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CONVERSAS DE FUTEBOL - JORGE MACIEL

Apresento uma entrevista que realizei junto ao professor Jorge Maciel, que é uma das
referências atuais no que diz respeito a Periodização Tática. Referência pelo contato
direto com o professor Vitor Frade e pelo conhecimento que tem sobre o assunto, que
pode ser conferido em seu livro citado abaixo, e por sua vivência de campo.

A entrevista será postada em 3 partes (pois é extensa tendo no total 50 questões), da


forma como foi feita. Quando a realizei, embora tenha me concentrado bastante para
formular perguntas que eu acreditava e acredito serem pertinentes as dúvidas de
quem segue ou quer seguir este caminho, percebi depois que faltam ainda alguns sub-
temas que são interessantes e que gostaria de em breve publicar, vamos trabalhar
nisso. A ideia central sempre foi de tentar esclarecer a interpretação de todos que não
tem o contato direto com estas pessoas.

Enfim, a entrevista foi respondida pelo professor Jorge Maciel, e corrigida pelo
professor Vitor Frade, portanto o teor é fiel a raiz da Periodização Tática. Mais uma
vez agradeço ao Jorge Maciel pela disponibilidade em disseminar a ideia sobre este
tema tão apaixonante e que hoje de fato é uma febre mundial, e tem provocado muitos
atritos, e a orígem disso pode ser exatamente interpretações erradas. Desde já peço
desculpas pela minha ignorância e repetitividade em alguma questão feita, o
documento foi feito por completo, entregue, repondido e devolvido, o que dificulta
pequenas questões sobre dúvidas que surgem em algumas respostas, porém o
próprio Jorge se disponibilizou a responder alguma dúvida que vier a surgir.
______________________________

Jorge Maciel

METODOLOGIA, TREINO E IDEIAS SOBRE FUTEBOL.

• Licenciatura de Desporto, na Universidade do Porto (FADE-UP) - Opção de Futebol


concluída em 2008.

• Ligação profissional ao futebol no desempenho do cargo de treinador da formação


em vários clubes: Gil Vicente Futebol Clube, Academia de Futebol Bragafut, FC Porto
– Dragon Force.

• Actual membro da equipa técnica de Baltemar Brito no Al


Dhafra Club – Abu Dhabi (Emirados Arabes Unidos), com quem também trabalhou no
Al Ittihad Tripoli (hexacampeão da Líbia) até fevereiro passado, data em que tiveram
que abandonar o país devido a problemas sociais e político naquele país.
• Autor do livro “Não o deixes Matar. O bom Futebol e quem o joga. Pelo Futebol
adentro não é perda de tempo”. Livro que é a adaptação da tese de licenciatura,
classificada com 20 valores na FADE-UP.

QUESTÕES

Luis Esteves: Jorge, primeiramente gostaria de lhe agradecer a disponibilidade


em compartilhar conosco seus conhecimentos sobre o futebol e os diversos
temas que compõem o jogo, não tenho dúvida de que suas palavras serão de
grande valia para o desenvolvimento metodológico do futebol, faço minhas as
palavras do Nuno Amieiro no seu livro sobre a defesa à zona, não discutiremos
pessoas aqui, somente ideias.

Vamos às questões:

1. Luis Esteves: Na sua opinião, o que é a Periodização Tática, e porque usa-la


como metodologia de treino?

Jorge Maciel: A Periodização Táctica é uma metodologia de treino de futebol


desenvolvida pelo Professor Vítor Frade que apresenta Princípios Metodológicos
próprios e que concebe o processo de treino como um processo de
EnsinoAprendizagem. Trata-se de uma metodologia cujo propósito fundamental passa
pela aquisição de uma forma de jogar servindo-se para tal de uma lógica diferente da
que convencionalmente se adopta para o futebol. Também por esse motivo tem
Princípios Metodológicos próprios, que rompem com os que habitualmente vigoram no
treino de futebol. Para mim, é a forma de treinar que mais se ajusta ao fenómeno em
questão porque é aquela que lhe reconhecendo a essência, organizativa, colectiva,
intencionalizada e complexa, procura desenvolver e fazer evoluir uma forma de jogar
tendo em conta tais aspectos. Daí que entre as muitas vantagens que apresenta, uma
delas passe pela não perda de tempo com aspectos acessórios.

No entanto, um aspecto que penso ser muito importante para se perceber o que é de
facto a Periodização Táctica, passa pela necessidade de compreender,
convenientemente os termos que compõem tal designação. Trata-se de facto de uma
periodização, uma vez que há necessidade de distribuir temporalmente, ainda que não
de forma linear, a aquisição de um determinado jogar. Táctica, porque tal designação
para nós assume um entendimento bem mais profundo que aquele que por norma
dela se tem. Entendemos a Táctica como sendo uma Supradimensão, que se assume
como modeladora de todo o processo de treino. E entende-se por Táctica uma
realidade - um jogar – dinâmica e complexa que se manifesta como
interindependência organizacional intencionalizada. Preocupada com tal propósito a
Periodização Táctica reconhecendo que o jogar é uma realidade a construir e em
permanente construção tem como grande pretensão fazer emergir de tal processo
essa Táctica, isto é, uma intencionalidade colectiva partilhada e intencionalizada, a
qual ao manifestar-se de tal forma e com regularidade se revela como uma
emergência assumida como que um aspecto cultural por parte daqueles que a
partilham. Mas para que tal seja possível torna-se fundamental que o processo permita
o desenvolvimento concomitante, ou seja, simultâneo desse saber fazer com o saber
sobre esse saber fazer, pois somente desse modo se observa que em cada indivíduo
que compõe aquele grupo, equipa, se deu a InCorporAcção desse jogar. Uma
aquisição individual feita tendo por base referenciais e propósitos colectivos que ao se
manifestarem de forma colectiva, coordenada e sincronizada revelam uma verdadeira
cultura específica, visto que o que manifestam é parte de cada um e de todos ao
mesmo tempo. Estando estabelecida a fusão entre aquela que é a pretensão, a
Intenção Prévia, e aquilo que é de facto manifesto, a Intenção em Acto. A busca de tal
forma sublime de expressão colectiva, permite que um grupo considerável de
indivíduos, sobrederteminados por um determinado quadro de valores, pense em
função da mesma coisa ao mesmo tempo.

Mas tornar tal grau de mestria concretizável não é fácil e muito menos simples. Daí
que a Periodização Táctica tendo tais pretensões, diferentes das comummente
referidas pelas metodologias do treino, tenha igualmente pressupostos transgressores,
que passam desde logo pela necessidade de conceber o processo como uma
realidade dinâmica e complexa, pela necessidade de conhecer o Ser que joga – com a
particularidade de se tratar de uma realidade em que o Homem mais do que agir se vê
obrigado a interagir, o que implica por sua vez dar importância não somente às
estruturas efectoras do movimento mas também às que o comandam e controlam.
Implica portanto conceber-se o Corpo como uma realidade inteligente. Outro
pressuposto fundamental passa por reconhecer alguns traços caracterizadores da
modalidade, nomeadamente a sua natureza complexa, competitiva o que implica que
o treino respeite a matriz da competição, e mais precisamente do que se deseja em
competição em termos gerais. Temos ainda que reconhecer que outro aspecto
identitário do fenómeno é a sua pluralidade, o que nos leva a ter de tomar opções no
sentido de adoptarmos uma concepção de jogo, a qual deverá ser vivenciada e
adquirida tendo por base os Princípios Metodológicos da Periodização Táctica em
contextos de prazer e paixão, pois está mais do que provado que o desprazer é
contraproducente quando nos referimos a processos de EnsinoAprendizagem.

Face a tais pretensões e pressupostos, claramente transgressores, depreende-se que


a sustentabilidade científica que existe, apesar de muitos dizerem que não e de
intencionalmente a ignorarem, é também ela marginal e marginalizada. A Periodização
Táctica, entendo ser a metodologia mais ajustada para o futebol porque tem uma
validação e suporte teórico único e cada vez mais robusto, cuja aplicabilidade se
argumenta e fomenta na prática. Tem portanto validade prática como comprova o êxito
de alguns treinadores e um suporte científico muito consistente. Não é uma ciência do
abstracto, é uma ciência in vivo. É uma Ciência de facto, que curiosamente nasce da
intuição fundamentada de uma pessoa, o Professor Vítor Frade, que com base em
informações provenientes de diversas áreas – ostracizadas nalguns casos -
entrecruzadas com as suas vivências de terreno, reflexões pessoais e um corte com o
que se encontra institucionalizado possibilitou uma visão operativa diferente da forma
de treinar em futebol. É uma Ciência que apesar de alguns a designarem de
“vanguardista” na verdade não o é, pois os seus pilares fundamentais começam a ser
edificados em 1970, com base em fontes dessa época e ainda anteriores. Encontra-se
na esteira do pensamento sistémico e como tal coloca a enfâse nas relações, na
qualidade e nos padrões, sem refutar na sua evolução a intuição, mostrando assim
que tal como treino, também a Ciência de qualidade requer Arte.

2. Luis Esteves: Como define a o princípio da Especificidade?

Jorge Maciel: Desde já importa salientar que não se trata de um Princípio


Metodológico, resulta da concretização interactiva dos Princípios de Jogo e dos
Princípios Metodológicos – que dão vida aos primeiros – e de tudo o que envolve tal
operacionalização. Trata-se da face visível de todo o processo. E pode definir-se como
sendo a concretização de uma intencionalidade colectiva, o tal jogar acima referido,
num determinado contexto, resultando de tal processo uma identidade de jogo, um
jogar, singular. Importa ter consciência que se trata de uma noção probabilística
identificadora quando se manifesta regularmente, isto é como padrão, sendo por isso
mesmo simultaneamente uma utopia - pois não existe como reprodução fiel da nossa
concepção ideal, nem existe em permanência, mas em tendência – é uma emergência
– visto tratar-se de uma realidade resultante da conexão das partes acima referidas, e
cuja articulação quando feita organizadamente se assume superior ao que resulta da
soma de cada parte individualmente. Pode por isso designar-se como Supraprincípio,
ou seja, como Imperativo Categórico.

