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Luciene dos Santos

O inconsciente e tecnologia digital:


o real e o tempo – aproximações
The unconscious and digital technology:
the real and time – approximations
Luciene dos Santos

Resumo
O inconsciente, o real e as tecnologias digitais. Tecnologias digitais, articulação com as des-
cobertas do campo científico da física, formas de investimento no real. Como Freud tratou a
relação do inconsciente com a questão do tempo e ao conceituar e explicar o funcionamento
do inconsciente, Freud antecipou questões epistêmicas que reapareceram nos desdobramen-
tos posteriores da física quântica. A apropriação da produção do real e de uma concepção de
temporalidade que aproximam as tecnologias digitais à concepção de temporalidade no fun-
cionamento do inconsciente. Os gadgets na apropriação da produção do real como forma de
animar e engajar a vida resvala para a proposta de regulação e conhecimento totalizante sobre
os indivíduos e o mundo. Processos de digitalização e automação das práticas e atividades
humanas cotidianas produzindo alteração psíquica na apreensão perceptual das categorias
espaciais e temporais e, consequentemente, das relações entre os homens e entre estes e sua
ambiência.

Palavras-chave: Real, Inconsciente, Tecnologias digitais, Física quântica.

O real que ele já havia anunciado no Seminário 11


Na descrição de Lacan o real não “[....] é o com um complemento.
mundo, não há nenhuma esperança de al-
cançar o real pela representação” (Lacan, [...] a esse lugar onde o sujeito, na medida
[1975] 1980, p. 21). E prossegue com uma em que ele cogita, onde a res cogitans não o
observação, que no mínimo desperta certa encontra (Lacan, [1964] 1988, p. 52).
curiosidade:
Para resolver a questão de lugar que po-
Não vou argumentar aqui sobre a teoria dos deria implicar uma questão de localidade e
quanta, nem da onda, nem do corpúsculo. espacialidade, Lacan sugere a topologia ma-
Mas ponha-se a par por si mesmo, basta abrir temática, a forma como ele procura trabalhar
alguns livrinhos de Ciência (Lacan, [1975] as questões do inconsciente. Assim, Lacan
1980, p. 21). nos indica que, do ponto de vista epistêmico,
é solidário à concepção da teoria das ondas
E Lacan acrescenta que o real também em relação à concepção espaço-tempo. A
não é universal. teoria das ondas não atribui como campo,
Para definir o real, Lacan propõe: “o real propriedades a pontos de espaço-tempo. Ela
é o que retorna ao mesmo lugar”. Definição está em um espaço matemático abstrato de
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dimensões infinitas designado espaço de nua entre o antes e o depois, inseparável da


