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Em Defesa de um Matemático

G. H. Hardy
Em Defesa de um Matemático

Com uma introdução de


C. P. SNOW

Tradução
LUÍS CARLOS BORGES
Martins Fontes
São Paulo 2000
Esta obra foi publicada originalmente em inglês com o título
A MATHEMATICIAN’S APOLOGY,
por press Syndicate of the University of Cambridge.
Copyright © C. P. Snow 1967 para o prefácio.
Copyright © 2000, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, para a presente edição.

1a edição
setembro de 2000
Tradução
LUÍS CARLOS BORGES
Revisão da tradução
Marcelo Brandão Cipolla
Revisão gráfica
Célia Regina Camargo
Sandra Rodrigues Garcia
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial (6957-7653)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Hardy, G. H„ 1877-1947.
Em defesa de um matemático/G. H. Hardy; com uma introdução de C. P. Snow; tradução Luís Carlos
Borges. - São Paulo: Martins Fontes, 2000. - (Tópicos)
Título original: A mathematician’s apology.
Bibliografia.
ISBN 85-336-1314-8

1. Hardy, Godfrey Harold, 1877-1947 2. Matemática I. Snow, C. P, 1905- n. Título, m. Série.


00-3792 CDD-510
Índices para catálogo sistemático:
1. Matemática 510
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Para
JOHN LOMAS
que me pediu que escrevesse este livro
INTRODUÇÃO

