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RESUMO
O objetivo deste ensaio teórico é avançar no deslocamento dos “dramas” de Jacob Levy Moreno de uma política
representacional para uma política da diferença. Metodologicamente, desenvolve uma análise conceitual e uma
crítica institucional, a partir das filosofias da diferença de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari.
Questionam-se os projetos e a orientação das práticas pelos conceitos de psicoterapia, existência, identidade e
liberdade. A gênese social dos dispositivos morenianos é abordada no sentido de elucidar a formação dos impasses
relativos a tais projetos e práticas. Conclui-se que as potências do falso funcionam como eixo problemático com
vistas a promover o deslocamento objetivado.
Palavras-chave: Jacob Levy Moreno (1889-1974); filosofia da diferença; análise institucional.
RESUMEN
El objetivo de este ensayo teórico es avanzar en el desplazamiento de los “dramas” de Jacob Levy Moreno
desde una política de representación para una política de la diferencia. Metodológicamente, desarrolla un
análisis conceptual y una crítica institucional, a partir de las filosofías de la diferencia de Michel Foucault, Gilles
Deleuze y Félix Guattari. Cuestiona los proyectos y la orientación práctica de los conceptos de psicoterapia,
existencia, identidad y libertad. La génesis social de los dispositivos morenianos se discute con el fin de elucidar
la formación de puntos muertos en estos proyectos y prácticas. De ello se desprende que las potencias de lo falso
funcionan como eje problemático para promover el desplazamiento objetivado.
Palabras-clave: Jacob Levy Moreno (1889-1974); filosofía de la diferencia; análisis institucional.
ABSTRACT
The aim of this paper is to advance the theoretical displacement of Jacob Levy Moreno “dramas” from a
representational politics to a politics of difference. Methodologically, it develops a conceptual analysis and
an institutional critique, from the philosophies of the difference of Michel Foucault, Gilles Deleuze and Félix
Guattari. The projects and the practical orientation by the concepts of psychotherapy, existence, identity and
freedom are questioned. The social genesis of morenian devices is approached in order to elucidate the formation
of impasses on these projects and practices. It is concluded that the powers of the false function as a problematic
axis to promote the displacement objectified.
Keywords: Jacob Levy Moreno (1889-1974); philosophy of difference; institutional analysis.
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Zamboni, J., Oliveira, S. P., Canal, F. D., Barros, M. E. B., & Cordeiro, P. S. (2014). Os “dramas” de J. L. Moreno e a filosofia
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possibilidades. Diversos outros encaminhamentos (EUA), caracteriza-se pelo interesse nas relações
para a conversação entre os “dramas” de Moreno e as interpessoais e pela criação da sociometria; o terceiro
filosofias da diferença já se fazem (Baremblitt, s.d.; é o da institucionalização do projeto moreniano
Naffah Neto, 1989; Pavlovsky & Kesselman, 1991). No no cenário das práticas psicoterapêuticas – criação
presente artigo, sem poder articular nossa contribuição de associações, escolas, regulação ética, em escala
com estas outras, visamos contribuir forjando outras mundial. Moreno, formulando o psicodrama a partir
picadas nestes matagais teórico-técnicos. E, caso nos do teatro da espontaneidade e de suas experiências na
dispuséssemos àquela tarefa, sem dúvida a pretensão juventude com movimentos existencialistas, dentre
de unificar os caminhos vários seria de pronto por nós outros, desenvolve, a seguir, o sociodrama e outros
conjurada, pois o que nos interessa é a diferenciação modos da ação dramática. Integra-os, mais tarde, a
dos modos de conversar, a bifurcação das vias em projetos político-institucionais baseados no paradigma
função das situações problemáticas. terapêutico – a sociometria e a socionomia se destacam
dentre os mencionados projetos –, produzindo campos
Empreenderemos aqui, por esta conversação,
de coerência para a obra moreniana.
