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Resumo
O campo da comunicação é construído a partir de pesquisas em
Evandro José Medeiros Laia processos, nas quais início e fim não coincidem exatamente com
evandro.medeiros@ufop.edu.br a temporalidade das coisas pesquisadas. A partir desta premissa,
Orcid: https://orcid.org/0000- revisitamos a cartografia de inspiração deleuziana, cujo objetivo
0002-8463-3176. é acompanhar processos, e a cartografia de controvérsias, de
inspiração latouriana, na qual o objetivo é tornar visíveis as
Professor do Programa de Pós- associações entre humanos e não humanos. Inspirados nestas
duas abordagens e com base no modelo de comunicação
graduação em Comunicação da
transespecífica dos xamãs yanomamis, descrito no
UFOP. Doutor com Comunicação
perspectivismo ameríndio, propomos uma cartografia de
pela UFRJ. equívocos, cujo objetivo é identificar os pontos de tradução da
diferença de um modo menos redutor. A proposta leva em conta
os desafios de uma comunicação por vir em processos nos quais
é cada vez mais difícil estabelecer o início e o fim.
Palavras-chave: cartografia, comunicação, equívoco.
Abstract
The field of communication is built from research into
processes, in which the beginning and end do not exactly
coincide with the temporality of the things researched. Based on
this premise, we revisit Deleuzian-inspired cartography, whose
objective is to follow processes, and the Latourian-inspired
cartography of controversies, in which the objective is to make
associations between humans and non-humans visible. Inspired
by these two approaches and based on the transpecific
communication model of Yanomami shamans, described in
Amerindian perspectivism, we propose a cartography of
equivocations, whose objective is to identify the translation
points of difference in a less reductive way. The proposal takes
into account the challenges of communication to come in
processes in which it is increasingly difficult to establish the
beginning and end.
Keywords: cartography, communication, equivocation.
desperta o interesse da Comunicação e aponta para produzido de modo maquínico, mas não no sentido
uma pesquisa na diferença. Tal tarefa passa de uma divisão entre o que é humano e o que é
justamente pelo lugar que, a partir da obra de artificial, mas sim no de acoplamentos. Tudo é
Deleuze e Guattari, Eduardo Simonini (2019) produção maquínica de desejo, a partir de
chama de "trama maquínica", envolvendo, além das acoplamentos, que se fazem e se refazem,
conexões mecânicas das coisas, também as relações, configurando realidades que não se sustentam em
os afetos e os desdobramentos que unem os entes de nenhuma essência, em nenhuma verdade inaugural,
uma relação, de um devir, na forma do rizoma, em nenhum fundamento centralizador. Mais
conceito que aparece logo na Introdução da célebre importante que achar uma verdade é seguir o rizoma
obra Mil Platôs. O rizoma é conceito da Botânica: para descobrir que efeitos de verdade foram
não existe um ponto central de enraizamento onde ativados, produzidos por aquelas conexões.
está a centralidade daquela existência, o que existe
No movimento de cartografar realidades temos que o
é um emaranhado de conexões heterogêneas. "Os que está em jogo é algo muito mais complexo do que
bulbos, os tubérculos, são rizomas. Plantas com raiz reduzir a dinâmica cartográfica a um método de
ou radícula podem ser rizomorfas num outro sentido pesquisa. Isso porque no processo da cartografia não
basta ao pesquisador se munir de instrumental
inteiramente diferente (...). Até animais o são, sob metodológico; a principal atitude que o mesmo deve
sua forma matilha; ratos são rizomas" (DELEUZE assumir é tanto epistemológica quanto existencial, ao
E GUATTARI, 1996, p.14). considerar que não existe um mundo independente das
tramas que o tecem. (SIMONINI, 2019, p. 5-6).
