos teoremas mais belos da teoria dos números, como o teorema dos
“dois quadrados” de Fermat ou a lei da reciprocidade quadrática. E, por
outro lado, meus exemplos devem ser extraídos da matemática “autêntica”,
da matemática do matemático profissional praticante, e essa condição exclui
muitas coisas de inteligibilidade relativamente fácil, mas que pertencem
mais ao domínio da lógica e da filosofia matemática.
Nada melhor do que voltar aos gregos. Vou enunciar e provar dois
famosos teoremas dos matemáticos gregos. São teoremas “simples”,
simples na ideia e na execução, mas não há dúvida nenhuma de que são
teoremas de primeira classe. Ambos conservam o frescor e a grandeza que
tinham ao ser descobertos - dois mil anos não deixaram uma ruga sequer em
nenhum dos dois. Finalmente, tanto os enunciados como as provas podem
ser dominados por qualquer leitor inteligente em uma hora, por menor que
seja a sua formação matemática.
1. O primeiro é a prova da existência de uma infinidade de números
primos, de Euclides (Elementos, IX, 20. A verdadeira origem de muitos teoremas dos
Elementos é obscura, mas parece não existir nenhuma razão específica para supor que este não seja
de Euclides).
Os primos ou números primos são os números (A) 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17,
19, 23, 29,... que não podem ser decompostos em fatores menores (Há razões
técnicas para não considerar 1 como um número primo). Assim, 37 e 317 são primos. Os
primos são o material com o qual se constroem todos os números, pela
multiplicação: assim, 666 = 2.3.3.37. Todo número que não seja ele próprio
primo é divisível por, pelo menos, um primo (geralmente, é claro, por
vários). Temos de provar que o número de números primos é infinito, isto é,
que a série (A) não acaba jamais.
Suponhamos que ela acabe, e que
2, 3, 5, ..., P
seja a série completa (de modo que P seja o maior número primo); e
consideremos, nesta hipótese, o número Q, definido pela fórmula
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(B) a2 = 2b2
não pode ser resolvida com valores inteiros de a e b que não tenham
nenhum fator comum. Esse é um teorema de aritmética pura, que não exige
nenhum conhecimento de “números irracionais” nem depende de nenhuma
teoria sobre a natureza destes.
Argumentamos novamente por reductio ad absurdum; suponhamos que
(B) seja verdade, a e b sendo inteiros sem nenhum fator comum. Decorre de
(B) que a2 é par (já que 2b2 é divisível por 2) e, portanto, que a é par (já que
o quadrado de um número ímpar é ímpar). Se a é par, então,
(C) a = 2c
(D) b2=2c2
Portanto, b2 é par e, portanto (pela mesma razão que antes), b é par. Isto é, a
e b são ambos pares e, portanto, têm o fator comum 2. Isso contradiz a
nossa hipótese e, por conseguinte, a hipótese é falsa.
Decorre do teorema de Pitágoras que a diagonal de um quadrado é
incomensurável com o lado (que a razão entre os dois não é um número
racional, que não existe nenhuma unidade da qual ambos sejam múltiplos
inteiros). Isso porque, se tomarmos o lado como nossa unidade de
comprimento, e o comprimento da diagonal for d, então, por meio de um
teorema bem conhecido também atribuído a Pitágoras (Euclides, Elementos, I,
47),
d2 = 12+ 12 = 2
5 = l2 + 22, 13 = 22 + 32,
17= 12 + 42? 29 = 22 + 52;
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são irracionais, ou (indo além de Teodoro) que 3√2 e 3√17 são irracionais
(Ver o cap. IV de Introduction to the Theory of Numbers, de Hardy e Wright, no qual se discutem as
diversas extensões do teorema de Pitágoras e um enigma histórico a respeito de Teodoro).