uma crítica dos conceitos – fundamentais ao
desenvolvimento dos “dramas” de Moreno – de cura, Nós, entretanto, entendemos que tais divisões e
existência, liberdade e identidade, para, em seguida e integrações, percebidas historicamente, não expõem
em meio a isto, discutir a articulação da psicoterapia as problemáticas dos “dramas” de Moreno em seus
com o dispositivo teatral. Esta análise institucional dos processos de criação. Optamos, então, por seguir
dispositivos dramáticos morenianos tecerá como fio atentos os movimentos assumidos em sua trajetória,
condutor as potências do falso perturbando a pretensão antes que por uma abordagem epistemológica de
da verdade última. sua obra. A partir de Figueiredo (1995), que propõe
transitarmos “da epistemologia à ética das práticas e
Projetar discursos psicológicos”, queremos empreender uma
abordagem ética da obra moreniana, em atenção
às forças constituintes dos territórios de trabalho
Ao iniciarmos, propomo-nos a recusa à
em que atua, pela articulação do teatro com a
busca por uma universalidade metodológica e de
psicoterapia, acompanhando as várias modulações
praticabilidade perseguida por Moreno (1946/2002, p.
que sofrem por conta do jogo de forças coletivas.
17). Entendemos esta busca como traiçoeira, pois nela
Isto desloca para segundo plano, um plano do que
se propõe um enrijecimento da própria experiência das
é recognoscível, as demarcações relativamente
ações, quando a preocupação com o método e os fins
estáveis pelas quais se pode dividir o trabalho de
coloca as falhas, os imprevistos e as diferenciações,
Moreno. Ater-nos-emos aos conflitos constituintes
em posição negativa, e leva-nos a “tapar os ouvidos”
dos desvios pelos quais partem alguns caminhos dos
às implicações dos encontros, que perturbam sempre
“dramas” de Moreno. E, para tanto, privilegiaremos,
nossas posturas e procedimentos bem definidos. Apesar
inicialmente, a crítica de alguns conceitos utilizados
da multiplicidade de experimentações conceituais e
por Moreno a partir da filosofia da diferença.
técnicas, Moreno busca, em sua trajetória de trabalho,
sistematizar seu pensamento, produzir coerência
em meio aos desarranjos pelos quais se forjam seus Curar
aparelhos dramáticos. O que nos parece acontecer,
então, é um endurecimento que retém e estanca os
Moreno vincula-se fundamentalmente às ideias
fluxos de criação. As forças dos processos coletivos,
de psicoterapia, cura e patologia psíquicas herdadas de
que se dão em diversos graus de intensidade e de
sua formação psiquiátrica. A noção de cura se dá no
contextos em Moreno, tornam-se pouco sensíveis e
campo psicológico a partir da suposta descoberta da
expressivas quando a máquina de fazer drama dispõe-
causalidade das doenças psíquicas, da desestabilização
se a evitar os desalinhos decorrentes dos contratempos.
(Teixeira, 1996). A realidade é restritiva e o sujeito perde
Seu corpo teórico perde potência de vibrar em diversas
seu equilíbrio por não conseguir criar papéis adequados
práticas ao enrijecer-se institucionalmente, ao fixar-se
ao mundo social, diz-nos Moreno (1946/2002). Daí
no ideal de universalidade científica.
surgiria a necessidade de catarse: a cura por meio
Saidon (1983, citado por Barros, 2007) ressalta da qual se daria a integração dos papéis num eu. A
três períodos no trabalho moreniano: o primeiro, em estratégia para a cura é a dramatização dos papéis.
Viena, é marcado pelos seus escritos poéticos, pelo Esta dramatização permitiria ao indivíduo exteriorizar
teatro e pela entrada no terreno psicoterapêutico; seus conflitos internos, dando lugar à representação de
o segundo, nos Estados Unidos da América novos papéis originais e adaptados aos problemas que
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o confrontam. A liberdade do indivíduo se faria com Ao atentarmos para o conceito de catarse, tão
o exercício da espontaneidade (fator E), em busca de central ao psicodrama, percebemos que essa noção é
originalidade, visando à adaptação no mundo. compreendida como a solução de conflitos psíquicos,
o “livrar-se da inquietação” (Moreno, 1946/2002, p.
Tal procedimento se fará bloqueador à proposta
17). A inquietação é vista com uma marca negativa. E
deleuzeana (Deleuze, 1968/2006, 1969/2007b) de
a integração do eu é a outra face da moeda, numa busca
afirmação dos simulacros, formas sem modelos
por estabilização. Vemos aí que outra grande marca do
prévios, à medida que se assumir a noção de
pensamento de Moreno é uma filosofia existencialista.
cura psíquica em rechaço à desestabilização. Ao
Há, em sua forma de pensar, um objetivo de realização
sinonimizar doença e desestabilização, resvala-se em
do humano num ponto ideal da existência, no momento
afirmar a realidade como transcendente à vida em suas
em que se externaliza e se integra o eu interior numa
variações acidentais na história. Ao nos prendermos
existência unificada – individualizada e totalizada.