Os autores elencam princípios do rizoma, de
modo sistemático, e a partir deles desenvolvem uma Abandona-se a ideia de que há uma verdade lá
concepção de pensamento difuso, sem um ponto fora que precisa ser descoberta, explorada à custa de
central de organização. Um destes é o princípio de tirar a subjetividade das coisas. Na ciência moderna,
cartografia e de decalcomania (DELEUZE E chamamos o que observamos de objeto de pesquisa,
GUATTARI, 1996, p.20): se as malhas rizomáticas investindo numa epistemologia cuja baliza está no
não possuem profundidade a ser explorada, o corte, na cisão entre a coisa observada e suas
importante são as linhas que indicam o movimento conexões com todas as outras, ao contrário do que
que traça um mapa de intensidades e afetos a Bird-David (1999, p.77, tradução do autor) chama
comporem territórios existenciais: este é o conceito de epistemologia relacional, "sem os horizontes
de cartografia, tomado por empréstimo da separados de uma visão relativa", que se constitui
Geografia. Esta fabulação conceitual é importante como um modo de produzir conhecimento sobre o
para a construção de uma abordagem que desafia o mundo. "Os dois caminhos são reais e válidos. Cada
modo comum, hegemônico de produção de um tem seus limites e suas vantagens" (BIRD-
conhecimento a partir da redução da diferença. DAVID, 1999, p.78, tradução do autor), porém,
Preciosa (2010, p.27) alerta que há uma diferença
Estamos acostumados a nos apoiar em formas de
pensar que julgam, analisam, sistematizam e ignoram
considerável de investimento subjetivo no segundo
as incalculáveis surpresas que podemos provar diante modo de produção:
das ideias que nos surgem como rumores e nos
engatam numa conversa infinita e invisível com o Conectar-se às forças caóticas da vida, que contagiam
barulho paradoxal da vida se manifestando não em o pensamento, exige coragem de se libertar de um
linha reta, mas de viés, trajando seus inacabamentos. modelo profissional de seu exercício. Um modo de
(PRECIOSA, 2010, p. 18). conhecimento escoltado por um saber formal, capaz de
articular discursos competentes e desonestos do ponto
Deleuze e Guattari (1996, p.46) apostam na ideia de vista existencial.
de máquina desejantes para substituir a noção do
A cartografia busca investigar um processo de
inconsciente edipiano, sugerindo que o desejo é
produção. Por isso mesmo não há um conjunto de
(BARROS E KASTRUP, 2009, p. 55). Tal operação com a parafernália técnica que agencia a produção
de separação das coisas entre sujeito e objetos é de discursos sobre o mundo. Para defender a TAR
empreendida pela experimentação científica, como uma teoria da comunicação, André Lemos
"operando a hierarquização das invenções, ou, (2013) a descreve como uma “sociologia da
antes, convertendo uma delas na única mobilidade” que busca identificar a associação entre
representação legítima do fenômeno em questão". atores, mediadores ou intermediários, e a circulação
Ao contrário do método da ciência moderna, a de agência pela rede, entendendo as estabilizações
cartografia não aparta o objeto/sujeito de pesquisa que daí surgem como configurações temporárias
de suas conexões com o mundo, mas, ao contrário, que se desfazem com o surgimento de novas
busca mapear a rede de forças a qual o fenômeno controvérsias.
está ligada, sem o que Bruno Latour (1994) chamou A ideia de rede sociotécnica ocupa o lugar do
de purificação, um processo de construção da conceito clássico de sociedade como uma estrutura,
realidade, típico da modernidade, de separação de referência, um a priori que, para Bruno Latour
humanos e não humanos em zonas ontologicamente (2005, p.4), foi a primeira solução encontrada, nas
opostas. Por isso, embora ainda esteja focada ciências sociais, para explicar os modos de
predominantemente na relação entre humanos, a existência na modernidade ocidental, mas que não
perspectiva cartográfica dialoga com a teoria ator- dá conta de captar os fluxos para além do humano
rede (TAR), esta sim, que toma humanos e não criados pelo humanismo ocidental. Conceitos como
humanos sem distinção, conferindo a mesma sociedade, ordem social, estrutura social ou
importância a todos os atores, sem hierarquias dimensão social, não levam em conta uma miríade
prévias. de outros existentes que interferem e/ou produzem
esse social.