Era uma noite perfeitamente comum no jantar solene do Christ’s, exceto


pelo fato de que Hardy era um dos convidados. Acabava de voltar a
Cambridge, como professor da cadeira Sadler, e eu ficara sabendo alguma
coisa a seu respeito através de jovens matemáticos de Cambridge. Estavam
deliciados em tê-lo de volta: era um matemático de verdade, diziam, não era
como os Diracs e Bohrs de quem os físicos estavam sempre falando: era o
mais puro dos puros. Também era heterodoxo, excêntrico, radical, pronto a
falar sobre qualquer coisa. Isso foi em 1931, e ainda não se usava a
expressão, mas em tempos mais recentes diriam que, de um modo
indefinível, ele tinha a qualidade do astro.
Assim, do meu lugar na mesa, a distância, continuei a estudá-lo. Ele
tinha então uns cinquenta e poucos anos: o cabelo já estava grisalho,
coroando uma pele tão profundamente queimada pelo sol que adquirira uma
espécie de bronzeado índio. Tinha o rosto bonito - maçãs salientes, nariz
fino, espiritual e austero, mas capaz de dissolver-se nas convulsões de um
contentamento como que de menino. Tinha olhos de um castanho opaco,
brilhantes como olhos de pássaro - um tipo de olho que não é incomum
entre os que têm o dom do pensamento conceituai. Cambridge, naquela
época, estava repleta de rostos incomuns e distintos - mas, mesmo assim,
pensei naquela noite que Hardy se destacava.
Não lembro como estava vestido. Podia muito bem estar de casaco
esporte e calças de lã cinza por baixo da beca. Como Einstein, vestia-se
para agradar a si mesmo: embora, ao contrário de Einstein, variasse o
vestuário informal com certo gosto por camisas caras de seda.
Quando estávamos sentados à mesa do combination-room após o jantar,
tomando vinho, alguém disse que Hardy queria falar comigo sobre críquete.
Eu fora eleito havia apenas um ano, mas o Christ’s College, na época, era
uma escola pequena e mesmo os passatempos dos professores mais novos
eram logo identificados. Levaram-me para sentar ao lado dele. Não fui
apresentado. Conforme descobri depois, ele ficava constrangido e
embaraçado em todos os atos formais e tinha pavor de apresentações.
Apenas inclinou a cabeça como que em reconhecimento e, sem nenhum
preâmbulo, começou:
“Dizem que você entende de críquete. É verdade?” Eu disse que sim,
que entendia um pouco.
Imediatamente, ele me submeteu a uma rígida sabatina. Eu jogava?
Jogava bem? De certa maneira, adivinhei que ele tinha horror das pessoas
então dominantes na sociedade acadêmica, que estudavam devotamente a
literatura, mas nunca tinham jogado críquete. Mostrei-lhe as minhas
credenciais, tais como eram. Ele pareceu tranquilizar-se um pouco com a
resposta e passou para questões mais táticas. Quem eu teria escolhido como
capitão para o último jogo teste, um ano antes (em 1930)? Se os
selecionadores tivessem dado a Snow o encargo de salvar a Inglaterra, quais
teriam sido minha estratégia e minhas táticas? (“Tem permissão para atuar,
se for suficientemente modesto, como capitão fora de campo.”) E assim por
diante, alheio ao resto da mesa. Estava totalmente absorto.
Conforme tive a oportunidade de perceber mais tarde, Hardy não
confiava em intuições ou impressões, suas ou dos outros. A única maneira
de avaliar o conhecimento de alguém, na opinião de Hardy, era examiná-lo.
Isso valia para matemática, literatura, filosofia, política, qualquer coisa que
se possa imaginar. Se o homem blefava e depois sucumbia às perguntas,
azar dele. Naquela mente brilhante e concentrada, as coisas mais
importantes vinham em primeiro lugar.
Naquela noite, no combination-room, era necessário descobrir se eu
seria aceitável como companheiro de críquete. Nada mais importava. No
fim, ele sorriu com um enorme encanto, com uma franqueza infantil, e disse
que talvez o Fenner’s (o campo de críquete da universidade) finalmente se
tornasse tolerável na próxima temporada, com a possibilidade de uma
convivência razoável.
Assim, da mesma maneira que eu devia meu contato com Lloyd George
à sua paixão pela fre- nologia, minha amizade com Hardy foi devida ao fato
de eu ter desperdiçado uma parte desproporcional de minha juventude no
críquete. Não sei qual é a moral dessa história, mas foi um grande golpe de
sorte para mim. Intelectualmente, essa foi a amizade mais valiosa da minha
vida. Sua mente, como acabo de dizer, era brilhante e concentrada: tanto
que, ao lado da sua, a mente de qualquer outra pessoa parecia um pouco
embotada, rasteira e confusa. Não era um grande gênio, como Einstein e
Rutherford. Disse, com a clareza de costume, que, se a palavra significava
alguma coisa, ele não era um gênio mesmo. Na melhor das hipóteses, ele
dizia, foi por um breve período o quinto melhor matemático puro do
mundo. Como seu caráter era tão belo e puro quanto sua mente, sempre
afirmou que seu amigo e colaborador, Littlewood, era um matemático
consideravelmente mais capaz do que ele, e que seu protegido, Ramanujan,
tinha realmente um gênio natural no sentido em que o tinham os maiores
matemáticos (embora não na mesma extensão e não com a mesma eficácia).
As pessoas às vezes achavam que estava se subestimando quando falava
desses amigos. É verdade que ele era magnânimo, tão pouco invejoso
quanto possível: acho, porém, que estaríamos depreciando sua capacidade
se não aceitássemos seu julgamento. Prefiro acreditar na declaração que faz
em Em defesa de um matemático, ao mesmo tempo tão orgulhosa e tão
humilde:
“Ainda digo a mim mesmo, quando estou deprimido e me vejo obrigado
a ouvir gente pomposa e cansativa: ‘Bem, fiz uma coisa que você nunca
seria capaz de fazer, que foi colaborar com Littlewood e Ramanujan em
condições de quase igualdade.’”
Seja como for, sua classificação exata deve ficar a cargo dos
historiadores da matemática (embora seja este um trabalho quase
impossível, já que grande parte dos seus melhores trabalhos foram feitos em
colaboração). Há mais um aspecto, porém, sob o qual ele era claramente
superior a Einstein, Rutherford ou qualquer outro grande gênio:
transformava qualquer obra do intelecto, maior, menor ou mesmo uma mera
brincadeira, numa obra de arte. Acho que foi esse dom, mais do que tudo,
que o fez, quase que sem perceber, proporcionar tanto deleite intelectual.
Quando Em defesa de um matemático foi publicada pela primeira vez,
Graham Greene escreveu numa resenha que se tratava da melhor descrição
de o que era ser um artista criativo. Ao pensar no efeito que Hardy tinha
sobre todos ao seu redor, creio que essa é a pista a seguir.
Ele nasceu em 1877, numa família modesta de profissionais liberais.
Seu pai era Tesoureiro e Mestre em Humanidades em Cranleigh, que, na
época, era uma escola pública (o que, em inglês, significa privada) de
menor importância. A mãe fora diretora do Colégio de Treinamento de
Professores de Lincoln. Ambos tinham o dom e a inclinação para a
matemática. No caso dele, como no da maioria dos matemáticos, não é
preciso procurar pelas origens genéticas. Boa parte da sua infância, ao
contrário da de Einstein, foi típica de um futuro matemático. Mostrou um
QI excepcionalmente alto tão logo aprendeu a falar, ou mesmo antes. Aos
dois anos escrevia números de milhões (um sinal comum de capacidade
matemática). Quando o levavam à igreja, distraía-se fatorando o número
dos hinos: brincava com números desde aquela época, um hábito que deu
origem à cena emocionante no leito hospitalar de Ramanujan: a cena é bem
conhecida, só que, mais tarde, não resistirei à tentação de repeti-la.
Foi uma infância vitoriana esclarecida, cultivada, altamente literária.
Seus pais eram provavelmente um pouco obsessivos, mas também muito
carinhosos. A infância em uma família vitoriana como essa era tão tranquila
quanto a infância hoje, embora intelectualmente fosse mais rigorosa. A
infância de Hardy foi incomum em apenas dois aspectos. Em primeiro
lugar, ele sofria de uma timidez aguda numa idade excepcionalmente
precoce, bem antes dos doze anos. Os pais sabiam que era um prodígio de
inteligência, e ele também. Foi o primeiro da classe em todas as matérias.
Mas, por ser o primeiro da classe, tinha de receber os prêmios na frente de
toda a escola, e isso ele não podia suportar. Jantando comigo certa noite,
disse que tentava errar de propósito para ser poupado dessa provação
intolerável. Sua capacidade de dissimulação, contudo, sempre foi mínima:
ganhava os prêmios do mesmo jeito.
Parte da timidez se dissipou. Tornou-se competitivo. Como diz na
Defesa: “Não me lembro de ter sentido, quando garoto, nenhuma paixão
pela matemática, e a ideia que eu tinha da carreira de matemático estava
longe de ser nobre. Pensava na matemática em função dos exames e bolsas
de estudo: queria vencer os outros garotos, e aquela me parecia a maneira
mais decisiva de fazê-lo.” Contudo, tinha de conviver com uma natureza
excessivamente delicada. Parece que tinha nascido com a pele fina demais.
Ao contrário de Einstein, que teve de subjugar seu poderoso ego no estudo
do mundo exterior até conseguir atingir sua estatura moral, Hardy teve de
fortalecer um ego que não era muito protegido. Posteriormente, isso às
vezes o fez ser autoritário (o que Einstein nunca foi) quando tinha de
assumir uma postura moral. Por outro lado, deu-lhe o seu discernimento
introspectivo e a sua bela franqueza, que o fazia falar de si com absoluta
simplicidade (o que Einstein nunca conseguiu).
Acredito que esta contradição ou tensão no seu temperamento estava
ligada a um curioso tique de comportamento. Era o antinarcisista clássico.
Não suportava tirar fotografia: que eu saiba, existem apenas cinco
instantâneos seus. Não tinha nenhum espelho nos seus aposentos, nem
mesmo um espelho de barbear. Quando se hospedava num hotel, a primeira
coisa que fazia era cobrir todos os espelhos com toalhas. Isso já seria bem
estranho se ele tivesse cara de gárgula; superficialmente, podia parecer mais
estranho ainda, já que, a vida inteira, foi de uma beleza acima da média.
Mas é claro que narcisismo e antinarcisismo não têm nada a ver com a
aparência vista pelos observadores externos.
Esse comportamento parece excêntrico, e era mesmo. Entre ele e
Einstein, porém, havia uma diferença de tipo. Os que passaram muito tempo
com Einstein - como Infeld - descobriram que, quanto mais o conheciam,
mais ele se tornava estranho e menos parecido com eles. Tenho certeza de
que eu teria sentido o mesmo. O caso de Hardy era o contrário. Seu
comportamento muitas vezes era diferente, estranhamente diferente do
nosso, mas acabava por parecer uma espécie de superestrutura colocada
sobre uma natureza que não tinha nada de diferente da nossa, exceto o fato
de ser mais delicada, menos protegida, com nervos mais sensíveis.
A outra característica incomum da sua infância foi mais mundana, mas
acarretou a remoção de todos os obstáculos práticos ao longo de toda a sua
carreira. Hardy, com sua honestidade límpida, seria o último homem a ser
melindroso nessa questão. Conhecia a importância do privilégio e sabia que
o tivera. A família não tinha dinheiro, apenas o salário de um professor, mas
tinha acesso às melhores informações educacionais da Inglaterra de fins do
século XIX. Esse tipo específico de informação sempre foi mais
significativo neste país do que qualquer riqueza. As bolsas de estudo
existiam, era preciso saber como conquistá-las. Nunca houve a menor
possibilidade de se desperdiçar o jovem Hardy - ao contrário do jovem
Wells ou do jovem Einstein. Desde os doze anos, bastava ele sobreviver,
que os outros cuidariam do seu talento.
Aos doze, com efeito, recebeu uma bolsa de estudos em Winchester, que
era na época, e foi durante muito tempo, a melhor escola de matemática na
Inglaterra, simplesmente por causa de certos trabalhos matemáticos que
fizera em Cranleigh. (A propósito, será que alguma grande escola seria tão
flexível hoje?) Lá aprendeu matemática sozinho com o professor; nas
clássicas, era tão bom quanto os melhores colegas. Mais tarde, admitiu que
tivera uma boa educação, mas admitiu com relutância. Não gostou da
escola, exceto pelas aulas. Como todas as escolas particulares vitorianas,
Winchester era um lugar duro. Houve um inverno em que quase morreu.
Invejava Littlewood, com seu lar bem-cuidado, estudante não interno em St.
Paul’s, e outros amigos que frequentaram as nossas agradáveis grammar-
schools. Nunca chegou perto de Winchester depois de sair de lá: mas saiu,
tão certo como o trem que há de chegar ao seu destino, com uma bolsa de
estudos aberta no Trinity.
Tinha uma queixa curiosa contra Winchester. Era dotado de um talento
natural para jogos com bola e de uma mira excelente. Aos cinquenta anos,
geralmente conseguia vencer a segunda série da universidade jogando tênis,
e, com sessenta, eu o vi acertar rebatidas surpreendentes no críquete. Ainda
assim, não tivera nem um segundo de treinamento em Winchester; seu
método era precário; se tivesse sido treinado, pensava, teria sido um batedor
bom de verdade, não exatamente de primeira, mas não muito distante disso.
Como todos os juízos que fez a respeito de si, creio que também esse é
verdadeiro. É estranho que, no zénite da veneração vitoriana pelo esporte,
tal talento passasse inteiramente despercebido. Imagino que ninguém achou
que valesse a pena procurar por ele no melhor aluno da escola, tão frágil e
doentio, tão tímido e circunspecto.
Teria sido natural para um aluno de Winchester desse período ir para o
New College. Não teria feito muita diferença para sua carreira profissional
(embora, já que sempre gostou mais de Oxford do que de Cambridge,
pudesse ter ficado por lá a vida toda, e alguns de nós teriam perdido o
prazer de conhecê-lo). Ele decidiu, porém, ir para o Trinity, por uma razão
que descreve com humor, mas com a sinceridade sem retoques de costume,
na Defesa. “Tinha cerca de quinze anos quando (de um jeito bem estranho)
minhas ambições tornaram-se mais aguçadas. Existe um livro de ‘Alan St.
Aubyn’ [na verdade, a sra. Francês Marshall] chamado A Fellow of Trinity,
parte de uma série que trata do que se supõe ser a vida universitária em
Cambridge [...] Há dois heróis, um herói principal chamado Flowers, que é
quase inteiramente perfeito, e um herói secundário, um tipo bem mais
frágil, chamado Brown. Flowers e Brown encontram muitos perigos na vida
universitária [...] Flowers sobrevive a todos esses problemas, tira o segundo
lugar nas competições de matemática [...] e torna-se automaticamente um
fellow (como acho que acontecia então). Brown sucumbe, arruina os pais,
começa a beber, só é salvo do delirium tremens durante uma tempestade
pelas preces do decano, tem muita dificuldade até para conseguir um
diploma comum e, por fim, torna-se missionário. A amizade não é abalada
por esses acontecimentos infelizes e os pensamentos de Flowers voltam-se
para Brown, com uma comiseração afetuosa, enquanto ele, pela primeira
vez, come nozes e bebe vinho do Porto no Sênior Combination-Room.
“Ora, Flowers até era um sujeito decente (pelo menos tão decente
quanto ‘Alan St. Aubyn’ era capaz de conceber), mas mesmo a minha
mente, que é bastante simples, recusou-se a considerá-lo inteligente. Se ele
podia fazer aquelas coisas, por que não eu? Em particular, a cena final no
Combination- Room fascinou-me completamente e, daquela época até o
momento em que isso aconteceu, a matemática significou para mim, antes
de mais nada, tornar-me um fellow do Trinity.”
O que ele devidamente conseguiu, depois de obter o primeiro lugar no
concurso Mathematical Tripos, Parte II, com a idade de 22 anos. No
caminho, ocorreram duas vicissitudes de menor importância. A primeira foi
teológica, à maneira trágica vitoriana. Hardy decidira - penso que antes de
deixar Winchester - que não acreditava em Deus. Para ele, essa decisão era
inequívoca, tão nítida e clara como todos os outros conceitos na sua mente.
A frequência à capela era compulsória no Trinity. Hardy disse ao decano,
sem dúvida à sua maneira tímida mas firme, que não podia frequentá-la de
boa consciência. O decano, que devia ser um funcionariozinho pretensioso,
insistiu para que Hardy escrevesse aos pais e lhes contasse. Eles eram
pessoas religiosas e ortodoxas, e o decano sabia, Hardy mais ainda, que a
notícia lhes causaria mágoa - uma mágoa que nós, setenta anos depois, mal
conseguimos imaginar.
Hardy lutou com sua consciência. Não era mundano o suficiente para
ignorar a questão. Não era nem sequer mundano o suficiente - segundo me
contou certa tarde no Fenner’s, pois a ferida ainda doía - para pedir o
conselho de amigos mais tarimbados, como George Trevelyan e Desmond
Mac Carthy, que saberiam lidar com a questão. Por fim, ele escreveu a
carta. Em parte por causa do incidente, ele permaneceu franca e ativamente
descrente até o fim da vida. Recusava-se a entrar na capela de qualquer
college, mesmo para compromissos formais, como a eleição de um mestre.
Tinha amigos no clero, mas Deus era seu inimigo. Em tudo isso havia um
eco do século XIX; mas estaríamos errados, como sempre no caso de
Hardy, se não o levássemos a sério.
Não obstante, ele transformou a coisa em diversão. Lembro-me, um dia
na década de 1930, de vê-lo desfrutar um pequeno triunfo. Aconteceu em
uma partida de Cavalheiros contra Jogadores no Lord’s. Era cedo, o jogo da
manhã, e o sol brilhava sobre o pavilhão. Um dos batedores, voltado para a
enfermaria, reclamou que não conseguia enxergar por causa de um reflexo
que não sabia de onde vinha. Os juízes, confusos, olharam ao redor do
campo. Automóveis? Não. Janelas? Nenhuma daquele lado do campo. Por
fim, com justificável regozijo pela vitória, um dos árbitros conseguiu achar
o reflexo - vinha de uma grande cruz peitoral, pousada no meio de um
enorme clérigo. Educadamente, o árbitro pediu que ele a tirasse. Perto dali,
Hardy dobrava-se de rir com um prazer mefistofé- lico. Na hora do almoço,
não teve tempo de comer: estava escrevendo postais (postais e telegramas
eram seus meios favoritos de comunicação) a todos os seus amigos clérigos.
Mas, na sua guerra contra Deus e os representantes de Deus, ele nem
sempre obtinha a vitória. Numa tarde adorável e silenciosa de maio, no
Fenner’s, mais ou menos naquela mesma época, as badaladas das seis horas
soaram no campo. “É triste”, disse Hardy com simplicidade, “que algumas
das horas mais felizes da minha vida tenham se passado perto do som de
uma igreja católica.”
O segundo incidente menor de seus anos de graduação foi profissional.
Praticamente desde o tempo de Newton, e ao longo de todo o século XIX,
Cambridge fora dominada pelo exame para o velho Mathematical Tripos.
Os ingleses sempre tiveram mais fé em exames competitivos que qualquer
outro povo (exceto, talvez, pelos chineses imperiais): tradicionalmente,
conduziram esses exames com justiça, mas muitas vezes mostraram uma
notável insensibilidade em decidir como eles deviam ser. Isso, por sinal, é
verdade até hoje. E certamente era verdade no caso do Mathematical Tripos
em seus tempos de glória. Era ele um exame cujas questões eram
geralmente de considerável dificuldade mecânica - mas que, infelizmente,
não oferecia nenhuma oportunidade para que o candidato demonstrasse
imaginação matemática, discernimento ou qualquer qualidade de que
necessita um matemático criativo. Os principais candidatos (os Wranglers -
termo que ainda sobrevive e significa de primeira classe) eram ordenados,
com base nas notas, em ordem numérica estrita. Os colleges comemoravam
quando algum dos seus tornava-se Sênior Wrangler: os dois ou três
primeiros Wranglers eram eleitos Fellows imediatamente.
Tudo era muito inglês. Tinha apenas uma desvantagem, como Hardy
assinalou com a sua polêmica clareza, tão logo se tornou um matemático
eminente e se dedicou, juntamente com o duro aliado, Littlewood, a abolir o
sistema: durante cem anos, o Tripos conseguira arruinar a boa matemática
na Inglaterra.
No primeiro trimestre que passou no Trinity, Hardy viu-se preso nesse
sistema. Tinha de ser treinado como um cavalo de corrida, em um curso de
exercícios matemáticos que ele, aos dezenove anos, já sabia que não tinham
sentido. Foi mandado a um famoso treinador, ao qual recorria a maioria dos
possíveis Sênior Wranglers. Esse treinador conhecia todos os obstáculos,
todos os truques dos examinadores, e manifestava um sublime desinteresse
pela matéria em si. Nesse ponto, o jovem Einstein teria se rebelado: ou teria
saído de Cambridge ou não faria nenhum trabalho formal pelos três anos
seguintes. Hardy, porém, nasceu no ambiente inglês, bem mais profissional
(e que não tem só seus deméritos, mas também seus méritos). Depois de
cogitar a ideia de passar ao curso de história, teve a sensatez de procurar um
matemático de verdade para ensiná-lo. Hardy prestou-lhe tributo na Defesa:
“Quem me abriu os olhos pela primeira vez foi o professor Love, que me
deu aulas durante alguns trimestres e me transmitiu a primeira concepção
séria de análise. Mas a grande dívida que tenho para com ele - ele se
dedicava, no fim das contas, antes de tudo à matemática aplicada - advém
de ele ter me recomendado o famoso Cours d’analyse de Jordan; nunca
esquecerei a surpresa com que li essa obra notável, a primeira inspiração
para tantos matemáticos da minha geração; e, quando a li, aprendi pela
primeira vez o que realmente significava a matemática. Daquela época em
diante, me tornei, à minha maneira, um matemático de verdade, com sadias
ambições matemáticas e uma paixão verdadeira pela matemática.”
Hardy foi o quarto Wrangler em 1898. Costumava confessar que isso o
irritou um pouco. Era competitivo o suficiente para achar que, embora a
competição fosse ridícula, ele devia tê-la vencido. Em 1900 participou da
Parte II do Tripos, um exame mais digno de respeito, e conseguiu a
colocação certa e a condição de fellow.
Desde então, sua vida estava essencialmente encaminhada. Ele sabia
qual era o seu objetivo, que era dar rigor à análise matemática na Inglaterra.
Não se afastou das pesquisas, que chamou “a única grande felicidade
permanente da minha vida”. Não teve angústias quanto ao que devia fazer.
Nem ele nem mais ninguém duvidava do seu grande talento. Foi eleito para
a Royal Society com trinta e três anos.
Sob vários aspectos, então, teve uma sorte in- comum. Não teve de
pensar a respeito da carreira. Desde os vinte e três anos teve todo o tempo
livre que um homem poderia querer e todo o dinheiro de que precisava. Um
lente de Trinity, na década de 1900, solteirão, estava bastante bem de vida.
Hardy era sensato com o dinheiro, gastava-o quando sentia vontade (às
vezes com propósitos singulares, como corridas de táxi de oitenta
quilômetros) e, no mais, não era nem um pouco tolo quanto aos
investimentos. Jogava os seus jogos e satisfazia as suas excentricidades.
Convivia com algumas das melhores companhias intelectuais do mundo -
G. E. Moore, Whitehead, Bertrand Russell, Trevelyan, a alta sociedade do
Trinity, que em breve encontraria o seu complemento artístico ern
Bloomsbury. (O próprio Hardy tinha vínculos com Bloomsbury, tanto de
amizade como de solidariedade.) Numa roda brilhante, ele era um dos
jovens mais brilhantes - e, embora de maneira discreta, um dos mais
entusiasmados.
Vou antecipar agora o que direi mais tarde. Sua vida continuou a ser a
vida de um jovem brilhante até ele ficar velho; assim também o seu espírito:
suas brincadeiras, seus interesses, conservaram a leveza como de um jovem
lente. E, como acontece com muitos homens que conservam os interesses
de um jovem até os sessenta, seus últimos anos de vida foram mais
sombrios por causa disso.
Boa parte da sua vida, porém, foi mais feliz do que a da maioria das
pessoas. Teve muitos amigos, de tipos surpreendentemente diferentes. Esses
amigos tinham de passar por alguns dos seus testes particulares: precisavam
ter uma qualidade que ele chamava spin (é um termo de críquete,
intraduzível; implica certa obliquidade ou ironia de atitude; dentre as
figuras públicas recentes, Macmillan e Kennedy conseguiriam notas altas
em spin, mas Churchill e Eisenhower não). Era, porém, tolerante, leal,
extremamente bem-humorado e, de maneira discreta, muito afeiçoado aos
amigos. Certa vez fui obrigado a visitá-lo de manhã, que era sempre o
período reservado para os trabalhos matemáticos. Ele estava sentado à
escrivaninha, escrevendo com sua bela letra. Murmurei uma formalidade
qualquer, querendo dizer que esperava não estar incomodando. Ele, de
repente, derreteu- se no sorriso malicioso. “Como você deveria ser capaz de
perceber, a resposta é que você está. Mesmo assim, geralmente fico muito
contente quando o vejo.” Nos dezesseis anos em que nos conhecemos, ele
nunca disse nada mais afetuoso do que isso; exceto no seu leito de morte,
quando disse que esperava ansiosamente pelas minhas visitas.
Acho que a minha experiência foi a mesma que tiveram a maioria dos
seus amigos mais chegados. Mas ele teve, espalhadas pela vida, duas ou três
relações de uma outra espécie. Eram afetos intensos, envolventes, não
físicos, mas exaltados. Um dos que tive conhecimento tinha como objeto
um jovem cuja índole era tão espiritualmente delicada quanto a sua. Creio,
embora tenha notado isso a partir de observações casuais, que o mesmo
valia para os outros. Para muitas pessoas da minha geração, tais relações
pareceriam insatisfatórias ou impossíveis. Não eram nem uma coisa nem
outra, e, a menos que aceitemos a existência delas, jamais
compreenderemos o temperamento de homens como Hardy (eles são raros,
mas não tão raros quanto rinocerontes brancos) nem a sociedade de
Cambridge da sua época. Ele não teve as satisfações que a maioria de nós
não vive sem; mas conhecia-se extraordinariamente bem e isso não o
tornava infeliz. Sua vida interior era sua e muito rica. A tristeza veio no fim.
Afora a irmã devotada, ele morreu sem nenhuma companhia íntima.
Com um estoicismo sarcástico, ele diz na Defesa - que, apesar de todo o
bom humor, é um livro desesperadamente triste - que, quando um homem
criativo perdeu o poder ou o desejo de criar: “E uma pena, mas, nesse caso,
ele não tem mesmo muita importância, e seria tolice importar- se com ele.”
Era assim que ele tratava a sua vida pessoal fora da matemática. A
matemática era a sua justificativa. Era fácil esquecer isso no brilho de sua
companhia: assim como era fácil, na presença da paixão moral de Einstein,
esquecer que, para ele, a justificativa da sua vida era a busca das leis físicas.
Nenhum dos dois jamais esquecia isso. Essa foi a essência da vida de cada
um deles, da juventude até a morte.
Hardy, ao contrário de Einstein, não deslanchou logo cedo. Seus
primeiros trabalhos, feitos entre 1900 e 1911, eram bons o suficiente para
colocá-lo na Royal Society e conferir-lhe reputação internacional, mas ele
não os considerava importantes. Mais uma vez, isso não era falsa modéstia:
era o juízo de um mestre que sabia muito bem quais dos seus trabalhos
tinham valor e quais não tinham.
Em 1911, deu início a uma colaboração com Littlewood que durou
trinta e cinco anos. Em 1913, descobriu Ramanujan e começou outra
colaboração. Toda a sua obra principal foi feita nessas duas parcerias, a
maior parte dela com Littlewood, a mais famosa colaboração na história da
matemática. Não houve nada parecido com ela na história de qualquer
ciência nem, que eu saiba, em nenhum outro campo da atividade criadora.
Juntos, eles produziram quase cem trabalhos, muitos deles “na classe
Bradman”. Os matemáticos que não foram íntimos de Hardy nos seus
últimos anos, e que não sabem nada de críquete, vivem repetindo que o seu
elogio mais elevado consistia em situar algo “na classe Hobbs”. Não era:
com muita relutância, já que Hobbs era um dos seus favoritos, ele teve de
alterar a escala de mérito. Uma vez recebi um postal seu, provavelmente em
1938, que dizia: “Bradman está uma classe acima de qualquer batedor que
jamais existiu: se Arquimedes, Newton e Gauss continuam na classe Hobbs,
tenho de admitir a possibilidade de uma classe superior, o que acho difícil
de imaginar. Melhor mudá-los, de agora em diante, para a classe Bradman.”
As pesquisas de Hardy e Littlewood dominaram a matemática pura na
Inglaterra, e em grande medida no mundo inteiro, por uma geração.
Segundo me dizem os matemáticos, ainda é muito cedo para determinar em
que grau eles mudaram a história da análise matemática e o quão influente
será o trabalho deles daqui a cem anos. Quanto à perenidade do seu valor,
não resta nenhuma dúvida.
A colaboração deles foi, como eu disse, a maior de todas. Mas ninguém
sabe como ela aconteceu; e, a menos que Littlewood nos conte, ninguém
jamais saberá. Já revelei o juízo de Hardy a respeito de Littlewood, de que,
dos dois, o último era o melhor matemático: Hardy certa vez escreveu que
não conhecia “nenhum outro que possuísse tal combinação de
discernimento, técnica e energia”. Littlewood era e é um homem mais
normal do que Hardy, tão interessante quanto ele e provavelmente mais
complexo. Nunca teve o gosto de Hardy por certa espécie de vistosidade
intelectual refinada e, portanto, não estava tão no centro do panorama
acadêmico. Isso provocou piadas de matemáticos europeus, tais como a de
que Hardy o inventara para levar a culpa se houvesse algo de errado em um
dos seus teoremas. Na verdade, ele é um homem de uma individualidade
pelo menos tão obstinada quanto a do próprio Hardy.
À primeira vista, nenhum deles pareceria ser um parceiro de fácil
convivência. Para começar, é difícil imaginar qualquer um dos dois
sugerindo a colaboração. Ainda assim, um dos dois deve tê-lo feito. Durante
o seu período mais produtivo, não estavam na mesma universidade. Harald
Bohr (irmão de Niels Bohr e ele próprio um excelente matemático) teria
dito que um dos princípios deles era este: se um escrevesse ao outro, quem
recebesse não tinha nenhuma obrigação de responder ou mesmo de ler a
carta.
Não tenho o que dizer a respeito. Hardy conversou comigo, ao longo de
muitos anos, sobre praticamente todos os assuntos concebíveis, exceto a
colaboração. Disse, é claro, que ela fora a maior sorte da sua carreira
criativa: falava de Littlewood nos termos que descrevi, mas nunca deu uma
pista sequer sobre os seus procedimentos. Eu não sabia o bastante de
matemática para compreender os trabalhos deles, mas peguei um pouco da
linguagem que usavam. Se Hardy tivesse deixado escapar qualquer coisa
sobre seus métodos, acho que eu o teria percebido. Tenho quase certeza de
que o sigilo - bem pouco característico dele em questões que, para a
maioria, pareceriam muito mais íntimas - foi deliberado.
Sobre a descoberta de Ramanujan não houve nenhum sigilo. Foi,
segundo ele escreveu, o único incidente romântico de sua vida; de qualquer
modo, é uma história admirável e que cobre de honra quase todos os
envolvidos (com duas exceções). Certa manhã, no início de 1913, ele
encontrou, entre as cartas na mesa do desjejum, um envelope grande e
amarfanhado, decorado com selos indianos. Ao abri-lo, ele encontrou folhas
de papel bem sujas, nas quais, em manuscrito não inglês, sucediam-se
linhas e mais linhas de símbolos. Hardy passou-lhes os olhos sem
entusiasmo. Nessa época, com trinta e seis anos, ele já era um matemático
mundialmente famoso; e já descobrira que os matemáticos mundialmente
famosos são um dos alvos prediletos dos malucos. Estava acostumado a
receber manuscritos de estranhos provando a sabedoria profética da Grande
Pirâmide, as revelações dos Sábios de Sião ou os criptogramas que Bacon
inserira nas peças do suposto Shakespeare.
Assim, Hardy sentiu-se, antes de mais nada, aborrecido. Passou os olhos
pela carta, escrita em inglês hesitante, assinada por um indiano
desconhecido, pedindo-lhe uma opinião sobre aquelas descobertas
matemáticas. O texto parecia composto de teoremas, a maioria deles
extravagante ou de aparência fantástica, um ou dois já bem conhecidos,
expostos como se fossem originais. Não havia provas de espécie alguma.
Hardy não ficou apenas aborrecido, mas irritado. Parecia um tipo curioso de
fraude. Ele pôs o manuscrito de lado e continuou com a rotina do dia. Como
essa rotina foi sempre a mesma ao longo de toda a sua vida, é possível
reconstruí-la. Primeiro, ele leu o Times durante o desjejum. Isso aconteceu
em janeiro e, se houvesse quaisquer resultados do críquete australiano,
começaria por eles, estudando-os com lucidez e intensa atenção.
Maynard Keynes, que começou a carreira como matemático e foi amigo
de Hardy, certa vez repreendeu-o: se ele tivesse lido as cotações da bolsa
durante meia hora todos os dias com a mesma concentração que dedicava
aos placares do críquete, não teria como não tornar-se rico.
Então, desde mais ou menos nove horas até uma hora, a menos que
tivesse de dar aula, trabalhava com a matemática. Costumava dizer que
quatro horas de trabalho criativo por dia é o limite para um matemático. O
almoço, uma refeição leve no Refeitório. Depois do almoço, saía para jogar
tênis na quadra da universidade. (Se fosse verão, iria até o Fenner’s para ver
o críquete.) No fim da tarde, uma caminhada de volta para os seus
aposentos. Naquele dia específico, porém, embora a programação fosse a
mesma, dentro dele as coisas não estavam indo de acordo com o planejado.
No fundo da sua mente, impedindo-o de sentir todo o prazer do jogo, o
manuscrito indiano continuava a incomodá-lo. Teoremas extravagantes.
Teoremas como nunca vira antes nem imaginara. Uma fraude de gênio?
Uma questão se formava na sua mente. Como se tratava da mente de Hardy,
a questão se delineava com clareza epigramática: será uma fraude genial
mais provável que um matemático genial desconhecido? Evidentemente, a
resposta era “não”. De volta aos seus aposentos no Trinity, deu outra olhada
no texto. Avisou Littlewood (provavelmente por meio de um mensageiro;
certamente não por telefone, pelo qual, como por todas as engenhocas
mecânicas, inclusive canetas-tinteiro, nutria uma profunda desconfiança)
que tinham de conversar depois do jantar.
Terminada a refeição, pode ter havido uma pequena demora. Hardy
gostava de vinho, mas, apesar das esplêndidas perspectivas abertas por
“Alan St. Aubyn”, que haviam incendiado a sua imaginação juvenil,
descobrira que não gostava de fazer hora no combination-room tomando
vinho do Porto e comendo nozes. Littlewood, muito mais homme moyen
sensuel, gostava. Então pode ter havido uma demora. De qualquer maneira,
por volta das nove, eles estavam nos aposentos de Hardy, com o manuscrito
aberto diante de si.
Eis aí uma ocasião em que seria bom estar presente. Hardy, com sua
combinação de lucidez impiedosa e ostentação intelectual (era muito inglês
mas, nas discussões, exibia as características que as mentes latinas muitas
vezes tomaram como suas); Littlewood, imaginativo, vigoroso, bem-
humorado. Aparentemente, não lhes levou muito tempo. Antes da meia-
noite eles sabiam, e sabiam com certeza: o autor daqueles manuscritos era
um homem de gênio. Foi a conclusão a que puderam chegar naquela noite.
Foi só depois que Hardy decidiu que Ramanujan, no que diz respeito ao