às categorias patológicas, estaríamos ainda no campo
do negativo, da falta. Não é neste campo que nos Não nos parece possível, todavia, encontrar
propomos passear. Quanto ao processo dramático de um sentido verdadeiro para a vida, fundamental
cura, se já sabemos a causa, podemos logo saber a de uma vez por todas, que esteja fora dela própria
maneira de curar – a psicoterapia – e seu desfecho. A em toda a sua imanência, em seu criar e destruir
peça teatral – sessão psicodramática – está completa, cotidiano, em seus sentidos plurais e produtores de
portanto. Todo o processo inventivo se vê aí diante de diferenças, nos constantes fluxos e intermitências
um impasse: as possibilidades encaixam-se no molde que a atravessam num movimento intempestivo de
pronto e acabado da psicoterapia que as fará vir à tona. criação desses sentidos. Sendo assim, pensar o sentido
da vida como integração do eu evoca uma dimensão
No entanto, cabe enfatizar que Moreno
transcendente, uma situação ideal em que se pode
simultaneamente desponta para uma nova concepção
viver plenamente. Ao trabalhar com a noção de
de saúde ao colocar tal noção em questão por meio dos
sentido, seria preciso abandonar qualquer referência
seus dramas. A partir dos encontros nestes dispositivos,
que implique este transcendente existencial, um além
a saúde figura como criação e processo. Logo, a
do plano de produção da realidade, que tende a nos
contradição que apontamos é, fundamentalmente, um
fazer desembocar numa essência afastada da vida. Por
paradoxo. A enfermidade não seria, então, processo,
aí, Deleuze (1969/2007b, p. 75) afirma que o sentido
mas parada do processo e o criador, não um doente, mas
aquele capaz de curar a si mesmo e ao mundo (Birman, não é algo a ser descoberto, restaurado ou reempregado,
2000). Mas tudo isso se revela ainda muito nebuloso mas algo a produzir por meio de novas maquinações.
em Moreno. Convoca-se aqui a atenção à postura Não pertence a nenhuma altura, não está em nenhuma
profundidade, mas é efeito de superfície, inseparável
que se adota ao utilizar os dispositivos, pois é nas
da superfície como de uma dimensão própria.
situações concretas de experimentação que o impasse
poderá ser desmontado. Esta postura irá facilitar, ou
Sustentamos uma noção de sentido que é sempre
atrapalhar, os movimentos de transformação das
plural, assumindo o primado da experimentação no
estratégias psicodramáticas em função dos desafios
campo da vida concreta, de seus acontecimentos, ou
contemporâneos, assim como irá facilitar, ou atrapalhar,
seja, do intempestivo. E por intempestivo entende-
os movimentos de produção de subjetividade por conta
se a emergência de uma diferença desestabilizadora
da afirmação de modos de vida singulares e potentes,
das formas vigentes, um acontecimento o qual nos
capazes de romper com as modelizações subjetivas
separa do que somos, dos territórios existenciais
hegemônicas atreladas ao capital.
que habitamos, e coloca uma exigência de criação.
Foucault (1971/2011, p. 57) nos aponta que
Existir
o acontecimento não é nem substância nem acidente,
nem qualidade, nem processo; o acontecimento não é
Subjetividade, neste sentido, é fabricação da ordem dos corpos. Entretanto, ele não é imaterial; é
social e não uma propriedade privada do indivíduo sempre no âmbito da materialidade que ele se efetiva,
referida a um eu, a um sujeito separável do mundo. que é efeito.