configurações. noção de espacialidade, permeou boa parte
Ao falar em representação, Lacan está se das leituras filosóficas e de algumas áreas
referindo aos modelos de abstração com que cientificas. Prevalece até os dias atuais, prin-
a filosofia clássica e a ciência conduziram cipalmente no âmbito do senso comum, que
suas investigações e problematizações sobre apreende de forma intuitivamente tais no-
a origem e o funcionamento do Universo, ções de temporalidade e por ela organiza a
portanto modelos de pensamento. Dessa vida.
forma, localiza a discussão no contexto epis- Essa perspectiva sofreu duras críticas a
têmico em relação à concepção de mundo de partir do século XIX e reconfigurou novos
que esses modelos teóricos encapam à com- aportes teóricos, especialmente, no campo
preensão metafisica decorrente dessa visão das ciências da física e da matemática. Esse
e a ideia de totalidade que irá encobrir tal século, à semelhança do nosso entusiasmo
leitura e dará a dimensão da possibilidade com as tecnologias digitais, também expe-
do conhecimento. Tal postura levará alguns rimentou um intenso frenesi em torno da
filósofos e cientistas a buscar pelo ideal de difusão das máquinas térmicas que em de-
universalidade, de localidade e realismo a corrência modificaram o cenário cultural e
partir da referência à objetividade da natu- científico. Questões ligadas ao tratamento
reza. do conceito de energia, como uma grandeza
Lacan considera que física capaz de conservar-se independente-
mente das transformações sofridas em um
[...] talvez a análise nos introduz a considerar sistema e, ao mesmo tempo, possuir condi-
o mundo como o que é: imaginário, e isso só ções de introduzir diferenças qualitativas ao
pode ser feito reduzindo a representação, ali sistema por contraí-lo e dilatá-lo e, dessa for-
onde está, ou seja, no corpo (Lacan, [1975] ma, produzir movimento orientaram novas
1980, p. 21). leituras.
Lacan ([1954-1955] 1985) considerou no
Embora o mundo físico possua proprie- Seminário 2 que a psicanálise não passou ao
dades reais, a interpretação desse mundo é largo dessa efervescência teórica propiciada
cognitivamente construída a partir das im- pelas descobertas da termodinâmica. A teo-
pressões perceptuais, e a descrição guia-se ria psicanalítica constituída naquele momen-
por uma perspectiva imaginária. A ciência, to se alinhou à produção de conhecimento
durante séculos, procurou descrever a ori- de seu tempo. E sob a égide da aproximação
gem e o funcionamento do mundo usando metafórica do corpo humano com as máqui-
modelos paradigmáticos que por muitas ve- nas, Freud estabeleceu os primeiros esforços
zes salvaguardavam em muito as impressões conceituais para explicitar o funcionamento
perceptuais e imaginárias. do psiquismo (investimento, carga e descar-
A problemática em relação ao tempo é ga, energia livre e energia ligada) equiparan-
premente a essas discussões, no sentido de do-os à teorização da termodinâmica e em
tentar negá-lo ou absorvê-lo nos modelos de seguida, ao assumir o funcionamento do psi-
cognição. Por se relacionar diretamente com quismo a partir das leis gerais da física, pro-
as experiências apreendidas pelos sentidos duziu os primeiros esforços de constituição
perceptuais e sensoriais, a descrição do tem- das teorias psicanalíticas ao formular o prin-
po na perspectiva linear e sua ligação com o cípio de prazer e o princípio da constância.
movimento numa perspectiva escoativa em Jô Gondar (1995) discute a importância
que o presente convoca o futuro e responde dessa aproximação epistêmica de Freud que,
ao passado em uma relação regular e contí- ao dar ênfase à termodinâmica, recai não

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sobre noção de força (ação instantânea e lo- nadas relações, determinadas possibilidades
cal sobre um corpo), mas sobre a noção de de articulação entre os elementos, segundo
energia (força atuando em certo período de uma direção exclusiva e instaura nesse mo-
tempo, envolvendo trocas, armazenamento e mento um tempo irreversível. Freud pensa
dissipação), o que confere primazia à noção a irreversibilidade do tempo a partir de mo-
de processo. mentos descontínuos e não na continuidade
Freud irá indiciar sua posição teórica ao do tempo como aparece problematizado na
se apropriar dos fundamentos da termodi- tradição filosófica. Ao introduzir a posteri-
nâmica de se afastar do modelo clássico da dade que se apresenta irreversível e descon-
dinâmica newtoniana, em que o tempo era tínua, o que irá apartá-lo do determinismo
apenas deslocamentos no espaço em condi- clássico que postulava causa e efeito e a equi-
ções ideais, sem atrito, sem mudanças, sem valência do passado, o funcionamento do
perdas. Mas vai avançar com o aporte teórico inconsciente freudiano não está comprome-
da psicanálise indo além dos fundamentos tido com o somatório de instantes, nem com
da termodinâmica em Para além do princí- o fluxo constante da duração.
pio do prazer (1920), com a introdução da
pulsão de morte, a fim de explicitar o caráter Tempo e espaço na experiência
pulsional da compulsão à repetição. tecnológica: correlações
A partir dos sonhos traumáticos e da com o inconsciente
compulsão à repetição, Freud formula a hi- O avanço da tecnologia digital trouxe uma
pótese de que ocorre uma evolução espon- experiência inédita para a humanidade: uma
tânea da vida no sentido da desordem e da relação perceptiva distinta da apreensão que
indiferenciação, apontando um alargamento temos com o tempo e o espaço, a forma como
das condições dos fundamentos conceituais organizamos a vida, espacializando o tempo.
teóricos que a física quântica só alcançou No senso comum, a dimensão qualitativa do
após desdobramentos de pesquisas no final tempo é descartada e o reduzimos a um mo-
do século XX e atualmente. delo espacial e quantificável. Nessa forma de
ponderação, o tempo perde a sua condição
Freud e as questões do tempo de irreversibilidade, que o faria caminhar
No contexto newtoniano o tempo só poderia numa só direção, estabelecendo uma dife-
ser concebido de forma reversível, ou seja, o rença qualitativa entre um antes e um depois.
antes e o depois são absolutamente simétri- As tecnologias digitais aproximam a dis-
cos, possibilitando uma equivalência entre tância do tempo e perdemos a impressão
causa e efeito. E Freud não irá conceber o perceptual de duração, assim não há antes,
inconsciente preso à reversibilidade, embora nem depois, mas apenas um presente pre-
tenha introduzido um novo conceito tem- sente. Tal experiência acelera a impressão
poral o Nachtraglich [posteridade], que se perceptual do tempo e temos a impressão
apoiava na concepção do inconsciente como de que todas as coisas convergem para um
estrutura, o que despreza a irreversibilidade tempo do imediato. Isso faz vacilar o imagi-
do tempo e se apoia nas articulações espa- nário e limita o simbólico porque tais cate-
ciais entre seus elementos. gorias necessitam da duração temporal para
No entanto, a estrutura só organiza algo sua operabilidade em um trabalho psíquico,
no momento em que se encarna, em que a o que leva à verificação da ampliação dos
virtualidade se atualiza a partir de certos ele- sintomas contemporâneos para uma arrep-
mentos, relações e funções, e não a totalida- sia sobre as certezas em relação à realidade,
de dos elementos que compõem o virtual. O um aumento do desamparo e da ansiedade.
que se atualiza no aqui e agora são determi- A arrepsia sobre as certezas no ceticismo pir-

