Você está na página 1de 5

CURSO: PÓS-GRADUAÇÃO EM CLÍNICA PSICANALÍTICA LACANIANA

TURMA: 2-2023

ALUNO: SÉFORA SILVA ARAÚJO

MÓDULO: AMBIENTAÇÃO

A PARTIR DAS ESPECIFICIDADES DA PSICANÁLISE,


COMO SE DÁ A FORMAÇÃO DE UM PSICANALISTA?

“Cem psicanalistas medíocres”. Essa afirmação foi referenciada por Lacan (1998)
em seu texto “Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956”, para destacar os
movimentos da IPA (International Psychoanalytic Association), em relação à formação de
psicanalistas na época. A frase, que alguém da associação teria declarado, demonstra que,
apesar de regras e determinações impostas, ainda faltava preocupação com a qualidade na
formação do candidato interessado em ingressar no amplo campo da psicanálise. De fato, em
uma época fecunda da psicanálise, a sua expansão e seu desenvolvimento logo dariam
notícias de uma teoria e prática promissora. Mas, e hoje? Qual é a preocupação real em
relação à formação do analista? O que mudou de lá para cá? Quais são as observações, críticas
ou questionamentos que precisamos ter e fazer enquanto operadores da psicanálise na
atualidade, tanto em seu campo clínico, quanto no campo da transmissão, e, mais ainda, como
psicanalistas em eterna formação?
Freud (1856), com seu pioneirismo, construiu aos poucos uma forma diferenciada e
completamente nova de exploração das atividades psíquicas humanas. A exploração dos
aspectos inconscientes trouxe para a comunidade científica da época, ou seja, para o saber
médico, novas perspectivas de tratamento e solução de sintomas e problemas não explicados,
ou, rejeitados pela medicina convencional. Essas descobertas iniciais foram tomando forma,
corpo, robustez, ganharam amplitude e foram sendo trabalhadas e agregadas à luz de uma
experiência prática. Ao lermos Freud relatando sobre seus inícios, suas curiosidades sobre
certas técnicas e seu desbravamento delas, temos notícia desde já de uma forma única de
compreender algo. No entanto, a palavra “compreender” em psicanálise é muito mais
significativa do que um mero aprendizado de conceitos e técnicas sobre essa teoria e a prática
que diante de nós se apresenta, no nosso esforço em entender como ela se revela e funciona.
Não se aprende psicanálise, nós a apreendemos. E, para isso, é importante destacar a
importância de alguns aspectos para a formação do analista. Nossa sociedade, por norma, é
inserida em hábitos ritualísticos, ou seja, para uma formação, por exemplo, universitária, o
sujeito inicia muitas vezes os estudos com um pré-vestibular, uma matrícula em uma na
universidade, passa por períodos distintos e, também, interligados de disciplinas das quais, ao
final, faz as provas, passa por estágios e conseguinte, recebe seu diploma com a denominação
de sua graduação. Pode-se considerar aqui, por via desse modelo ritualístico, que ao final da
proposta curricular da universidade formam-se inúmeras pessoas, muitas delas, de fato,
medianas, ou medíocres, como sugere a frase que inicia esse texto. A preocupação do modelo
de formação convencional, por mais que se apliquem meios e formas rígidas de aprovação,
ainda é um modelo que leva em conta mais a quantidade de pessoas formadas do que,
definitivamente, a qualidade. Sabemos, também, que, desses alunos, poucos serão os que se
atentarão a uma ética própria necessária ao desempenho da função que se propuseram a
estudar. Freud destacou a importância da compreensão da psicanálise em um nível que se
difere do tipo de formação tradicional ritualística. Para se tornar um psicanalista, o candidato
deve passar pela sua própria experiência analítica, no entanto, apenas isso não garante a
qualidade de seu trabalho, pois é necessário um mergulho profundo em si, nos aspectos
teóricos, na busca e no desejo por mais compreensão do mundo psicanalítico. O processo de
análise para o candidato também não deve ocorrer pela via do ritual, se levando em conta uma
quantidade específica de sessões, a exclusividade de uma analista da própria instituição, a
quantidade de vezes por semana, etc.
Uma experiência analítica que forme de fato um analista precisa apresentar os
aspectos que a própria teoria sustenta, ou seja, é preciso que, em análise, o analisando seja
capaz de construir um caminho dentro de si próprio para chegar aos conteúdos recalcados e
assim, capturá-los para se livrar da formação dos sintomas que ele vai também identificando,
ao passo que vai chegando e fazendo as elaborações necessárias para a cura de suas próprias
angústias. Essa análise não é do lugar de um trabalho completo e acabado, mas sim, um
trabalho capaz de produzir no analisando o senso de que o seu inconsciente se apresentou a
ele de forma como nunca viu, relatando coisas das quais nunca pensou ou falou. Ou seja, o
processo de análise ao candidato que deseja ser analista, também passa por um outro que
escuta e que o auxilia nesse caminho interno de descoberta. Portanto, em seu processo de
análise pessoal com um analista didata, o candidato se apercebe dos aspectos transferenciais,
suas resistências, suas repetições, angústias e libertações que a análise pessoal proporciona.
Nesse sentido, as transformações que o sujeito percebe em si no processo analítico o colocam
em condição de ser tornar um analista, desde que, essas transformações continuem se fazendo
presentes em seu Eu e o levando a um anseio e um desejo de mais. O que mais? Mais
aprofundamento do que envolve o trabalho do psicanalista em todo seu escopo. E se busca
sempre mais, entendendo que não se abarca tudo, mas a formação é constante.
Apesar de ser uma recomendação pertinente e de grande importância, Freud destaca
que apenas o processo de análise pessoal não é o suficiente para que o candidato receba sua
autorização para atuar. Um processo de análise pode ocorrer durante muito tempo, sem que o
analisando acesse de fato o que se espera para o sucesso do tratamento. Outros aspectos
também se incluem na orientação freudiana a respeito da formação do analista. O conhecido
tripé psicanalítico é muito falado em psicanálise na nossa atualidade, e, muitas vezes de forma
simplista, quando alguns afirmam sua necessidade, mas, de uma forma reduzida e banalizada.
Freud reconhecia e orientava da importância do contato, estudo e aprofundamento da
literatura psicanalítica em sua raiz e também os atuais, prezava por um enlaçamento de
discussão dos casos com outros profissionais experientes, uma associação a uma instituição
de psicanálise para troca de ideias, desenvolvimento da teoria e desenvolvimento profissional,
e, por fim, a atuação ética e rigorosa em relação aos preceitos psicanalíticos que moldam todo
o escopo teórico.
A frase de abertura desse texto ainda é preocupante atualmente, assim como foi para
Lacan, em 1956. Apesar de Freud recomendar a associação a uma escola de psicanálise,
Lacan critica veementemente a IPA (International Psychoanalytic Association), escola da qual
era analista didata, ou seja, participava ativamente da formação dos candidatos, enquanto
instituição de formação. Suas críticas atravessavam justamente o modelo ritualístico da
instituição, que trabalhava com regras bem delimitadas, proposições rígidas e inflexíveis
sobre inúmeros aspectos da formação e da transmissão, distorções e más interpretações
teóricas, esquecimentos de aspectos fundamentais da teoria psicanalítica como, por exemplo,
o complexo de édipo e a transferência, tempo delimitado de sessões, impossibilidade de
escolha de um analista fora da instituição, tempo cronológico da sessão, a questão do
pagamento e quantidade de sessões por semana, questiona a subserviência e a hierarquia
institucional que ali se estabelecia, etc. Sua visão denota um aspecto muito particular em
referência à formação do analista. Por consequência de sua expulsão da instituição estabelece,
baseado no seu aprofundamento na psicanálise freudiana, uma forma peculiar de pensar a
formação do analista e a transmissão da psicanálise em sua época.
“Fundo - tão sozinho quanto sempre estive em minha relação com a
causa psicanalítica - a Escola Francesa de Psicanálise, da qual
garantirei, nos quatro próximos anos pelos quais nada no presente me
proíbe de responder, pessoalmente a direção.
Esse título em minha intenção representa o organismo em que deve
realizar-se um trabalho - que, no campo aberto por Freud, restaure a
sega cortante de sua verdade; que reconduza a práxis original que ele
instituiu sob o nome de psicanálise ao dever que lhe compete em
nosso mundo; que, por uma crítica assídua, denuncie os desvios e
concessões que amortecem seu progresso, degradando seu emprego.”
(Lacan, 1964)