O teorema de Euclides nos diz que temos um bom estoque de material
para a construção de uma aritmética coerente dos números inteiros. O
teorema de Pitágoras e as suas extensões nos dizem que, quando tivermos
construído essa aritmética, ela não será suficiente para as nossas
necessidades, já que haverá muitas magnitudes que irão chamar a nossa
atenção e que ela não será capaz de medir; a diagonal do quadrado é apenas
o exemplo mais evidente. A profunda importância dessa descoberta foi
reconhecida imediatamente pelos matemáticos gregos. Eles haviam suposto
a princípio (em concordância, penso, com os ditames “naturais” do “senso
comum”) que todas as magnitudes do mesmo tipo são comensuráveis, que
dois comprimentos quaisquer, por exemplo, são sempre múltiplos de uma
unidade comum, e tinham construído uma teoria da proporção baseados
nessa suposição. A descoberta de Pitágoras mostrou que esse fundamento
não era sólido e levou à construção da teoria de Eudoxo, muito mais
perspicaz, exposta no quinto livro dos Elementos, e que é considerada por
muitos matemáticos modernos a maior conquista da matemática grega. Essa
teoria é espantosamente moderna em espírito e pode ser considerada o
princípio da teoria moderna dos números irracionais, que revolucionou a
análise matemática e teve muita influência sobre a filosofia de tempos
recentes.
Não há dúvida nenhuma, então, quanto à “seriedade” de ambos os
teoremas. Portanto, é melhor observar desde já que nenhum dos dois tem a
menor importância “prática”. Nas aplicações práticas, nós lidamos apenas
com números relativamente pequenos; só a astronomia estelar e a física
atômica lidam com números “grandes”, e a importância prática delas, até
agora, não é muito maior que a da mais abstrata das matemáticas puras. Não
sei qual é o grau mais elevado de precisão de que um engenheiro precisa -
seremos generosos se o fixarmos em dez algarismos. Então
3,14159265
314159265
100000000
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(a) 8712 e 9801 são os únicos números de quatro algarismos que são
múltiplos inteiros de seus “inversos”:
e não existe nenhum outro número inferior a 10.000 que possua essa
propriedade.
(b) Existem apenas quatro números (depois de 1) que são a soma dos
cubos dos seus algarismos, a saber:
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“Generalidade” é uma palavra ambígua e um pouco perigosa, e é
preciso ter cuidado para que ela não domine excessivamente nossa
discussão. E usada em vários sentidos na matemática e nos escritos a
respeito de matemática, e há um sentido em particular, que os matemáticos,
muito adequadamente, põem em grande relevo, e que não tem
absolutamente nada que ver com o assunto de que estamos tratando. Nesse
sentido, que é bastante fácil de definir, todos os teoremas matemáticos são
igualmente “gerais”, e o são de forma absoluta.
“A certeza da matemática”, diz Whitehead (Science and the Modern World, p.
33), “depende da sua absoluta generalidade abstrata.” Quando afirmamos
que 2 + 3 =: 5, estamos afirmando uma relação entre três grupos de
“coisas”, e essas “coisas” não são maçãs, nem moedas, nem coisas de uma
ou outra espécie particular, mas apenas coisas, “qualquer coisa”. O
significado do enunciado é totalmente independente das individualidades
dos membros dos grupos. Todos os “objetos” ou “entidades” ou “relações”
matemáticas, tais como “2”, “3”, “5”, “+” ou “=”, e todas as proposições
matemáticas em que eles ocorrem, são absolutamente gerais na medida em
que são absolutamente abstratos. Na verdade, uma das palavras de
Whitehead é supérflua, já que a generalidade, nesse sentido, é abstração.
Esse sentido da palavra é importante, e os lógicos estão muito corretos
em frisá-lo, já que ele contém um truísmo que muita gente supostamente
sábia tende a esquecer. É bastante comum, por exemplo, ouvirmos um
astrônomo ou físico afirmar que encontrou uma “prova matemática” de que
o universo físico deve comportar-se de uma maneira específica. As
afirmações desse tipo, se interpretadas de maneira literal, não significam
absolutamente nada. Não é possível provar matematicamente que haverá
um eclipse amanhã, porque os eclipses e outros fenômenos físicos não
fazem parte do mundo abstrato da matemática; e suponho que todos os
astrônomos o admitiriam se fossem pressionados, por mais eclipses que
possam ter previsto corretamente.