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rônico era estabelecida como um estado de engenhocas mecânicas criadas para simplifi-
espírito que se abstém de qualquer ponto de car tarefas cotidianas.
vista que possibilite dar uma definição a res- Na França eram designados como gache-
peito da realidade, admitindo que qualquer ttes (peças mecânicas variadas). A existência
afirmação que visa à verdade apresenta jus- de máquinas de cálculos matemáticos re-
tificações e refutações igualmente legítimas. monta à Antiguidade, e ao longo da histó-
Lacan ([1975] 1985), na conferência La ria da humanidade as tentativas de criação
Tercera, afirma que o futuro da psicanálise de máquinas que acelerassem o processo de
dependerá do que ocorrer com o real, se os computação de dados foi uma necessidade
gadgets, por exemplo, se impuserem verda- premente, até o aparecimento do computa-
deiramente, “[...] que verdadeiramente che- dor.
guemos a estar animados pelos gadgets.” (La- As tecnologias digitais se aproximam
can, [1975] 1981, p. 186). O que Lacan quis cada vez mais da capacidade de representa-
dizer sermos ‘animados’? ção a partir do desenvolvimento de duas fa-
Para Kant (1989) o aparelho representa- culdades (conhecimento e julgamento) que o
cional (ânimo) é constituído por três facul- aparelho representacional (ânimo) dos seres
dades ou capacidades – de conhecer (ciên- humanos sustenta, de acordo com os argu-
cia) de apetecer (ética) e de julgar (estética). mentos de Kant apresentados em Crítica da
A primeira a razão é limitada pela represen- razão pura.
tação, a segunda a razão determina os parâ- Gunkel (2012) observa que o computador
metros da ação e na terceira a subjetividade não funciona como um imaterial e um ca-
percebe, e daí a vincula às outras duas. O nal mais ou menos transparente em que os
ânimo percebe algo das sensações. A nossa agentes humanos trocam mensagem, uma
intuição (sensação) é determinada a priori mediação técnica. Considera que o compu-
pelas formas de sensibilidade que são o es- tador participa e contamina o processo, ao
paço e o tempo. atuar ativamente nas mensagens, alterar e
As nossas experiências com as tecnolo- fornecer informações que não foram selecio-
gias digitais nos mostram que estamos sen- nadas, compostas ou mesmo controladas por
do cada vez mais animados pelos gadgets. humanos.
Mas o que são os gadgets? São equipamen- A inteligência artificial (IA), através da
tos complexos eletrônicos, de uso prático aplicação de um conjunto de algoritmos ali-
no cotidiano (celulares, smartphones, ta- mentados por dados, escala e poder de pro-
blets, notebooks, GPS, entre outros tipos de cessamento, funciona como um guia que re-
dispositivos). O mais dinâmico dos gadgets solve problemas ou tarefas, através da seleção
é o smartphone por sintetizar em um apa- algorítmica, processo em que são escolhidos
relho de proporções físicas reduzidas várias dados automaticamente com o objetivo de
funções (internet, TVs, câmera fotográfica, atribuir algum tipo de relevância a esses.
telefone, rádio, relógio, entre outras) e apli- Gunkel (2017) ainda reforça que o compu-
cativos em uma tecnologia smart (inteligen- tador participa ativamente das trocas comu-
te). nicativas como uma espécie de agente adi-
A palavra gadget designa um equipamen- cional e/ ou coconspirador (inter)ativo, por
to complexo criado para facilitar uma função exemplo, os bot de conversa. Através da IA
específica e útil no cotidiano, utilizada pelos a máquina pode conectar insights, identificar
cientistas do campo da engenharia eletrônica as oportunidades com base nos dados dispo-
em referência aos dispositivos comunicacio- níveis anteriormente na plataforma e realizar
nais, advém da tradição da cultura popular determinadas ações necessárias automati-
que usava a terminologia para descrever as camente. Há uma produção de sentido, que