De uma forma resumida pode dizer-se que a Especificidade é o que diferencia e


identifica os jogares das diferentes equipas. É o que nos torna singulares num
fenómeno plural. E felizmente nos nossos dias, temos um exemplo paradigmático
relativamente àquilo que é ter uma identidade de jogo, e ainda por cima de qualidade.
O caso do Barcelona, que é uma equipa que independentemente de, devido a
diversas condicionantes, apresentar melhores ou piores desempenhos, poder ser um
retrato mais fiel ou caricaturado, não deixa de manifestar uma identidade colectiva
única, padronizável a nível dos grandes princípios, mas também em níveis
organizativos menores. É uma equipa incrível, que independentemente do padrão de
problemas que tem pela frente provocado pelos adversários e dos problemas com que
pontualmente se debate também pela elevada densidade de jogos que tem, não refuta
a sua identidade e parte dela para engendrar soluções no sentido de superar os
condicionalismos que surgem. É a imagem mais acessível que podemos ter daquilo
que representa a Especificidade, podiam aparecer em campo sem equipamentos e de
máscaras que saberíamos que se tratava da equipa do Barcelona que estava a jogar.

3. Luis Esteves: Como define o princípio das Propensões?

Jorge Maciel: Tenho notado que as pessoas que se tentam interessar pela
Periodização Táctica, estão muito sintonizadas com a terminologia, no entanto,
parece-me ser superficial. Daí eu dizer que estão sintonizadas, mas não identificadas.
Parece-me que se fala e se usam os conceitos sem verdadeiramente os apreender e
compreender. E isso parece-me válido para o que em geral se refere à Periodização
Táctica. As pessoas aderem, mas de forma superficial e pensam ser o suficiente. De
facto é chamativa, desde logo por ser diferente, contracorrente, e por as pessoas a
associarem ao José Mourinho, mas não é simples. Por isso faço aqui esta advertência
que talvez se venha a revelar válida para muitas das questões que se poderão seguir.
Entendo que mais do que definir, embora tal seja pertinente para que todos tenhamos
o mesmo comprimento de onda, importa perceber e apreender a dimensão operativa
de cada Princípio Metodológico, pois somente deste modo se poderá operacionalizá-
los convenientemente.

O Princípio Metodológico das Propensões refere-se à modelação dos contextos de


exercitação, com o intuito de criar contextos relativos a um jogar que possibilitem um
aumento de densidade do que se deseja manifestar como regularidade. Modela-se os
contextos para que estes, não perdendo a sua natureza aberta, sejam facilitadores e
catalisadores dos propósitos desejados. Em tais configurações de exercitação o papel
principal é dos jogadores, devem ser eles a decidir e a interagir, desencadeando uma
dinâmica que não deixando de ser determinística, por estar sobredeterminada a
determinados propósitos, intencionalidades, não perde a dimensão imprevisível. Este
Princípio Metodológico permite por isso que o caos seja de facto determinístico.

A ideia de propensão tem a ver com o facto de ser mais propício ou provável a
ocorrência de determinado acontecimento, no caso do treino de futebol, determinada
interacção. Daí a ideia de modelar o contexto no sentido de tornar mais provável
aquilo que se deseja que aconteça . Um aspecto relevante prende-se com o facto de
ter de ser deliberadamente propenso, isto é, deve ter subjacente uma intencionalidade
ou conjunto de intencionalidades conformes com o modo como queremos que a nossa
equipa jogue e conforme as preocupações que entendemos mais prioritárias naquele
momento do processo. Somente deste modo se torna possível que a configuração
dada ao contexto, juntamente com uma intervenção condizente durante a exercitação,
despoletem interacções que ao acontecerem façam emergir de forma exponenciada
os critérios subjacentes aos nosso Princípios de Jogo. E falo em critérios e não de
comportamentos, pois como referi, o papel principal no fazer e no aqui e agora, é dos
jogadores. Ainda que seja relevante a intervenção de quem orienta o exercício.
Destaquei também o papel da intervenção, porque é esta que conjuntamente com a
modelação do contexto que vai servir de catalisador e de meio para aproximar os
critérios que os jogadores manifestam com os desejáveis para a forma como
queremos jogar. E quando a identificação com o que queremos está ainda num
momento inicial, e o que desejamos é contrário ao historial de quem vai dar vida ao
que executamos, os jogadores, a discrepância pode ser grande. E se não temos isso
em consideração estamos a ser uma espécie de autistas do treino, porque ignoramos
a realidade com que lidamos e de que partimos para o que queremos. Partimos muito
mais de nós do que dos jogadores para chegar ao que queremos, o que penso ser um
erro. E esse aspecto, no que á construção de exercícios diz respeito, faz com que
sejamos descontextualizados, e por norma leva-nos a criar contextos desajustados, na
exigência, na funcionalidade… Pensamos que criamos um exercício fantástico e
depois saímos do treino e os jogadores também completamente frustrados. Nós,
porque a dinâmica desejada não aconteceu e os jogadores, porque não conseguiram
perceber o exercício, nem o seu transfere para o jogo, além de ficarem angustiados
por se sentirem desconfortáveis por tudo isso. Daí que tenhamos que ter em
consideração que este Principio Metodológico deve ser equacionado e
operacionalizado tendo em conta as implicações e relações que estabelece com os
outros Princípios Metodológicos. Por esse motivo devemos ter em consideração, por
exemplo qual o estado de maturação, digamos assim, em que o processo se encontra.
E aqui entra a Progressão Complexa, por exemplo, recentemente estivemos na Líbia e
tínhamos de ter muita preocupação com estes aspectos, tínhamos a limitação da
língua, além de termos um grupo de jogadores que não estava habituado a treinar
desta forma. E tudo isso tinha que ser pesado com muita sensibilidade, as variações
que fazíamos dos exercícios eram muito ténues. Tinha-mos um conjunto de exercícios
que usávamos diferenciadamente em função dos dias e da lógica de alternância
desejada, e aqui entra o Princípio da Alternância Horizontal em especificidade, mas
não variávamos a configuração dos mesmos, de forma significativa nas várias
semanas, uma vez que estávamos há pouco tempo naquele contexto e sentíamos que
havia necessidade de identificação da parte dos jogadores no que á dinâmica e aos
propósitos aquisitivos dizia respeito. Penso que a sensibilidade para estes aspectos é
fundamental, e por vezes penso que os treinadores, não sei se ignoram, mas relegam
para segundo plano por pensarem que se torna mais fácil mostrar que sabem muito de
treino, se fizerem muitos exercícios e diferentes e se estiverem constantemente a
mudar e eu penso que não, e senti isso mesmo na experiência que tivemos na Líbia.
Penso que ter sensibilidade para estas coisas pode ser mais distinto de treinador de
qualidade do que fazer muitos exercícios. Não estou a falar em fazer sempre o
mesmo, mas antes ter mestria para perceber quando e como mudar, quando e como
manter – que não requer menos talento que para mudar -, quando e como ajustar e
reajustar os contextos de exercitação. É a gestão destes aspectos que permite
alimentar constantemente o processo sem que ele estagne ou cristalize. Como o
fazer?! Isso é que é mais complexo e difícil, criar rotinas sem cair na rotina requer
muito de Ciência, no sentido de respeitar uma matriz metodológica, mas não menos
de Arte, no sentido de perceber e agir em conformidade do que cada momento do
processo exige. É a isto que o Professor Vítor Frade chama de Sentido da Divina
Proporção, um MetaPrincípio.
4. Luis Esteves: Como define a Alternância Horizontal?

Jorge Maciel: É um Princípio Metodológico da Periodização Táctica, que conforme se


depreende do nome visa distribuir diferenciadamente, daí alternância, o que é dado a
vivenciar aos jogadores nos diferentes dias que compõem o Morfociclo, daí horizontal.
Em especificidade porque o que os jogadores vivenciam nas diversas unidades de
treino obedece sempre, em maior ou menor escala, a uma matriz comum e que se
reporta à nossa forma de jogar, ou seja, a especificidade vivenciada nos vários dias do
Morfociclo é parte do todo maior que é a nossa Especificidade.

É este Princípio Metodológico em relação com os demais, que permite que a


alternância efectuada ao longo do Morfociclo seja feita convenientemente, permitindo
consequentemente que através da sua repetição continuada, no que á lógica diz
respeito ainda que o conteúdo possa ser diverso, o Morfociclo se constitua como uma
invariante metodológica. A qual deverá vigorar desde a primeira semana de treinos,
com o intuito de induzir nos jogadores uma adaptabilidade a essa mesma matriz
metodológica, tornando-se numa regularidade e como tal possibilitar que os
desempenhos colectivos sejam também eles regulares. Contrariando desse modo, as
lógicas convencionais que sugerem lógicas oscilatórias e que se reflectem numa
montanha russa de desempenhos ao longo da época. É precisamente isso que se
evita na Periodização Táctica, procurando-se a estabilização sem cristalização de uma
forma de treinar, acredita-se que o mesmo sucederá com a forma de jogar que emerge
desse treinar.