2 Mapear redes sociotécnicas
Durante o último século, durante o qual as teorias
sociais foram elaboradas, foi importante distinguir
Um bom olhar para a cartografia como uma esse domínio da realidade de outros domínios, como
abordagem potente na lida com fenômenos economia, geografia, biologia, psicologia, direito,
comunicacionais emergentes, com vínculo nos ciência e política. (…) Essa posição padrão tornou-se
senso comum não apenas para cientistas sociais, mas
acontecimentos do dia-a-dia, é a partir das também para atores comuns por meio de jornais,
experiências de mediação inauguradas pela educação universitária, política partidária, conversas
de bar, histórias de amor, revistas de moda, etc.
digitalização e pelo uso de smartphones e outros
(LATOUR, 2005, p. 4-5, tradução nossa).
gadgets, acionando, inicialmente, a teoria ator-rede
(TAR) (LATOUR, 2005; LEMOS, 2013). Tal A segunda solução, proposta por Latour e pelos
perspectiva aposta numa sociologia que não fundadores do science studies, foi a ideia da
antropocêntrica e investe nos elementos não sociedade como uma rede de relações, associações,
humanos envolvidos na construção de sendo o social o fluxo de agências que circulam
sociabilidades que vão além do binômio sujeito- entre os atores desta rede. O social é visto aqui como
objeto, considerando que humanos e não humanos tudo aquilo que pode ser reunido, agregado, não
exercem agenciamento mútuo na construção de havendo nada que possa ser considerado assim, a
relações que seriam, estas sim, de fato, o que priori. Nada é sociedade e tudo é sociedade: o status
chamamos de sociedade. Nesta abordagem vai depender do mapeamento das associações, que
relacional, um conceito, como o de meio de também podem mudar.
comunicação, por exemplo, seria uma rede
É possível permanecer fiel às intuições originais das
sociotécnica, formada por uma conjunção entre ciências sociais redefinindo a sociologia não como a
humanos e não humanos, incluindo aí toda relação ‘ciência do social’, mas como o rastreamento de
associações. Nesse sentido do adjetivo, social não social se agregando. A proposta não requer teorias
designa uma coisa entre outras coisas, como uma
ovelha negra entre outras ovelhas brancas, mas um tipo ou métodos específicos, frames que balizem o olhar,
de ligação entre coisas que não são sociais em si de antemão. O objetivo é acompanhar atores,
(LATOUR, 2005, p.6, tradução nossa). compreender seus programas de ação, as formas de
mediação e a constituição de redes, ou seja,
As associações, propriamente ditas, em
acompanhar rastros via observação participante,
constante rearranjo, é que formam o que podemos
entrevistas, netnografia, produção visual, revisão
chamar então de social. Latour nomeou esta
documental ou qualquer outro método/técnica que
abordagem de “sociologia das associações”, em
se revele adequado para visualizar ou recuperar a
contraposição ao que ele chamou de “sociologia do
visualização da rede sociotécnica em questão. A
social”: esta busca identificar a circulação de
proposta da cartografia das controvérsias, de
agência pela rede, que inclui humanos e não
inspiração latouriana, é tornar visíveis as redes
humanos da mesma maneira, entendendo as
observadas e mapear seus fluxos de agência, antes
estabilizações que daí surgem como caixas pretas,
ou depois do fechamento delas em caixas pretas,
configurações temporárias que se desfazem com o
configurações mais ou menos estáveis.
surgimento de novas controvérsias.
André Lemos (2013, p.127) dá como exemplo
Após a resolução da controvérsia, tudo se estabiliza, uma controvérsia envolvendo gandulas em um jogo
passa para um fundo e desaparece, até o momento em de futebol. Na situação mostrada, ao invés de
que novos problemas apareçam e a rede se torne mais
uma vez visível. Um aparelho de ar condicionado, por atuarem como intermediários, apenas recolhendo as
exemplo, é uma caixa-preta se está funcionando sem bolas e as devolvendo aos jogadores, eles
chamar a atenção. Parece uno, indivisível, compacto.