Em circulação nos espaços sociais, a subjetividade é
assumida e vivida por nós, cada um, particularmente. Acontecimento, por conseguinte, é aquilo que
Os processos de subjetivação, ou processos de a partir das relações de força irrompe desmanchando,
singularização das maneiras de existir, são entendidos desestabilizando territórios existenciais e constituindo
como os modos pelos quais os indivíduos ou grupos outros modos de vida, ao abri-los a novas entradas para
sociais forjam-se como sujeitos coletivos. outros campos de possibilidades. A noção de território
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em Guattari (Deleuze & Guattari, 1980/1995; Guattari às tensões insuportáveis do mundo e pode expressar-
& Rolnik, 1986/2000) trabalha o conceito de existência se. Ali tem liberdade para experimentar e criar papéis
como produção, e não como transcendente ao mundo. que permitam ao sujeito resolver os problemas que o
Os territórios existenciais estão sempre abertos; apesar confrontam “lá fora” no mundo e, depois, poder retornar
de, por vezes, linhas duras reterritorializantes lhes a este mundo. Tal retorno, por suas consequências, é
demarcarem terrenos como propriedades privadas denominado adaptação, adequação.
de um sujeito. A noção de território existencial em
Com Michel Foucault (1971/2011), entendemos
Guattari, portanto, sempre terá como força fundamental
a liberdade como a capacidade de questionarmos
o movimento de desterritorialização, pelo qual certo
nossos modos de existência e criarmos outros registros
modo de existência pode desmanchar-se, abrindo-se
de referenciação. Ou seja, é a problematização desses
para o processo de criação de outras vias de existência.
modos, a problematização das práticas (sempre sociais)
Há no conceito de território, em filosofia que fazem alguma coisa entrar no jogo do verdadeiro e
da diferença, uma crítica radical às abordagens do falso e se constituir como objeto para o pensamento
existencialistas do mundo no que forjam para a sob a forma da reflexão moral, do conhecimento
existência um transcendente absoluto que seria sua científico, da análise política, e assim por diante.
origem ou fim, fundamento ou sentido, totalizante
Ser livre, portanto, é ser capaz de questionar a política,
e unívoco. Trata-se de tomar a existência como de questionar a maneira como o poder é exercido,
um território, em vez de encarar a imanência do contestando suas reivindicações de dominação. Esse
mundo como uma força de prisão da existência. A questionamento implica nosso ethos, nossas maneiras
própria essência do existir se faz como construção. A de ser ou de tornarmos quem somos. A liberdade é,
subjetividade é uma paisagem que se habita, em vez de pois, uma questão ética. (Rajchman, 1993, p. 130,
uma interioridade fechada sobre si mesma como uma grifo nosso)
identidade (Deleuze, 1993/1997, pp. 68-69).
A definição foucaultiana de liberdade está
Liberdade e identidade crucialmente ligada aos modos de existir imanentes,
implicados diretamente com os jogos de força
construtores da realidade. Logo, aqui já se impõe
Abandonamos a perspectiva de trabalhar com um uma ruptura no conceito de liberdade desenvolvido
mundo privado do sujeito, em busca da sua identidade, por Moreno, pois seria o caso, ao invés de pretender
do seu eu essencial, pela tentativa de provocar o sujeito a ausência de relações de força, tomar a luta como
a ser “ele mesmo” a partir do drama. Segundo Guattari dimensão inextrincável da existência. Ao afirmarmos
(Guattari & Rolnik, 1986/2000), a identidade nossas formas de viver, construímos também o mundo
é um conceito de referenciação, de circunscrição em que vivemos como arranjos provisórios em
da realidade a quadros de referência, quadros esses tensionamentos constantes. A resistência aos apelos de
que podem ser imaginários.... a identidade é aquilo dominação – exercício da liberdade para Foucault –
que faz passar a singularidade de diferentes maneiras acontece no plano imanente das forças, nos jogos de
de existir por um só e mesmo quadro de referência poder, no qual todos estão implicados.
identificável [grifo nosso].
Resistir é questionar o verdadeiro, buscando
Propomo-nos, ao revés, trabalhar com as desmontá-lo em sua constituição como produtor do
singularidades afirmando-as em seu devir, em sua campo social. A verdade institui-se numa determinada
diferença pura; uma diferenciação por si própria, que forma que as relações de poder assumiram. Desmontá-
conjura a possibilidade de um mesmo de si, ou seja, la significa criar outras formas, outras relações de
sem fixação a modelos. poder. Assim, não se trata de escapar das relações
Ao rompermos com a postura identitária em de poder de uma vez por todas, mas de escapar entre
relação ao eu, rompemos também com a ideia de elas, por elas, afirmando passagens. O princípio ético
liberdade a ela vinculada. A liberdade, em Moreno, é assumido por Foucault a partir desta compreensão é o
um dos princípios e objetivos da prática psicodramática, da liberdade: o poder é cerceamento e limite ao fluxo
pedra de toque que sustenta seu empreendimento da vida, mas, paradoxalmente, é o que possibilita à vida
e que termina por se vincular à noção de cura: é um ganhar forma e meio para existir. Cabe-nos questionar
conceito que fundamenta os dispositivos criados por incessantemente em que formas e em que registro de
ele, seus “dramas”. O espaço cênico torna-se local de existência estamos funcionando, em vez de buscarmos
experimentação da liberdade, no exercício de papéis num transcendente à vida o meio ideal de solução dos
criativos. No palco, o indivíduo fica livre em relação conflitos. Ser livre é estar neste exercício.