Pode referir-se que este Princípio Metodológico tem como propósitos; induzir nos
jogadores uma habituação a uma lógica de relação entre recuperação desempenho,
assegurar a que a equipa se apresente “fresca” nos momentos de competição sem
que para isso hipoteque a possibilidade de evolução do jogar precisamente pela
relação que estabelece e contempla entre TreinoCompetição. Para que tal seja
possível, evita que cada sessão de treino seja um conjunto de várias coisas com
dominâncias aquisitivas, metabólicas e contrácteis diversas, isto é, tenta evitar o erro
que é a dita alternância vertical. Tem como grande preocupação também a não
massificação das estruturas implicadas na vivenciação do jogar, e aqui entendendo o
Corpo como um todo, fazendo-o através de uma lógica de distribuição que respeita as
directrizes propostas pelo Morfociclo Padrão.

Outro aspecto fundamental relativo a este Princípio Metodológico, e que é na verdade


o seu grande propósito, passa pela necessidade de salvaguardar que a nível individual
os efeitos e repercussões de cada sessão sejam garantidas. Ou seja, tem por
pretensão induzir uma adaptabilidade a nível individual que possibilite a manifestação
qualitativa de uma intencionalidade colectiva. Trata-se portanto de uma adaptabilidade
individual, que importa salientar se encontra sobredeterminada por propósitos
colectivos, isto é, parte do colectivo para o individual e não o contrário. E que além
disso, não tem necessariamente e muito menos em dominância, que ser induzida com
base em contextos de exercitação individualizados. Esta preocupação com a
dimensão individual é fundamental, porque uma equipa é feita de vários Eus, e quanto
melhor eu como treinador assegurar que tais partes se encontram aptas para o que
desejo, melhor será o contributo destas para o que conjuntamente emergirá como um
todo, o jogar da equipa. Esta lógica de alternância proposta pela Periodização Táctica
é a única que conheço que permite atender aos propósitos que referi antes. Visa a
melhoria de um todo organizado, por acrescento de complexidade intervindo sobre
diferentes escalas de diversas dimensões, e aqui refiro-me não somente às escalas do
jogar – Princípios, SubPrincípios… - como também às diferentes escalas da equipa –
Individual, Sectorial, Intersectorial, Colectiva… - e às diferentes dimensões implicadas
na vivenciação do jogar – padrão de contracção muscular, padrão metabólico,
desgaste emocional...

Para entender esta forma de treinar, é necessário perceber-se e saber como lidar com
a noção de “MicroMacro” e com o Principio Hologramático. E isso passa por
reconhecer que ao se exponenciar as partes sem perda de relação com o todo, este
ultimo poderá aceder a níveis de complexidade continuadamente crescentes, claro
está, se a fractalidade for devidamente entendida e como tal não nos levar à
fatalidade. Recentemente lia um livro de Henry Laborit de 1971, em que ele já falava
destes aspectos, e que penso ser muito pertinente para realçar a necessidade de estar
atento aos níveis mais micro do jogar e de operacionalizar convenientemente a
alternância ao longo das diferentes unidades de treino. Dizia, “a morte do organismo
implica a do órgão, mas o mais vulgar é a morte do órgão implicar a morte do
organismo.”

5. Luis Esteves: Como define a Progressão Complexa?

Jorge Maciel: Este Princípio Metodológico realça um aspecto muito importante e que
marca claramente a diferença relativamente à generalidade das metodologias do
treino de futebol. Coloca a enfâse na Qualidade, ou seja, nas relações e na
Intensidade e não na Quantidade, ou seja, no volume. O Princípio Metodológico da
Progressão Complexa refere-se à necessidade do processo obedecer a uma lógica
que vá do menos complexo para o mais complexo, mas sempre em complexidade, isto
é, sempre tendo por base uma determinada intencionalidade ou qualidade que se
pretende fazer emergir através da operacionalização. Não se trata de ir do simples
para o complexo, como sugerem a generalidade das didácticas, mas sim ir construindo
e ir alimentando a complexidade inicial fazendo-a evoluir para níveis cada vez maiores
de complexidade, por isso trata-se de uma Progressão Complexa.

Mas importa não ignorar outro aspecto, é que ela é também complexa por se tratar de
uma progressão não linear. Trata-se de uma progressão espiralada, pois desenvolve-
se em torno de um eixo, que no caso é a nossa Intenção Previa. No entanto, o
processo é altamente dinâmico desenvolvendo-se e sendo caracterizado por
constantes avanços, mas também retrocessos sem perda de relação com o referencial
que o sobredetermina, e que como tal lhe dá sentido, o sentido que desejamos. Por se
tratar de um fenómeno complexo o processo é gerido na fronteira do caos, e tem
presente o conflito permanente provocado pela necessidade de estabilidade sem
cristalização. Requer por isso da parte do Treinador muita atenção a todos os
aspectos implicados no processo e sobretudo muita coerência entre o que faz e o que
deseja que aquele colectivo manifeste. A gestão deste processo, feita no fio da
navalha, torna fundamental a dinâmica altamente complexa que se estabelece entre
Quantificação à Priori e Quantificação à Posteriori. A primeira refere-se ao retrato
projectivo, geral, que se faz para o processo, isto é, faz-se uma análise aos três
tempos, passado, presente e futuro. Um apelo portanto a níveis de consciência
altamente elevados. A segunda, Quantificação à Posteriori refere-se à necessidade de
a cada instante se ir gerindo e aferindo o sentido que o processo vai tomando, de
modo a torná-lo congruente e o mais aproximado possível com o retrato inicial. E
neste ponto uma vez mais me vejo obrigado a salientar a importância da sensibilidade
do Treinador para gerir estes aspectos, e fundamentalmente para hierarquizar. E
hierarquizar na Periodização Táctica, não tem nada a ver com catalogar sequências
acontecimentais ou prioritárias que sirvam de referencial para a acção dos jogadores.
Se assim fosse, seria um contra-senso pois isso o que promove é a robotização e não
a criatividade. Quando me refiro à Hierarquização de Princípios falo na necessidade
de se fazerem opções relativamente ao que deve ser dado a vivenciar aos jogadores,
no sentido de perceber o que é prioritário em cada momento do processo e treinar em
função disso. Inicialmente face às expectativas e aos objectivos dos clubes podemos
estabelecer prioridades relativamente à abordagem inicial a fazer-se e à enfâse mais
num determinado momento de jogo que noutro. Por exemplo se uma equipa tem
histórico de vitórias a prioridade em termos de dominância, no meu entendimento deve
ser dada, à partida, para os aspectos mais relacionados com o atacar. Mas à medida
que o processo se vai desenvolvendo vão emergir coisas novas, algumas condizentes
com o que desejo e outras nem por isso, há regularidades que eram mas deixam de o
ser, outras que não eram e passaram a ser… E tudo isto numa dinâmica constante de
TreinoCompetição a requer muita atenção e sensibilidade da parte do Treinador para
estabelecer prioridades a cada momento com o intuito de aferir para não se desviar do
caminho estabelecido à priori. De facto, “o caminho faz-se caminhando”, mas eu tenho
que saber para onde quero ir.

6. Luis Esteves: O que é o Modelo de Jogo na sua visão?

Jorge Maciel: Essa é uma noção central para quem quer perceber o que é a
Periodização Táctica. Aliás por norma há uma associação quase directa, por parte da
generalidade das pessoas, entre a Periodização Táctica e a designação Modelo de
Jogo. Contudo, penso não haver na generalidade das vezes uma correcta apreensão
daquilo que representa e é o Modelo de Jogo para a Periodização Táctica. Penso
mesmo que há uma banalização e consequente deturpar do conceito. Confunde-se
muitas vezes Modelo de Jogo com a concepção de jogo, a organização estrutural da
equipa, com o dito sistema de jogo e com outros aspectos. O principal motivo para tais
equívocos resulta das pessoas, e também as instituições, estarem ainda muito presas
ao convencionalismo científico. Mark Twain dizia que “para aqueles que têm apenas
um martelo como ferramenta todos os problemas são pregos”, e é precisamente esse
o problema que se coloca a quem quer seguir o caminho da Periodização Táctica, ou
seja o caminho da complexidade. Por isso mesmo tomando-se tal decisão, tem de se
ter consciência que se a nossa ferramenta é a complexidade então todos os
problemas são complexos e requerem tratamento complexo. Portanto, quando nos
referimos à noção de Modelo de Jogo cortamos com a ideia tradicional que resulta da
modelação matemática, linear. Referimo-nos antes a uma concepção bem mais
complexa e dinâmica da ideia de Modelo, o que implica a necessidade de conceber e
tentar perceber a complexa noção de Modelo de Jogo de acordo com a ideia de
Metamodelação ou Modelação Sistémica.

O Modelo é constituído por um conjunto de inúmeros aspectos, alguns mais


relacionados com opções do treinador, como a concepção de jogo, a metodologia de
treino, a operacionalização do processo, outros mais relacionados com os jogadores e
com a própria realidade do clube e o contexto envolvente. Aspectos que vão desde as
crenças de jogadores ou dirigentes, à história do clube, dimensão estatuto e
competência do departamento médico, a realidade competitiva, até as picardias e
rivalidades históricas que possam existir dentro e fora do clube. Pode dizer-se que o
Modelo é tudo. E por isso mesmo penso que a imagem mais capaz de o retratar é a de
um iceberg, à superfície, isto é a face visível, parece ser uma realidade circunscrita a
uma determinada dimensão e complexidade, mas na verdade é bem mais complexa e
edificada sobre muitos aspectos que não são visíveis à superfície, mas que se
assumem como fundamentais para a dimensão visível do Modelo. O Modelo é tudo e
resulta da interacção altamente dinâmica entre os aspectos visíveis e dizíveis com os
aspectos invisíveis e indizíveis que o compõem.