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denota que uma interação conversacional se Citando Deleuze a autora conclui que o
estabeleceu com a máquina, pois esta é ca- tempo numa estrutura não vai de uma forma
paz de manter uma conversa ao entender um atual a outra, e assim não é possível engendra
contexto e ser responsiva ao reunir, associar -lo sucessivamente. O que interessa é o pro-
e sintetizar os dados e produzir uma narrati- cesso de atualizações súbitas e descontinuas
va, um texto ou mesmo realizar tarefas, ações que o inconsciente procede a partir de uma
e até mesmo transações. O computador for- direção exclusiva de irreversibilidade. Esse
maliza um espaço virtual que se relaciona tempo contraria toda a rede de memória e
diretamente com o atual. a cada instante institui um novo tempo, que
Observa-se uma correlação entre a for- emerge de forma irregular e inantecipável.
ma como as tecnologias digitais organizam No dizer de Jô Gondar (1995)
a relação com a temporalidade e o incons-
ciente. O inconsciente despreza não só qual- [....] o inconsciente não se atualiza sem ao
quer grandeza absoluta e quantificável que se mesmo tempo recriar o sentido do passado,
apresente como exterior ao sujeito, mas tam- irreversível porque novo a cada vez (Gon-
bém um tempo neutro em que ocorreriam dar, 1995, p. 69).
os eventos.
Jô Gondar (1995) chama a atenção que, é Lacan diz que Freud fica impressionado
em relação a essa concepção, que o incons- com aquilo que aparece como tropeço, des-
ciente é atemporal. O que está em jogo para falecimento, rachadura,
a autora é a temporalização, isto é, um modo
pelo qual o sujeito se produz e se organiza no [...] alguma outra coisa quer se realizar – algo
tempo. Um tempo intrínseco ao sujeito e às que parece como intencional, certamente,
operações que concorrem na sua produção. mas de uma estranha temporalidade (Lacan,
O sujeito é capaz de criar ou de secretar um [1964] 1979, p. 30).
tempo próprio e ao mesmo tempo ser cons-
tituído por ele. A potencialização das operações dos da-
Para a autora, nesse caso dos das tecnologias digitais tende a ampliar
com as novas descobertas recentes no campo
[...] devemos admitir que o tempo em que se da física quântica, o entrelaçamento quân-
dão os processos inconscientes é real e pró- tico, por exemplo, não é mais um modelo
prio ao seu modo de funcionamento e não abstrato teórico, mas a constatação empírica
uma abstração construída a partir desse fun- de medições realizadas em condições extra-
cionamento (Gondar, 1995, p. 66). terreste permitiu aos cientistas considerá-lo
uma realidade física constatável. A contri-
Jô Gondar (1995) considera que, para de- buição dessas investigações permitirá avan-
signar o campo do inconsciente, seria mais ço na proteção de dados (criptografia), mu-
preciso descrevê-lo em termos de virtualida- danças nas formas de lidar com os fluxos de
de e sublinhar que ele não preexiste às atuali- dados, volumes de dados que circulam nas
zações através das quais se manifesta. redes serão afetados e mostrará o poder e um
Relaciona-se ao plano do novo modo operacional dos novos computa-
dores quânticos.
[....] virtual/atual, ao invés de relacioná-lo É preciso ressaltar que o avanço
as dimensões do passado e do presente. Pois da tecnologia digital é intrínseco ao
estas sugerem ainda a ideia de sucessão tem- desenvolvimento das pesquisas espaciais.
poral, que o inconsciente despreza (Gondar, Os modelos teóricos abstratos das teorias
1995, p. 69). físicas e matemáticas a partir de complexas