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Zamboni, J., Oliveira, S. P., Canal, F. D., Barros, M. E. B., & Cordeiro, P. S. (2014). Os “dramas” de J. L. Moreno e a filosofia
Guattari (Guattari & Rolnik, 1986/2000), por dramáticos, para que não se tornem “conserva
sua vez, sugere que, “ao invés de pretendermos cultural”. Se é nisso que passam a consistir, instala-se
a liberdade (noção indissoluvelmente ligada à uma contradição, uma anulação das forças entre si nos
consciência), temos que retomar o espaço da farsa, “dramas” de Moreno. A conserva cultural, definida por
produzindo, inventando subjetividades delirantes que, Moreno (1946/2002, pp. 158-159),
num embate com a subjetividade capitalística, a façam propõe-se ser o produto acabado e, dessa maneira,
desmoronar” (p. 30). A sociedade capitalista produziu adquiriu uma qualidade quase sagrada. É o resultado
e continua atualizando processos de subjetivação de uma teoria de valores geralmente aceita... A
atrelados ao capital, cuja produção “diz respeito conserva cultural passou a ser o mais alto valor
aos comportamentos, à sensibilidade, à percepção, que era possível produzir... É uma mistura bem-
à memória, às relações sociais, às relações sexuais, sucedida de material espontâneo e criador, moldado
aos fantasmas imaginários” (p. 28). A economia numa forma permanente. Como tal, converte-se em
propriedade do grande público, algo de que todos
subjetiva capitalista produz indivíduos, o individual.
podem compartilhar. Devido à sua forma permanente,
Resultado de uma produção de massa, os indivíduos é um ponto de convergência a que podemos regressar
são normalizados, normatizados, serializados. A a bel-prazer e sobre o qual pode ser assente a tradição
identidade funciona assim como reterritorialização em cultural. Assim, a conserva cultural é uma categoria
meio aos fluxos dispersos dos modos de vida. tranquilizadora.
Guattari propõe, dessa forma, o abandono do
conceito de liberdade, ao fazer a análise de sua produção Barulho em praças, palcos, ruas, grupos
como um axioma da subjetividade capitalística.
Considerando o universo de sentidos implicados neste
conceito, constituídos na história fortemente atrelados Ao se perguntar sobre a constituição da sociedade
às ideias de livre arbítrio e iniciativa, podemos, com em que vive, Moreno assume uma postura existencial,
Guattari, abandonar o conceito. Ou experimentá-lo em reduzindo o ser humano a uma abstração em que todos
outros sentidos, como fez Foucault. somos livres e iguais em essência. Coimbra (1995)
permite-nos concluir que a produção moreniana
Com Foucault (1984/1994), afastando-nos da
apresenta, em muitos momentos, os princípios da
visão fenomenológica e antropológica, compreendemos
filosofia liberal-capitalista que coloca todas as pessoas
que as experimentações acontecem em planos de
livres e iguais em condições, podendo transcender
correlação entre campos de saber (formações do que se
sua situação, visto que possui capacidade de escolha.
pode enunciar), tipos de normatividade (referindo-se
A perspectiva de atuação que se encaminha do teatro
aos sistemas de poder que regulam as práticas) e formas
da espontaneidade à institucionalização do teatro
de subjetividade (formas pelas quais os indivíduos ou
terapêutico é permeada por uma política essencialista
grupos sociais se reconhecem como sujeitos face a
do humano. Mas, ainda é Coimbra (1995, p. 246)
questões específicas).