A melhor definição que conheço de Modelo é a do Professor Vítor Frade quando


afirma que “o Modelo é qualquer coisa que não existe, mas que todavia se pretende
encontrar”. Trata-se portanto de uma espécie de impossível necessário, que nós em
termos ideais concebemos, mas que depois na sua concretização não conseguimos
reproduzir tal e qual, pois ao nível do pormenor ele vai assumir contornos únicos
resultantes da interacção com o que o envolve. No entanto, não deixa, ou não deve
deixar de ter a configuração geral, os traços gerais daquilo que projectamos à partida.
Temos de estar conscientes que por se tratar de uma realidade aberta dele vão
emergir dimensões em termos de pormenor que nós à priori desconhecíamos. Muitas
vezes quando se fala em Periodização Táctica refere-se a seguinte citação, “o
caminho faz-se caminhando” e o Modelo é isso, faz-se modelando. O Modelo é o acto
de Modelação, é o processo, e resulta do entrecruzamento dinâmico e complexo de
uma intencionalidade estabelecida à priori com a sua operacionalização num
determinado contexto, o qual, conjuntamente com a gestão que dele vamos fazendo
vai permitir o emergir de uma realidade única, o nosso iceberg, o nosso Modelo de
Jogo.

É uma noção complexa e não facilmente entendível, porque causa em nós vários
conflitos. Desde logo, sendo tudo, uma realidade aberta, simultaneamente redundante
– porque nos seus contornos gerais deve ser padronizável – e imprevisível – em
termos de detalhe, coloca o treinador perante o aparente paradoxo que é o de ter de
gerir uma realidade que na sua essência é imprevisível. Para que seja capaz de o
fazer tem de aceitar que o seu controlo do processo nunca vai ser pleno, mas que
quanto melhor for, melhor será o processo. Para lidar com tal conflito importa perceber
bem o que se entende por caos determinístico, porque o Modelo de Jogo é isso
mesmo. É uma realidade dinâmica e complexa que assumindo contornos globais
desejáveis e estabelecidos à priori, concretizados pela modelação do processo, não
deixa de contemplar em menor escala uma dimensão imprevisível. O Modelo é sem
dúvida permeável ao que o envolve, no entanto, ele é tanto mais selectivo nessa
permeabilidade quanto mais consistente e coerente for a complexa e dinâmica
operacionalização do processo. E o que dota de consistência e coerência o processo é
o modo como o treinador gere os aspectos mais controláveis, que podemos designar
de plano cientificavel do processo. Um plano que é composto por uma matriz
conceptual, relativa à concepção de jogo que é padronizável nos níveis de
organização superiores, e por uma matriz metodológica, que se reporta aos Princípios
Metodológicos. Depois há o outro plano, que é uma consequência da essência aberta
do processo, é o plano do detalhe, do inopinado, que não é cientificavel, pois como diz
o Professor Vítor Frade “para o detalhe não há equação”. É um plano que sendo
imprevisível, contempla uma propensão para se constituir como um imprevisível mais
previsível. Isto porque surge sobredeterminado, ou seja como uma emergência
contextualizada pelo plano cientificavel do processo, daí caos determinístico.

7. Luis Esteves: Para o professor, o que a sua equipe precisa ter nas diferentes
dimensões do jogo em termos de grandes princípios, sub-princípios, sub-sub
princípios...?

Jorge Maciel: Na Periodização Táctica é fundamental, esse é um aspecto fulcral e um


pressuposto basilar para iniciar um processo de treino. O estabelecimento dos
contornos gerais da nossa forma de jogar é uma necessidade, uma vez que será em
função disso que o processo se desenvolverá, ou seja, é esse o sentido que
desejamos dar ao que emerge do processo. Sabemos que o futebol é uma realidade
plural, por isso temos que optar de modo a possuirmos uma identidade única, singular
num contexto plural. Daqui resulta a necessidade de sistematizar, nos seus contornos
gerais, o jogar a que aspiramos. Uma sistematização que deve contemplar a pesagem
de particularidades relativas ao contexto, sendo a partir dessa Quantificação à priori
que se desenvolverá o processo e que os aferimentos do mesmo, Quantificação à
posteriori, assumirão um determinado sentido.
Quando partimos para a idealização de uma ideia de jogo, considero que os
referenciais devem ser os de TOP. E devem ser de TOP ao nível da intencionalidade
que queremos que a equipa concretize e manifeste como regularidade, mas também
deve ter em conta que isso que nós desejamos expressar como padrão de jogo, dê
resposta aos problemas que se colocam a Top. Ou seja, a minha forma de jogar deve
atender também ao padrão de problemas que é colocado a Top. Quando o fazemos
devemos partir de pressupostos, que por serem excessivamente óbvios, por vezes são
negligenciados. Há verdades muito simples que as pessoas ignoram, mas que penso
serem as bases fundamentais para a sistematização de uma ideia de jogo. Por
exemplo, o futebol joga-se com bola, e só há uma, como tal se nós a tivermos os
outros não a têm, e tudo o que de relevante acontece em campo se faz com bola. Por
isso, um aspecto fundamental e que se assume como grande princípio, para mim
passa por ter a bola no meio campo adversário, porque se na dominância da posse,
claro está, com critério e objectividade, isto é no sentido de saber explorar os
desequilíbrios adversários para marcar golo, percentualmente a bola estiver muito
mais tempo connosco do que com o adversário, podemos mandar no jogo pois temos
o que mais importa e se a soubermos ter óptimo.

Outra verdade muito simples resulta do facto de que ganha quem marca mais golos,
face a este pressuposto a minha ideia de jogo deve ser construída tendo precisamente
por base esse pressuposto, a intenção de marcar golo, e não a de não sofrer. No
entanto, importa aqui ter em conta aspectos reactivos à Progressão Complexa, que
podem motivar que ao nível da operacionalização eu estabeleça como prioridade
inicial aspectos da organização defensiva. Contudo essa hierarquização não deve
deixar de ter subjacente a intenção de defender melhor, porque pode ser uma
necessidade prioritária naquele contexto, mas para atacar melhor e em função do
modo como desejo que a equipa ataque. Este parece-me ser um aspecto também
muito importante, e que passa pela coerência e pelo respeito pela inteireza
inquebrantável que o jogar deve manifestar de modo a que se expresse de forma
fluída, dinâmica, ou seja que revele ao nível da matriz conceptual articulação de
sentido com um determinado sentido. Uma qualidade de posse que é suportada por
vários aspectos, e que para mim passam pela variabilidade de ritmos, velocidade da
bola, variabilidade de passe, mudanças de lado da bola. Aspectos que por sua vez se
relacionam com a necessidade de uma organização posicional determinada, propensa
a tal intenção, e que me permite uma permanente relação triangulada e em losangos
entre os jogadores, o preenchimento de zonas centrais sem perda de largura e de
profundidade… Para esta forma de ter a bola, um aspecto decisivo passa também
pelas potencialidades e convicções dos jogadores, os quais devem gostar e sentirem-
se confortáveis com bola e tenham uma mobilidade funcional que salvaguarde a
manutenção da integridade da equipa. São todos estes aspectos e muitos outros, é
um nunca mais acabar, que concorrem para a concretização de uma posse de
qualidade, criteriosa.

Costumo dizer que para mim no momento de organização ofensiva a posse e


circulação da bola deve ser obliquada na divina proporção, isto é, não tem
necessariamente que ser dominantemente vertical ou horizontal, tem que ser tudo isso
em função do que as circunstâncias nos permitem e da nossa capacidade para as
decifrar, em suma, tem de ser uma posse e circulação levada a efeito com critério. E a
identificação e sintonização com aquilo que é critério, para mim, faz-se através do
processo. O objectivo do processo passa por dotar os jogadores de critério, para que
as respostas que depois são obrigados a dar em competição sejam condizentes com o
que desejamos. Eu para este momento de jogo, em termos ideais, embora seja de
grande dificuldade gostaria de ver uma equipa minha criar sucessivos engodos aos
adversários, criar-lhes uma ilusão. Geralmente procura-se que a equipa circule pelo
lado mais vazio de modo a evitar a pressão do adversário, embora este possa ser um
passo intermédio para chegar ao que desejo, o que de facto desejo é que a minha
equipa se sinta bem sob pressão, para que assim iluda o adversário atraindo-o para a
zona da bola, dando-lhes a sensação que nos vão matar, mas depois pela nossa
qualidade posicional, qualidade de passe sob pressão e pela nossa qualidade ao nível
da identificação dos desequilíbrios adversários e dos timings de entrada da bola,
sermos capazes de fazer sair a bola daquela zona explorando as zonas mais
desprotegidas, acelerando o jogo fundamentalmente através de passe.

No que diz respeito ao momento em que perdemos a bola a equipa deve manifestar
uma mudança de atitude muito forte e agressiva, a mudança de paisagem mental deve
ser imediata, ainda que a configuração e funcionalidade do modo como ataco deva
contemplar já à partida este momento. Portanto, estando salvaguardados esses
aspectos, quando se dá a perda da bola, o fundamental é que cada jogador por si,
mas sobredeterminado por um referencial colectivo, se ajuste imediatamente mude a
sua paisagem mental com o intuito de evitar a progressão da bola e a sua recuperação
o mais rapidamente possível. Para tal cada jogador e por conseguinte a equipa, como
resultado de um processo de ressonância empática deve pensar em função da mesma
coisa ao mesmo tempo, e devem saber decifrar o que é mais ajustado naquele
instante para impedir a progressão da bola, se pressionar imediatamente sobre a bola
tendo superioridade sobre a mesma, ou se pelo contrário é preferível pressionar para
retardar e dar tempo à equipa para reduzir o campo fechando espaços e criar
melhores condições para pressionar colectivamente.

