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Sobre a formação do analista

Laura Moreno Lima Capellanes

“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos.
Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe,
jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de
caminhar.” – Fernando Birri, citado por Eduardo Galeano in ‘Las palabras
andantes?’ de Eduardo Galeano. publicado por Siglo XXI, 1994.

Freud (1927/2021), em seu texto posfácio A “A questão da análise leiga”, discorre


sobre a questão da formação do analista. De acordo com ele, pouco importa se o analista
possui formação acadêmica de medicina. Pois, o que importa é se a pessoa em questão
adquiriu uma formação especializada que é necessária para o exercício da análise em si.
Dessa forma, Freud (1927/2021) questiona qual seria então a formação mais adequada
para a prática da psicanálise. Ele afirma que não seria aquela formação que a universidade
prescreve ao futuro médico, e, também, pode-se pensar, ao futuro psicólogo etc. De acordo
com o autor, as formações universitárias poderiam ser inclusive um desvio trabalhoso para
chegar à profissão analítica, sobrecarregando o futuro psicanalista de coisas que nunca irá
utilizar e gerando o risco de que seu interesse e forma de pensar sejam desviados da
percepção dos “fenômenos psíquicos”, apesar de também poder proporcionar ao analista
muita coisa que lhe será indispensável.
Dito isto, Freud (1927/2021) afirma que o “conteúdo programático” para a formação
do psicanalista precisa ainda ser criado, devendo abarcar tanto o conteúdo das “Ciências
Humanas”, bem como conteúdos psicológicos, histórico-cultural, sociológico, anatômico,
biológico e histórico evolutivo, apesar de saber que esse caminho para a formação do analista
poderia ser uma exigência idealizada, mas não por isso seria algo impossível.
Freud (1927/2021) deixa claro, com isso, que a psicanálise não seria uma
especialidade da medicina, nem de qualquer outra formação acadêmica, como da psicologia,
apesar de poder fazer parte delas. Acrescenta, ainda, que o trabalho do psicanalista é o de
“cuidar de almas”. E o que significa “cuidar de almas”? Seria então, para a psicanálise, poder
realizar uma associação entre curar e pesquisar, e o conhecimento advindo desse processo
traria o sucesso do tratamento psicanalítico. Assim, somente através dessa conjunção seria
possível praticar o cuidado analítico da alma, aprofundando a compreensão da “vida anímica
do ser humano”.
Já em seu texto “A análise finita e a infinita”, Freud (1937/2021, p. 354-355)
complementa que “analistas são aqueles que aprenderam a exercer determinada arte”, mas que
paralelamente a isso podem ser pessoas como quaisquer outras. Com isso, o autor quer dizer
que uma pessoa poderia tornar-se analista mesmo não sendo “psiquicamente saudável”, pois
inclusive poderia se obter uma certa vantagem disso, na medida em que a sua própria análise
pessoal poderia especializá-lo no tratamento de seus pacientes.
Apesar disso, devido à característica de que as condições especiais do trabalho
analítico podem de fato ser prejudicadas pelos pontos cegos do analista em relação a sua
própria forma de ser no mundo, gerando dificuldades em apreender as condições do paciente
de forma correta e o impedindo de reagir a ela de modo adequado para o trabalho analítico.
Portanto, há nisso uma razão de se exigir do analista que faça análise pessoal, sendo esse um
dos pilares da formação do analista. A própria análise do psicanalista é o que pode ajudá-lo a
sustentar essa profissão considerada por Freud como da ordem do impossível, pois cada
pessoa verá e compreenderá o mundo a partir de suas próprias vivências, ou seja, sempre
distorcidas da realidade. Assim sendo, é na sua própria análise que se inicia a preparação para
a atividade futura do psicanalista (FREUD, 1937/2021).
A partir da sua análise pessoal, o analista poderá se dar conta da existência do
inconsciente ao aflorar o recalcado e, assim, ser apresentado a ele a técnica psicanalítica, que
só se consolida na atividade analítica, ou seja, em sua prática. É claro que somente a análise