quem afirma que
Diante de tais considerações sobre liberdade
até por não entender as técnicas como instrumentos
e identidade, é possível diagnosticar nas práticas neutros – mas como ferramentas que podem servir
psicodramáticas certa impotência ao lidar com as para manter e legitimar ou, ao contrário, desnaturalizar
redes de saber-poder-subjetivação, no sentido de ações e transformar realidades, segundo as diferentes
transformá-las, quando se limitam a colocar em formas como são encaradas e manejadas –, torna-se
questão as existências num mundo dado, naturalizado, possível às práticas psicodramáticas a produção de
compreendido como repressivo. O viés tomado neste espaços singulares, o fortalecimento de movimentos
impasse é não questionar o mundo como construção, instituintes, mesmo que de forma provisória.
mas, meramente, apostar na subjetividade, tomada
como transcendente às relações, como capaz de No início do século XX, em Viena, o “drama”
suportar o mundo. A aposta é a de que, à medida que o moreniano nasce ligado aos movimentos sociais – com
sujeito puder expressar sua interioridade, sua liberdade crianças, prostitutas, loucos, dentre outros – auxiliando
estará garantida. a dar passagem aos fluxos coletivos. Mas, pouco a
pouco, especialmente a partir do segundo momento de
Ao tratar os “dramas” como meios pelos quais se
sua obra e da institucionalização do psicodrama, vão
pode acessar um plano de experiência transcendente às
se perdendo as potências disruptivas dos dispositivos
relações de saber e poder, Moreno esquiva-se à análise
morenianos.
dos aparelhos técnico-conceituais como instituições
constituídas por regras, normas e valores. Porém, esta Em relação ao entendimento e à utilização do
análise é crucial para se desenvolver os dispositivos teatro por Moreno, isto vai se tornar problemático.
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Em sua trajetória, acaba por institucionalizar um lócus Moreno (1923/1984, pp. 19-20). Contudo, tal decisão
estrito de ação, afirmando que ganhou contornos duros de aparente irreversibilidade
um psicodrama, se necessário, pode ser designado com o sucesso da proposta psicodramática e, a seguir,
em toda e qualquer parte, onde quer que os pacientes com a mudança de Moreno para os EUA. O instante
estejam, no campo de batalha, na sala de aula ou no lar. tático ganhou ares de descoberta da verdade terapêutica
Mas a resolução final de profundos conflitos mentais ao fixar-se o psicodrama num modo instituído, em vez
requer um cenário objetivo, o teatro terapêutico. de se retomar o movimento instituinte.
(Moreno, 1946/2002, p. 18)
Moreno acaba por compor com a subjetividade
Como Moreno chega a tal contraposição entre vigente à época, nestes embaraços com as forças sociais
a prática transformadora situada em diversos meios em jogo, uma aliança apaziguadora e promissora. A
sociais e a prática destacada do campo social pelo articulação do teatro com a proposta de psicoterapia
palco terapêutico? Habita nesta proposição moreniana acaba por enfraquecer os vínculos entre os “dramas” de
uma (re)lutância que está encarnada nos instrumentos Moreno e as problemáticas imediatamente coletivas.
psicodramáticos: investir a diversidade da problemática Moreno (1923/1984, p. 20) argumenta que
social onde quer que ela irrompa ou isolá-la num era mais fácil advogar, num teatro terapêutico, a
meio ideal, supostamente apartado dos múltiplos espontaneidade integral; as imperfeições estéticas
tensionamentos da vida, em função de uma cura. de um ator não podiam ser perdoadas, mas as
inexatidões e incongruências de um paciente mental
Moreno abandona, como já dito, os encontros que eventualmente se exibissem no palco eram não
cotidianos nas ruas e praças com os marginais, dos apenas mais toleradas como esperadas e, muitas
primórdios de seu trabalho, ao tentar produzir no teatro vezes, calorosamente bem-vindas.
tradicional uma forma espontânea de teatralidade.