Em organização defensiva a equipa deve evidenciar um padrão zonal pressionante,


capaz de provocar erros nos adversários forçando desse modo a perda da posse de
bola. Não nos devemos acomodar à ideia da necessidade de defender, de um modo
“extremista”, a equipa deve ter aversão a defender, ou seja deve ter repulsa
relativamente à necessidade de defender, mas simultaneamente e paradoxalmente
tem de se sentir confortável quando o tem que fazer. Para isso tem de defender com
qualidade para que os momentos em que se vê obrigada a defender sejam curtos,
porque induzimos o adversário a errar, mas claro sempre com critério e organização
colectiva, respeitando uma organização posicional que melhor nos permita atacar e
estar compactos quando temos de defender, o que passa por um escalonamento em
várias linhas tanto em profundidade como em largura. Além disso, a equipa tem de
reconhecer indicadores de pressão saber atrair e direccionar os adversários para
pressionar com êxito, reduzir o campo sabendo nessa intenção jogar com o fora-de-
jogo, o que é diferente de jogar em fora-de-jogo. Fundamentalmente, queremos
“mandar sempre”, mesmo quando não temos bola.

Relativamente ao momento do ganho da posse de bola, transição defesa ataque,


embora ele careça igualmente de uma mudança efectiva da paisagem mental, a
equipa deve ter subjacente o desejo de manter a bola em sua posse, como tal deve
evitar a sua perda imediata por querer arriscar e ver este momento como único
passível de explorar a desorganização adversária, como por vezes se verifica em
algumas equipas. A equipa deve ter a serenidade suficiente para perceber que se a
equipa adversária a defender está organizada, nós pela gestão que fazemos da bola
podemos criar-lhes instantes de instabilidade e desorganização. Penso que essa
sensação, de que se não é agora é daqui a pouco, é determinante para a equipa
quando ganha a bola ter a serenidade suficiente e necessária para decidir com maior
critério, porque não esgota este momento na finalidade de exploração imediata da
profundidade. É portanto uma serenidade, que realça a relevância que o ter a bola e o
atacar assumem para a equipa, e que dá variabilidade ao momento de transição
defesa ataque, porque não se fica preso a um fim único. O que por sua vez permite
que de facto se estabeleçam para este momento princípios e subprincípios, ou seja
critérios que suportam interacções e não comportamentos predeterminados, fins e
subfins. Para este momento a equipa deve ter como grande princípio assegurar a
manutenção da posse de bola. Como não sei? Mas o processo tem de permitir que
eles reconheçam qual o critério para o fazer em função da configuração
acontecimental do contexto. No entanto, tenho de criar condições para que tal se faça
eficazmente e confira maior número de possibilidades na concretização do princípio.
Aspectos que passam entre outros pela abertura de linhas, fazer campo grande, por
permitir que o portador da bola tenha condições para circular sendo-lhe assegurados
apoios recuados e em profundidade, mobilidade dos jogadores sem bola no sentido de
procurar receber a bola respeitando uma determinada organização posicional,
inteligência para decidir qual a melhor opção e qualidade também ao nível da
concretização para que a intenção não se fique por aí.

Nesta enumeração dos contornos gerais daquela que é a minha ideia de jogo não fiz
uma abordagem muito esquematizada dos Princípios de Jogo e SubPrincípios, mas
importa que as pessoas percebam aquilo a que se refere cada um para que a tarefa
de sistematização da ideia de jogo seja mais fácil.

Quanto aos Princípios, eles são padrões de intencionalidade relativos ao jogar que
sustentam os critérios expressos pelas várias escalas da equipa (individual, sectorial,
intersectorial, colectivo), e que ao se manifestarem com regularidade lhe conferem
identidade e funcionalidade nos vários Momentos de Jogo. São portanto ideais de
interacção (cooperante e conflituante) que acontecem em termos probabilísticos. Os
Grandes Princípios referem-se aos contornos gerais da nossa identidade. Os
SubPrincípios são as partes intermédias que suportam e corporizam essa identidade.
Os SubSubPrincípios são os aspectos mais micro, aspectos de pormenor à priori
desconhecidos, uma vez que surgem pela dinâmica do processo e emergem
sobredeterminados pelos níveis de maior complexidade, ainda que sem perda de
identidade ou singularidade. Por serem desconhecidos à priori eu não os posso, nem
devo estabelecer previamente, são particularidades que vão surgindo e que eu tenho
de saber aproveitar para alimentar e exponenciar o crescimento do meu jogar, que não
perdendo as formas do esboço inicial, vai assumindo uma configuração ao nível do
pormenor que é única. Tem de haver muita sensibilidade e receptividade da parte do
treinador, no sentido de aproveitar estas emergências de pormenor. Quando refiro
receptividade quero dizer abertura, pois só isso permite que eu aproveite e tenha
disposição, para partindo das minhas ideias rentabilizar e explorar os acrescentos que
o envolvimento me trás a tais ideias. Imagine-se por exemplo, que em termos ideais os
defesas laterais nos momentos de organização ofensiva se devem constituir como
apoios à posse, fazendo-o em posições não muito adiantadas de modo a contemplar
também o fecho da zona interior aquando da perda da bola. No entanto, se eu chego a
um clube e tenho um jogador como o Maicon, o Marcelo ou o Daniel Alves que
sabendo funcionar desse modo me trás também outras coisas, eu tenho de estar
sensível para aproveitar e exponenciar aquilo que eles fazem melhor, ou pelo menos
aquilo que os diferencia dos restantes e que se constitui como uma singularidade
optimizada pelo todo, se o perspectivar com abertura. Para isso, tenho de criar uma
subdinâmica colectiva que me permita que eles tenham condições para o fazer com
regularidade, sem que hipoteque a existência de apoios recuados à posse e circulação
nas zonas onde habitualmente jogam, assim como a necessidade de equilíbrio
defensivo no ataque. A riqueza do Modelo passa por isso, pela possibilidade de
contemplar a novidade sem perda de identidade e simultaneamente sem cristalização.

Importa referir que essas emergências de pormenor não são só aspectos a


exponenciar, não raras vezes constituem-se como aspectos a recusar, e eu tenho que
ter sensibilidade para perceber que em determinados contextos e situações os
princípios têm de ser fins. Como tal poderei ter necessidade de fechar, mas só o devo
fazer a partir do que depreendo do processo e dos contornos que este vai assumindo
no aqui e agora e não à partida. Se o fizer à partida, corro o perigo de cair na vertigem
de treinar sobre carris. Parto do pressuposto que os jogadores me podem dar tudo, em
termos de detalhe, o que entendo ser necessário para jogar o meu jogar com
qualidade, se verifico que há coisas que tenho de ser eu a regular externamente
porque eles não o fazem ou ainda não fazem, ok, aí o princípio (subsub) passa a ser
fim, mesmo que possa não ser de forma permanente mas temporária e transitória.
Cruyff diz que a melhor forma de ensinar não é proibindo, mas sim guiando, eu
concordo totalmente mas acrescento que por vezes para guiar se torna necessário
proibir. Mas a regulação do trânsito, que é a funcionalidade da equipa vai se fazendo,
sabemos o sentido a dar ao caminho e vamos colocando sinalização conforme para
que o caminho permita uma boa fluidez, por vezes colocamos sinais proibidos
generalistas, outros só a peões, outros só para bicicletas, outros para pesados… e
quando percebemos que o trânsito está a ficar regulado à nossa imagem podemos
tirar sinalização, porque pelo hábito já se tornou funcional.

8. Luis Esteves: Como o professor define a Articulação de Sentido?

Jorge Maciel: Trata-se de um conceito que vai precisamente ao encontro do cerne do


pensamento sistémico. A enfâse no pensamento sistémico é colocada nas relações, o
segredo está nas conexões. Ou seja, o sucesso do processo de treino tem a ver com
isto, depende muito do modo como eu articulo as coisas, isto é, como as relaciono e
partir daí teço a minha teia dinâmica. A Articulação de Sentido tem precisamente isto
subjacente e tem a ver com a conexão coerente que se faz entre as partes implicadas
no processo, e vale a nível da operacionalização dos Princípios Metodológicos e a
nível da manifestação e vivenciação dos Princípios de Jogo. Portanto, a matriz
conceptual para manifestar fluidez na sua concretização deve revelar internamente
uma determinada articulação de sentido, que sendo coerente permite o emergir de
uma realidade consistente, um Sentido, o nosso jogar, ou o sentido que queremos dar
ao nosso jogar. Também a matriz metodológica carece de coerência e de dependência
reciproca, visto que a operacionalização dos Princípios Metodológicos implica que
estes sejam contemplados de forma conexa, e claro está contemplando a relação
necessária com a matriz conceptual. Depreende-se deste modo, que a Articulação de
Sentido, se quisermos de mais larga escala, resulta da relação que se estabelece,
entre a matriz conceptual, a matriz metodológica e o contexto em que são levadas a
efeito. A possibilidade do treinador ter uma interferência catalisadora, enquanto
comando exterior ao sistema regulado ainda que fazendo parte dele, constitui-se como
a dimensão artística do acto de treinar. O plano da arte do treinador passa por ser
capaz de engendrar tudo isto, criando uma teia que faça sentido, dotado de
determinada lógica funcional sem perda de Sentido. É a Divina Proporção que de facto
permite que a Articulação de Sentido tenha, de facto, um Sentido.

9. Luis Esteves: Para o professor, qual a importância da estrutura de jogo no


modelo de jogo?