gênio matemático natural, estava na classe de Gauss e Euler, mas que não
podia, em virtude das falhas da sua educação e do fato de ter entrado em
cena muito tarde na história da matemática, ter a esperança de fazer uma
contribuição na mesma escala.
Tudo parece muito fácil, o tipo de juízo que os grandes matemáticos
deviam ser capazes de fazer. Mencionei, porém, que duas pessoas não
saíram com honra da história. Por cavalheirismo, Hardy ocultou isso em
tudo o que disse ou escreveu sobre Ramanujan. As duas pessoas em
questão, porém, morreram há muitos anos e é hora de contar a verdade. É
simples. Hardy não foi o primeiro matemático eminente a receber os
manuscritos de Ramanujan. Dois outros os tinham recebido antes, ambos
ingleses e do mais elevado padrão profissional. Os dois tinham devolvido os
manuscritos sem comentários. Suponho que a história não relate o que
disseram, se é que disseram alguma coisa, quando Ramanujan ficou
famoso. Qualquer um que
tenha recusado um material de primeira terá para com eles uma
solidariedade furtiva.
De qualquer maneira, Hardy entrou em ação no dia seguinte. Decidiu
que Ramanujan tinha de vir para a Inglaterra. Dinheiro não era problema. O
Trinity tem, em geral, o costume de dar apoio a talentos heterodoxos (fez o
mesmo por Kapitsa alguns anos depois). Assim que Hardy decidiu, nenhum
ser humano poderia deter Ramanujan, mas eles precisaram de certa ajuda de
um ser sobrehumano.
Ramanujan era um escriturário pobre de Madras, vivendo ao lado da
esposa com uma renda de vinte libras por ano. Mas era também um
brâmane excepcionalmente rígido quanto à observância religiosa e com
uma mãe mais rígida ainda. Parecia impossível que ele pudesse violar as
prescrições e atravessar o oceano. Felizmente, sua mãe tinha o máximo
respeito pela deusa de Namakkal. Certa manhã, a mãe de Ramanujan fez
uma declaração estarrecedora. Ela tivera um sonho na noite anterior, no
qual vira o filho sentado em um grande salão, no meio de um grupo de
europeus, e a deusa de Namakkal lhe ordenara que não se opusesse à
realização do objetivo da vida de seu filho. Isso, segundo os biógrafos
indianos de Ramanujan, foi uma agradável surpresa para todos os
envolvidos.
Em 1914, Ramanujan chegou à Inglaterra. Pelo que Hardy pôde
perceber (embora, nesse pormenor, eu não possa confiar muito no seu
discernimento), Ramanujan, apesar das dificuldades que tinha para romper
as prescrições de casta, não acreditava na doutrina teológica muito mais do
que o próprio Hardy, exceto por uma vaga benevolência panteísta. Mas,
com certeza, acreditava no ritual. Quando Trinity o instalou no colégio -
tornou-se fellow em quatro anos - não houve para ele nenhum regozijo
estilo “Alan St. Aubyn”. Hardy costumava encontrá-lo ritualmente vestido
de pijama, no quarto, cozinhando legumes numa frigideira, meio aflito.
A relação entre eles foi estranhamente comovente. Hardy não se
esquecia de que estava na presença de um gênio, mas de um gênio que,
mesmo em matemática, quase não tinha instrução. Ramanujan não
conseguiu entrar na Universidade de Madras porque não conseguira
matricular-se em inglês. Segundo o relato de Hardy, era sempre amistoso e
bem disposto, mas, sem dúvida, às vezes julgava um pouco desconcertantes
as conversas de Hardy fora do campo da matemática. Parece que as ouvia
com um sorriso paciente no rosto bom, amigo, despretensioso. Mesmo na
matemática eles tiveram de resolver a diferença de educação. Ramanujan
era um autodidata, não conhecia nada do rigor moderno; em certo sentido,
não sabia o que era uma prova. Num momento de descuido, que lhe era
atípico, Hardy certa vez escreveu que, se ele tivesse recebido uma educação
melhor, teria sido menos Ramanujan. Mais tarde, ao recuperar o bom senso
irônico, Hardy corrigiu-se e disse que a declaração era uma bobagem. Se
Ramanujan tivesse recebido uma educação melhor, teria sido ainda mais
maravilhoso do que era. Na verdade, Hardy foi obrigado a ensinar-lhe um
pouco de matemática formal, como se Ramanujan fosse um candidato a
bolsa de estudos em Winchester. Hardy disse que essa foi a experiência
mais singular da sua vida: como seria a matemática moderna para uma
pessoa dotada do mais profundo discernimento, mas que, literalmente,
nunca ouvira falar da maior parte dela?
De qualquer modo, eles produziram juntos cinco trabalhos da mais alta
categoria, nos quais Hardy mostrou uma originalidade própria e suprema
(conhecem-se mais detalhes desta colaboração do que sobre a colaboração
entre Hardy e Littlewood). Generosidade e imaginação, dessa vez, foram
plenamente recompensadas.
Esta é uma história sobre a virtude humana. Depois que as pessoas
começaram a comportar-se bem, passaram a comportar-se melhor ainda. É
bom lembrar que a Inglaterra deu a Ramanujan as honras que foram
possíveis. A Royal Society elegeu-o como membro quando tinha trinta anos
(o que, mesmo para um matemático, é bem cedo). O Trinity também o
elegeu fellow no mesmo ano. Ramanujan foi o primeiro indiano a receber
tanto um título como o outro e ficou amavelmente grato. Mas logo ficou
doente. Era difícil, em tempo de guerra, transportá-lo para um clima mais
saudável.
Hardy costumava visitá-lo enquanto ele agonizava em um hospital de
Putney. Foi em uma dessas visitas que aconteceu o incidente da chapa do
táxi. Hardy tinha ido para Putney de táxi - como sempre, o seu meio de
transporte predileto. Entrou no quarto em que estava deitado Ramanujan.
Hardy, sempre inepto para iniciar uma conversa, disse, provavelmente sem
cumprimentá-lo e certamente sem explicar nada: “Acho que o número do
meu táxi era 1729. Pareceu-me um número bastante sem graça.” Ao que
Ramanujan retrucou: “Não, Hardy! Não, Hardy! É um número muito
interessante. É o menor número exprimível como a soma de dois cubos de
duas maneiras diferentes.”
Foi essa a conversa tal como Hardy a relatou. O relato deve ser
substancialmente preciso. Ele era o mais honesto dos homens e, além disso,
ninguém poderia tê-la inventado.
Ramanujan morreu de tuberculose, em Madras, dois anos depois da
guerra. Como Plardy escreveu na Defesa, ao arrolar os grandes
matemáticos: “Galois morreu com vinte e um anos, Abel com vinte e sete,
Ramanujan com trinta e três, Riemann com quarenta [...] Não conheço
nenhum grande progresso matemático importante realizado por um homem
com mais de cinquenta anos.”
Não fosse pela colaboração com Ramanujan, a Guerra de 1914-18 teria
sido mais sombria do que foi para Hardy. Mas foi sombria o suficiente.
Infligiu-lhe uma ferida que foi reaberta na Segunda Guerra. Hardy
sustentou opiniões radicais durante toda a sua vida. Seu radicalismo, porém,
era marcado pelo esclarecimento da virada do século. Para os membros da
minha geração, ele às vezes parecia ventilar uma brisa mais leve, menos
carregada, do que aquela com que estávamos acostumados.
Como muitos dos seus amigos intelectuais edwardianos, Hardy
alimentava sentimentos muito favoráveis à Alemanha. A Alemanha, afinal,
fora a grande força educadora do século XIX. As universidades alemãs é
que haviam ensinado o que era a pesquisa à Europa Oriental, à Rússia e aos
Estados Unidos. Hardy não apreciava a filosofia e a literatura alemã; seu
gosto era clássico demais para isso. Mas, na maioria dos aspectos, inclusive
na previdência social, a cultura alemã parecia-lhe superior à sua.
Ao contrário de Einstein, que tinha uma noção muito mais concreta da
realidade política, Hardy não conhecia diretamente a Alemanha
guilhermina. E, embora não fosse nem um pouco vaidoso, não teria sido
humano se não gostasse de ser mais apreciado na Alemanha do que no
próprio país. Há uma anedota divertida que data desse período. Hilbert, um
dos maiores matemáticos da Alemanha, soube que os aposentos de Hardy
no Trinity não eram muito agradáveis (na verdade, eram em Whewell’s
Court). Hilbert escreveu prontamente ao diretor, assinalando em palavras
bem cuidadas que Hardy era o melhor matemático, não apenas do Trinity,
mas de toda a Inglaterra, e que, portanto, devia ter os melhores aposentos.
Assim, Hardy, como Russel e muitos outros membros da intelligentsia
de Cambridge, acreditava que a guerra não devia ter sido declarada. Além
disso, com sua inveterada desconfiança dos políticos ingleses, achava que o
lado mais errado era o da Inglaterra. Não conseguiu encontrar um
fundamento satisfatório para a objeção de consciência; seu rigor intelectual
era severo demais para isso. Na verdade, alistou-se como voluntário pelo
esquema Derby e foi rejeitado por motivos médicos. Mas sentia-se cada vez
mais isolado no Trinity, boa parte de cujos membros eram ruidosamente
belicistas.
Russel foi despedido de sua cadeira em circunstâncias complexas e
acaloradas (Hardy escreveria o único relato detalhado do caso vinte e cinco
anos depois, para consolar-se durante a outra guerra). Os amigos próximos
de Hardy estavam na guerra. Littlewood estava trabalhando em balística
como segundo-tenente na Artilharia Real. Graças à sua alegre indiferença,
teve a honra de continuar como segundo-tenente durante os quatro anos da
guerra. A colaboração sofreu uma interferência, mas não foi interrompida
inteiramente. O trabalho de Ramanujan é que foi o consolo de Hardy
durante as amargas lutas no colégio.
Às vezes penso que ele, naquela época, foi um tanto injusto para com
seus colegas. Alguns estavam em frenesi, como ficam os homens em tempo
de guerra. Mas outros eram pacientes e tentavam manter em dia as
amenidades sociais. Afinal, foi um triunfo de probidade intelectual eles
terem eleito seu protegido, Ramanujan, numa época em que Hardy mal
falava com alguns dos eleitores e não falava em absoluto com alguns
outros.
Ainda assim, estava muito infeliz. Tão logo pôde, abandonou
Cambridge. Ofereceram-lhe uma cadeira em Oxford em 1919 e ele,
imediatamente, entrou na fase mais feliz da sua vida. Já fizera um grande
trabalho com Ramanujan e Littlewood, mas, agora, a colaboração com
Littlewood atingia o seu vigor pleno. Hardy estava, na expressão de
Newton, “na flor da idade para a invenção”, e isso aconteceu quando tinha
quarenta e poucos anos, excepcionalmente tarde para um matemático.
Vindo tão tarde, esse ímpeto criador deu-lhe a sensação, mais
importante para ele do que para a maioria dos homens, de juventude eterna.
Estava vivendo a vida de jovem que correspondia à sua índole natural.
Jogava mais tênis e foi se tornando cada vez melhor nisso (o tênis era um
jogo caro e engolia uma larga fatia do salário de um professor). Fez muitas
visitas a universidades norte-americanas e adorou os Estados Unidos. Foi
um dos poucos ingleses de seu tempo que se afeiçoou, mais ou menos na
mesma medida, pelos Estados Unidos e pela União Soviética. Foi,
certamente, o único inglês de sua época ou de qualquer outra a escrever
uma sugestão séria à Liga americana de Beisebol propondo uma emenda
técnica a uma das regras. A década de 1920, para ele e para a maioria dos
liberais da sua geração, foi um falso amanhecer. Ele pensava que a
infelicidade da guerra perdera-se no passado.
No New College, sentiu-se em casa como nunca se sentira em
Cambridge. O clima doméstico, sociável, era bom para ele. Foi lá, em um
colégio então pequeno e íntimo, que ele levou à perfeição o seu estilo de
conversação. Muitos ficavam ansiosos para ouvi-lo após o jantar. Eram
capazes de aceitar as suas excentricidades. Perceberam que ele não era
apenas grande e bom, mas também divertido. Se ele quisesse jogar jogos
verbais ou jogos de verdade (embora estranhos) no campo de críquete,
estavam prontos para atuar como coadjuvantes. De maneira informal e
humana, eles o paparicavam. Ele já tinha sido admirado e estimado, mas
nunca o haviam paparicado daquele jeito.
Ninguém parecia se importar - era uma piada maledicente do colégio -
com o fato de ele ter uma grande fotografia de Lênin nos aposentos. O
radicalismo de Hardy era um tanto desorganizado, mas era sincero. Tinha
nascido, como expliquei, numa família de profissionais liberais; passara
quase toda a sua vida entre a haute bourgeoisie; na verdade, porém,
comportava-se muito mais como um aristocrata, ou melhor, como as
imagens românticas que se fazem de um aristocrata. Talvez essa atitude lhe
viesse, em parte, do seu amigo Bertrand Russell. A maior parte, porém, era
inata. Por baixo de sua timidez, ele não estava nem aí.
Dava-se bem, sem nenhum paternalismo, com os pobres, os
abandonados pela sorte, os tímidos e acanhados, os prejudicados por causa
da raça (foi um golpe simbólico do destino ter descoberto Ramanujan).
Preferia estes às pessoas que, como ele dizia, tinham o traseiro grande. A
descrição era mais psicológica que anatômica, apesar do famoso aforismo
do Trinity do século XIX, proferido por Adam Sedgwick: “Ninguém jamais
conseguiu sucesso neste mundo sem um traseiro grande.” Para Hardy, quem
tinha traseiro grande eram os ingleses autoconfiantes, espalhafatosos,
imperialistas e burgueses. A categoria incluía a maioria dos bispos,
diretores de escolas, juízes e todos os políticos, sendo Lloyd George a única
exceção.
Para mostrar de que lado estava, aceitou um cargo público. Durante dois
anos (1924-26) foi presidente da Associação dos Trabalhadores Científicos.
Disse sarcasticamente que foi uma escolha estranha, já que ele era “o
membro menos prático da profissão menos prática do mundo”. Nas coisas
importantes, porém, não era tão destituído de senso prático. Estava
expondo-se deliberadamente ao juízo do público. Muito mais tarde, quando
vim a trabalhar com Frank Cousins, tive um prazer secreto ao me lembrar
de que tivera dois amigos que haviam participado do movimento sindical:
ele e G. H. Hardy.
Aquele verão tardio - mas nem tanto - passado em Oxford, na década de
1920, foi tão feliz que as pessoas se surpreenderam por ter ele voltado a
Cambridge, o que fez em 1931. Penso que foram dois os motivos. O
primeiro, e o mais decisivo, era o fato de ser um grande profissional.
Cambridge ainda era o centro da matemática na Inglaterra e a cadeira
principal de matemática ali era o lugar correto para um profissional da sua
estatura. O segundo, um tanto estranho, o de que estava pensando na
velhice. Os colégios de Oxford, que sob muitos aspectos eram tão humanos
e calorosos, são impiedosos com os velhos: se tivesse permanecido no New
College, seria colocado para fora de seus aposentos caso se aposentasse da
cadeira antes da idade-limite. Ao passo que, se voltasse ao Trinity, poderia
ficar no colégio até morrer. E foi isso que de fato aconteceu.
Quando voltou a Cambridge - foi essa a época em que comecei a
conhecê-lo -, estava vivendo a fase derradeira de seu grande período. Ainda
era feliz. Ainda era criativo, não tanto quanto na década de 1920, mas o
suficiente para sentir que o poder ainda estava presente. Era tão enérgico
quanto fora no New College. Portanto, tivemos a sorte de vê-lo bem perto
da sua melhor forma.
No inverno, depois de ficarmos amigos, oferecíamos jantares um ao
outro de quinze em quinze dias, cada qual em seu colégio. Quando o verão
chegava, era certo que nos encontraríamos no campo de críquete. Exceto
em ocasiões especiais, ele ainda trabalhava na matemática pela manhã e só
chegava ao Fenner’s depois do almoço. Costumava andar pela pista de
corrida com passadas longas, elásticas, sonoras (era um homem magro,
esbelto, fisicamente ativo mesmo perto dos sessenta, ainda jogando tênis),
cabeça abaixada, cabelos, gravata, suéter, papéis, tudo ondulando ao vento,
uma figura que atraía os olhares de todos. “Lá vai um poeta grego, com toda
certeza”, disse certa vez um fazendeiro alegre quando Hardy passava pelo
placar. Estava indo para seu lugar favorito, em frente ao pavilhão, onde
podia aproveitar todos os raios do sol - era obcecado pela luz solar. Para
enganar o sol e fazê-lo brilhar, carregava consigo, mesmo numa bela tarde
de maio, o que chamava de o seu “arsenal anti-Deus”. Este era composto de
três ou quatro suéteres, um guarda-chuva que pertencia à irmã e um
envelope grande contendo manuscritos de matemática, tais como uma
dissertação de doutorado, um trabalho que estava julgando para a Royal
Society ou algumas respostas do Tripos. Explicava para os conhecidos que
Deus, achando que Hardy queria que o tempo mudasse para oferecer-lhe
uma chance de trabalhar, só para contra- riá-lo fazia com que o céu
permanecesse sem nuvens.
Lá ele se sentava. Para coroar o seu prazer numa longa tarde assistindo
ao críquete, gostava que o sol estivesse brilhando e que houvesse um
companheiro para divertir-se com ele. Técnica, tática, beleza formal - esses
eram os principais atrativos do jogo para ele. Não tentarei explicá-los: são
incomunicáveis a menos que se conheça a linguagem, do mesmo modo que
alguns dos aforismos clássicos de Hardy são inexplicáveis a menos que se
conheça a linguagem do críquete ou a da teoria dos números - ou, de
preferência, ambas. Felizmente para muitos de nossos amigos, ele também
tinha certo prazer com a comédia humana.
Teria sido o primeiro a negar que possuía um discernimento psicológico
especial. Mas era extremamente inteligente, vivera com os olhos abertos,
lera muito e adquirira uma boa percepção geral da natureza humana - forte,
misericordiosa, satírica e inteiramente destituída de vaidade moral. Ele
tinha uma franqueza espiritual que poucos homens têm (duvido que alguém
pudesse ser mais franco) e um horror zombeteiro da pretensão, da
indignação hipócrita e de todo o pomposo bazar das virtudes farisaicas. Ora,
o críquete, o mais belo dos jogos, é também o mais hipócrita.
Supostamente, é a manifestação máxima do espírito de equipe. Deve-se
preferir não marcar nada e ver o time vencer a marcar cem pontos e vê-lo
perder (um jogador excelente, que era tão sincero e franco quanto Hardy,
observou certa vez que nunca conseguira sentir isso). Esse ethos particular
inspirou o senso de ridículo de Hardy. Como resposta, costumava expor
uma série contrária de máximas. Exemplos:
“O críquete é o único jogo em que você joga contra onze do outro lado e
dez do seu.”
“Se você está nervoso quando entra primeiro, nada melhor para
restaurar a confiança do que ver o outro homem sair.”
Se tivesse sorte, seu público podia ouvir outras observações, que nada
tinham a ver com o críquete, tão aguçadas na conversa como na escrita. Na
Defesa há alguns espécimes típicos; aqui vão mais alguns.
“Um homem de primeira classe nunca deve perder tempo em expressar
uma opinião da maioria. Por definição, há uma porção de gente para fazer
isso.”
“Quando eu era estudante, mesmo os mais heterodoxos mal ousavam
insinuar que Tolstoi chegava aos pés de George Meredith como romancista;
e olhe lá!” (Disse isso a respeito da embriaguez da moda; vale a pena
lembrar que fez parte de uma das gerações mais brilhantes de Cambridge.)
“Para qualquer objetivo sério, a inteligência não vale muita coisa.”
“Os jovens devem ser convencidos, mas não devem ser imbecis.” (Dito
depois que alguém tentou convencê-lo de que Finnegans Wake era a obra-
prima definitiva da literatura.)
“Às vezes é preciso dizer coisas difíceis, mas deve-se dizê-las da
maneira mais simples possível.”
Às vezes, quando assistia ao críquete, ele perdia o interesse pelo jogo.
Exigia então que escolhêssemos times: times de impostores, sócios de
clubes, falsos poetas, chatos, times com nomes que começassem com HA
(números um e dois, Hadrian [Adriano] e Hannibal [Aníbal]) ou SN, times
de grandes membros do Trinity, do Christ’s, e assim por diante. Nessas
brincadeiras eu ficava em desvantagem: que qualquer um tente formar um
time de personagens famosos com nomes começando com SN. O time do
Trinity é fortíssimo (Clerk Maswell, Byron, Thackeray e Tennyson não têm
lugar assegurado), ao passo que o do Christ’s, que começa forte com Milton
e Darwin, não tem muito a mostrar do número três em diante.
Tinha também outra diversão favorita. “Vamos dar notas para o sujeito
que conhecemos ontem à noite”, ele dizia, e o pobre fulano tinha de receber
notas, de 0 a 100, em cada uma das categorias que Hardy tinha inventado e
definido havia muito tempo. DURO, GELADO (“um homem duro não é
necessariamente gelado, mas todos os homens gelados, sem exceção,
querem ser considerados duros”), APAGADO, CONHAQUE VELHO,
SPIN e algumas outras. DURO, GELADO e APAGADO explicam-se por si
mesmas (o Duque de Wellington conseguiria 100 em DURO e GELADO e
0 em APAGADO). CONHAQUE VELHO vinha de um personagem mítico
que dizia não beber nada além de conhaque velho. Portanto, por
extrapolação, Conhaque Velho veio a significar um gosto excêntrico,
esotérico, mas dentro dos limites da razão. Como pessoa (e, na opinião de
Hardy, embora não na minha, também como escritor), Proust tinha notas
altas como CONHAQUE VELHO, assim como F. A. Lindemann (mais
tarde Lord Cherwell).
Os dias de verão se passaram. Ao fim das breves temporadas de
Cambridge, havia o jogo da Universidade. Nem sempre era fácil combinar
de encontrá-lo em Londres, pois, como eu já disse, ele tinha um terror
mórbido das engenhocas mecânicas (nunca usou um relógio), especialmente
do telefone. Nos seus aposentos em Trinity ou no apartamento que tinha em
St. George’s Square, costumava dizer, num tom reprovador e levemente
sinistro: “Se você cismar de usar o telefone, tem um no outro quarto.” Certa
vez, numa emergência, ele foi obrigado a me telefonar; zangada, sua voz
chegou até mim: “Não vou ouvir nem uma palavra do que você vai dizer;
portanto, quando eu terminar, vou desligar o telefone. É importante que
você apareça entre nove e dez horas hoje à noite.” Clonque!
Não obstante, chegava pontualmente ao jogo da Universidade. Era lá
que aparecia em todo o seu brilho, ano após ano. Rodeado de amigos,
homens e mulheres, sentia-se liberto da timidez. Era o centro de todas as
atenções, o que não o desgostava. Às vezes, do outro lado do campo,
podiam-se ouvir as risadas dos que o rodeavam.
Nesses últimos anos felizes, tudo o que fazia era elegante, ordenado,
cheio de estilo. O críquete é um jogo de ordem e elegância, e era por isso
que Hardy via nele a beleza formal. Sua matemática, segundo me disseram,
tinha essas mesmas qualidades estéticas, do primeiro até o último trabalho
criativo. Imagino ter dado a impressão de que, no trato pessoal, ele era um
conversador de salão. Até certo ponto isso era verdade, mas, no que ele
chamaria de ocasiões “não triviais” (referindo-se a ocasiões importantes
para todos os participantes), era também um ouvinte concentrado. Dentre as
outras pessoas famosas que, por vários motivos, conheci no mesmo período,
Wells, no geral, era um ouvinte pior do que se esperava; Rutherford já era
bem melhor; Lloyd George foi um dos melhores ouvintes de todos os
tempos. Hardy não destilava impressões e conhecimento das palavras dos
outros, como Lloyd George, mas deixava a sua mente à disposição. Quando
soube, anos antes de eu escrever o texto, da ideia do The Masters, ele me
fez uma série de perguntas e me deixou falar. Expôs então algumas boas
ideias. Gostaria que ele tivesse podido ler o livro e acho que talvez o
apreciasse. De qualquer maneira, com essa esperança, dediquei-o à sua
memória.
Na observação feita ao final da Defesa, ele se refere a outras discussões.
Uma delas foi muito prolongada e, às vezes, violenta de ambos os lados. Na
Segunda Guerra Mundial cada um de nós tinha opiniões exaltadas, mas,
como direi mais tarde, diferentes. Não mudei as opiniões dele em nada. Não
obstante, embora estivéssemos separados por um abismo emocional, no
plano da razão ele entendia o que eu estava dizendo.
Ao longo da década de 1930, viveu a vida de um jovem, segundo ele a
concebia. Então, de repente, tudo ruiu. Em 1939, teve uma trombose
coronária. Ele recuperou-se, mas o tênis, o squash, as atividades físicas de
que gostava terminaram para sempre. A Segunda Guerra tomou-o mais
sombrio ainda, à semelhança da Primeira. Para ele, as duas eram episódios
interligados de demência, todos nós tínhamos culpa; não conseguia
identificar-se com a guerra - tão logo tornou-se claro que o país
sobreviveria - mais do que o conseguira em 1914. Um de seus amigos mais
íntimos morreu tragicamente. E finalmente - me parece que, sem dúvida,
esses sofrimentos estavam entrerrelacionados -, com sessenta e poucos anos
de idade, ele perdeu o seu poder criativo na matemática.
É por isso que Em defesa de um matemático, se for lido com a atenção
textual que merece, é um livro de uma tristeza enorme. É verdade que se
encontram nele o espírito e a mordacidade do bom- humor intelectual; a
clareza cristalina e a franqueza ainda estão lá; o livro de fato é o testamento
de um artista criativo. Mas também é, de um modo estoico e discreto, um
lamento apaixonado por um poder criativo que existira, mas nunca voltaria
a existir. Não conheço nada semelhante a ele na nossa língua, em parte
porque a maioria das pessoas que têm o dom literário para expressar tal
lamento nunca o sentem: é muito raro um escritor perceber, com o caráter
definitivo da verdade, que está absolutamente acabado.
Vendo-o naqueles anos, não pude deixar de pensar no preço que ele
estava pagando pela sua vida de jovem. Era como se um grande atleta, que
durante anos fora orgulhoso de sua juventude e habilidade, tão mais jovem e
alegre que nós, de repente tivesse de aceitar que perdeu o dom. É comum
encontrar grandes atletas que chegaram, como se diz, na “curva da estrada”;
logo os pés ficam mais pesados (muitas vezes os olhos aguentam mais), os
golpes não saem, Wimbledon torna-se um lugar temido, as multidões
ocorrem para ver outro. É nesse ponto que muitos atletas começam a beber.
Hardy não começou, mas caiu numa espécie de desespero. Recuperou-se o
bastante para bater bola por dez minutos na quadra de tênis ou para jogar
sua agradável versão (com um complicado esquema de vantagens) do
boliche de Trinity. Muitas vezes, porém, era difícil despertar-lhe o interesse
- três ou quatro anos antes, seu interesse por tudo era tão esfuziante que por
vezes nos cansava a todos. “Ninguém deve jamais ficar entediado”, fora um
de seus axiomas. “Podemos ficar horrorizados ou enojados, mas não
entediados.” No entanto, era justamente assim que ele muitas vezes se
sentia: simplesmente entediado.
Foi por essa razão que alguns de seus amigos, eu inclusive, o
encorajaram a escrever a história do conflito entre Bertrand Russell e o
Trinity College na guerra de 1914-18. As pessoas que não sabiam como
Hardy estava deprimido achavam que todo o episódio estava encerrado
fazia tempo e que não devia ser ressuscitado. A verdade era que Hardy se
animava quando se propunha a um objetivo qualquer. O livro teve
circulação privada. Nunca foi posto ao alcance do público, o que é uma
pena, pois trata-se de um pequeno acréscimo à história acadêmica.
Usei o poder de persuasão que tinha para convencê-lo a escrever outro
livro, que ele, em dias mais felizes, prometera escrever. Iria se chamar A
Day at the Oval e seria ele assistindo a jogos de críquete um dia inteiro e
tecendo considerações sobre o jogo, a natureza humana, reminiscências, a
vida em geral. Teria sido um classicozinho excêntrico, mas nunca foi
escrito.
Não lhe fui de grande ajuda nesses últimos anos. Eu estava
profundamente envolvido no Whitehall do tempo de guerra, preocupado e
muitas vezes cansado; era-me difícil ir a Cambridge. Mas devia ter feito
esse esforço mais vezes do que fiz. Tenho de admitir, com remorso, que
houve, não exatamente um esfriamento, mas um certo distanciamento entre
nós. Ele me emprestou seu apartamento em Pimlico - um apartamento
escuro e ca- quético diante dos jardins da St. George’s Square, dotado de
um certo fascínio “conhaque velho”, como Hardy o chamava - durante toda
a guerra. Mas não gostava do fato de eu estar tão comprometido. As pessoas
que ele apreciava não deviam dedicar-se tão apaixonadamente a funções
militares. Ele nunca me perguntou sobre o meu trabalho. Não queria
conversar sobre a guerra. Enquanto eu, da minha parte, ficava impaciente e
não queria demonstrar nem um pouco de consideração. Afinal, pensava, não
estava fazendo aquele trabalho por diversão: já que tinha de fazê-lo, podia
muito bem extrair dele o máximo de interesse. Mas isso não é desculpa.
No fim da guerra não voltei para Cambridge. Visitei-o várias vezes em
1946. A depressão continuava, ele se achava combalido fisicamente e ficava
sem fôlego depois de dar uns poucos passos. O passeio longo e alegre por
Parker’s Piece depois do fim do jogo fora-se para sempre: eu tinha de levá-
lo de táxi para o Trinity. Estava contente por eu ter voltado a escrever
livros: a vida criativa era a única vida digna de um homem de verdade.
Quanto a si, quisera poder viver a vida criativa outra vez, exatamente como
antes: sua vida estava acabada.
Não estou citando suas palavras exatas. Essa atitude era tão pouco
característica dele que eu quis esquecê-la e tentei, mediante uma espécie de
ironia, apagar o que acabava de ser dito. Portanto, nunca mais me lembrei
disso com precisão. Tentei considerá-lo como se fosse um floreio retórico.
No início do verão de 1947, eu estava tomando o café da manhã quando
o telefone tocou. Era a irmã de Hardy. Ele estava gravemente enfermo; será
que eu podia ir a Cambridge imediatamente? Podia ir ao Trinity primeiro?
Na ocasião, não captei o significado do segundo pedido. Mas obedeci e, na
portaria, encontrei um recado dela: eu devia ir aos aposentos de Donald
Robertson, pois ele estava esperando por mim.
Donald Robertson era professor de grego e amigo íntimo de Hardy; era
outro membro da mesma Cambridge edwardiana, elevada, liberal e
elegante. A propósito, era uma das poucas pessoas que chamavam Hardy
pelo primeiro nome. Ele me cumprimentou em silêncio. Pela janela do seu
quarto via-se uma manhã calma e ensolarada. Ele disse:
“Você precisa saber que Harold tentou se matar.”
Sim, ele estava fora de perigo; estava bem por enquanto, se é que se
devia usar essa expressão. Mas Donald era, de um modo menos acentuado,
tão direto quanto o próprio Hardy. Segundo ele, era uma pena que a
tentativa tivesse falhado. A saúde de Hardy ficara pior; de qualquer modo,
não ia viver muito; mesmo caminhar dos aposentos até o refeitório tornara-
se um esforço. Tomara uma decisão perfeitamente lúcida. A vida daquele
jeito ele não podia suportar; não havia nada nela. Tinha reunido uma porção
suficiente de barbitúricos; tentara fazer um serviço meticuloso e tomara-os
em quantidade demasiada.
Eu gostava de Donald Robertson, mas o encontrava apenas em festas e
nos jantares solenes do Trinity. Essa foi a primeira ocasião em que
conversamos intimamente. Ele disse, com delicada firmeza, que eu devia
visitar Hardy tantas vezes quanto pudesse; seria difícil, mas era uma
obrigação; provavelmente não seria por muito tempo. Estávamos ambos
arrasados. Despedimo-nos e nunca mais o vi.
No sanatório Evelyn, Hardy estava na cama. Num detalhe cômico, tinha
um olho roxo. Enquanto vomitava por causa das drogas, tinha batido a
cabeça na pia do lavatório. Zombava de si mesmo. Tinha feito a maior
confusão. Alguém já tinha feito confusão maior? Nunca tive menos vontade
de ser sarcástico, mas tinha de entrar no jogo. Falei sobre outros suicídios
fracassados e famosos. E os generais alemães na última guerra? Beck e
Stulpnagel tinham sido de uma incompetência notável. Era estranho ouvir-
me dizer essas coisas. Curiosamente, isso pareceu alegrá-lo.
Depois disso, fui a Cambridge pelo menos uma vez por semana. Eu
temia cada visita, mas, logo de início, ele disse que aguardava ansiosamente
o dia de me ver. Falava um pouco sobre a morte, quase sempre que eu o via.
Ele queria morrer, não tinha medo: o que havia a temer no nada? Seu severo
estoicismo intelectual tinha voltado. Não tentaria matar-se novamente. Não
era bom nisso. Estava preparado para esperar. Com uma incoerência que
poderia tê-lo vexado - pois ele, como a maioria dos que com ele conviviam,
acreditava na racionalidade a um ponto que me parecia irracional -,
mostrava uma intensa curiosidade hipocondríaca pelos próprios sintomas.
Constantemente estudava o edema dos tornozelos: estava maior ou menor
naquele dia?
Na maioria das vezes, porém - cerca de cinquenta e cinco minutos em
cada hora que passava com ele eu tinha de falar sobre críquete. Era o seu
único conforto. Eu tinha de fingir uma devoção pelo jogo que já não sentia,
que inclusive já fora morna na década de 1930, a não ser pelo prazer que eu
tinha na companhia dele. Agora eu precisava estudar os placares do críquete
com a mesma atenção de um escolar. Ele não conseguia ler sozinho, mas
teria identificado um blefe meu. Às vezes, por alguns minutos, a antiga
vivacidade voltava a brilhar. Mas se eu não conseguisse pensar em outra
pergunta a fazer ou notícia a contar, ele ficava lá, deitado, na espécie de
solidão sombria que acomete algumas pessoas antes de morrerem.
Uma ou duas vezes tentei animá-lo. Não valeria a pena, mesmo que
fosse arriscado, vermos mais um jogo de críquete juntos? Eu agora estava
em melhor situação financeira do que antes, disse. Estava preparado para
bancar um táxi, seu meio de transporte velho e conhecido, para qualquer
campo de críquete que ele quisesse. Ele ficou entusiasmado. Disse que eu
podia acabar com um homem morto em minhas mãos. Respondi que estava
pronto para enfrentar isso. Achei que ele iria: ele sabia, eu sabia, que sua
morte podia ser apenas uma questão de meses; queria vê-lo passar uma
tarde num clima de certa alegria. Na próxima vez que o visitei ele sacudiu a
cabeça com tristeza e raiva. Não podia sequer tentar; não havia por que
tentar.
Para mim já era difícil ter de conversar sobre críquete. Era ainda mais
difícil para a irmã, uma mulher inteligente e encantadora, que nunca se
casara e que havia passado boa parte da vida cuidando dele. Com uma
habilidade bem-humorada, não muito diferente dele mesmo em sua melhor
forma, ela reunia todas as notícias de críquete que conseguia encontrar,
apesar de nunca ter aprendido nada sobre o jogo.
Uma ou duas vezes, o amor sarcástico pela comédia humana irrompia.
Duas ou três semanas antes de sua morte, ele soube que receberia a maior
condecoração da Royal Society, a Medalha Copley. Mostrou o sorriso
mefistofélico; pela primeira vez eu o via em todo o esplendor naqueles
últimos meses. “Agora sei que devo estar bem perto do fim. Quando as
pessoas se apressam para dar honrarias, só há uma conclusão a extrair.”
Depois de ouvir isso, acho que o visitei duas vezes. A última vez foi
quatro ou cinco dias antes de sua morte. Havia um time experimental
indiano jogando na Austrália e conversamos sobre ele.
Foi na mesma semana que ele disse à irmã: “Se eu soubesse que ia
morrer hoje, acho que mes- mo assim gostaria de ouvir os resultados do
críquete.”
Foi mais ou menos isso que aconteceu. Toda noite, naquela semana,
antes de pô-lo para dormir, ela lia para ele um capítulo de uma história do
críquete em Cambridge. Um desses capítulos continha as últimas palavras
que ele ouviu, pois morreu de repente, de manhã cedo.
PREFÁCIO