A partir do ato de fundação que Lacan estabelece como um convite e uma proposta a
um retorno primordial aos pressupostos freudianos, pôde-se repensar então a questão da
formação do analista, agora, por uma nova ótica. A psicanálise de caráter subversivo ganha
mais corpo a partir das suas influências e quebras realizadas em relação ao caráter
institucional. Nesse sentido, Lacan diz de um organismo, e não mais de uma instituição
caraterizada por regras, rituais e processos engessados na formação do analista, o que,
também, não deve ser confundido como algo simplista, desorganizado ou desregulado.
Lacan enfatiza a orientação em relação à experiência da análise pessoal, bem como o
estudo e aprofundamento da teoria e o estudo dos casos em supervisão. Como já foi dito, a
padronização não ressoa com a singularidade do candidato a analista e o engessa em normas e
regras que o colocam num lugar de obrigação. Portanto, para além de uma conduta ética,
assim como Freud preconizava, Lacan nos convida a pensar uma psicanálise que oferece
impacto e interfere nas questões sociais e políticas através de sua prática. Esses valores
expressavam sua ênfase na individualidade, na ética e na integração entre teoria e prática.
Além dessas orientações pautadas na singularidade, no desejo, na ética e no rigor
técnicos e práticos, Lacan abre para mais possibilidades, tais como a estruturação dos cartéis e
o passe. Dispositivos de formação que tiram o analisando da lógica institucional e hierárquica
e o coloca como agente de transformação, formação e de transmissão da psicanálise de forma
ética e valorosa.
REFERÊNCIAS

FREUD, S. Fundamentos da Clínica Psicanalítica. In: Obras Incompletas de Sigmund


Freud. Trad. Maria Rita Salzano Moraes. São Paulo: Autêntica,2017.

LACAN, Jacques. Ato de Fundação [1964-1971]. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2003, p. 235-247.

LACAN, J. Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956. J. Lacan,


Escritos, Páginas 461-495. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

Você também pode gostar