Jorge Maciel: É uma parte. Como tal devo saber reconhecer que com determinadas
estruturas as potencialidades são tendencialmente para um tipo de interacções cuja
propensão, à partida, me pode levar para um determinado tipo de jogo que pode ser
mais ou menos condizente com o que desejo. A configuração geométrica da equipa é
um aspecto muito importante no emergir e concretizar das dinâmicas e
intencionalidades colectivas, daí que para eu rentabilizar o meu jogar e exponenciar o
que desejo, deva saber o que cada estrutura me pode acrescentar, e nalguns casos
retirar face àquela que é a minha ideia de jogo. A opção por uma determinada
estrutura não deve ser uma decisão leviana. Além disso, temos de reconhecer que a
mesma estrutura em função de quem joga e onde, pode nos levar para dinâmicas
diferentes, aspecto que o treinador deve de uma forma geral conhecer, mas para tal
deverá treinar devidamente e ser muito inteligente para perceber o que cada jogador
poderá emprestar a cada estrutura e vice versa e também qual a posição em que o
rendimento do jogador vai permitir mais facilmente fazer acontecer, a nível mais micro
e consequentemente mais macro, o que eu desejo que aconteça.

A estrutura é uma forma, uma determinada configuração geométrica, que num


contexto dinâmico e orgânico carece de uma concepção topológica do que se entende
por forma. Ou seja a estrutura para permitir a concretização de um jogar de qualidade
deve expressar-se como uma Morfodinâmica fluida. Esta forma ainda que dinâmica,
não carece de integridade e simultaneamente de variabilidade sem perda de
funcionalidade. Aspectos que são assegurados, quanto a mim, pela existência de
subestruturas, nomeadamente, uma subestrutura fixa e outra mais móvel. A
subestrutura fixa deve resultar do posicionamento e mobilidade mais posicional dos
jogadores da zona central, guarda-redes, centrais, pivô e ponta de lança. É com base
nesta subestrutura, em meu entendimento, que deve girar a subestrutura mais móvel
composta pelos restantes jogadores. Funcionando deste modo, como um eixo mais
posicional em torno do qual a mobilidade dos demais se manifesta. Este parece-me
ser um aspecto fundamental.

Penso que uma equipa deverá saber jogar em mais que uma estrutura, o que implica
claro está que estas sejam devidamente treinadas. Eu considero que o ideal serão três
estruturas. Duas com quatro defesas, uma das quais com um avançado e outra com
dois, e aqui aponto para o 1.4.3.3 e para o 1.4.4.2. Como outra opção, e não
necessariamente a terceira em termos “hierárquicos”, penso ser importante a
existência de uma estrutura com 3 defesas em que a funcionalidade destes passe
fundamentalmente por equilíbrio defensivo e hipótese de funcionarem como apoio
recuado à posse e circulação.

Acho que se uma equipa dominar, incorporar, mais que uma estrutura tornar-se-á
menos previsível no modo como expressa as suas regularidades e como tal terá maior
adaptabilidade relativamente aos problemas que a competição lhe pode colocar. Para
isso o treinador deverá reconhecer qual a estrutura que em determinado contexto mais
se ajusta e decidir em conformidade, alterando a configuração, mas não a intenção,
ainda que daí resultem em termos de pormenor nuances que podem ser
determinantes. De uma forma geral, vejo a estrutura como um esqueleto, que é
animado pela dinâmica e intencionalidade colectiva. Precisando no entanto, de algo
que lhe dê alma, os jogadores, porque não existem estruturas funcionais no papel,
nem princípios sem pessoas. Agora, a engendração de tudo isto, lá está, carece
também de Articulação de Sentido.

10. Luis Esteves: O que é o Morfociclo Padrão? Como o professor fragmenta o


Modelo de Jogo na semana de treinos?

Jorge Maciel: Quando nos reportamos à Periodização Táctica devemos ter em conta
que um conceito operativo fundamental é o de Morfociclo Padrão. A designação
Periodização Táctica, tal como já salientei justifica-se por se tratar efectivamente de
uma periodização, ou seja, da necessidade de se estabelecerem marcos temporais
(ainda que não estanques) que vão permitindo a aquisição e o emergir de uma
determinada Intencionalidade Colectiva, isto é, de um jogar, ao longo da época. Nesta
forma de entender o treino e a periodização no futebol, é a um nível mais micro que
encontramos a unidade basilar de todo o processo de operacionalização. Trata-se do
Morfociclo Padrão, o qual permite com base numa periodização jogo a jogo fazer
emergir e dar vida ao jogar a que se aspira. O Morfociclo Padrão deve por isso, ser
entendido como um fractal de um nível mais macro de uma determinada Periodização
Táctica, uma vez que sendo uma periodização a mais curto prazo (ciclo entre dois
jogos) também ela deverá ter como matriz configuradora a presença constante de uma
Intencionalidade Colectiva, um jogar, que se deseja assumir e fazer expressar como
identidade para a equipa. Daí a ideia de Morfo, uma vez que se reporta a uma
determinada geometria dinâmica, um jogar. Mas para isso importa que se perceba o
que queremos dizer quando falamos em Forma, um conceito claramente distinto
daquele que convencionalmente se entende e que associa a forma à dita forma física.
Na Periodização Táctica não é nada disso, é uma forma topológica que como tal
posso modelar de diversas formas sem perder conexão com a Forma geral, a
intencionalidade colectiva portanto, mas jamais fragmentar no sentido reducionista do
termo, ou seja posso agir sobre essa forma desde que salvaguarde que não perde a
sua matriz, uma matriz que é comum e permanente independentemente da escala do
jogar a que me refiro – homotetia interna. O respeito por isso obedece a uma lógica
que se repete semanalmente na continuidade, daí ciclo, porque é cíclica. Um ciclo
compreendido pela distância temporal entre dois jogos. Este ciclo constitui-se portanto,
como uma regularidade metodológica, que por obedecer a uma determinada lógica de
alternância e de sequencialidade ao nível da dinâmica desempenho recuperação, se
torna padronizável o que justifica a noção de Padrão. É um padrão de conexão que se
estabelece na sequencialidade dos diferentes dias de treino, respeitando uma lógica
metodológica e tendo subjacente na sua vivenciação continua uma determinada lógica
de jogo, um jogar. A manutenção desse jogar, ainda que vivenciado em diferentes
níveis de complexidade, permite a manutenção e operacionalização de uma Forma. É
essa Forma composta por várias formas, descomplexificadas e complexificadas, que é
vivenciada continuadamente ao longo dos vários Morfociclos, ainda que em escalas
diferentes tendo em consideração a necessidade de alternância ao longo dos vários
dias, mantém a lógica ou o sentido metodológico porque o padrão de alternância se
repete, ainda que possa ter ajustes em função do número de unidades de treino entre
jogos, ou seja, é uma matriz que se concretiza ciclicamente, com contornos ao nível
da essência que variam consoante as prioridades momentâneas do processo, em
função das prioridades que estabelecemos ou hierarquizamos, mas respeitando a
repetibilidade de uma matriz metodológica que como tal se estabelece como
regularidade metodológica. É esta que confere ao processo estabilidade sem
estagnação, isto é, não perda de identidade fazendo-o evoluir continuamente. Em
suma, possibilita a concretização do Princípio da Progressão Complexa, uma gestão
feita na fronteira do caos, bastante complexa e difícil, decorrente da conflitual relação
entre integridade ou identidade e não estagnação ou cristalização. É neste aparente
paradoxo, fazer evoluir uma realidade que se quer estável, que o Morfociclo Padrão
assume um papel determinante, visto que permite por um lado a estabilização de um
jogar e por outro a progressão do mesmo, inclusive em diferentes escalas temporais.
A operacionalização de um jogar tendo em conta a padronização semanal da sua
vivenciação possibilita, a manutenção da integridade de uma identidade (um Táctico)
sem bloqueio evolutivo, isto é, sem fecho. Possibilitando desse modo uma evolução
espiralada, marcada pelo emergir de várias dimensões, algumas à partida
desconhecidas, sem que haja perda de identidade pelo facto desse processo evoluir
alicerçado numa matriz (a conceptual – o jogar, a Intencionalidade Colectiva, o
Táctico) que é sustentada pelos Grandes Princípios de Jogo, e pelo facto desse
processo ser operacionalizado tendo por base uma outra matriz (a metodológica –
Periodização Táctica) que é suportada pelos Princípios Metodológicos e pela sua
aplicação no respeito por um Morfociclo Padrão. O Morfociclo Padrão pode ser
definido como o núcleo duro do processo, uma espécie de célula mãe, pois a
qualidade da sua concretização é determinante para a qualidade do processo. O
Morfociclo constitui-se como um referencial processual, a repetição sistemática é a do
Morfociclo, daí que ele se constitua como uma regularidade. Trata-se de um algoritmo,
ou melhor dizendo como algoquedáritmo, visto que segundo a Periodização Táctica é
da conveniente operacionalização desta matriz metodológica, na continuidade, que
emerge uma dinâmica colectiva manifesta com dinamismo. Outro aspecto importante,
e que reforça a ideia que o caminho se faz caminhando, prende-se com o facto de ser
desta escala micro da nossa Periodização, conforme a sugeri antes, ou da repetição
continuada desta matriz, repetição sistemática, ainda que nuanciada em função da
dinâmica do processo, que emerge a configuração global da nossa época. Um retrato
que se vai fabricando com base num esboço geral e inicial do que queremos para o
processo e para o que dele emerge, o jogar.