Quando quebra, vemos os diversos mediadores
começaram a atrasar ou adiantar a entrega,
estabilizados que o compõe: peças, regras de garantia, dependendo do time em questão, conforme um
disponibilidade de técnicos ou serviços especializados, acordo combinado anteriormente. No caso, de
problemas de engenharia ou de projeto etc. (LEMOS,
2013, p. 55). intermediários eles passaram a mediadores,
actantes, alterando o andamento da partida. A
Ou seja, as controvérsias apontam para uma controvérsia se fez assim, tornando visíveis objetos,
disputa pela estabilização, portanto, observar esse abstrações e todos os outros invisíveis até então: as
fator de desagregação e o processo posterior de confederações de futebol, o tribunal desportivo, os
reagregação deste social estendido para além do patrocinadores. Num outro exemplo, o autor explica
humano é o melhor momento para mapear redes como rastros deixados no tempo e no espaço podem
sociotécnicas. ser mapeados com a CC, usando o telefone celular
Assim, o segundo aporte que apresentamos para como exemplo:
uma mirada cartográfica no campo da comunicação
vem da própria TAR, cuja operacionalização como Podemos identificar a natureza do plástico e toda a
indústria petroquímica por trás, os circuitos eletrônicos
acionamento metodológico é sistematizada, por e o trabalho dos engenheiros, o silício sendo extraído
André Lemos (2013, p.110), na experiência da e processado, as antenas colocadas para captar as
ondas de rádio nos envolvendo de forma invisível (...),
cartografia das controvérsias (CC), “um conjunto de as lentes que, polidas e trabalhadas, permitem ao
técnicas para explorar e visualizar polêmicas, objeto fazer fotos e vídeos, o projeto de usabilidade da
questões emergentes em determinados interface e o desenho do aparelho fazendo dele um
objeto que cola ao corpo e às pontas dos dedos, o
agrupamentos, o movimento, a circulação da ação e estoque de energia antecipando o tempo futuro de uso
a fluidez de mediações, revelando as diversas na bateria, as leis e concessões do Estado que
dimensões que compõem uma rede sociotécnica”. É permitem fazê-lo funcionar, as empresas que vão dar
garantia e consertá-lo quando algo acontecer, o
nos processos, nas redes em movimento que a mercado que vai me fazer consumi-lo. (LEMOS, 2013,
tradução está acontecendo, onde é possível ver o p. 127).
sem distinção. Porém, a partir deste ponto avança ALBERT, 2015), o xamã yanomami que, assim
para uma proposta que leva "absolutamente a sério como seus pares, se comunica tanto com animais,
árvores, rios, quanto com a chuva, com a seca e
o que dizem (...) os índios e todos os demais povos
mesmo com as epidemias. Kopenawa conta seu
‘menores’ do planeta, as minorias extranacionais processo de iniciação, feito por seu sogro, um
que ainda resistem à total dissolução pelo poderoso xamã, incluindo a inalação sistemática do
pó de yãkoana, uma mistura de raízes sagradas que
liquidificador modernizante do Ocidente”
provocam os estados necessários para estas
(KOPENAWA E ALBERT, 2015, p. 15), como nos operações cosmológicas. É assim que chegam os
alerta Eduardo Viveiros de Castro. Isso xapiri, os espíritos da mata, os cosmopolíticos que
agenciam as conexões.
pressupõe
Kopenawa nos lembra que, assim como o
superar as interpretações folclorizantes das vozes
exercício do estudo e da reflexão é difícil para os
indígenas emergentes dentro e fora do cenário brancos, o xamanismo é também para ele um
intelectual contemporâneo, tomando suas palavras não aprendizado rumo a um modo de acessar e
como metáforas, mas como conceitos, ou análogos de
conceitos, como preferimos chamar estes operadores comunicar o mundo.
de pensamento que não passaram pelo liquidificador
modernizante da academia. (LAIA; GUIMARÃES, Tudo isso é tão difícil quanto aprender a desenhar
2022, p. 3). palavras em pele de papel. A mão fica dura no começo,
o traço muito torto. É mesmo medonho! Por isso, é
A TAR é o ponto de partida para pensar a rede preciso afinar a língua para os cantos dos espíritos
tanto quanto é preciso amolecer a mão para desenhar
comunicacional envolvendo humanos e não letras (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 172).
humanos como um ecossistema em constante
movimento, no qual os atores se impactam É o xamã que media os acontecimentos,
mutuamente a partir de suas ações. A partir disso, a conversa com as gentes de outras espécies e
lógica de existência dos povos originários do Brasil, comunica pela diferença, traduzindo os mundos de
especialmente os yanomamis, é inspiração para um modo não reducionista, neste ecossistema no
pensar, nesta rede, a lógica de hiperconexão, ou seja, qual todas as coisas se comunicam incessantemente.