pessoal não seria suficiente em termo de formação do analista, mas a partir dessa experiência
espera-se que o futuro analista se sinta instigado a saber mais sobre esses processos, inclusive
através do estudo teórico da psicanálise, sendo esse um outro pilar da formação do analista
(FREUD, 1937/2021).
O terceiro pilar da formação psicanalítica seria poder o analista submeter sua
experiência clínica à escuta de um psicanalista mais experiente, a fim de tentar desfazer
alguns pontos cegos ou ao menos apontar e fazer emergi-los para que possam ser pensados e
trabalhados também na análise pessoal do futuro analista.
Dito tudo isso, fica evidente que a formação do analista não se dá em um único curso,
seja ele de graduação, ou pós-graduação, mas sim através de um percurso contínuo em busca
da “verdade”, transformando-se essa tarefa de finita a infinita, como diz Freud (SIMÕES,
2022; FREUD, 1937/2021, p. 357).
Segundo Lacan (1957/2019), em seu texto “A instância da letra no inconsciente ou a
razão desde Freud”, Freud manteve com constância e até seu fim a exigência primeira da
qualificação literária para a formação do analista, além de considerar o universo literário
como o lugar ideal para sua instituição. Pois, para Lacan (1957/2019), é nesse espaço que se
pode observar com curiosidade as reviravoltas que se anunciam no que se refere à
simbolização e à linguagem. Ainda, acrescenta em tom de interrogação, como seria possível
um alguém tornar-se psicanalista sem passar pela palavra que se apresenta na literatura e
também na fala, sendo que é dessa experiência que advém seu instrumento de trabalho, bem
como a possibilidade de entrar em contato com suas incertezas e incongruências. Ou seja, o
que Lacan (1957/2019) quer dizer com isso é que é através da linguagem que a inconsciente
pode advir e é com isso que um psicanalista trabalha.
Além disso, assim como o gênero literário alemão do romance de formação, em que o
próprio autor narra, a partir de sua auto-observação, suas vivências, os efeitos delas no seu
jeito de ser no mundo, suas percepções e afetações e como é nesse constante caminhar da vida
que vai se formando um sujeito, a formação do analista também se dá dessa forma, a partir de
uma constante práxis – estudo teórico/prática clínica/análise pessoal, e é através da linguagem
que se dá essa integração das vivências. Dunker (2015) traz essa reflexão em seu artigo
intitulado “Romance e Tragédia da Formação do Psicanalista”, afirmando que a formação
seria como um tipo de viagem em que gradativamente é possível do sujeito reconhecer que os
caminhos percorridos o antecedem, que há sinalizações, mapas que o orientam, mas que
também o fixam e delimitam, sendo essa uma jornada que não apenas desloca o sujeito no
espaço em si, mas também o transforma em sua realização, em seu contato com o próprio
caminhar, gerando uma experiência integrada de todos os eventos vividos.
Em suma, e mais uma vez, é então através desse contínuo
percurso que se torna possível formar-se um psicanalista, que nunca estará acabado, completo,
fechado, mas em constante construção, desconstrução e reconstrução, ou seja, é caminhando
que se faz o caminho.

Referências

DUNKER, C. I. L. - Romance e Tragédia da Formação do Psicanalista - as escolas


lacanianas. Jornal de Psicanálise. v.38, 151 – 165 p, 2005.
FREUD, S. Fundamentos da Clínica Psicanalítica: Posfácio A “A Questão da Análise
Leiga”. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 291-304 p. (Obras incompletas de Sigmund Freud),
1927/2021.
FREUD, S. Fundamentos da Clínica Psicanalítica: A Análise Finita e a Infinita. 2. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 315-361 p. (Obras incompletas de Sigmund Freud), 1937/2021.
LACAN, J. Escritos: A Instância da Letra no Inconsciente ou a Razão desde Freud. 4. ed. São
Paulo: Perspectiva, 223-260 p. v. 132, 1957/2019.
SIMÕES, A. Lacan entre nós: A Clínica Lacaniana e seus desdobramentos no Brasil. 2022.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vhQHgtJRpJc. Acesso em: 18 out. 2022.

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