Quanto à segunda questão, na verdade eu não fragmento nada, se o faço parto e


quando parto estrago. Pode parecer mais um preciosismo, mas os conceitos que se
utilizam podem ter subjacente uma determinada identificação com o que se deseja, ou
uma identificação indesejada. A noção de fragmentar pode nos levar, ou ser mais
conotada com uma concepção reducionista, e com o paradigma da disjunção. A noção
mais correcta é descomplexificar ou complexificar, daí a ideia de níveis de organização
e o sentido do conceito reduzir sem empobrecer. Mas respondendo à questão o que
complexifico ou descomplexifico, ou seja o que modelo é o jogar. Aliás é esse o
propósito da Alternância Horizontal em especificidade fraccionar, ou descomplexificar
e distribuir ao longo dos ciclos semanais as especificidades do nosso jogar em função
dos vários dias que compõem os Morfociclos. São esses vários níveis da nossa
especificidade que sustentam e poderão levar ao manifestar dessa Especificidade.

O fundamental da operacionalização do Morfociclo, e daí resulta o modo como modelo


as sessões de treino, passa pelo entendimento do que fazer em cada dia. Em termos
de pormenor, isto é, nos conteúdos a levar a efeito, a Periodização Táctica não diz o
que fazer, isso compete a cada um em função da sua capacidade e da sua realidade.
Mas a Periodização Táctica fornece referenciais gerais, que orientam e proporcionam
uma configuração a cada sessão que permite cumprir de forma conveniente a relação
desempenho recuperação que se deseja. Portanto a operacionalização bem
conseguida do Morfociclo depende do modo como eu concebo cada uma das suas
partes constituintes, ou seja cada unidade de treino. O que implica também que devo
ter muito cuidado na gestão de todos os dias, porque se admitimos que a realidade é
complexa e caracterizável também pela extrema sensibilidade às condições iniciais eu
não posso alienar o mínimo pormenor. Infelizmente, é o que não raras vezes se
verifica, com facilidade se percebe que a generalidade dos erros observados na
operacionalização, ou tentativa de operacionalização da Periodização Táctica,
decorrem da não compreensão do Morfociclo Padrão e no que tal implica em cada
unidade de treino e nos seus conteúdos. Penso por isso ser muito pertinente salientar
alguns referenciais gerais para cada dia que compõe o Morfociclo. Assim na segunda-
feira, ou no dia imediatamente a seguir à competição é concedida folga. E folga é isso
mesmo, é folga. É desligar da realidade do treino. A terça-feira é um dia, para os que
jogaram, dominantemente direccionado para a recuperação. Não deixa de ser
aquisitivo, mas importa perceber que este aquisitivo tem como principal enfoque criar
condições para adquirir nos dias que se seguem. É uma unidade de treino que deve
implicar pouco desgaste em termos emocionais, o que implica que não tenha
preocupações aquisitivas muito evidentes, mas é um treino em que os conteúdos a
levar a efeito devem obedecer à mesma lógica de desempenho que provocou fadiga,
pois só deste modo eu salvaguardo que estou a incidir sobre a mesma matriz que
motivou fadiga, e consequentemente permitir a recuperação. Mas a recuperação só é
assegurada se eu estimular o organismo com situações fundamentalmente jogadas, e
levadas a efeito com “intensidade elevada”, mas de pouca duração e proporcionando
que os tempos de recuperação sejam proporcionalmente muito superiores. Este treino,
ainda que não deva ser o único, deve ter uma envolvência emocional caracterizada
pela boa disposição. Na quarta-feira, um dia já mais conotado com a dimensão
aquisitiva do processo, é o dia dos subprincípios e dos subsub em regime de
dominância da tensão da contracção muscular. Neste dia importa ter em conta que a
totalidade da equipa pode ainda não estar totalmente recuperada do momento de
competição anterior, motivo que conjuntamente com o tipo de padrão gestual
dominante faz com que seja o mais descontínuo dos treinos da semana. Os exercícios
de treino devem conter bastante estorvo, de modo a implicarem constantes
reajustamentos (a nível da decisão, e da execução), sendo por isso um treino onde a
proprioceptividade está bastante implicada e exponenciada. São contextos de
exercitação onde estão implicados efectivos numéricos reduzidos, realizados em
espaços igualmente reduzidos e que devem proporcionar elevada propensão para a
ocorrência de uma gestualidade com muita excentricidade (contracções musculares
excêntricas) mas sempre tendo como propósito fundamental a vivenciação de escalas
menores do nosso jogar. Os períodos de exercitação são curtos, e os de recuperação
devem ser significativos e sucessivos. Na quinta-feira, pela distância temporal
relativamente ao jogo anterior e ao jogo seguinte, realiza-se o treino mais desgastante
da semana. É o mais desgastante, pois os propósitos têm presentes as grandes
escalas, os Grandes Princípios do nosso jogar. Apresenta por isso um padrão de
desempenho semelhante ao dos momentos de competição, requerendo por isso
contextos de exercitação onde interajam efectivos numéricos maiores, daí ser também
mais desgastante. Os contextos de exercitação além de efectivos numéricos maiores,
apresentam também uma duração maior e são realizados em espaços de grandes
dimensões, ainda que não necessariamente a campo inteiro. Trata-se do mais
contínuo dos treinos, ainda que dentro da continuidade deva ser o mais descontínuo
possível. A sexta-feira é também dia de subprincípios e subsubprincípios, mas difere
da quarta substancialmente pela dominância ao nível da contracção muscular incidir
sobre a velocidade de contracção. O que implica desde logo, que os contextos de
exercitação contenham pouco estorvo, logo reduzida oposição. Aquilo que deve
dominar neste treino são situações de elevada velocidade de execução e de decisão,
daí a necessidade de evitar tudo o que se possa constituir como ruido. A prioridade
neste treino é fazer, apelo dominante ao córtex motor, àquilo que fazemos com
espontaneidade, àquilo que é hábito. Relativamente a este treino o Professor Vítor
Frade costuma dizer que “devemos chutar para sexta todas as acções que tenham
pouco estorvo”. A alusão ao “chutar” é intencional e sugere que deverá ser nesta
unidade de treino, comparativamente com as demais, onde a densidade de situações
de finalização deve ser maior. Importa relativamente a este dia salientar que ele não
deve ser um dia de muito desgaste, porque lhe antecedeu um treino desgastante, e
porque se aproxima mais um momento de competição. Por esse motivo o treino
deverá ter uma descontinuidade considerável e deve proporcionar situações ou
contextos em que os desempenhos se manifestem de forma breve. O sábado, mais
um dia dominantemente da esfera da recuperação, apresenta uma dupla necessidade,
a de recuperar e a de simultaneamente préactivar os jogadores. Nesta unidade de
treino as situações devem ter baixa complexidade aquisitiva associada, geralmente
levada a efeito no sentido de reavivar o que se fez ao longo da semana. Os exercícios
devem recriar o jogo, em escalas menores, e devem implicar reduzidos tempos de
participação e uma densidade muito baixa. Relembro que o propósito é recuperar e
não acentuar fadiga, daí ser também uma sessão bastante descontínua.

Termino esta questão salientando, que há uma tendência muito grande para nos dias
que antecedem a competição, nomeadamente sexta-feira e sábado, se dar grande
enfâse a aspectos de complexidade acrescida e em contextos excessivamente
jogados, com muito estorvo. Isto é para mim um erro, porque pelo tipo de desempenho
que tal exige, não permite estar fresco no momento de competição. Penso que isto
apenas não é mais evidente, por se constituir como uma tendência geral e como tal,
motivar que a generalidade das equipas compita em igualdade ao nível da não
frescura. Tudo por não devido cumprimento da alternância sugerida pelo Morfociclo
Padrão.

11. Luis Esteves: Como faz em semanas de dois jogos?


Jorge Maciel: Recupera-se. É fundamental perceber-se que quando a densidade
competitiva é grande, o mais relevante é recuperar e entender que em tais
circunstâncias menos é mais. Vocês no Brasil dizem que «muita água mata a planta»,
e excesso de treino mata os jogadores e consequentemente a equipa.

Unanimemente os treinadores de futebol concordam que após jogos exigentes, e


quem tem elevada densidade competitiva geralmente tem elevada exigência em
grande parte dos jogos, são necessários quatro dias para que a recuperação total da
equipa esteja assegurada. Poderá haver alguns jogadores que necessitem de menos
tempos, mas o grosso não menos de quatro dias. Este parece-me ser um pressuposto
fundamental ater em consideração, se empiricamente se reconhece isso, não faz
sentido que no período entre jogos muito próximos a minha prioridade seja treinar no
sentido de o fazer de forma dominantemente aquisitiva, ou no caso de outras formas
de treinar, fazê-lo de modo a “matar” os jogadores de cansaço. A ideia dos quatro dias
conta para após e antes, ou seja, desde o último momento de competição, mas
também do próximo momento de competição ao último dia de reino de maior
exigência. Muitas vezes posso ter esse espaço de quatro dias após o jogo, mas posso
não o ter desde o momento que vai desse quarto dia até ao dia da competição, então
as minhas preocupações passam por não instalar fadiga nos jogadores.

Os momentos de competição são altamente desgastantes, por terem implicações


bioenergéticas diversas mas também por serem altamente aquisitivos. Um desgaste
que ainda por cima, é exponenciado pelo facto de ser um estimulo aquisitivo menos
controlável da nossa parte, pois a imprevisibilidade a diferentes níveis está muito mais
marcada e muito menos dependente da nossa intervenção. Por isso, quando o tempo
entre jogos encurta, não há que ter receio de “não treinar”. Uma condição necessária
para adquirir passa por criar condições para adquirir, e isto torna-se possível se os
jogadores estiverem frescos. Deste modo, a grande preocupação passa por acelerar a
recuperação estimulando-os sem induzir fadiga, de modo que com a maior brevidade
possível eles estejam disponíveis. Se acelero a recuperação para depois os voltar a
fatigar em treino, o que eu quero que aconteça, nos momentos em que quero que
aconteça, nos momentos de competição, não vai aparecer. A equipa vai querer e não
poder, será uma equipa zombie, com boas intenções mas sem disponibilidade mental
e motora para concretizar a gestualidade que o jogar implica, ou pelo menos nos
timings que o jogo requisita.