da conexão de todas coisas, de um modo de existir A própria obra é um exercício xamânico de
em que todos importam, em uma perspectiva forjada comunicação com outra humanidade, não com a
em pesquisas teóricas e incursões empíricas a partir, compartilhada, da floresta, mas com esta fundada no
especialmente, do perspectivismo ameríndio. Nesta humanismo antropocêntrico. Desta comunicação
teoria antropológica, Eduardo Viveiros de Castro transespecífica, Eduardo Viveiros de Castro (2004)
(2004) define o xamanismo yanomami como uma faz emergir a teoria do perspectivismo ameríndio,
guerra comunicacional, um trabalho incessante de que ele explica a partir de uma passagem:
tradução não redutora da diferença, num esforço de
Penso no tipo de mito em que, por exemplo, o
comunicação entre mundos, já que todos os protagonista humano se perde no meio da floresta e
existentes importam, ainda que habitem cosmos chega a uma aldeia estranha. Lá os habitantes
convidam-no a beber e se refrescar com uma cabaça
diferentes. Assim como humanos conectam-se a não de “cerveja de mandioca”, que ele aceita com
humanos, os não humanos também o fazem entre si, entusiasmo e, para sua surpresa horrorizada, o anfitrião
sejam estes objetos, animais, plantas, rios, colocou ele na frente uma cabaça cheia de sangue
humano. (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 9,
fenômenos climáticos, ou o que mais existir. tradução nossa).
Esta cosmopolítica pressupõe uma certa
humanidade compartilhada que aparece traduzida Depois de ser capturado por outro ponto de vista,
nas palavras de Davi Kopenawa (KOPENAWA E o humano passa a ver os animais como pares, como
comunicação por excelência entre diferentes posições termina. As abordagens cartográficas, ao contrário
de perspectiva. (VIVEIROS DE CASTRO, 2004, p. 5,
tradução nossa). de outras metodologias, assumem a condição
processual como parte do trabalho, apostando nas
Este tipo de controvérsia desestabiliza redes a relações espaço-temporais do campo como
partir do deslocamento da operação unirreferencial indicadores do caminho de entrada e de saída.
para uma experiência multirreferencial de invenção Este caminho, é importante reforçar, está
de mundos, tornando visível a diferença invisível. marcado por uma perspectiva construtivista, ou seja,
Embora seja válido e já aborde a questão, que considera as coisas do mundo e os sentidos
entendemos que é importante reforçar o caráter da conferidos a eles como construções, nada está
cartografia que propomos para além do social, logo, pronto de antemão, não existe um a priori. A partir
para além do humano. A proposta caminha por deste ponto em comum, e retomando a apresentação
experimentos que viabilizem um caminho para além das propostas, construídas ao longo das sessões
de uma abordagem materialista da ideia de rede deste artigo, temos o seguinte inventário:
sociotécnica, buscando uma alternativa viável para 1) A cartografia de inspiração deleuziana,
pensar um novo tipo de materialidade conectada, ou apresentada a partir das leituras de Virgínia Kastrup
seja, uma substância que é algo no meio do caminho e Eduardo Simonini, acompanha processos de
entre matéria e informação, um tipo de construção de realidades, o que nos oferece um
transorganicidade, já que a digitalização tornou caminho fecundo para pensar como identidades se
“impossível pensar as coisas e os objetos como nos forjam a partir de processos comunicacionais,
apresentou a filosofia ocidental, isto é, como matéria midiáticos ou não, envolvendo, especialmente,
externa e incomunicante”, nas palavras de Massimo humanos - mesmo na interação com o ambiente o
Di Felice e Thiago Franco (2017, p.83). O foco está no humano;
entendimento do xamanismo como um modelo de 2) A cartografia das controvérsias, proposta de
comunicação pela diferença e como tecnologia Bruno Latour e operacionalizada por André Lemos,
ancestral constitui-se, assim, um "rumor discreto" torna visíveis as interações envolvendo humanos e
(PRECIOSA, 2010), abrindo caminho para não humanos, em condição de igualdade, na teia
pensarmos a suspensão da dicotomia orgânico- chamada de rede sociotécnica, em contraposição ao
maquínico como algo para além de um remendo conceito de sociedade, que leva em conta apenas os
ontológico. humanos - tal concepção oferece um importante
aporte para pensar interações contemporâneas,
4 Contribuições possíveis quando os objetos técnicos da comunicação ganham
cada vez capacidade de agenciamento;
"Alguém me responda, por favor: quando é que 3) A cartografia de equívocos, que propomos a
uma experiência acaba?". A pergunta que abre um partir de incursões empíricas e teóricas inspiradas no
dos capítulos de Rumores discretos da modelos de comunicação xamânica descrita no
subjetividade, de Rosane Preciosa (2010, p.79), perspectivismo ameríndio, em Eduardo Viveiros de
cabe bem neste ponto em que tentamos sumarizar as Castro, identifica e mapeia os pontos de tradução da
possibilidades de uma abordagem para mirar diferença de um modo menos redutor, processo que
processos comunicacionais. Retomando a nomeamos de comunicação pelo equívoco - esta
introdução deste artigo, lembramos que um dos abordagem constitui-se um passo além rumo a uma
desafios colocados para a pesquisa em comunicação comunicação que inclua humanos e não humanos e
é justamente o fato de que abordamos, comumente, que leve em consideração a conexão de todas as
processos, ou seja, nunca sabemos quando precisar coisas, frente aos desafios dos fenômenos
o momento em que o fenômeno começa e em qual comunicacionais complexos por vir, agenciados,
especialmente, pela alteração dos nossos modos de DESCOLA, Philippe. Outras naturezas, outras
culturas. São Paulo: editora 34, 2016.