Agradeço as muitas críticas valiosas do professor C. D. Broad e do dr.


C. P. Snow, que leram o manuscrito original. Incorporei a substância de
quase todas as suas sugestões ao meu texto e, com isso, eliminei muitos
pontos imperfeitos e obscuros.
Em um caso particular, lidei com elas de maneira diferente. Meu
parágrafo 28 se baseia em um pequeno artigo que ofereci ao Eureka (o
periódico da Sociedade Arquimediana de Cambridge) no início do ano, e
julguei impossível remodelar o que havia escrito tão recentemente e com
tanto cuidado. Além disso, se eu tentasse corresponder devidamente a
críticas tão importantes, teria de ampliar tanto esta seção que acabaria por
destruir todo o equilíbrio do meu ensaio. Portanto deixei-o inalterado, mas
acrescentei uma breve formulação das principais proposições feitas pelos
meus críticos em uma nota no final.

G. H. H.
18 de julho de 1940
1

É uma experiência melancólica para um matemático profissional ver-se


escrevendo sobre matemática. A função de um matemático é fazer algo,
provar novos teoremas, contribuir para a matemática, e não falar sobre o
que ele ou outros matemáticos fizeram. Os estadistas detestam os
jornalistas, os pintores desprezam os críticos de arte, e os fisió- logos,
físicos e matemáticos geralmente têm esse mesmo sentimento; não há
desprezo mais profundo ou, no geral, mais justificável, do que o dos
homens que contribuem para com os homens que explicam. Exposição,
crítica, apreciação é trabalho para mentes de segunda categoria.
Lembro-me de ter defendido essa ideia certa vez, em uma das poucas
conversas sérias que tive com Housman. Housman, na sua conferência
Leslie Stephen, The Name and Nature of Poetry, negara muito
enfaticamente que fosse um “crítico”, mas o negara de uma maneira que me
pareceu singularmente desarrazoada e expressara uma admiração pela
crítica literária que me surpreendeu e escandalizou.
Começara com uma citação de sua palestra inaugural, proferida vinte e
dois anos antes:

Se a faculdade da crítica literária é a melhor dádiva que o Céu tem nos


seus tesouros não sei dizer; mas o Céu parece pensar que sim, pois, com
certeza, é o dom mais frugalmente distribuído. Oradores e poetas..., se
raros em comparação com amoras pretas, são mais comuns que os
retornos do cometa de Halley; os críticos literários são mais raros...

E continuara:

Nestes vinte e dois anos progredi em alguns aspectos e me deteriorei em


outros, mas não progredi o bastante para me tornar um crítico literário,
nem me deteriorei tanto a ponto de imaginar que me tornei um.

Parecera-me deplorável que urn grande estudioso e bom poeta


escrevesse assim, e, sentado ao seu lado no Hall, algumas semanas depois,
disse- lhe isso. Ele realmente pretendia que levassem a sério o que dissera?
A vida do melhor dos críticos realmente lhe parecia comparável com a vida
de um estudioso e poeta? Discutimos essas questões ao longo de todo o
jantar e penso que ele finalmente concordou comigo. Não quero dar a
impressão de afirmar um triunfo dialético sobre um homem que já não pode
me contradizer, mas “Talvez não inteiramente” foi, no fim, sua resposta à
primeira pergunta e “Provavelmente não” a resposta à segunda.
Pode haver alguma dúvida sobre os sentimentos de Housman e não
quero afirmar que ele está do meu lado; mas não há nenhuma dúvida quanto
aos sentimentos dos homens de ciência e eu os compartilho plenamente.
Então, se me vejo escrevendo “sobre” matemática, e não fazendo
matemática, isso é uma confissão de fraqueza pela qual, com justiça, posso
merecer o desprezo ou a piedade de matemáticos mais jovens e vigorosos.
Escrevo sobre a matemática porque, como qualquer outro matemático que
passou dos sessenta anos, já não tenho o frescor mental, a energia e a
paciência necessárias para levar a cabo com eficácia o meu trabalho
propriamente dito.

Proponho apresentar uma defesa da matemática, e podem me dizer que


ela não precisa de defesa nenhuma, já que agora são poucos os campos de
estudo tão geralmente reconhecidos, por boas ou más razões, como
proveitosos e dignos de louvor. Isso pode até ser verdade; de fato, é
provável, desde os sensacionais triunfos de Einstein, que a astronomia
estelar e a física atômica sejam as únicas ciências a ocupar uma posição
mais elevada no apreço popular. Agora, um matemático não tem mais
contra o que se defender. Não tem de enfrentar o tipo de oposição descrito
por Bradley na admirável defesa da metafísica que constitui a introdução de
Appearance and Reality.
Um metafísico, diz Bradley, ouvirá que “o conhecimento metafísico é
inteiramente impossível” ou que “mesmo que possível até certo ponto, na
prática não é um conhecimento digno desse nome”. “Os mesmos
problemas”, ouvirá, “as mesmas disputas, o mesmo fracasso puro e simples.
Por que não abandoná-la e sair? Não existe nada que mereça mais o seu
esforço?” Não existe ninguém tão estúpido a ponto de usar esse tipo de
linguagem em referência à matemática. O volume da verdade matemática é
evidente e convincente; suas aplicações práticas, as pontes, máquinas a
vapor e dínamos, impõem-se à imaginação mais obtusa. O público não
precisa ser convencido de que há algo de bom na matemática.
Tudo isso é, de certo modo, um grande consolo para os matemáticos,
mas nenhum matemático de verdade há de contentar-se com isso. Qualquer
matemático de verdade há de sentir que não é nessas toscas realizações que
reside o verdadeiro argumento a favor da matemática; que a reputação
popular da matemática baseia-se, em grande parte, na ignorância e na
confusão, e que há espaço para uma defesa mais racional. De qualquer
modo, estou disposto a tentar elaborar uma tal defesa. Deve ser uma tarefa
mais simples que a difícil defesa de Bradley.
Perguntarei, então: por que realmente vale a pena estudar com seriedade
a matemática? Qual é a razão de ser da vida de um matemático? E minhas
respostas serão, no geral, do tipo que se espera de um matemático: penso
que vale a pena, que essa vida tem uma boa razão de ser. Mas devo dizer
desde já que a minha defesa da matemática será uma defesa de mim
mesmo; será, portanto, até certo ponto, um pouco egocêntrica. Não pensaria
que vale a pena defender o meu campo de trabalho se me considerasse um
dos seus fracassos.
Certo egocentrismo desse tipo é inevitável e não sinto que precise me
desculpar por ele. Nenhum trabalho bom é feito por homens “humildes”.
Um dos primeiros deveres de um professor, por exemplo, em qualquer
matéria, é exagerar um pouco a importância da matéria e a sua importância
dentro dela. Um homem que está sempre se perguntando “O que eu faço
vale a pena?” e “Sou a pessoa certa para fazê-lo?” não será jamais eficiente
e, além disso, há de desencorajar os outros. Ele tem de fechar os olhos um
pouco e dar à sua matéria e a si mesmo um pouco mais de valor do que eles
merecem. Isso não é difícil: mais difícil é não tornar ridículos a sua matéria
e a si mesmo, fechando os olhos demais.

Um homem que se propõe a justificar sua existência e suas atividades


tem de distinguir duas questões diferentes. A primeira é se o trabalho que
ele faz é um trabalho que vale a pena; a segunda é por que ele o faz,
qualquer que seja o seu valor. Muitas vezes, a primeira pergunta é difícil, e
a resposta, muito desencorajadora; mas a maioria das pessoas achará a
segunda fácil mesmo assim. A resposta a essa segunda pergunta, se for uma
resposta sincera, geralmente assume uma dentre duas formas, e a segunda
forma não passa de uma variante mais humilde da primeira, que é a única
resposta que precisamos considerar seriamente.
(1) “Faço o que faço porque é a única coisa que consigo fazer bem. Sou
advogado, corretor de ações ou jogador profissional de críquete porque
tenho talento para esse trabalho. Sou advogado porque tenho uma língua
fluente e interesse por sutilezas jurídicas; sou corretor porque meu juízo
sobre o mercado é rápido e sensato; sou jogador profissional de críquete
porque sei rebater excepcionalmente bem. Concordo que talvez fosse bem
melhor ser poeta ou matemático, mas, infelizmente, não tenho nenhum
talento para essas coisas.”
Não quero dar a entender que esta defesa possa ser feita pela maioria
das pessoas, já que a maioria das pessoas não sabe fazer nada bem feito.
Mas é inabalável quando pode ser feita sem infringir a verdade, como no
caso de uma boa minoria dos seres humanos: talvez cinco ou mesmo dez
por cento dos homens saibam fazer alguma coisa razoavelmente bem. É só
uma minoria bem mais restrita que sabe fazer algo realmente bem, e o
número de homens que sabem fazer duas coisas bem feitas é ínfimo. Se um
homem tem um talento verdadeiro, qualquer que seja, ele deve estar pronto
a fazer praticamente qualquer sacrifício para cultivá- lo plenamente.
Essa opinião é endossada pelo dr. Johnson:

Quando lhe disse que fora ver Johnson [seu homônimo] cavalgar três
cavalos, ele disse: “Tal homem, meu senhor, deve ser encorajado, pois o
seu desempenho mostra a medida do poder humano...”

E, do mesmo modo, ele teria aplaudido alpinistas, nadadores de longa


distância e enxadristas vendados. Da minha parte, me identifico com todas
essas modalidades de realizações admiráveis. Identifico-me até com os
prestidigitadores e ventríloquos, e, quando Alekhine e Bradman dispõem-
se a bater recordes, fico tremendamente desapontado quando não o
conseguem. E, no caso, eu e o dr. Johnson estamos inteiramente de acordo
com o público. Como W. J. Turner disse, com tanta verdade, são apenas os
“esnobes” (no sentido mais desagradável) que não admiram os “bambas”.
É claro que temos de levar em conta as diferenças de valor entre as
diferentes atividades. Eu gostaria mais de ser um romancista ou um pintor
do que um estadista do mesmo calibre, e existem muitos caminhos para a
fama que a maioria de nós rejeitaria, considerando-os ativamente
perniciosos. No entanto, é muito raro que essas diferenças de valor inclinem
os pratos da balança na escolha de uma carreira, a qual, quase sempre, será
ditada pe- las limitações das capacidades naturais. A poesia tem mais valor
que o críquete, mas Bradman seria um tolo se sacrificasse o seu críquete
para escrever poesia de segunda (e acho improvável que pudesse fazer
melhor do que isso). Se o críquete fosse um pouco menos supremo e a
poesia fosse melhor, a escolha poderia ser mais difícil: não sei se eu
preferiria ser Victor Trumper ou Rupert Brooke. Felizmente, tais dilemas
quase nunca se apresentam.
Posso acrescentar que menos ainda tendem a se apresentar para um
matemático. É comum exagerar-se de modo um tanto grosseiro as
diferenças entre os processos mentais dos matemáticos e das outras pessoas,
mas é inegável que o dom para a matemática é um dos talentos mais
especializados e que os matemáticos, como classe, não se destacam
especialmente pela habilidade geral ou pela versatilidade. Se um homem é,
sob algum aspecto, um matemático de verdade, aposto cem contra um que a
sua matemática será muito melhor do que qualquer outra coisa que ele
possa fazer, e ele seria um tolo se não aproveitasse todas as oportunidades
para exercitar o seu único talento e fosse fazer um trabalho medíocre em
outros campos. Tal sacrifício poderia justificar-se apenas pela necessidade
econômica ou pela idade.

Seria melhor dizer algo aqui sobre essa questão da idade, já que ela é
particularmente importante para os matemáticos. Nenhum matemático deve
jamais esquecer que a matemática, mais que qualquer outra arte ou ciência,
é feita para os jovens. Para dar um exemplo simples, num nível
relativamente humilde, a idade de eleição para a Royal Society é, em média,
mais baixa para os matemáticos.
É fácil encontrar exemplos muito mais impressionantes. Pensemos, por
exemplo, na carreira de um homem que certamente foi um dos três maiores
matemáticos do mundo. Newton renunciou à matemática aos cinquenta
anos e já tinha perdido o seu entusiasmo muito antes; aos quarenta, já sabia
sem sombra de dúvida que os seus dias mais criativos estavam terminados.
Suas maiores ideias, o cálculo diferencial e a lei da gravitação, surgiram em
1666, quanto ele tinha vinte e quatro anos - “naqueles dias eu estava na flor
da idade para a invenção e importava-me com a matemática e a filosofia
mais do que em qualquer outra época desde então”. Fez grandes descobertas
até quase os quarenta anos (a “órbita elíptica” aos trinta e sete), mas, depois,
limitou-se a polir e aperfeiçoar.
Galois morreu com vinte e um anos, Abel com vinte e sete, Ramanujan
com trinta e três, Riemann com quarenta. Houve homens que fizeram bons
trabalhos bem mais tarde; o grande ensaio de Gauss sobre a geometria
diferencial foi publicado quando ele tinha cinquenta anos (embora as ideias
fundamentais tivessem surgido dez anos antes). Não conheço nenhum
grande avanço matemático realizado por um homem com mais de cinquenta
anos. Se um homem de idade madura perde o interesse pela matemática e a
deixa de lado, é improvável que a perda seja muito séria para a matemática
ou para ele mesmo.
Tampouco é provável que o ganho seja apreciável; a história posterior
dos matemáticos que deixaram a matemática não é especialmente
animadora. Newton tornou-se um Chefe da Casa da Moeda bastante
competente (quando não estava brigando com ninguém). Painlevé não foi
muito bem sucedido como premiê da França. A carreira política de Laplace
cobriu-o de desonra, mas não é justo citá-lo como exemplo, pois ele foi
mais desonesto que incompetente e nunca “renunciou” realmente à
matemática. É muito difícil encontrar na história um matemático de
primeira categoria que tenha abandonado a matemática e alcançado a
excelência em qualquer outro campo (Pascal parece ser um caso à parte). Talvez já
tenha havido jovens que teriam sido matemáticos de primeira se tivessem se
atido à matemática, mas eu nunca ouvi falar de nenhum caso desse tipo. E
tudo isso é plenamente confirmado pela minha limitada experiência. Todos
os jovens matemáticos de talento que conheci foram fiéis à matemática, não
por falta de ambição, mas por excesso; todos perceberam que só a
matemática lhes poderia abrir o caminho para algum grau de
reconhecimento nesta vida.