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sínteses de equações se tornam verificáveis calcular) que possibilitaram cálculos rápi-


e aplicáveis em condições de ambiência dos e precisos, precipitaram esse quadro de
completamente distantes das experiências aparente regulamentação da vida, sustenta-
realizadas na Terra (condições de autovácuo, do por uma série de produções discursivas
ausência de gravidade ou a presença de advindas de um sobrevalorizado discurso
uma microgravidade no interior das naves tecnológico, cuja aparição se localiza nas úl-
e da estação espacial internacional de timas décadas do século XX e se aproximar-
pesquisas e por relações de espacialidade e mos aos comentários lacanianos, o discurso
de temporalidade diferentes das experiências tecnológico pode ser considerado um filhote
perceptuais e sensórias no ambiente do discurso científico.
terrestre). A teoria quanta assim como a teoria da
Ao observar como o Universo, ou multi- relatividade foi pródiga para a constituição
versos numa perspectiva mais abrangente, se das tecnologias digitais contemporâneas, o
comporta mudam-se os referenciais epistê- que confere às pessoas uma impressão per-
micos que norteavam as ciências modernas ceptual falsa de que há uma expansão do
que realizam um simples artefato experi- conhecimento sobre todas as coisas e que
mental submetido às condições do realismo desse saber democrático adquirido em um
local, imposto pelo ambiente possibilitado tempo-espaço virtual de interconexões esta-
a partir da atmosfera terrestre e a partir de riam todos os indivíduos padronizados, visi-
modelos teóricos e de equações simplifica- velmente estabelecidos por interações de um
das. comum a todos.
No entanto, Carlo Rovelli (2018) aponta
O que a psicanálise que, embora a teoria quanta tenha sucesso
tem a ver com a tecnologia experimental e tenha levado a aplicações que
Lacan adverte que o apimentando de tudo é mudaram a vida cotidiana, como o compu-
que nos próximos anos o discurso do analis- tador, um século depois de sua inscrição no
ta dependerá do real e não do contrário. O meio cientifico ainda está envolta “[...] em
advento do real não depende do analista em um véu de obscuridade e incompressibilida-
absoluto. O analista tem por missão fazê-lo de” (Rovelli, 2018, p. 134).
frente. Rovelli destaca que a teoria se apresen-
Mas a tarefa não será simples. Em 1975 ta para os investigadores como uma teoria
Lacan já advertia: pouco clara tanto é que diversas questões
continuam controversas. Portanto, parece
[....] há um discurso que está proliferando e tratar-se de pretensa a atribuição de que os
engendrando numerosos filhotes terrivel- computadores deterão um saber totalitário e
mente incômodos, a saber, o discurso cien- incontestável na produção de conhecimento,
tifico [...] ameaçando por sua presença, pela capaz de regular a vida em todas as suas di-
ideia de que tudo vai ser regularizado” pelas mensões.
teorias da física contemporânea, e alardeando Os algoritmos, sistemas automatizados de
que quanto mais soubermos, melhor será e intelecção, capazes de manipular dados bru-
assim todos saberão como produzir um indi- tos, ou seja, não elaborados, em dados ela-
víduo que “saberá marchar no mesmo passo borados, conectados e articulados e em certo
com todo mundo” (Lacan, 1975, p. 23). sentido interpretá-los, foram alardeados por
muitos cientistas, teóricos da comunicação
Os avanços da ciência, nas últimas déca- e filósofos como um meio de tradução das
das, com o suporte das tecnologias digitais, experiências com o real para o universo das
através dos computadores (máquinas de representações.