É evidente que não estamos preocupados com esse tipo de
“generalidade” agora. Estamos procurando por diferenças de generalidade
entre um teorema matemático e outro, e no sentido de Whitehead todos são
igualmente gerais. Assim, os teoremas “triviais” (a) e (b) do parágrafo 15
são tão “abstratos” ou “gerais” quanto os de Euclides e Pitágoras, e o
mesmo ocorre com um problema de xadrez. Não faz diferença para um
problema de xadrez se as peças são brancas e pretas ou vermelhas e verdes,
ou mesmo se são “peças” físicas; é o mesmo problema que um especialista
facilmente carrega na sua cabeça e que temos de reconstruir laboriosamente
com o auxílio do tabuleiro. O tabuleiro e as peças são meros recursos para
estimular a nossa imaginação preguiçosa, e não são mais essenciais para o
problema que o quadro negro e o giz são para os teoremas de uma aula de
matemática.
Não é por esse tipo de generalidade, comum a todos os teoremas
matemáticos, que estamos procurando agora, mas pelo tipo mais sutil e
fugidio de generalidade que tentei descrever em termos toscos no parágrafo
15. E devemos ter cuidado para não pôr ênfase demais mesmo na
generalidade que equivale à abstração (como penso que lógicos como
Whitehead tendem a fazer). A conquista mais notável da matemática
moderna não consiste simplesmente em “empilhar uma sutileza de
generalização sobre outra sutileza de generalização” (Science and the Modem
World, p. 44). É preciso que certa medida de generalidade esteja presente em
todo teorema de alta classe, mas o excesso tende inevitavelmente à
insipidez. “Tudo é o que é e não outra coisa”, e as diferenças entre as coisas
são tão interessantes quanto as semelhanças. Não escolhemos nossos
amigos porque eles incorporam todas as qualidades agradáveis da
humanidade, mas porque são as pessoas que são. E assim é na matemática:
uma propriedade comum a uma quantidade excessiva de objetos não pode
ser empolgante, e também as ideias matemáticas se apagam quando não têm
bastante individualidade. Aqui, de qualquer modo, posso citar Whitehead a
meu favor: “é a grande generalização, limitada por uma particularidade
feliz, que faz a concepção frutífera” (Science and the Modem World, p. 46)
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Tudo isso pode parecer muito evidente, mas mesmo aqui há um bocado
de confusão, já que as matérias mais “úteis” são, com muita freqüência,
justamente aquelas cujo aprendizado é mais inútil para a maioria das
pessoas. E muito bom que os fisiologistas e engenheiros existam em
quantidade suficiente, mas a fisiologia e a engenharia não são estudos úteis
para o homem comum (embora o estudo dessas coisas possa, é claro, ser
defendido com base em outros fundamentos). De minha parte, nunca me vi
numa situação em que os conhecimentos científicos que possuo, fora da
matemática pura, me tenham trazido a menor vantagem.
Na verdade, é surpreendente o quão ínfimo é o valor prático que o
conhecimento científico tem para o homem comum, o quão aborrecidos e
banais são os conhecimentos que têm algum valor, e o quanto esse valor
parece variar segundo a ordem inversa da sua reputada utilidade. É útil ser
rápido para fazer contas de aritmética comum (e isso, é claro, é matemática
pura). É útil saber um pouco de francês ou alemão, um pouco de história e
geografia, talvez até mesmo um pouco de economia. Mas um pouco de
química, física ou fisiologia não tem valor nenhum na vida comum.
Sabemos que a gasolina vai queimar sem conhecer a sua composição;
quando o carro quebra, nós o levamos para a oficina; quando estamos mal
do estômago, vamos ao médico ou à farmácia. Ou nós vivemos
empiricamente ou vivemos na dependência do conhecimento profissional de
outras pessoas.
Contudo, essa é uma questão secundária, uma questão de pedagogia,
que interessa apenas aos diretores de escola que têm de aconselhar os pais
que clamam por uma educação “útil” para os seus filhos. Naturalmente,
quando dizemos que a fisiologia é útil, não queremos dizer que a maioria
das pessoas deve estudar fisiologia, mas que o desenvolvimento da
fisiologia por parte de um punhado de especialistas aumentará o conforto da
maioria. As questões mais importantes para nós agora são: até que ponto a
matemática pode reivindicar para si essa espécie de utilidade? Que tipos de
matemática têm mais direito de fazer essa reivindicação? E até que ponto o
estudo intensivo da matemática, tal como é compreendido pelos
matemáticos, pode ser justificado apenas com base nesse fundamento.
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