Existe também o que chamei de “variante mais humilde” da defesa-


padrão, mas posso resumi-la em pouquíssimas palavras.
(2) “Não há nada que eu saiba fazer muito bem. Faço o que faço porque
foi isso que me aconteceu. Nunca tive a chance de fazer qualquer outra
coisa.” E também essa desculpa aceito como conclusiva. E verdade que a
maioria das pessoas não sabe fazer nada bem feito. Nesse caso, importa
muito pouco a escolha de carreira que elas fazem, e não há nada mais a
dizer sobre o assunto. É uma resposta conclusiva, mas será muito difícil
ouvi-la da boca de um homem de brio; e suponho que nenhum de nós
ficaria satisfeito com ela.

É hora de começar a pensar a respeito da primeira pergunta que fiz no


parágrafo 3 e que é tão mais difícil que a segunda. Vale a pena fazer
matemática, aquilo a que eu e outros matemáticos chamamos de
matemática? E, se vale a pena, por quê?
Estive passando os olhos de novo pelas primeiras páginas da palestra
inaugural que proferi em Oxford em 1920, em que há um esboço de uma
defesa da matemática. É muito sumária (menos de duas páginas) e está
escrita num estilo (um primeiro ensaio, admito, no que eu então imaginava
ser o “estilo de Oxford”) do qual não me sinto hoje particularmente
orgulhoso; mas ainda me parece que, por mais que seja preciso desenvolvê-
la, ela contém os elementos essenciais da questão. Vou resumir o que disse
então, a título de prefácio a uma discussão mais completa.
(1) Comecei sublinhando o caráter inofensivo da matemática - “o estudo
da matemática é uma ocupação que, apesar de pouco lucrativa, é
perfeitamente inofensiva e inocente”. Continuo afirmando a mesma coisa,
mas é óbvio que será preciso ampliá-la e explicá-la um bocado.
Será que a matemática não é mesmo “lucrativa”? Sob alguns aspectos, é
óbvio que ela é; por exemplo, proporciona um grande prazer a um bom
número de pessoas. Eu estava pensando em “lucro”, porém, num sentido
bem mais estrito. Será que a matemática é “útil”, diretamente útil, como são
certas outras ciências, como a química e a fisiologia? Essa pergunta não é
fácil de responder nem imune às controvérsias; hei por fim de responder
que “não”, embora alguns matemáticos e a maior parte dos leigos dissesse,
sem dúvida, “sim”. E será que a matemática é mesmo “inofensiva”? Mais
uma vez, a resposta não é evidente e trata-se de uma pergunta que, de certa
maneira, eu preferiria evitar, já que suscita todo o problema dos efeitos da
ciência sobre a guerra. Será a matemática inofensiva, ao contrário, por
exemplo, da química? Terei de voltar a ambas as questões mais tarde.
(2) Disse depois que “a escala do universo é grande e, se estivermos
perdendo o nosso tempo, o desperdício das vidas de alguns lentes da
universidade não será uma catástrofe avassaladora”; e, aqui, pode parecer
que eu esteja adotando, ou fingindo adotar, a pose de humildade exagerada
que repudiei há pouco. Tenho certeza de que não era isso que eu tinha em
mente; estava tentando dizer em uma frase o que disse com mais vagar no
parágrafo 3. Meu pressuposto era o de que nós, lentes, realmente temos os
nossos talentozinhos e que não podemos estar errados se fizermos de tudo
para cultivá-los plenamente.
(3) Finalmente (em frases que me parecem agora penosamente
retóricas), sublinhei a permanência das realizações na matemática:

Nossas realizações podem ser pequenas, mas têm certo caráter de


permanência; e ter produzido qualquer coisa que, embora pequena,
conserve permanentemente o seu interesse - seja uma coletânea de
poesias, seja um teorema geométrico - equivale a ter feito algo que vai
muito além da capacidade da imensa maioria dos homens.

E:

Nestes dias de conflito entre os estudos antigos e modernos, com certeza


deve-se dizer algo a favor de um estudo que não começou com
Pitágoras e não terminará com Einstein, mas que é o mais antigo e o
mais jovem de todos.

Tudo isso é “retórica”, mas a substância do que foi dito ainda me parece
verdadeira, e posso desenvolver esse assunto imediatamente, sem prejuízo
de nenhuma das outras questões que estou deixando em aberto.

Vou partir do pressuposto de que estou escrevendo para leitores que


têm, ou tiveram no passado, um forte espírito de ambição. O primeiro dever
de um homem, ou pelo menos de um jovem, é ser ambicioso. A ambição é
uma paixão nobre que pode, sem prejuízo da sua qualidade, assumir muitas
formas; havia algo de nobre na ambição de Átila ou de Napoleão, mas a
ambição mais nobre é a de construir algo de valor permanente:
Aqui, na areia plana,
Entre o mar e a terra,
O que vou construir ou escrever
Antes do cair da noite?

Fala-me de runas a gravar,


Que segurem a onda que irrompe,
Ou de bastiões a projetar
Para um tempo depois do meu.

A ambição é a força propulsora que esteve por trás de quase todas as


coisas boas já feitas neste mundo. Em particular, praticamente todas as
contribuições substanciais para a felicidade humana foram feitas por
homens ambiciosos. Para tomar dois exemplos famosos, Lister e Pasteur
não eram ambiciosos? Ou, num plano mais modesto, King Gillette e
William Willett. E quem, em tempos recentes, mais contribuiu para o
conforto humano do que eles?
A fisiologia oferece exemplos particularmente bons justamente porque é
um ramo tão evidentemente “benéfico”. Devemos nos precaver contra uma
falácia comum entre os defensores da ciência, a falácia de supor que os
homens cujo trabalho mais beneficia a humanidade estão pensando muito
nisso enquanto o fazem - que os fisiólogos, por exemplo, têm almas
particularmente nobres. É muito possível que o fisiólogo fique contente ao
se lembrar de que o seu trabalho beneficiará a humanidade, mas os motivos
que lhe dão força e inspiração são idênticos aos de um estudioso dos
clássicos ou de um matemático.
Há muitos motivos respeitáveis pelos quais os homens podem
empreender pesquisas científicas, mas os mais importantes são três. O
primeiro (sem o qual os demais de nada valem) é a curiosidade intelectual,
o desejo de conhecer a verdade. Depois, o orgulho profissional, a ânsia de
ficar satisfeito com o próprio desempenho, a vergonha que acomete
qualquer artesão digno quando produz uma obra inferior aos seus talentos.
Por fim, a ambição, o desejo de reputação, de alcançar uma boa posição
social e até mesmo o poder ou o dinheiro a ela associados. Talvez seja
agradável sentir, depois de feito o trabalho, que você contribuiu para a
felicidade ou aliviou os sofrimentos do próximo, mas não será esse jamais o
motivo que o levou a trabalhar. Portanto, se um matemático, um químico ou
mesmo um fisiologista me dissesse que a motivação principal do seu
trabalho foi o desejo de beneficiar a humanidade, eu não acreditaria nele (e,
acaso acreditasse, isso não aumentaria o meu respeito por ele). Seus
motivos principais foram os que apresentei, dos quais, com certeza, nenhum
homem decente precisa se envergonhar.

Se a curiosidade intelectual, o orgulho profissional e a ambição são os


principais incentivos da pesquisa científica, é certo que ninguém terá uma
oportunidade tão boa de realizá-los quanto um matemático. A matéria sobre
a qual ele trabalha é a mais curiosa de todas - não existe nenhuma outra em
que a verdade pregue peças tão ímpares. Ele tem à sua disposição uma
técnica elaboradíssima e fascinante, que lhe oferece aberturas inigualáveis
para a exibição da pura e simples habilidade profissional. Finalmente, como
prova abundantemente a história, as realizações matemáticas, seja qual for o
seu valor intrínseco, são as mais duradouras de todas.
Isso fica patente até mesmo nas civilizações semi-históricas. As
civilizações babilónica e assíria pereceram; Hamurábi, Sargão e
Nabucodonosor são nomes vazios; contudo, a matemática babilónica ainda
é interessante, e a escala de 60 dos babilónicos ainda é usada na astronomia.
Mas é claro que a prova principal são os gregos.
Os gregos são os primeiros matemáticos que ainda hoje “existem” para
nós. A matemática oriental pode ser uma curiosidade intrigante, mas a
matemática grega é matemática de verdade. Os gregos foram os primeiros a
falar numa linguagem que os matemáticos modernos são capazes de
compreender; como me disse Littlewood, eles não são garotos inteligentes
ou “candidatos a bolsas de estudo”, mas “fellows de um outro college”.
Assim, a matemática grega é “permanente”, mais permanente até que a
literatura grega. Arquimedes será lembrado quando Ésquilo tiver sido
esquecido, porque as línguas morrem e as ideias da matemática, não.
“Imortalidade” pode ser uma palavra tola, mas provavelmente são os
matemáticos que têm a maior probabilidade de alcançá-la, seja ela o que for.
O matemático tampouco precisa ter medo de que o futuro venha a ser
injusto com ele. A imortalidade muitas vezes é ridícula ou cruel: poucos
gostariam de ser um Og, um Ananias ou um Gálio. Mesmo na matemática,
a história às vezes prega estranhas peças; Rolle figura nos livros didáticos
de cálculo elementar como se tivesse sido um matemático comparável a
Newton; Farey é imortal porque não conseguiu entender um teorema que
Haros provara perfeitamente catorze anos antes; os nomes de cinco
valorosos noruegueses ainda figuram na Biografia de Abel em virtude de
um único ato de imbecilidade conscienciosa, devidamente cometido à custa
do maior homem de seu país. Mas, no geral, a história da ciência é justa, e
isso é particularmente verdadeiro na matemática. Nenhuma outra matéria
possui critérios tão claros e tão universalmente aceitos, e os homens mais
lembrados são quase sempre os que o merecem. A fama na matemática, se
você tiver o cacife necessário para pagar por ela, é um dos investimentos
mais sensatos e mais estáveis.

Tudo isso é muito confortador para os lentes e, especialmente, para os


professores de matemática. Às vezes, os advogados, políticos ou homens de
negócios insinuam que quem busca uma carreira acadêmica são
principalmente as pessoas cautelosas e sem ambição, que se importam antes
de tudo o mais com o conforto e a segurança. Nada poderia estar mais longe
da verdade. Um lente renuncia a algo e, em particular, à chance de amealhar
grandes somas de dinheiro - é muito difícil para um professor ganhar mais
de 2.000 libras por ano. A segurança no cargo é, sem dúvida alguma, uma
das vantagens que tornam mais fácil essa renúncia específica. Mas não é
por isso que Housman teria recusado ser Lorde Simon ou Lorde
Beaverbrook. Ele teria rejeitado essas carreiras por causa de sua ambição,
porque não gostaria de ser esquecido dentro de vinte anos.
Não obstante todas essas vantagens, ainda é muito doído sentir que se
pode fracassar. Lembro- me de que Bertrand Russell me contou um sonho
horrível. Ele estava no último andar da biblioteca da universidade, por volta
de 2100 d.C. Um assistente circulava por entre as prateleiras carregando um
balde enorme, examinando livro por livro e recolocando-os nas prateleiras
ou jogando-os no balde. Por fim, chegou a três grandes volumes, que
Russell conseguiu reconhecer como os últimos exemplares restantes dos
Principia Mathematica. Ele pegou um dos volumes, folheou algumas
páginas, pareceu confuso por um instante com o curioso simbolismo,
fechou o volume, equilibrou-o na mão e hesitou...
10

O matemático, como o pintor ou o poeta, é um desenhista. Se os seus


desenhos são mais duradouros que os deles, é porque são feitos com ideias.
O pintor desenha com formas e cores, o poeta com palavras. Uma pintura
pode até incorporar uma “ideia”, mas esta geralmente será um lugar-comum
sem importância. Na poesia, as ideias são muito mais importantes; mas,
como insistiu Housman, temos o costume de exagerar a importância das
ideias na poesia: “Não consigo me convencer de que as chamadas ideias
poéticas realmente existam... A poesia não é a coisa que se diz, mas uma
maneira de dizer.”

Nem toda a água do mar raivoso


Pode tirar o bálsamo de um rei ungido.

Onde encontrar versos mais belos, ou ideias mais tacanhas e mais


falsas? A pobreza das ideias parece não afetar a beleza do desenho verbal.
O matemático, por outro lado, não tem outro material com que trabalhar a
não ser as ideias, e, portanto, é provável que seus desenhos durem mais, já
que as ideias se esgarçam menos com o tempo do que as palavras.
Os desenhos do matemático, como os do pintor ou do poeta, devem ser
belos; as ideias, como as cores ou as palavras, precisam entreligar-se de
maneira harmoniosa. A beleza é a primeira prova: não há lugar permanente
neste mundo para uma matemática feia. E aqui devo refutar uma concepção
errônea que ainda é difundida (embora provavelmente muito menos agora
do que há vinte anos): o que Whitehead chamou a “superstição literária” de
que o amor e a apreciação estética pela matemática são “uma monomania
restrita a uns poucos excêntricos em cada geração”.
Seria difícil encontrar um homem instruído que fosse totalmente
insensível aos atrativos estéticos da matemática. Pode ser muito difícil
definir a beleza matemática, mas isso vale igualmente para a beleza de
qualquer tipo - podemos não saber muito bem o que é um belo poema, mas
isso não nos impede de reconhecer um quando o lemos. Mesmo o professor
Hogben, disposto a minimizar a todo custo a importância do elemento
estético na matemática, não se atreve a negar que ele exista. “Há, com
certeza, indivíduos para quem a matemática exerce uma atração friamente
impessoal... O apelo estético da matemática de fato existe para uns poucos
escolhidos.” Mas eles são “poucos”, afirma ele, e sentem “friamente” (e
são, na verdade, pessoas um tanto ridículas, que vivem em insignificantes
cidadezinhas universitárias, ao abrigo das brisas frescas dos amplos espaços
abertos). Nisso, ele só está fazendo eco à “superstição literária” de
Whitehead.
O fato é que existem poucas matérias mais “populares” que a
matemática. A maioria das pessoas entende um pouco de matemática, assim
como a maioria das pessoas consegue apreciar uma melodia agradável; e
provavelmente existem mais pessoas interessadas em matemática do que
em música. As aparências podem até dar a entender o contrário, mas é fácil
explicar isso. A música pode ser usada para estimular as emoções das
massas, ao passo que a matemática não, e a incapacidade musical é tida
(sem dúvida com razão) como uma imperfeição leve, ao passo que a
maioria das pessoas tem tanto medo do nome da matemática que está
sempre pronta, sem falsa modéstia, a exagerar a sua própria burrice
matemática.
Um pouquinho de reflexão é suficiente para pôr a nu o absurdo da
“superstição literária”. Há uma quantidade enorme de enxadristas em todos
os países civilizados - na Rússia, quase toda a população instruída -, e todo
jogador de xadrez consegue reconhecer e apreciar um jogo ou problema
“bonito”. Não obstante, um problema de xadrez é simplesmente um
exercício de matemática pura (não é esse o caso do jogo, já que a psicologia
também desempenha nele o seu papel), e todos que consideram “bonito” um
problema estão aplaudindo- lhe a beleza matemática, mesmo que seja uma
beleza de espécie relativamente inferior. Os problemas de xadrez são as
cantigas de roda da matemática.
A mesma coisa nos fica patente - num nível mais baixo, mas que
envolve um público mais amplo - no caso do bridge, ou, descendo ainda
mais, no das colunas de enigmas dos jornais populares. A imensa
popularidade desses enigmas é, em sua imensa maior parte, um tributo aos
atrativos da matemática elementar, e os melhores criadores de enigmas,
como Dudeney ou “Caliban”, usam pouco mais que isso. Eles conhecem o
seu negócio; o que o público quer é um pouco de estímulo intelectual, e
nada produz um efeito tão estimulante quanto o da matemática.
Poderia acrescentar aqui que não existe nada no mundo que agrade tanto
aos homens, mesmo os famosos (e, mais ainda, os que se dirigiram à
matemática com palavras ofensivas), quanto descobrir ou redescobrir um
verdadeiro teorema matemático. Herbert Spencer publicou em sua
autobiografia um teorema sobre círculos que provou quando tinha vinte
anos (sem saber que fora provado mais de dois mil anos antes por Platão).
O professor Soddy é um exemplo mais recente e mais notável (mas o seu
teorema é de fato seu - ver suas cartas sobre o “Hexleto” em Nature, vols.
137-9 [1936-7]).

11

Um problema de xadrez é matemática de verdade, mas, de certa


maneira, é “banal”. Por mais engenhosos e intricados, por mais originais e
surpreendentes que sejam os movimentos, falta algo essencial. Os
problemas de xadrez não são importantes. A boa matemática não é só bela,
também é séria - “importante”, se quiserem, mas essa palavra é muito
ambígua, e “séria” expressa muito melhor o que quero dizer.
Não estou pensando nas consequências “práticas” da matemática.
Voltarei a esse ponto mais tarde; no momento, direi apenas que se um
problema de xadrez é, no sentido mais imediato, “inútil”, isso vale também
para a maior parte da boa matemática; que só uma fração mínima da ciência
matemática é útil na prática, e que essa fração é relativamente sem graça. A
“seriedade” de um teorema matemático não reside em suas consequências
práticas, que geralmente são ínfimas, mas na significação das ideias
matemáticas que ele entreliga. Podemos dizer, grosso modo, que uma ideia
matemática é “significativa” quando ela pode ser ligada, de maneira natural
e iluminadora, a um conjunto grande e complexo de outras ideias
matemáticas. Assim, um teorema matemático sério, um teorema que
entreliga ideias significativas, tem grande probabilidade de ocasionar
avanços importantes na própria matemática e até mesmo em outras ciências.
Nenhum problema de xadrez jamais influiu sobre o desenvolvimento geral
do pensamento científico; Pitágoras, Newton, Einstein, no seu tempo,
mudaram toda a direção desse pensamento.
É certo que a seriedade de um teorema não reside nas suas
consequências; estas são meramente um indício da sua seriedade.
Shakespeare teve uma influência enorme no desenvolvimento da língua
inglesa, Otway não teve influência quase nenhuma, mas não é por isso que
Shakespeare foi o melhor poeta. Foi o melhor poeta porque escreveu poesia
muito melhor. A inferioridade do problema de xadrez, como a da poesia de
Otway, não reside nas suas consequências, mas no seu conteúdo.
Há mais uma proposição de que tratarei sumariamente, não porque não
seja interessante, mas porque é difícil e porque não sou qualificado para
encetar uma discussão séria de estética. A beleza de um teorema
matemático depende muito da sua seriedade, como também na poesia a
beleza de um verso pode depender, até certo ponto, da significação das
ideias que contém. Citei dois versos de Shakespeare como um exemplo da
pura e simples beleza de um desenho verbal, mas.
Depois da febre inquieta da vida, ele dorme bem parece ainda mais belo.
O desenho é igualmente bom, e, neste caso, as ideias têm sentido e a tese é
sensata, de modo que as nossas emoções são tocadas ainda mais
profundamente. As ideias realmente têm importância para o desenho,
mesmo na poesia, e muito mais, naturalmente, na matemática; mas não cabe
a mim tentar discutir a sério essa questão.

12

Deve estar claro agora que, para conseguirmos fazer algum progresso,
teremos de apresentar exemplos de teoremas matemáticos “de verdade”,
teoremas que todo matemático admitirá serem de primeira categoria. E,
nesse ponto, as restrições sob as quais estou escrevendo me impõem uma
severa desvantagem. Por um lado, meus exemplos precisam ser muito
simples e inteligíveis para um leitor que não possua nenhum conhecimento
especializado de matemática; não podem reclamar nenhuma explicação
preliminar elaborada; e o leitor deve ser capaz de acompanhar não só os
enunciados, mas também as provas. Essas condições excluem, por exemplo,
muitos dos teoremas mais belos da teoria dos números, como o teorema dos
“dois quadrados” de Fermat ou a lei da reciprocidade quadrática. E, por
outro lado, meus exemplos devem ser extraídos da matemática “autêntica”,
da matemática do matemático profissional praticante, e essa condição exclui
muitas coisas de inteligibilidade relativamente fácil, mas que pertencem
mais ao domínio da lógica e da filosofia matemática.
Nada melhor do que voltar aos gregos. Vou enunciar e provar dois
famosos teoremas dos matemáticos gregos. São teoremas “simples”,
simples na ideia e na execução, mas não há dúvida nenhuma de que são
teoremas de primeira classe. Ambos conservam o frescor e a grandeza que
tinham ao ser descobertos - dois mil anos não deixaram uma ruga sequer em
nenhum dos dois. Finalmente, tanto os enunciados como as provas podem
ser dominados por qualquer leitor inteligente em uma hora, por menor que
seja a sua formação matemática.
1. O primeiro é a prova da existência de uma infinidade de números
primos, de Euclides (Elementos, IX, 20. A verdadeira origem de muitos teoremas dos
Elementos é obscura, mas parece não existir nenhuma razão específica para supor que este não seja
de Euclides).
Os primos ou números primos são os números (A) 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17,
19, 23, 29,... que não podem ser decompostos em fatores menores (Há razões
técnicas para não considerar 1 como um número primo). Assim, 37 e 317 são primos. Os
primos são o material com o qual se constroem todos os números, pela
multiplicação: assim, 666 = 2.3.3.37. Todo número que não seja ele próprio
primo é divisível por, pelo menos, um primo (geralmente, é claro, por
vários). Temos de provar que o número de números primos é infinito, isto é,
que a série (A) não acaba jamais.
Suponhamos que ela acabe, e que

2, 3, 5, ..., P

seja a série completa (de modo que P seja o maior número primo); e
consideremos, nesta hipótese, o número Q, definido pela fórmula

Q = (2.3.5. ... .P) + 1.