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Uma confiança desmedida de que a na- É que a Ciência parte daí. E por isso tenho
tureza está domesticada pelos processos de esperanças no fato de que passando por debai-
cognição alcançados pela humanidade e xo de toda a representação, talvez chegue-
de que o real se submete a uma decifração mos a ter algumas noções mais satisfatórias
operacional maquínica. O que os gadgets sobre a vida (Lacan, [1975] 1980, p. 187).
realmente estão produzindo é um abalo
nas formas de representação de mundo e Considerações finais
das relações perceptuais de tempo e espa- É necessário contrapor as posições dos
ço. discursos tecnológico e capitalista para
A ciência física, ao substituir a previsão compreender melhor a interação com as
precisa pelo cálculo probabilístico, desvela tecnologias digitais, do uso e da relação que
alguns dos campos desconhecidos do extra- se estabeleceu com os gadgets a partir de sua
terrestre tornando-o através das máquinas produção de real. E isso implica uma com-
de visão tecnológicas, as câmeras, os teles- preensão social sobre os procedimentos e as
cópicos e radiotelescópios de lentes poten- escolhas da tecnociência.
tes cada vez mais próximos da humanidade Para Hatewman (2015), se faz necessário
à medida que o faz visível aos nossos olhos, aliar a uma liberdade tecnocientífica, uma
por exemplo: um dos possíveis efeito da gra- democracia tecnocientífica que explicite:
vidade quântica – a explosão dos buracos
negros. [...] um empoderamento de pessoas que estão
A forma como o espaço extraterrestre se envolvidas na montagem e desmontagem de
comporta está sendo compreendida com mundos, que processos tecnocientíficos estão
muito mais clareza a partir do avanço dos lidando com alguns mundos em vez de outros
estudos em relação à ligação que existe en- (Hatewman, 2015, p. 64).
tre as partículas a uma distância, a teoria da
física quântica do emaranhamento quântico, E destituir-se da crença na regularidade
a termodinâmica de não equilíbrio, entre ou- advinda da ciência, uma vez que
tros aportes teóricos, embora quanto maior
o avanço das investigações sobre o espaço, [...] a democracia exige que as pessoas este-
mais se compreende que há algo real e mis- jam substancialmente envolvidas e se saibam
terioso inatingível por nossos sistemas de re- envolvidas e tenham poder para serem cobra-
presentação simbólicos. das e coletivamente responsáveis umas pelas
No entanto, a ciência é movida pela in- outras (Hatewman, 2015, p. 64).
tenção do capitalismo, assim, se observa
uma crença cada vez maior num processo Isso implica uma tomada de posição da
de expansão e colonização do espaço extra- psicanálise em denunciar para a sociedade
terrestre que envolve vultosos investimentos as implicações psíquicas, quando, por meio
financeiros em futuras viagens de exploração da ciência, forjamos novas relações do corpo
turísticas no espaço. Vende-se a sensação de como o Real ao querer manipular e ampliar
conquista e domínio do campo extraterres- através de próteses maquínicas as capacida-
tre. des sensíveis de ver, de ouvir, de tocar e as
Lacan ([1975] 1980), em La tercera, cha- intelectivas, porque o corpo não é só uma
mava a atenção sobre isso ao interrogar o matriz biologizante, há também um corpo
que a ciência nos dá. E responde que, em vez pulsional e, a partir do real da pulsão, pode-
de nos dar o que nos falta na relação de co- mos verificar que somos seres singulares na
nhecimento, a ciência nos dá dispositivos de forma de ser e de viver, ao contrário do que
consumo. apregoam a ciência e a tecnologia.

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O inconsciente e tecnologia digital: o real e o tempo – aproximações

Abstract Referências
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Luciene dos Santos

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Recebido em: 27/05/2020


Aprovado em: 15/06/2020

Sobre a autora

Luciene dos Santos


Psicanalista da Clínica do CPMG.
Candidata em Formação
no Círculo Psicanalítico
de Minas Gerais (2º tempo).
Bacharel em história e filosofia
pela Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG).
Especialista em cultura e arte barroca
pela Universidade Federal
de Ouro Preto (UFOP).
Mestre em comunicação social
pela Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG).
Pesquisadora em imagens, semiótica
e processos interativos e perceptuais
com as imagens e as telas digitais.

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Estudos de Psicanálise | Rio de Janeiro-RJ | n. 53 | p. 149–158 | julho 2020 157

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