Nesta tentativa ousada, Moreno acaba caindo numa Moreno assume uma concepção de vida que
terrível armadilha ao tentar questionar na instituição abarca a doença como anormalidade, imperfeição
teatral os limites que a verdade impõe à farsa. e irregularidade, como já explicitamos, evocando
a piedade como forma de existir em meio à crise
Uma primeira cilada dispara a partir da criação que seus movimentos geravam na subjetividade
do teatro da espontaneidade (stegreiftheater), em 1922. da época. Esta decisão temporária acaba por
Até então, a teatralidade acontecia um tanto à revelia tornar-se relativamente definitiva. Não se retoma
do teatro institucionalizado, junto aos bandos de o projeto do teatro da espontaneidade “cem por
gente em qualquer canto. O teatro da espontaneidade cento”, profundamente vinculado aos movimentos
pretende questionar a instituição social do teatro contestadores da subjetividade hegemônica à época,
vinculando-se a ela, transformando-a a partir de questionadores dos lugares imputados às crianças,
“dentro”. Entretanto, muito deste movimento viu-se às prostitutas, aos loucos, falsários de todos os tipos,
enfraquecido e bloqueado ao ser encarado, em muitos simulacros que assolam as modelizações que investem
espaços, como mais uma abordagem teatral, mais uma ideais de existência, problematizadores das verdades
configuração teórico-técnica das formas dramáticas. absolutas do humano. Moreno declara ainda, como
O enquadre teria por efeito neutralizar a perturbação “mais evoluída”, a forma intermediária do teatro de
institucional pretendida. catarse, como instituição plena do movimento que
acabou por ganhar cunho terapêutico em sua síntese
Uma segunda cilada se compõe com a estruturação
de inteligibilidade como psicodrama.
do teatro terapêutico e do psicodrama pelo teatro da
espontaneidade. Esse outro impasse ocorre devido à De acordo com Coimbra (1995), no início da
resistência do público e da imprensa vienenses. Muitos década de 1970, no Brasil, o psicodrama faz a crítica
companheiros de trabalho de Moreno abandonam aos especialismos, à terapia centrada exclusivamente
a experimentação no teatro da espontaneidade em na fala e operada individualmente (referindo-se à
virtude das acusações difamadoras de que se trataria de hegemonia da psicanálise nesse período), e ajuda a
uma simulação, um ludíbrio com o intento de chamar engrossar as manifestações contestatórias da época.
a atenção. A espontaneidade conceituada por Moreno, Mas, aos poucos, vai deixando de realizar uma crítica
que a advoga como fundamento para o teatro ligado à radical das produções histórico-sociais das relações
vida cotidiana, é encarada como charlatanismo. “Face pelas suas práticas de intervenção. Como acabamos
a face com este dilema, voltei-me ‘temporariamente’ de ver, o mesmo se deu com a passagem do teatro da
[grifo nosso] para o teatro terapêutico, decisão espontaneidade em Viena ao psicodrama que encontrará
esta estratégica e que provavelmente salvou do solo fértil nos EUA. Muito se perdeu da potência de
esquecimento o movimento psicodramático”, diz-nos transformação social por estes movimentos.
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a existir por meio de nós que levamos a instituição Machado, R. (1990). Deleuze e a filosofia. Rio de Janeiro: Graal.
adiante, transformando-a. Moreno, J. L. (1984). O teatro da espontaneidade (2ª ed.). São
Paulo: Summus. (Original publicado em 1923)
O que importa na apropriação dos “dramas” de Moreno, J. L. (2002). Psicodrama (8ª ed.). São Paulo: Cultrix.
Moreno, pela nossa perspectiva, é que seja possível (Original publicado em 1946)
assentá-los num movimento conceitual que, em vez Naffah Neto, A. (1989). Paixões e questões de um terapeuta.
de pretender o acesso à verdade, afirme a invenção São Paulo: Ágora.
Pavlovsky, E. & Kesselman, H. (1991). A multiplicação
como princípio da vida, ou antes, a impossibilidade de dramática. São Paulo: Hucitec.
estabelecer um princípio. Neste sentido, os rearranjos Rajchman, J. (1993). Eros e verdade: Lacan, Foucault e a
destes dispositivos, suas desmontagens e montagens questão da ética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
sempre variantes, são cruciais para que não se Teixeira, M. O. L. (1996). Algumas reflexões sobre o conceito
conservem fixos, mas pelo movimento de apropriação de cura em psiquiatria. Cadernos do IPUB, 3, 67-76.
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Submissão em: 05/06/2011
Referências Revisão em: 11/05/2012
Aceite em: 20/06/2012
Baremblitt, G. F. (s.d.). El “método” de la dramatización en
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Como citar:
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prazer (pp. 91-102). Rio de janeiro: IPUB/CUCA. 270.
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