É óbvio que Q não é divisível por nenhum número da série 2, 3, 5, P,


pois deixa o 1 de resto quando dividido por qualquer um desses números.
Mas, se ele próprio não for primo, será divisível por algum primo e,
portanto, existe um primo (que pode ser o próprio Q) maior do que qualquer
um deles. Isso contradiz a nossa hipótese, de que não existe nenhum primo
maior que P\ portanto, essa hipótese é falsa.
A prova é por meio de reductio ad absurdum, e a reductio ad absurdum,
de que Euclides gostava tanto, é uma das armas mais sutis do matemático (A
prova pode ser ordenada de modo a evitar uma reductio, e os lógicos de algumas escolas prefeririam
que assim fosse). É um gambito muito mais refinado do que qualquer gambito
de xadrez: o enxadrista pode sacrificar um peão ou mesmo outra peça, mas
o matemático sacrifica o jogo inteiro.

13

2. Meu segundo exemplo é a prova da “irracionalidade” de√2, de


Pitágoras (A prova tradicionalmente atribuída a Pitágoras que certamente remonta à sua escola. O
teorema aparece, sob uma forma muito mais geral, em Euclides [Elementos, X, 9]).
Um “número racional” é uma fração a/b, na qual a e b são números
inteiros; podemos supor que a e b não têm nenhum fator comum, já que, se
tivessem, poderíamos eliminá-lo. Dizer que “√2 é irracional” é apenas outra
forma de dizer que 2 não pode ser expresso na forma (a/b)2 e isso é a
mesma coisa que dizer que a equação

(B) a2 = 2b2

não pode ser resolvida com valores inteiros de a e b que não tenham
nenhum fator comum. Esse é um teorema de aritmética pura, que não exige
nenhum conhecimento de “números irracionais” nem depende de nenhuma
teoria sobre a natureza destes.
Argumentamos novamente por reductio ad absurdum; suponhamos que
(B) seja verdade, a e b sendo inteiros sem nenhum fator comum. Decorre de
(B) que a2 é par (já que 2b2 é divisível por 2) e, portanto, que a é par (já que
o quadrado de um número ímpar é ímpar). Se a é par, então,

(C) a = 2c

para um valor inteiro de c; e, portanto,

2b2 = a2 = (2c)2 = 4c2


ou

(D) b2=2c2

Portanto, b2 é par e, portanto (pela mesma razão que antes), b é par. Isto é, a
e b são ambos pares e, portanto, têm o fator comum 2. Isso contradiz a
nossa hipótese e, por conseguinte, a hipótese é falsa.
Decorre do teorema de Pitágoras que a diagonal de um quadrado é
incomensurável com o lado (que a razão entre os dois não é um número
racional, que não existe nenhuma unidade da qual ambos sejam múltiplos
inteiros). Isso porque, se tomarmos o lado como nossa unidade de
comprimento, e o comprimento da diagonal for d, então, por meio de um
teorema bem conhecido também atribuído a Pitágoras (Euclides, Elementos, I,
47),

d2 = 12+ 12 = 2

de modo que d não pode ser um número racional.


Eu poderia apresentar uma quantidade enorme de bons teoremas da
teoria dos números cujo significado qualquer um pode compreender. Por
exemplo, existe o chamado “teorema fundamental da aritmética”, segundo o
qual qualquer número inteiro pode ser decomposto, de uma maneira
apenas, em um produto de primos. Assim, 666 = 2.3.3.37, e não há
nenhuma outra decomposição; é impossível que 666 = 2.11.29 ou que 13.89
= 17.73 (e podemos perceber que assim é sem determinar os produtos). Esse
teorema, como o seu nome sugere, é o fundamento da aritmética superior; a
prova, porém, embora não seja “difícil”, exige certo preâmbulo e pode ser
tediosa para um leitor não familiarizado com a matemática.
Outro teorema belo e famoso é o teorema dos “dois quadrados” de
Fermat. Os primos (se ignorarmos o primo especial 2) podem ser ordenados
em duas classes: os primos

5, 13, 17, 29, 37, 41,...

que deixam resto 1 quando divididos por 4, e os primos

3, 7, 11, 19, 23, 31,...

que deixam resto 3. Todos os primos da primeira classe, e nenhum da


segunda, podem ser expressos como a soma de dois quadrados de números
inteiros; assim

5 = l2 + 22, 13 = 22 + 32,
17= 12 + 42? 29 = 22 + 52;

mas 3, 7, 11 e 19 não podem ser expressos dessa maneira (como o leitor


pode verificar por si). Esse é o teorema de Fermat, que é considerado, com
justiça, um dos mais refinados da aritmética. Infelizmente, não há nenhuma
prova que possa ser compreendida por ninguém, exceto um matemático
razoavelmente perito.
Também existem alguns teoremas bonitos na “teoria dos agregados”
(Mengenlehre), como o teorema de Cantor da “não enumerabilidade” do
contínuo. No caso, a dificuldade é diametralmente oposta. A prova é bem
fácil, uma vez dominada a linguagem, mas é necessária uma explicação
considerável para que o significado do teorema se torne claro. Por isso, não
vou dar mais exemplos. Os que já apresentei são pedras-de-toque e o leitor
que não conseguir compreendê-los provavelmente não compreenderá coisa
nenhuma de matemática.
Disse que o matemático é um desenhista de ideias e que a beleza e a
seriedade são os critérios pelos quais seus desenhos podem ser julgados.
Não acredito que uma pessoa que tenha compreendido os dois teoremas seja
capaz de negar que eles passam por essa prova. Se os compararmos com os
enigmas mais engenhosos de Dudeney ou com os mais refinados problemas
de xadrez compostos pelos mestres dessa arte, a sua superioridade se
destaca em ambos os aspectos; a diferença de classe é inconfundível. Eles
são muito mais sérios e também muito mais belos. Será possível definir,
com um pouco mais de minúcia, onde reside essa superioridade?

14

Em primeiro lugar, a superioridade dos teoremas matemáticos em


seriedade é evidente e absoluta. O problema de xadrez é o produto de um
complexo de ideias engenhoso, mas muito limitado; ideias que não diferem
entre si de maneira fundamental e que não têm nenhuma repercussão
externa. Pensaríamos do mesmo jeito se o xadrez não tivesse sido
inventado, ao passo que os teoremas de Euclides e Pitágoras influenciaram
profundamente o nosso pensamento, mesmo fora da matemática.
Assim, o teorema de Euclides é essencial para toda a estrutura da
aritmética. Os primos são a matéria-prima com a qual a aritmética é
construída, e o teorema de Euclides assegura-nos de que temos material
bastante para a tarefa. Mas o teorema de Pitágoras tem aplicações mais
amplas e nos dá a oportunidade de escrever um texto melhor.
Devemos observar primeiro que a prova de Pi- tágoras se presta
amplamente à generalização e pode ser aplicada, sem mudar-lhe os
princípios, a classes muito amplas de “irracionais”. De maneira muito
semelhante, podemos provar (como Teodoro parece ter provado) que

√3, √5, √7, √11, √13, √17

são irracionais, ou (indo além de Teodoro) que 3√2 e 3√17 são irracionais
(Ver o cap. IV de Introduction to the Theory of Numbers, de Hardy e Wright, no qual se discutem as
diversas extensões do teorema de Pitágoras e um enigma histórico a respeito de Teodoro).
O teorema de Euclides nos diz que temos um bom estoque de material
para a construção de uma aritmética coerente dos números inteiros. O
teorema de Pitágoras e as suas extensões nos dizem que, quando tivermos
construído essa aritmética, ela não será suficiente para as nossas
necessidades, já que haverá muitas magnitudes que irão chamar a nossa
atenção e que ela não será capaz de medir; a diagonal do quadrado é apenas
o exemplo mais evidente. A profunda importância dessa descoberta foi
reconhecida imediatamente pelos matemáticos gregos. Eles haviam suposto
a princípio (em concordância, penso, com os ditames “naturais” do “senso
comum”) que todas as magnitudes do mesmo tipo são comensuráveis, que
dois comprimentos quaisquer, por exemplo, são sempre múltiplos de uma
unidade comum, e tinham construído uma teoria da proporção baseados
nessa suposição. A descoberta de Pitágoras mostrou que esse fundamento
não era sólido e levou à construção da teoria de Eudoxo, muito mais
perspicaz, exposta no quinto livro dos Elementos, e que é considerada por
muitos matemáticos modernos a maior conquista da matemática grega. Essa
teoria é espantosamente moderna em espírito e pode ser considerada o
princípio da teoria moderna dos números irracionais, que revolucionou a
análise matemática e teve muita influência sobre a filosofia de tempos
recentes.
Não há dúvida nenhuma, então, quanto à “seriedade” de ambos os
teoremas. Portanto, é melhor observar desde já que nenhum dos dois tem a
menor importância “prática”. Nas aplicações práticas, nós lidamos apenas
com números relativamente pequenos; só a astronomia estelar e a física
atômica lidam com números “grandes”, e a importância prática delas, até
agora, não é muito maior que a da mais abstrata das matemáticas puras. Não
sei qual é o grau mais elevado de precisão de que um engenheiro precisa -
seremos generosos se o fixarmos em dez algarismos. Então
3,14159265

(o valor de π até oito casas decimais) é a razão

314159265
100000000

de dois números de nove algarismos. Existem 50.847.478 números primos


menores que 1.000.000.000; isso é suficiente para um engenheiro e ele pode
passar muito bem sem o resto. Isso no que diz respeito ao teorema de
Euclides; quanto ao de Pitágoras, é óbvio que os irracionais não têm
interesse nenhum para um engenheiro, já que ele só lida com aproximações,
e todas as aproximações são racionais.

15

Um teorema “sério” é um teorema que contém idéias “significativas” e


acho que devo tentar analisar um pouco mais detalhadamente as qualidades
que tornam significativa uma idéia matemática. Trata-se de tarefa muito
difícil, e é pouco provável que a análise que eu oferecer possa servir para
algo. É possível reconhecer uma idéia “significativa” imediatamente, como
o foi no caso dos meus dois teoremas-padrão, mas esse poder de
reconhecimento exige um grau bastante elevado de conhecimento
matemático e daquela familiaridade com as ideias matemáticas que só se
forma depois de muitos anos na companhia delas. Por isso, preciso tentar
fazer uma análise, e talvez seja possível fazer uma que, embora exígua, seja
sensata e inteligível em si mesma. Há pelo menos duas coisas que parecem
essenciais: uma certa generalidade e uma certa profundidade, mas não é
fácil definir com precisão nenhuma dessas duas qualidades.
Uma ideia matemática significativa, um teorema matemático sério,
precisa ser “geral” num sentido mais ou menos assim: a ideia deve ser uma
ideia que faça parte de muitos construtos matemáticos, que seja usada na
prova de teoremas de muitos tipos diferentes. O teorema, mesmo que
formulado originalmente (como o teorema de Pitágoras) de uma forma
muito específica, deve ser passível de considerável ampliação e deve
representar toda uma classe de teoremas do mesmo tipo. As relações
reveladas pela prova devem ligar muitas ideias matemáticas diferentes.
Tudo isso é muito vago e está sujeito a muitas reservas. Mas é bastante fácil
perceber que é improvável que um teorema seja sério quando ele não possui
essas qualidades de modo evidente; basta considerar alguns exemplos
daquelas curiosidades isoladas que abundam na aritmética. Escolhi dois,
quase aleatoriamente, das Mathematical Recreations de Rouse Bali (11a ed.,
1939 [revista por H. S. M. Coxeter]).

(a) 8712 e 9801 são os únicos números de quatro algarismos que são
múltiplos inteiros de seus “inversos”:

8712 = 4.2178, 9801 =9.1089,

e não existe nenhum outro número inferior a 10.000 que possua essa
propriedade.

(b) Existem apenas quatro números (depois de 1) que são a soma dos
cubos dos seus algarismos, a saber:

153 = 13 + 53 + 33, 370 = 33 + 73 + 03,


371 = 33 + 73 + 13, 407 = 43 + 03 + 73.

Esses são fatos incomuns, muito adequados para colunas de enigmas, e


podem até divertir amadores, mas não há nada neles que atraia um
matemático. As provas não são difíceis nem interessantes - apenas um
pouco cansativas. Os teoremas não são sérios; e é óbvio que uma das razões
desse fato (embora, talvez, não seja essa a mais importante) é o caráter
extremamente específico do enunciado e das provas, que não são passíveis
de nenhuma generalização significativa.

16
“Generalidade” é uma palavra ambígua e um pouco perigosa, e é
preciso ter cuidado para que ela não domine excessivamente nossa
discussão. E usada em vários sentidos na matemática e nos escritos a
respeito de matemática, e há um sentido em particular, que os matemáticos,
muito adequadamente, põem em grande relevo, e que não tem
absolutamente nada que ver com o assunto de que estamos tratando. Nesse
sentido, que é bastante fácil de definir, todos os teoremas matemáticos são
igualmente “gerais”, e o são de forma absoluta.
“A certeza da matemática”, diz Whitehead (Science and the Modern World, p.
33), “depende da sua absoluta generalidade abstrata.” Quando afirmamos
que 2 + 3 =: 5, estamos afirmando uma relação entre três grupos de
“coisas”, e essas “coisas” não são maçãs, nem moedas, nem coisas de uma
ou outra espécie particular, mas apenas coisas, “qualquer coisa”. O
significado do enunciado é totalmente independente das individualidades
dos membros dos grupos. Todos os “objetos” ou “entidades” ou “relações”
matemáticas, tais como “2”, “3”, “5”, “+” ou “=”, e todas as proposições
matemáticas em que eles ocorrem, são absolutamente gerais na medida em
que são absolutamente abstratos. Na verdade, uma das palavras de
Whitehead é supérflua, já que a generalidade, nesse sentido, é abstração.
Esse sentido da palavra é importante, e os lógicos estão muito corretos
em frisá-lo, já que ele contém um truísmo que muita gente supostamente
sábia tende a esquecer. É bastante comum, por exemplo, ouvirmos um
astrônomo ou físico afirmar que encontrou uma “prova matemática” de que
o universo físico deve comportar-se de uma maneira específica. As
afirmações desse tipo, se interpretadas de maneira literal, não significam
absolutamente nada. Não é possível provar matematicamente que haverá
um eclipse amanhã, porque os eclipses e outros fenômenos físicos não
fazem parte do mundo abstrato da matemática; e suponho que todos os
astrônomos o admitiriam se fossem pressionados, por mais eclipses que
possam ter previsto corretamente.
É evidente que não estamos preocupados com esse tipo de
“generalidade” agora. Estamos procurando por diferenças de generalidade
entre um teorema matemático e outro, e no sentido de Whitehead todos são
igualmente gerais. Assim, os teoremas “triviais” (a) e (b) do parágrafo 15
são tão “abstratos” ou “gerais” quanto os de Euclides e Pitágoras, e o
mesmo ocorre com um problema de xadrez. Não faz diferença para um
problema de xadrez se as peças são brancas e pretas ou vermelhas e verdes,
ou mesmo se são “peças” físicas; é o mesmo problema que um especialista
facilmente carrega na sua cabeça e que temos de reconstruir laboriosamente
com o auxílio do tabuleiro. O tabuleiro e as peças são meros recursos para
estimular a nossa imaginação preguiçosa, e não são mais essenciais para o
problema que o quadro negro e o giz são para os teoremas de uma aula de
matemática.
Não é por esse tipo de generalidade, comum a todos os teoremas
matemáticos, que estamos procurando agora, mas pelo tipo mais sutil e
fugidio de generalidade que tentei descrever em termos toscos no parágrafo
15. E devemos ter cuidado para não pôr ênfase demais mesmo na
generalidade que equivale à abstração (como penso que lógicos como
Whitehead tendem a fazer). A conquista mais notável da matemática
moderna não consiste simplesmente em “empilhar uma sutileza de
generalização sobre outra sutileza de generalização” (Science and the Modem
World, p. 44). É preciso que certa medida de generalidade esteja presente em
todo teorema de alta classe, mas o excesso tende inevitavelmente à
insipidez. “Tudo é o que é e não outra coisa”, e as diferenças entre as coisas
são tão interessantes quanto as semelhanças. Não escolhemos nossos
amigos porque eles incorporam todas as qualidades agradáveis da
humanidade, mas porque são as pessoas que são. E assim é na matemática:
uma propriedade comum a uma quantidade excessiva de objetos não pode
ser empolgante, e também as ideias matemáticas se apagam quando não têm
bastante individualidade. Aqui, de qualquer modo, posso citar Whitehead a
meu favor: “é a grande generalização, limitada por uma particularidade
feliz, que faz a concepção frutífera” (Science and the Modem World, p. 46)

17

A segunda qualidade que atribuí a uma ideia significativa foi a


profundidade, e essa é ainda mais difícil de definir. Tem algo a ver com a
dificuldade; as ideias “mais profundas” geralmente são as mais difíceis de
compreender; mas não se tratada mesma coisa. As ideias que subjazem ao
teorema de Pitágoras e às suas generalizações são bastante profundas, mas
nenhum matemático de hoje as julgaria difíceis. Por outro lado, um teorema
pode ser essencialmente superficial e, não obstante, bem difícil de provar
(como são muitos teoremas “diofantinos”, isto é, teoremas sobre a solução
de equações em números inteiros).
Parece que as ideias matemáticas são, de certa maneira, ordenadas em
camadas; as ideias de cada camada são ligadas por um complexo de
relações entre si e com as ideias acima e abaixo. Quanto mais baixa a
camada, mais profunda (e, de modo geral, mais difícil) a ideia. Assim, a
ideia de um “irracional” é mais profunda que a de um número inteiro, e o
teorema de Pitágoras, por essa razão, é mais profundo que o de Euclides.
Vamos concentrar nossa atenção nas relações entre os números inteiros
ou algum outro grupo de objetos que existem numa camada específica.
Pode acontecer, então, que uma dessas relações possa ser compreendida por
completo, que possamos conhecer e provar, por exemplo, alguma
propriedade dos números inteiros, sem nenhum conhecimento do conteúdo
das camadas inferiores. Assim, provamos o teorema de Euclides
considerando somente as propriedades dos números inteiros. Mas existem
também muitos teoremas a respeito dos números inteiros que não podemos
compreender e, menos ainda, provar sem cavar mais fundo e considerar o
que acontece abaixo.
É fácil encontrar exemplos na teoria dos números primos. O teorema de
Euclides é muito importante, mas não muito profundo: podemos provar que
existe uma quantidade infinita de números primos sem usar nenhuma noção
mais profunda que a de “divisibilidade”. Mas novas questões se apresentam
assim que conhecemos a resposta para isso. Há uma infinidade de primos,
mas como essa infinidade se distribui? Dado um número grande N, digamos
1080 ou (Supõe-se que o número de prótons no universo seja de cerca de 1080. O número
, se escrito por extenso, ocuparia cerca de 50.000 volumes de tamanho médio), quantos
números primos menores que N existem? (Como eu disse no parágrafo 14, existem
50.847.478 números primos menores que 1.000.000.000, mas é só até esse ponto que o nosso
conhecimento exato chega).
Quando fazemos essas perguntas, vemo-nos numa
situação inteiramente diversa. Podemos respondê-las, até com uma precisão
surpreendente, mas apenas cavando muito mais fundo, deixando os
números inteiros acima de nós por algum tempo e usando as armas mais
poderosas da moderna teoria das funções. Por isso, o teorema que responde
às nossas perguntas (o chamado “Teorema do Número Primo”) é muito
mais profundo que o de Euclides ou mesmo que o de Pitágoras.
Eu poderia multiplicar os exemplos, mas essa noção de “profundidade”
é fugidia até mesmo para um matemático capaz de reconhecê-la; suponho
que não há mais nada que eu possa dizer que fosse de muita ajuda para os
outros leitores.
18

Ainda temos de resolver um ponto do parágrafo 11, no qual comecei a


comparar a “matemática de verdade” e o xadrez. Podemos ter como certo
que, em substância, seriedade e significação, a vantagem do teorema
matemático verdadeiro é avassaladora. Para a inteligência treinada, é quase
tão evidente que ele é superior também na beleza, mas essa superioridade é
muito mais difícil de definir ou localizar, já que o defeito principal do
problema de xadrez é, sem dúvida, a sua “banalidade”, e o contraste nesse
aspecto mescla-se com o juízo puramente estético e o perturba. Que
qualidades “puramente estéticas” podemos distinguir em teoremas como os
de Euclides e Pitágoras? Não vou arriscar propor mais que algumas
observações esparsas.
Em ambos os teoremas (e nos teoremas, é claro, incluo as provas) existe
um alto grau de inesperado, associado à inevitabilidade e à economia. Os
argumentos assumem uma forma incomum e surpreendente; as armas
usadas parecem simples e infantis quando comparadas com o alcance dos
resultados; mas não há como escapar às conclusões. Não existem
complicações de detalhe - uma linha de ataque é suficiente em cada caso, e
isso vale também para as provas de muitos teoremas bem mais difíceis, cuja
plena apreciação exige um grau bem elevado de proficiência técnica. Não
gostamos de muitas “variações” na prova de um teorema matemático: a
“enumeração de casos”, na verdade, é um dos argumentos matemáticos
mais aborrecidos. A prova matemática deve lembrar uma constelação
simples e nítida, não um borrão espalhado na Via Láctea.
Um problema de xadrez também tem um caráter inesperado e uma certa
economia; é essencial que os movimentos sejam surpreendentes e que todas
as peças que estão no tabuleiro desempenhem o seu papel. Mas o efeito
estético é cumulativo. Também é essencial (a menos que o problema seja
simples demais para ser realmente divertido) que o movimento-chave seja
seguido por muitas variações, cada uma das quais exige uma resposta
específica. “Se Peão-Bispo 5, então Cavalo-Torre 6; se ... então ...; se ...
então ...” - o efeito seria estragado se não houvesse muitas respostas
diferentes. Tudo isso é matemática legítima e tem os seus méritos, mas não
passa de uma “prova por enumeração de casos” (e de casos que, no fundo,
não diferem profundamente entre si. Creio que agora se considera um
mérito um problema ter muitas variações do mesmo tipo), que o matemático
de verdade tende a desprezar.
Inclino-me a pensar que meu argumento poderia ser reforçado se eu
recorresse aos sentimentos dos próprios enxadristas. Com certeza, um
mestre de xadrez, um jogador de grandes partidas, no fundo despreza a arte
puramente matemática de um problemista. Ele tem muito dessa arte oculta
em si e pode apresentá-la numa emergência: “Se ele tivesse feito tal e tal
movimento, eu faria tal e tal outra coisa e venceria.” Mas o “grande jogo”
de xadrez é, antes de tudo, um jogo psicológico, um conflito entre duas
inteligências treinadas, e não uma simples coleção de teoremas matemáticos
menores.