existência.
A expectativa é que a proposta ofereça DI FELICE, Massimo; FRANCO, Thiago. Ecologias
possibilidades para capturar fenômenos em conectivas: o animismo digital, a ecologia
informatizada e a matéria em rede. In: DI FELICE,
movimento, a configuração e reconfiguração de Massimo; PEREIRA, Eliete. (orgs.) Redes e ecologias
redes sociotécnicas, não apenas, mas especialmente comunicativas indígenas: as contribuições dos povos
no campo da comunicação. Para além dos originários à Teoria da Comunicação. São Paulo:
Paulus, 2017, p.63-88.
acoplamentos rizomáticos e das associações em
rede, os equívocos revelam-se a partir da KASTRUP, Virgínia. O funcionamento da atenção no
trabalho do cartógrafo. In: PASSOS, Eduardo;
experiência da conexão. A cartografia de equívocos KASTRUP, Virgínia; ESCÓCIA, Liliana da (orgs.).
não propõe uma ruptura em relação aos dois Pistas do método da cartografia: Pesquisa-
modelos apresentados anteriormente, ao contrário intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre:
Sulina, 2009, p.32-51.
disso, está em completa consonância com a proposta
de enxergar as ambiências como rizomas ou redes KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do
sociotécnicas, a diferença é que o limite se expande: céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo :
Companhia das Letras, 2015.
se tudo está conectado, não apenas humanos e
objetos estão em relação, mas todos os existentes. KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
As investidas cartográficas orientadas por uma
comunicação pelo equívoco revelam as mediações, KRENAK, Ailton. O amanhã não está à venda. São
os equívocos constituem-se então como lugar Paulo: Companhia das Letras, 2020.
privilegiado para observar a circulação das agências LAIA, Evandro José Medeiros Laia; NETO, Fernando
nas conexões rizomáticas, nas redes sociotécnicas. de Souza. Da pandemia à xawara: mapeamento das
Assim, constituem-se como um locus adequado para notícias de TV a partir do jornalismo em equívoco. In:
Alemur, vol. 7, n 2, 2022, p.18-30. Disponível em:
acessar processos comunicacionais, não apenas nos https://periodicos.ufop.br/alemur/article/view/5231/411
ecossistemas midiáticos, mas também em processos 8. Acesso em: 15 jan. 2023.
de comunicação lato sensu.
LAIA, Evandro José Medeiros; GUIMARÃES, Lara
Linhalis. Coisas, mundos, traduções: dobras para uma
Referências comunicação pelo equívoco. In: Contracampo, vol.
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BARROS, Laura Pozzana de; KASTRUP, Virgínia. https://periodicos.uff.br/contracampo/article/view/5277
Cartografar é acompanhar processos. In: PASSOS, 5/33567. Acesso em: 25 dez. 2022.
Eduardo; KASTRUP, Virgínia; ESCÓCIA, Liliana da
(orgs.). Pistas do método da cartografia: Pesquisa- LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. São
intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Paulo: editora 34, 1994.
Sulina, 2009, p.52-75.
LATOUR, Bruno. Reassembling the Social: an
BIRD-DAVID, Nurit. “Animism” Revisited: introduction to Actor-Network-Theory. New York:
Personhood, Environment, and Relational Oxford University Press, 2005.
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Suplemment. The Wenner Green Foundation for LEMOS, André. A comunicação das coisas: Teoria
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