19

Preciso voltar à defesa que fiz em Oxford e examinar com um pouco


mais de cuidado algumas das proposições que apenas mencionei no
parágrafo 6. Já deve estar patente que eu só me interesso pela matemática
como arte criativa, mas há outras questões a serem consideradas e, em
particular, a da “utilidade” (ou inutilidade) da matemática, sobre a qual o
pensamento tanto se confunde. Também devemos nos perguntar se a
matemática é de fato tão “inofensiva” como pressupus na minha palestra de
Oxford.
Pode-se dizer que uma ciência, ou arte, é “útil” se o seu
desenvolvimento aumenta, ainda que indiretamente, o bem-estar material e
o conforto dos homens, se promove a felicidade, usando essa palavra de
uma forma tosca e banal. Assim, a medicina e a fisiologia são úteis porque
aliviam o sofrimento e a engenharia é útil porque nos ajuda a construir
casas e pontes e, portanto, a elevar o padrão de vida (a engenharia, é claro,
também faz mal, mas não é essa a questão no momento). Ora, não há
dúvida de que pelo menos uma parte da matemática tem essa utilidade; os
engenheiros não poderiam trabalhar sem um razoável conhecimento
operacional de matemática, e a matemática está começando a encontrar
aplicações até mesmo na fisiologia. Portanto, temos aqui um possível
fundamento para uma defesa da matemática; pode não ser o melhor, mas
temos de examiná-lo. Os usos “mais nobres” da matemática, se é que se
pode dizer tal coisa, os usos que ela tem em comum com todas as artes
criativas, não serão levados em conta no nosso exame. A matemática pode,
como a poesia ou a música, “promover e sustentar um hábito mental
elevado” e, assim, aumentar a felicidade dos matemáticos e mesmo de
outras pessoas; mas defendê-la sobre esse fundamento não seria mais do
que desenvolver o que eu já disse. O que tenho de examinar agora é a
utilidade “grosseira” da matemática.

20

Tudo isso pode parecer muito evidente, mas mesmo aqui há um bocado
de confusão, já que as matérias mais “úteis” são, com muita freqüência,
justamente aquelas cujo aprendizado é mais inútil para a maioria das
pessoas. E muito bom que os fisiologistas e engenheiros existam em
quantidade suficiente, mas a fisiologia e a engenharia não são estudos úteis
para o homem comum (embora o estudo dessas coisas possa, é claro, ser
defendido com base em outros fundamentos). De minha parte, nunca me vi
numa situação em que os conhecimentos científicos que possuo, fora da
matemática pura, me tenham trazido a menor vantagem.
Na verdade, é surpreendente o quão ínfimo é o valor prático que o
conhecimento científico tem para o homem comum, o quão aborrecidos e
banais são os conhecimentos que têm algum valor, e o quanto esse valor
parece variar segundo a ordem inversa da sua reputada utilidade. É útil ser
rápido para fazer contas de aritmética comum (e isso, é claro, é matemática
pura). É útil saber um pouco de francês ou alemão, um pouco de história e
geografia, talvez até mesmo um pouco de economia. Mas um pouco de
química, física ou fisiologia não tem valor nenhum na vida comum.
Sabemos que a gasolina vai queimar sem conhecer a sua composição;
quando o carro quebra, nós o levamos para a oficina; quando estamos mal
do estômago, vamos ao médico ou à farmácia. Ou nós vivemos
empiricamente ou vivemos na dependência do conhecimento profissional de
outras pessoas.
Contudo, essa é uma questão secundária, uma questão de pedagogia,
que interessa apenas aos diretores de escola que têm de aconselhar os pais
que clamam por uma educação “útil” para os seus filhos. Naturalmente,
quando dizemos que a fisiologia é útil, não queremos dizer que a maioria
das pessoas deve estudar fisiologia, mas que o desenvolvimento da
fisiologia por parte de um punhado de especialistas aumentará o conforto da
maioria. As questões mais importantes para nós agora são: até que ponto a
matemática pode reivindicar para si essa espécie de utilidade? Que tipos de
matemática têm mais direito de fazer essa reivindicação? E até que ponto o
estudo intensivo da matemática, tal como é compreendido pelos
matemáticos, pode ser justificado apenas com base nesse fundamento.

21

A esta altura, já devem estar se patenteando as conclusões a que quero


chegar; portanto, vou formulá-las dogmaticamente de imediato e depois
desenvolvê-las um pouco. É inegável que boa parte da matemática
elementar - e uso a palavra “elementar” no sentido com que os matemáticos
profissionais a usam; incluem nela, por exemplo, um conhecimento
operacional razoável de cálculo diferencial e integral - tem considerável
utilidade prática. Essas partes da matemática são, no geral, bastante
aborrecidas; são justamente as partes que têm o menor valor estético. A
matemática “de verdade” dos matemáticos “de verdade”, a matemática de
Fermat, Euler, Gauss, Abel e Riemann, é quase totalmente “inútil” (e isso
vale tanto para a matemática “aplicada” quanto para a matemática “pura”).
Não é a “utilidade” do seu trabalho que dá sentido à vida de um matemático
profissional.
No caso, porém, tenho de refutar uma concepção errônea. Afirma-se às
vezes que os matemáticos puros orgulham-se da inutilidade do seu trabalho
(Eu mesmo fui acusado de sustentar essa opinião. Uma vez eu disse que “uma ciência pode ser
considerada útil se o seu desenvolvimento tende a acentuar as desigualdades existentes na
distribuição de renda ou promove ainda mais diretamente a destruição da vida humana”, e essa frase,
escrita em 1915, foi citada, a favor e contra mim, várias vezes. Foi, é claro, um artifício retórico
consciente, talvez desculpável, porém, na época em que foi escrito)
e vangloriam-se do fato
de ele não ter nenhuma aplicação prática. Essa acusação geralmente se
baseia numa declaração temerária atribuída a Gauss, que teria dito que, se a
matemática é a rainha das ciências, a teoria dos números é, por causa da sua
suprema inutilidade, a rainha da matemática - nunca consegui encontrar
uma transcrição exata. Tenho certeza de que a declaração de Gauss (se é
que foi realmente sua) foi grosseiramente mal interpretada. Se a teoria dos
números pudesse ser empregada para qualquer propósito prático e
evidentemente benéfico, se pudesse ser imediatamente dedicada ao aumento
da felicidade humana ou ao alívio do sofrimento humano, como pode a
fisiologia e até mesmo a química, é certo que nem Gauss nem nenhum outro
matemático seria tão tolo a ponto de menosprezar ou lamentar tais
aplicações. Mas a ciência trabalha para o mal assim como para o bem
(especialmente, é claro, em tempos de guerra), e tanto Gauss como outros
matemáticos menores têm todo o direito de alegrar-se com o fato de que
existe pelo menos uma ciência, a deles, cujo distanciamento das atividades
humanas comuns a conserva sempre nobre e pura.

22

Há outra concepção errônea contra a qual devemos nos precaver. É


perfeitamente natural supor que existe uma grande diferença de utilidade
entre a matemática “pura” e a matemática “aplicada”. Isso é uma ilusão:
existe uma distinção nítida entre os dois tipos de matemática, que explicarei
daqui a pouco, mas ela não afeta a sua utilidade.
No que a matemática pura e a matemática aplicada diferem entre si?
Essa é uma questão que pode ser respondida sem ambiguidades e sobre a
qual há consenso generalizado entre os matemáticos. Não haverá nada de
heterodoxo na resposta, mas ela precisa de uma pequena introdução.
As duas seções seguintes terão um leve sabor filosófico. Não será uma
filosofia profunda nem, de maneira nenhuma, crucial para as teses
principais; vou usar, porém, certas palavras que são usadas com muita
frequência num sentido filosófico definido, e o leitor poderá confundir-se se
eu não explicar como as hei de empregar.
Usei muitas vezes o adjetivo real tal como o usamos comumente na
conversação (O adjetivo inglês real foi traduzido por “de verdade”). Falei de
“matemática de verdade” e “matemáticos de verdade” como poderia ter
falado de “poesia de verdade” ou “poetas de verdade”, e continuarei a fazê-
lo. Mas usarei também a palavra “realidade”, e com duas conotações
diferentes.
Em primeiro lugar, vou falar da “realidade física”, e também nesse caso
vou estar usando a palavra no sentido comum. Uso a expressão “realidade
física” para referir-me ao mundo material, o mundo do dia e da noite, dos
terremotos e eclipses, o mundo que a ciência física tenta descrever.
Suponho que, até este ponto, leitor nenhum terá tido problemas com a
minha linguagem, mas agora estou me aproximando de um terreno mais
difícil. Para mim, e penso que para a maioria dos matemáticos, existe outra
realidade, que chamarei “realidade matemática”, e não há nenhum consenso
entre os matemáticos e filósofos quanto à natureza dessa realidade. Alguns
sustentam que ela é “mental” e que, em certo sentido, nós a construímos;
outros sustentam que ela é exterior a nós e independente de nós. Um
homem que conseguisse propor uma descrição convincente da realidade
matemática resolveria muitos dos problemas mais difíceis da metafísica. Se
conseguisse incluir a realidade física na sua descrição, os resolveria a todos.
Eu não discutiria nenhuma dessas questões aqui, mesmo que tivesse
competência para fazê- lo; portanto, vou formular dogmaticamente a minha
posição, para evitar incompreensões menores. Acredito que a realidade
matemática é exterior a nós, que a nossa função é descobri-la ou observá-la,
e que os teoremas que provamos e que chamamos de modo grandiloquente
de nossas “criações” são simplesmente as anotações das nossas
observações. Essa concepção foi sustentada, sob uma ou outra forma, por
muitos filósofos de elevada reputação, de Platão em diante, e vou usar a
linguagem que é natural para um homem que a sustenta. O leitor que não
gostar da filosofia pode mudar a linguagem; isso não há de fazer muita
diferença para minhas conclusões.

23

A contraposição entre a matemática pura e a matemática aplicada


revela-se do modo mais claro, talvez, na geometria. Existe a ciência da
geometria pura (É claro que nesta discussão, para todos os efeitos, devemos considerar
geometria pura o que os matemáticos chamam de geometria “analítica”), que inclui muitas
geometrias: a geometria projetiva, a geometria euclidiana, a geometria não-
euclidiana, e assim por diante. Cada uma dessas geometrias é um modelo,
um esquema de ideias, e deve ser julgada pelo interesse e pela beleza do seu
esquema específico. É um mapa ou imagem, o produto conjunto de muitas
mãos, uma cópia parcial e imperfeita (exata, porém, no âmbito que abrange)
de uma seção da realidade matemática. Mas a questão que agora tem
importância para nós é esta: existe pelo menos uma coisa de que as
geometrias puras não são uma imagem, e essa coisa é a realidade
espaciotemporal do mundo físico. Isso é evidente, uma vez que os
terremotos e eclipses não são conceitos matemáticos.
Isso pode parecer um pouco paradoxal para um leigo, mas é truísmo
para um geômetra, e talvez eu consiga torná-lo mais claro por meio de um
exemplo. Suponhamos que eu esteja dando uma aula sobre algum sistema
de geometria, tal como a geometria euclidiana comum, e que eu desenhe
figuras no quadro-negro para estimular a imaginação do meu público,
desenhos toscos de linhas retas, círculos ou elipses. É evidente, em primeiro
lugar, que a verdade dos teoremas que provo não é afetada pela qualidade
dos meus desenhos. Eles têm a simples função de dar a entender aos meus
ouvintes o que eu quero dizer; se isso acontecer, não haverá por que serem
redesenhados pelo desenhista mais habilidoso. São ilustrações pedagógicas
que não fazem parte do verdadeiro tema da aula.
Avancemos mais uma etapa. A sala onde estou dando aula faz parte do
mundo físico e tem ela mesma uma certa forma. O estudo dessa forma, e da
forma geral da realidade física, é uma ciência em si, que posso chamar
“geometria física”. Suponhamos agora que um dínamo fortíssimo, ou um
corpo maciço de enorme força gravitacional, seja introduzido na sala. Os
físicos nos dirão então que a geometria da sala mudou, que a sua forma
física foi leve, mas inequivocamente distorcida. Os teoremas que provei
terão se tornado falsos? Com certeza, seria bobagem supor que as provas
que apresentei seriam afetadas de uma maneira qualquer. Seria como supor
que uma peça de Shakespeare seria modificada quando um leitor derrubasse
chá em cima da página. A peça é independente das páginas em que foi
impressa e as “geometrias puras” são independentes das salas de aula ou de
qualquer outro detalhe do mundo físico.
Esse é o ponto de vista de um matemático puro. Os que se dedicam à
matemática aplicada, os físicos matemáticos, adotam naturalmente uma
visão diferente, uma vez que se preocupam com o próprio mundo físico,
que também possui a sua estrutura ou forma. Não podemos descrever essa
forma exatamente, como podemos definir a de uma geometria pura, mas
podemos dizer algo significativo a seu respeito. Podemos descrever, às
vezes com razoável precisão, às vezes muito grosseiramente, as relações
que se estabelecem entre alguns dos seus componentes e compará-las com
as relações exatas que existem entre os componentes de algum sistema de
geometria pura. Podemos localizar certa semelhança entre os dois conjuntos
de relações e, então, a geometria pura irá tornar-se interessante para o
físico; ela nos dará, até certo ponto, um mapa que “se encaixa nos fatos” do
mundo físico. O geômetra oferece ao físico todo um conjunto de mapas
para escolher. Um mapa, talvez, será mais compatível com os fatos do que
os outros; então, a geometria que propõe esse mapa em particular será a
geometria mais importante para a matemática aplicada. Posso acrescentar
que até um matemático puro se veria então mais apreciador dessa
geometria, já que não existe nenhum matemático tão puro que não sinta
nenhum interesse pelo mundo físico; mas, na medida em que sucumbisse a
essa tentação, ele estaria abandonando a sua posição puramente matemática.

24

Há outra observação que se impõe aqui e que os físicos podem achar


paradoxal, embora o paradoxo provavelmente já seja bem menor do que há
dezoito anos. Vou apresentá-la essencialmente com as mesmas palavras que
usei em 1922, num discurso para a Seção A da British Association. Meu
público de então era quase totalmente composto de físicos e é possível que,
por causa disso, eu tenha falado de modo um tanto provocativo; mas não
deixo de confirmar a substância do que eu disse.
Comecei por dizer que provavelmente existe menos diferença entre o
matemático e o físico do que geralmente se supõe, e que o fato mais
importante a esse respeito me parecia ser o seguinte: o de que o matemático
tem um contato muito mais direto com a realidade. Isso pode parecer
paradoxal, já que é o físico quem lida com a matéria geralmente chamada
“real”; um pouco de reflexão, porém, é suficiente para demonstrar que a
realidade do físico, seja ela qual for, tem poucos, ou nenhum, dos atributos
que o senso comum instintivamente confere à realidade. Uma cadeira pode
ser um conjunto de elétrons rodopiantes ou uma ideia na mente de Deus;
cada uma dessas definições tem os seus méritos, mas nenhuma se assimila
às indicações do senso comum.
A seguir, eu disse que nem os físicos nem os filósofos jamais
propuseram uma explicação convincente de o que é a “realidade física”, ou
de como o físico passa da massa confusa de fatos e sensações, que é o seu
ponto de partida, para a construção dos objetos que ele chama “reais”.
Assim, não se pode dizer que sabemos qual é o tema da física, embora isso
não nos impeça de compreender mal-e-mal o que o físico procura fazer. É
evidente que ele procura correlacionar o corpo incoerente de fatos brutos
que tem diante de si com algum esquema definido e ordenado de relações
abstratas, o tipo de esquema que ele só pode tomar emprestado da
matemática.
O matemático, por outro lado, trabalha com a sua própria realidade
matemática. Dessa realidade, como expliquei no parágrafo 22, tenho uma
concepção “realista” e não uma concepção “idealista”. De qualquer modo (e
era essa a minha proposição principal), essa concepção realista se coaduna
muito mais com a realidade matemática do que com a realidade física,
porque os objetos matemáticos são muito mais o que parecem ser. Uma
cadeira ou uma estrela não são, nem um pouco, o que parecem ser; quanto
mais pensamos nelas, mais indistinto se torna o seu contorno na névoa de
sensação que as envolve; mas “2” ou “317” não têm nada que ver com a
sensação, e as suas propriedades revelam-se com tanto mais clareza quanto
mais de perto os observamos. Pode ser que a física moderna se coadune
melhor com uma estrutura filosófica idealista - não acredito nisso, mas
alguns físicos eminentes acreditam. A matemática pura, por outro lado,
parece-me um rochedo contra o qual naufraga todo idealismo: 317 é um
número primo, não porque achamos que seja, ou porque nossas mentes são
formadas desta ou daquela maneira, mas porque assim á, porque a realidade
matemática é construída dessa maneira.

25

Essas distinções entre a matemática pura e a matemática aplicada são


importantes em si mesmas, mas têm pouca influência sobre a nossa
discussão da “utilidade” da matemática. Falei no parágrafo 21 da
matemática “de verdade” de Fermat e de outros grandes matemáticos; da
matemática que possui um valor estético permanente, como, por exemplo, o
melhor da matemática grega; da matemática que é eterna, porque suas
melhores manifestações podem, como as melhores manifestações da
literatura, continuar causando uma intensa satisfação emocional a milhares
de pessoas, milhares de anos depois. Esses homens foram todos, em
primeiro lugar, matemáticos puros (embora a distinção fosse, naturalmente,
bem menos nítida na época deles do que agora); mas eu não estava
pensando apenas na matemática pura. Conto Maxwell e Einstein, Eddington
e Dirac entre os matemáticos “de verdade”. As grandes conquistas
modernas da matemática aplicada aconteceram na relatividade e na
mecânica quântica, e esses assuntos são, pelo menos por enquanto, quase
tão “inúteis” quanto a teoria dos números. São as partes aborrecidas e
elementares da matemática aplicada, assim como são as partes aborrecidas e
elementares da matemática pura, que trabalham para o bem ou para o mal.
O tempo pode mudar tudo isso. Ninguém previu as aplicações das matrizes,
dos grupos e de outras teorias puramente matemáticas para a física
moderna, e pode ser que algo da matemática aplicada “elevada” venha a
tornar-se útil de uma maneira igualmente inesperada; até agora, porém, os
indícios apontam para a conclusão de que, numa matéria como na outra, é
só o que é banal e aborrecido que realmente conta na vida prática.
Lembro-me de que Eddington mie deu um feliz exemplo da falta de
atrativos da ciência “útil”. A British Association promoveu um encontro em
Leeds e pensou-se que os membros talvez gostassem de ouvir algo sobre as
aplicações da ciência à indústria de “lã pesada”. Mas as conferências e
demonstrações programadas foram um fiasco. Parece que os membros
(cidadãos de Leeds ou não) queriam entretenimento, e que “lã pesada” não
é um tema muito interessante. Assim, o compare- cimento a essas
conferências foi exíguo, mas os que fizeram conferências sobre as
escavações em Cnossos, sobre a relatividade ou sobre a teoria dos números
primos, ficaram encantados com o público que atraíram.

26

Que partes da matemática são úteis?


Em primeiro lugar, o grosso da matemática escolar, a aritmética, a
álgebra elementar, a geometria euclidiana elementar, o cálculo diferencial e
integral elementares. Temos de excluir certa parcela do que se ensina a
“especialistas”, como a geometria descritiva. Na matemática aplicada, os
elementos da mecânica (a eletricidade, tal como é ensinada nas escolas,
deve ser classificada como física).
Em seguida, uma proporção razoável da matemática universitária
também é útil, a parte que é na verdade um desenvolvimento da matemática
escolar com uma técnica mais acabada; e certa parcela dos temas mais
físicos, como a eletricidade e a hidromecânica. Devemos lembrar também
que uma reserva de conhecimento sempre é uma coisa boa, e que o mais
prático dos matemáticos estará em séria desvantagem se o seu
conhecimento for apenas o mínimo essencial para si; por essa razão,
devemos acrescentar mais um pouco em cada categoria. Nossa conclusão
geral, porém, é de que a matemática útil é a matemática que basta a um
engenheiro muito bom ou a um físico medíocre, o que equivale mais ou
menos a dizer que é a matemática sem nenhum valor estético específico. A
geometria euclidiana, por exemplo, é útil na mesma medida em que é
aborrecida - nós não gostamos da axiomática das paralelas, da teoria da
proporção nem da construção do pentágono regular.
De tudo isso se depreende uma conclusão bastante curiosa, a de que a
matemática pura é, no geral, muito mais útil do que a aplicada. O
matemático puro parece levar vantagem não só no lado estético, mas
também no lado prático. Isso porque o mais útil, acima de tudo, é a técnica,
e a técnica da matemática se aprende principalmente por meio da
matemática pura.
Desnecessário dizer que não estou menosprezando a física matemática,
um assunto esplêndido com problemas tremendos, no qual vicejaram as
imaginações mais refinadas. Mas a situação do estudioso comum da
matemática aplicada não é um pouco patética? Se ele quer ser útil, ele tem
de trabalhar de modo corriqueiro e não pode dar rédea solta à fantasia
mesmo quando deseja erguer-se às alturas. Os universos “imaginários” são
mais belos que esse universo “real” estupidamente construído, e os mais
belos produtos da fantasia de quem se dedica à matemática aplicada têm de
ser rejeitados, tão logo são criados, pela razão brutal mas suficiente de que
eles não se encaixam nos fatos.
A conclusão geral patenteia-se com bastante clareza. Se o conhecimento
útil, tal como o definimos a título provisório, é aquele conhecimento que,
agora ou num futuro relativamente próximo, tem boa probabilidade de
contribuir para o conforto material da humanidade, deixando de lado a pura
e simples satisfação intelectual, então a maior parte da matemática superior
é inútil. A geometria e a álgebra modernas, a teoria dos números, a teoria
dos agregados e funções, a relatividade, a mecânica quântica - nenhuma
delas resiste a essa prova, e não há nenhum matemático de verdade cuja
vida possa ser justificada com base nesse fundamento. Se essa é a prova,
Abel, Riemann e Poincaré desperdiçaram suas vidas; a contribuição que
deram para o conforto humano foi ínfima e o mundo seria um lugar
igualmente feliz sem eles.

27

Pode-se fazer a objeção de que o meu conceito de “utilidade” é muito


estrito, que eu a defini em função da “felicidade” ou do “conforto” apenas,
ignorando os grandes efeitos “sociais” da matemática em que autores
recentes, de correntes muito diversas, colocaram tanta ênfase. Assim,
Whitehead (que foi matemático) fala do “tremendo efeito do conhecimento
matemático sobre a vida dos homens, sobre os seus passatempos cotidianos,
sobre a organização da sociedade”, e Hogben (que é tão contrário ao que eu
e outros matemáticos chamamos de matemática quanto Whitehead é
favorável) diz que “sem um conhecimento de matemática, a gramática do
tamanho e da ordem, não será possível planejar a cidade racional em que
haverá tempo livre para todos e pobreza para ninguém” (e muito mais
coisas do mesmo gênero).
Não consigo acreditar que toda essa eloquência será suficiente para
consolar os matemáticos. A linguagem de ambos os autores é violentamente
exagerada, e ambos ignoram certas distinções muito evidentes. Isso é
perfeitamente natural no caso de Hogben, já que, confessamente, ele não é
um matemático; ele chama de “matemática” a matemática que consegue
compreender, e que eu chamei de matemática “escolar”. Essa matemática
de fato tem muitas utilidades que, como eu mesmo admiti, podemos chamar
de “sociais” se assim o quisermos, e que Hogben apoia com muitos apelos
interessantes à história das descobertas matemáticas. É isso que dá mérito
ao seu livro, já que lhe permite tornar claro, para muitos leitores que nunca
foram e nunca serão matemáticos, que a matemática é muito mais do que
eles pensavam. Mas ele não tem compreensão nenhuma da matemática “de
verdade” (como poderá perceber imediatamente qualquer um que leia o que
ele escreveu sobre o teorema de Pitágoras ou sobre Euclides e Einstein), e
muito menos a aprova (e o demonstra sem poupar esforços). A matemática
“de verdade”, para ele, é um mero objeto de piedade mesclada de desprezo.
Não é a falta de compreensão ou de solidariedade o problema de
Whitehead; só que ele esquece, no seu entusiasmo, distinções com as quais
está perfeitamente familiarizado. A matemática que tem esse “tremendo
efeito” sobre “os passatempos cotidianos dos homens” e sobre a
“organização da sociedade” não é a matemática de White- head, mas a de
Hogben. A matemática que pode ser usada “para fins comuns por homens
comuns” é ridícula, e a que pode ser usada por economistas ou sociólogos
não chega ao “padrão acadêmico”. A matemática de Whitehead pode afetar
profundamente a astronomia ou a física, pode afetar bastante a filosofia -
uma espécie de pensamento elevado sempre tem probabilidade de afetar
outra espécie de pensamento elevado -, mas seus efeitos sobre qualquer
outra coisa são mínimos. Seus “efeitos tremendos” não se deram nos
homens em geral, mas em homens como o próprio Whitehead.
28

Existem, então, duas matemáticas. Existe a matemática de verdade dos


matemáticos de verdade, e existe o que chamarei de matemática “trivial”,
por falta de uma palavra melhor. A matemática trivial pode ser justificada
por argumentos que agradariam a Hogben ou a outros autores de sua escola,
mas não cabe tal defesa para a matemática de verdade, cuja justificativa, se
houver, só poderá ser a justificativa da arte. Não há nada de paradoxal ou de
anormal nessa ideia, que é a ideia comumente sustentada pelos
matemáticos.
Temos ainda uma questão a considerar. Concluímos que a matemática
trivial, no geral, é útil, e que a matemática de verdade, no geral, não é; que a
matemática trivial “faz bem” em certo sentido, e a matemática de verdade
não faz; mas ainda temos de perguntar se algum dos tipos de matemática faz
mal. Seria paradoxal afirmar que um ou outro tipo de matemática faz o mal
em tempo de paz, de modo que somos levados a considerar os efeitos da
matemática sobre a guerra. É muito difícil discutir tais questões
imparcialmente no momento atual, e eu teria preferido passá-las por alto;
mas é inevitável que elas sejam debatidas em certa medida. Felizmente,
esse debate não precisa ser longo.
Há uma conclusão confortadora a que o matemático de verdade chega
facilmente. A matemática de verdade não tem nenhum efeito sobre a guerra.
Ninguém descobriu ainda nenhum propósito bélico a que possam servir a
teoria dos números ou a da relatividade, e parece muito improvável que
alguém o faça no futuro próximo. É verdade que há certos ramos da
matemática aplicada, como a balística e a aerodinâmica, que foram
desenvolvidos deliberadamente para a guerra e que exigem uma técnica
bastante elaborada; talvez seja difícil chamá-los “triviais”, mas nenhum
deles tem o direito de ser classificado como matemática “de verdade”. De
fato, são hediondamente feios e intoleravelmente aborrecidos. Nem
Littlewood conseguiu tornar a balística respeitável. E, se ele não conseguiu,
quem vai conseguir? Assim, o matemático de verdade tem a consciência
limpa; não há nada que possa se contrapor ao valor que seu trabalho possa
ter; a matemática, como eu disse em Oxford, é uma ocupação “inofensiva e
inocente”.
A matemática trivial, por outro lado, tem muitas aplicações na guerra.
Os especialistas em artilharia e os projetistas de aviões, por exemplo, não
conseguiriam fazer seu trabalho sem ela. E o efeito geral dessas aplicações
é evidente: a matemática facilita (ainda que não o faça de forma tão
ostensiva quanto a física ou a química) a guerra moderna, científica, “total”.
O fato de que isso é lamentável não é tão evidente quanto parece, já que
existem duas visões diametralmente opostas da guerra científica moderna.
A primeira e a mais evidente é que o efeito da ciência sobre a guerra é tão-
somente o de ampliar o seu horror, aumentando os sofrimentos da minoria
que tem de lutar e estendendo-os a outras classes. Essa é a concepção mais
natural e ortodoxa. Mas há uma concepção muito diferente, que também
parece bastante aceitável, e que foi formulada com muita força por Haldane
em Callinicus (J. B. S. Haldane, Callinicus: A Defence of Chemical Warfare, 1924). Pode-se
sustentar que a guerra moderna é menos horrível que a guerra dos tempos
pré-científicos, que as bombas provavelmente são mais misericordiosas que
as baionetas, que o gás lacrimogênio e o gás mostarda talvez sejam as armas
mais humanitárias já elaboradas pela ciência militar, e que a concepção
ortodoxa baseia-se unicamente no sentimentalismo (Não quero prejulgar a questão
com essa palavra tão mal usada; ela pode ser empregada de modo inteiramente legítimo para indicar
certos tipos de emoção desequilibrada. Muitas pessoas, é claro, usam “sentimentalismo” como um
termo pejorativo para designar os sentimentos decentes das outras pessoas, e “realismo” para
disfarçar a sua própria brutalidade),
faltando-lhe por completo o rigor de
pensamento. Pode-se afirmar também (embora essa tese não seja de
Haldane) que a equivalência dos riscos, que se espera da ação da ciência,
será salutar a longo prazo; que a vida de um civil não vale mais do que a de
um soldado, nem a de uma mulher mais do que a de um homem; que
qualquer coisa é melhor que a concentração de toda a selva- geria numa
classe específica; e que, em resumo, quanto mais cedo a guerra irrompe
“totalmente”, melhor.
Não sei qual dessas visões está mais próxima da verdade. Trata-se de
uma questão urgente e emocionante, mas não preciso discuti-la aqui. Ela diz
respeito apenas à matemática “trivial”, cuja defesa caberia a Hogben, não a
mim. A argumentação a favor da matemática dele pode estar um tanto
quanto abalada; a argumentação a favor da minha permanece incólume.
Na verdade, porém, há algo mais a dizer, já que existe pelo menos um
objetivo a que a matemática de verdade pode servir na guerra. Quando o
mundo enlouquece, o matemático pode encontrar na matemática um
sedativo incomparável. Isso porque a matemática, de todas as artes e
ciências, é a mais austera e a mais inacessível, e o matemático, dentre todos
os homens, é o que mais facilmente pode procurar refugio onde, como diz
Bertrand Russell, “pelo menos um dos nossos mais nobres impulsos pode
escapar ao exílio melancólico do mundo real”. Infelizmente, é necessário
fazer uma reserva muito séria a essa afirmativa - é preciso que o
matemático não seja muito velho. A matemática não é uma disciplina
contemplativa, mas criativa; ninguém pode tirar muito consolo dela quando
perdeu o poder ou o desejo de criar; e isso tende a acontecer bastante cedo
com os matemáticos. É uma pena, mas, nesse caso, ele não tem mesmo
muita importância, e seria tolice importar-se com ele.

29

Vou terminar com um resumo de minhas conclusões, formulando-as de


maneira mais pessoal. Disse no início que aquele que defende a sua
profissão descobrirá que está defendendo a si mesmo, e minha justificativa
da vida de um matemático profissional terá de ser, no fundo, uma
justificativa de mim mesmo. Assim, esta seção final será, em essência, uma
coletânea de fragmentos autobiográficos.
Não me lembro de ter jamais tido vontade de ser outra coisa que não um
matemático. Acho que sempre foi claro que minhas capacidades específicas
apontavam nessa direção, e nunca me ocorreu questionar o veredito dos
mais velhos. Não me lembro de ter sentido, quando garoto, nenhuma paixão
pela matemática, e a ideia que eu tinha da carreira de matemático estava
longe de ser nobre. Pensava na matemática em função dos exames e bolsas
de estudo: queria vencer os outros garotos, e aquela me parecia a maneira
mais decisiva de fazê-lo.
Tinha cerca de quinze anos quando (de um jeito bem estranho) minhas
ambições tornaram-se mais aguçadas. Existe um livro de “Alan St. Aubyn”
(“Alan St. Aubyn” era a sra. Frances Marshall, esposa de Matthew Marshall) chamado A
Fellow of Trinity, parte de uma série que trata do que se supõe ser a vida
universitária em Cambridge. Acho que é pior do que a maioria dos livros de
Marie Corelli, mas um livro que consegue inflamar a imaginação de um
garoto inteligente não pode ser de todo ruim. Há dois heróis, um herói
principal chamado Flowers, que é quase inteiramente perfeito, e um herói
secundário, um tipo bem mais frágil, chamado Brown. Flowers e Brown
encontram muitos perigos na vida universitária, mas o pior é um salão de
jogo em Chesterton (Na verdade, Chesterton não tem essas características pitorescas)
dirigido pelas srtas. Bellenden, duas jovens fascinantes, mas extremamente
malvadas. Flowers sobrevive a todos esses problemas, tira o segundo lugar
nas competições de matemática e o primeiro nas de estudos clássicos, e
torna-se automaticamente um fellow (como acho que acontecia então).
Brown sucumbe, arruina os pais, começa a beber, só é salvo do delirium
tremens durante uma tempestade pelas preces do decano, tem muita
dificuldade até para conseguir um diploma comum e, por fim, torna-se
missionário. A amizade não é abalada por esses acontecimentos infelizes e
os pensamentos de Flowers voltam-se para Brown, com uma comiseração
afetuosa, enquanto ele, pela primeira vez, come nozes e bebe vinho do
Porto no Sênior Combination-Room.
Ora, Flowers até era um sujeito decente (pelo menos tão decente quanto
“Alan St. Aubyn” era capaz de conceber), mas mesmo a minha mente, que é
bastante simples, recusou-se a considerá-lo inteligente. Se ele podia fazer
aquelas coisas, por que não eu? Em particular, a cena final no Combination-
Room fascinou-me completamente e, daquela época até o momento em que
isso aconteceu, a matemática significou para mim, antes de mais nada,
tornar-me um fellow do Trinity.
Quando fui para Cambridge, descobri logo que tornar-se fellow
implicava fazer um trabalho original, mas levou muito tempo para eu
formar uma ideia nítida de o que é a pesquisa. Na escola, como todo futuro
matemático, eu descobrira que muitas vezes conseguia fazer as coisas muito
melhor do que meus professores; e mesmo em Cambridge - claro que com
menos frequência -, descobri que às vezes conseguia fazer as coisas melhor
do que os professores da faculdade. Mas eu tinha mesmo uma ignorância
completa, mesmo quando prestei o Tripos, dos temas com que me ocupei
pelo resto da vida; e ainda concebia a matemática como uma disciplina
essencialmente “competitiva”. Quem me abriu os olhos pela primeira vez
foi o professor Love, que me deu aulas durante alguns trimestres e me
transmitiu a primeira concepção séria de análise. Mas a grande dívida que
tenho para com ele - ele se dedicava, no fim das contas, antes de tudo à
matemática aplicada - advém de ele ter me recomendado o famoso Cours
d’analyse de Jordan; nunca esquecerei a surpresa com que li essa obra
notável, a primeira inspiração para tantos matemáticos da minha geração; e,
quando a li, aprendi pela primeira vez o que realmente significava a
matemática. Daquela época em diante, me tornei, à minha maneira, um
matemático de verdade, com sadias ambições matemáticas e uma paixão
verdadeira pela matemática.
Escrevi um bocado durante os dez anos seguintes, mas pouca coisa que
tivesse alguma importância; não há mais de quatro ou cinco trabalhos de
que ainda possa me lembrar com alguma satisfação. As verdadeiras crises
de minha carreira vieram dez ou doze anos depois, em 1911, quando
comecei minha longa colaboração com Littlewood, e em 1913, quando
descobri Ramanujan. Meus melhores trabalhos desde então foram todos
entrelaçados com os deles, e é evidente que a minha associação com eles foi
o acontecimento decisivo da minha vida. Ainda digo a mim mesmo, quando
estou deprimido e me vejo obrigado a ouvir gente pomposa e cansativa:
“Bem, fiz uma coisa que você nunca seria capaz de fazer, que foi colaborar
com Littlewood e Ramanujan em condições de quase igualdade.” É a eles
que devo uma maturidade inusitadamente tardia; atingi o meu ponto
culminante um pouco depois dos quarenta anos, quando era professor em
Oxford. Desde então sofri aquela deterioração contínua que é o destino
comum dos velhos e, especialmente, dos matemáticos velhos. Um
matemático ainda pode ser bastante competente aos sessenta anos, mas é
inútil esperar que tenha ideias originais.
É evidente agora que a minha vida, seja qual for o seu valor, está
acabada, e já não há nada que eu possa fazer para aumentar ou diminuir o
seu valor. É muito difícil ser imparcial, mas eu a considero um “sucesso”:
as recompensas que recebi foram maiores, e não menores, do que as devidas
a um homem com o meu grau específico de capacidade. Fui titular de uma
série de cargos confortáveis e “dignos”. Tive pouquíssimos problemas com
a rotina mais aborrecida das universidades. Não gosto de “ensinar” e tive de
fazer isso muito pouco, já que me dediquei quase exclusivamente, nessa
área, à supervisão de pesquisas; adoro fazer conferências e as fiz para
turmas extremamente capazes; e sempre tive muito tempo para as
pesquisas, que foram a única grande felicidade permanente da minha vida.
Tive facilidade para trabalhar com os outros e colaborei em grande escala
com dois matemáticos excepcionais, e isso me permitiu dar à matemática
uma contribuição muito maior do que eu poderia razoavelmente esperar.
Tive minhas decepções, como qualquer outro matemático, mas nenhuma
delas foi muito séria nem me fez particularmente infeliz. Quando eu tinha
vinte anos, se tivessem me oferecido uma vida nem melhor nem pior do que
essa, eu teria aceitado sem hesitar.
Parece absurdo achar que eu poderia ter “me saído melhor”. Não tenho
nenhuma capacidade linguística ou artística e tenho pouquíssimo interesse
pela ciência experimental. Poderia ter sido um filósofo sofrível, mas não
muito original. Acho que teria sido um bom advogado, mas o jornalismo é a
única profissão, fora da vida acadêmica, em que me sentiria confiante
quanto às minhas chances. Não há dúvida de que acertei em me tornar
matemático, se tomarmos como critério o que se costuma chamar de
“sucesso”.
Minha escolha foi acertada, então, se o que eu queria era uma vida
razoavelmente confortável e feliz. Só que os advogados, operadores da
bolsa e corretores de apostas muitas vezes levam uma vida confortável e
feliz, e é muito difícil perceber de que modo o mundo fica melhor por causa
da existência deles. Existe algum aspecto sob o qual eu possa afirmar que
minha vida foi menos fútil que essas outras? Mais uma vez, parece-me que
existe somente uma resposta possível: sim, talvez, mas, se assim for, por
uma razão apenas.
Nunca fiz nada de “útil”. Nenhuma descoberta minha fez ou tem
probabilidade de fazer, direta ou indiretamente, para o bem ou para o mal, a
menor diferença para o conforto da vida neste mundo. Ajudei a formar
outros matemáticos, mas matemáticos iguais a mim, e o trabalho deles, na
medida em que eu os auxiliei, foi tão inútil quanto o meu. A julgar por
todos os critérios práticos, o valor da minha vida na matemática é nulo; e
fora da matemática é bem reduzido, de qualquer maneira. Tenho apenas
uma chance de escapar a um veredito de nulidade completa, caso julguem
que criei algo que vale a pena criar. Que criei algo é inegável; a questão é o
valor da minha criação.
O argumento a favor de minha vida, então, ou da vida de qualquer um
que tenha sido um matemático no mesmo sentido em que eu fui, é este: que
acrescentei alguma coisa ao conhecimento e ajudei outros a acrescentar
mais; e que essas coisas têm um valor que difere apenas em grau, mas não
em espécie, do valor das criações dos grandes matemáticos ou de qualquer
um dos outros artistas, grandes ou pequenos, que deixaram algum tipo de
lembrança atrás de si.

Nota

O professor Broad e o dr. Snow observaram que, para chegar a um justo


equilíbrio entre o bem e o mal feitos pela ciência, não devo ficar tão
obcecado pelos seus efeitos na guerra; e que, mesmo quando estou
pensando neles, devo lembrar que a ciência tem muitos outros efeitos
importantes, além dos puramente destrutivos. Assim (tratando da segunda
proposição primeiro), devo lembrar (a) que a organização de uma
população inteira para a guerra só é possível por meio de métodos
científicos; (b) que a ciência aumentou enormemente o poder da
propaganda, que é usado quase exclusivamente para o mal; e (c) que ela
tornou a “neutralidade” quase impossível ou sem significado, de modo que
não existem mais “ilhas de paz” de onde possam se irradiar aos poucos a
sanidade e a restauração após a guerra. Tudo isso, é claro, tende a reforçar
os argumentos contra a ciência. Por outro lado, mesmo se levarmos a
argumentação ao extremo, não é possível sustentar seriamente que o mal
feito pela ciência não é de todo contrabalançado pelo bem. Por exemplo,
mesmo que dez milhões de vidas se perdessem em cada guerra, o efeito
líquido da ciência ainda seria o de aumentar a duração média da vida. Em
resumo, meu parágrafo 28 é muito “sentimental”.
Não contesto a justiça dessas críticas, mas, pelas razões que formulo no
prefácio, achei impossível enfrentá-las no texto e contento-me em
reconhecê-las.
O dr. Snow também fez um comentariozinho muito interessante a
respeito do parágrafo 8. Mesmo se admitirmos que “Arquimedes será
lembrado quando Ésquilo tiver sido esquecido”, a fama matemática não
será um tanto “anônima” demais para ser inteiramente satisfatória?
Podemos formar um retrato razoavelmente coerente da personalidade de
Ésquilo (mais ainda, é claro, da de Shakespeare ou Tolstoi) a partir apenas
de suas obras, ao passo que Arquimedes e Eudoxo continuam a ser meros
nomes.
O sr. J. M. Lomas expressou essa ideia de maneira pitoresca quando
passávamos pela coluna de Nelson, na Trafalgar Square. Se eu ganhasse
uma estátua sobre uma coluna em Londres, preferiria que a coluna fosse tão
alta a ponto de deixar a estátua invisível ou baixa o suficiente para que os
traços fossem reconhecíveis? Eu escolheria a primeira alternativa; o dr.
Snow, provavelmente, a segunda.
Impresso nas oficinas da
Gráfica Palas Athena

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