A nossa experiência na Líbia foi muito rica também por esta problemática da
recuperação. Para nós era um imperativo porque quando chegamos a equipa estava
com bastantes jogos em atraso relativamente às restantes, porque tinha estado a
disputar até às meias-finais eliminatórias da CAF Cup. O que motivou que a densidade
de jogos da nossa equipa fosse bastante grande, tendo geralmente entre quatro a
cinco dias entre jogos. Face a este cenário a nossa grande preocupação era decidir o
que fazer para dar a entender que treinávamos, mas que na verdade pouco fazíamos.
A prioridade passava por manter os jogadores motivados e satisfeitos por virem ao
treino, por acelerar a recuperação dando-lhes estímulos que tinham a ver com o que
queríamos, em termos de pormenor, sem que lhes estivéssemos a induzir acréscimos
de fadiga. A verdade é que a nossa equipa apesar de ser a que maior densidade
competitiva apresentava era também a mais fresca, e isso valeu-nos bastante. Penso
que foi determinante esse tipo de preocupação, e as evidências eram claras. Por
exemplo marcávamos muitos golos a partir dos setenta minutos. As equipas
adversárias conseguiam aguentar uma intensidade boa durante algum tempo, e aqui
refiro-me, ao facto de serem capazes de concretizar o que pretendiam, mas depois
notava-se falta de frescura para manter tal intensidade e acabavam por deixar de
colocar os problemas que nos colocavam enquanto frescas. Nós pelo contrário
conseguíamos manter uma intensidade de jogo muito estável durante a totalidade do
jogo e como tal quando os outros baixavam por falta de frescura nós superiorizávamo-
nos, o que era evidente por conseguirmos mais golos nos períodos finais e no facto de
conseguirmos jogar dominantemente no meio campo contrário. Foi uma experiência
muito rica também por isso. Claro, que aqui também se deve considerar outros
aspectos, como a concepção de jogo e a rotatividade, mas fundamentalmente o
aspecto mais decisivo decorria da forma de treinar, “não treinando”.

Um aspecto que talvez seja pertinente referir em relação à questão colocada passa
pelo conceder ou não folga no dia após o jogo. Deve ser um aspecto ponderado e que
depende também das circunstâncias em que nos encontramos. Por norma, não
concederia folgas no dia após o jogo com o intuito de que o que vou fazer em treino
permita que eles estejam recuperados o mais rapidamente possível. No entanto, há
alturas em que devo ponderar a possibilidade de haver folga. E sempre que possível
devo-o fazer. Se até a equipa técnica sente fadiga nestas alturas, imagine-se os
jogadores. O estado de saturação dos jogadores e equipa técnica poder ser altamente
pernicioso e corrosivo, leva ao mau treinar, ao mau concretizar (jogadores e
treinadores) e por conseguinte ao mau estar. Quando a equipa entra num período de
elevada densidade competitiva, com várias semanas consecutivas a realizar mais que
um jogo, quando o padrão passa a ser esse e a rotina; treino, viagem, estágio, jogo,
viagem, treino… Devemos ter o bom senso de se possível conceder folga. Muitas
vezes as pessoas dizem «os jogadores ganham muito dinheiro, por isso têm é que
trabalhar e não ter folgas», mas as pessoas que dizem isso não sabem o quanto é
saturante para um jogador fazer a rotina que referi em cima, com a agravante da
pressão ser enorme, das deslocações, esperas e estadias em hotéis e aeroportos ser
altamente saturante. Nestes contextos é muito “saudável” para eles e mesmo para
nós, equipa técnica, desligar de tal realidade.

12. Luis Esteves: Como define os temas nos dias de treino? Tem alguma
propensão fixa diária como: Quarta-Feira aspectos defensivos, Quinta-Feira
aspectos ofensivos...

Jorge Maciel: Não, pensar desse modo não faria sentido, sobretudo se defender que
o treino dominantemente deve conter a essência do jogo, confronto, inteireza,
defender, atacar, transitar, aleatoriedade… O confronto é um aspecto determinante
porque nós jogamos sempre contra outra equipa, é ela que nos condiciona e obriga a
superar, por isso, mesmo que as minhas preocupações se centrem dominantemente
sobre um dos momentos não posso descurar os demais, o que não implica que na
intervenção as minhas preocupações não se centrem mais em determinados
aspectos. E claro, também a propensão do exercício e a minha intervenção, poderão
ser mais de encontro a determinados aspectos do que sobre outros. Para mim o treino
deve ser competição, e isto implica não somente o confronto e conflitualidade, mas
também a necessidade do meu processo ser fundamentalmente jogado. E se assim é
tem tudo, tem a inteireza inquebrantável do meu jogar, e da própria modalidade. Por
isso, podendo estar mais centrado em determinados aspectos relativos a cada
momento de jogo, em função das prioridades que estabeleço para aquele Morfociclo
ou unidade de treino, eu tenho de estar atento, intervir e permitir o vivenciar de todos
os momentos, para que eles ao acontecerem sejam consentâneos com o que desejo.
Não quero que passe a ideia que treino o jogar todo, não, nada disso, mas tenho de
treinar, enquanto treinador, tendo em conta o que quero para o meu jogar todo.
Conforme salientei anteriormente para cada dia do Morfociclo há indicadores claros
sobre o que treinar e como modelar a unidade de treino de modo a salvaguardar a
devida alternância. É com base nesses referenciais e nas prioridades que estabeleço
a cada momento e para cada Morfociclo, e isto é que é a hierarquização de princípios,
que defino o que treinar. Portanto, tenho necessariamente que saber o que treinar, ou
seja, qual a minha ideia de jogo, e saber qual o sentido que faz treinar determinada
coisa em determinado momento do processo. Depois tenho de saber que devo
obedecer a uma lógica metodológica, que estabelece para cada unidade de treino
determinadas directrizes. Unidades de treino que por esse motivo apresentam
propensões padronizáveis, mas ao nível da configuração das dinâmicas que compõem
a unidade de treino, e não no sentido de determinar que determinado dia corresponde
a isto e noutro àquilo, porque se o treino tem de contemplar inteireza inquebrantável,
isso não faz sentido, posso como já referi, face às prioridades que vou estabelecendo
dar mais enfâse neste ou naquele aspecto. Mas o grosso do processo deve conter
inteireza, logo não faz sentido estabelecer que hoje treino aspectos defensivos e
amanhã ofensivos, ou hoje aspectos de organização ofensiva e defensiva e no outro
dias aspectos relativos aos momentos de transição. Se quero que o meu jogo seja
inteireza e possa dar resposta à dinâmica conflitual e de oposição que vou ter em jogo
é assim que devo treinar dominantemente. Para mim é um erro, e que noto comum a
várias pessoas, associar a cada dia um momento de jogo, ou um propósito. Ou seja,
esta ideia de um dia um propósito não faz sentido, mas por si só não basta. Porque há
necessidade do treinador face à sua realidade, ao desenvolvimento do seu processo,
e às circunstâncias imediatas, estabelecer quais as prioridades “didácticas” digamos
assim, para cada momento do processo. Essa hierarquização que se faz
semanalmente resulta daquilo que o processo vai exigindo e do que eu desejo dele, e
aí os testes cruciais, isto é os momentos de competição, são muito importantes. É por
esse motivo que se tem como grandes referencias aquele que foi o desempenho no
jogo anterior e aquilo que penso virem a ser (em termos globais) as exigências do
próximo, é em função disso que se estabelecem prioridades para a semana de treino.
E claro, essas prioridades devem também ter em conta a evolução do processo, no
sentido de dar sequencialidade e consistência ao que vai sendo adquirido. Essas
prioridades só devem ser contemplados se alicerçadas naquilo que é essencial na
nossa forma de jogar, daí que não deva andar a saltar de umas prioridades para
outras, sem que haja subjacente um fio condutor, esse sim aquilo que deve ser
dominante e não tanto o erros do jogo anterior e a dimensão estratégica a contemplar
em função do jogo que se segue.

Concluindo, não penso que num processo que identifico como dinâmico e altamente
complexo faça sentido estabelecer propensões fixas para os diferentes dias em termos
de “temas”. Aquilo que tenho de saber é que face a um determinado contexto em que
o processo se desenvolve, eu tenho referenciais que me auxiliam no modo como dar
sequência e alternância às aquisições que se fazem ao longo da semana. É isso que
me permite operacionalizar tendo em conta que em função do dia, as escalas do jogar
a operacionalizar por nós, e vivenciar pelos jogadores são diferentes. E quando falo
em diferentes escalas do jogar refiro-me aos níveis de organização relativos á
complexidade aquisitiva do jogar (grandes princípios…), mas também ao modo como
estes são efectivados e as implicações subjacentes a nível do padrão de contracção
dominante e a nível metabólico.

13. Luis Esteves: Como o professor vê o período conhecido como “Pré-


Temporada”, que seriam os dias iniciais da temporada, cerca de 15 a 30 dias
dependendo do clube? Quais as preocupações com este período de tempo na
visão metodológica que defende?

Jorge Maciel: Para a Periodização Táctica designar este período da época de “pré
época” ou “pré-temporada”, não se ajusta porque já faz parte da época. Se assim não
for porque não abdicam dele? Geralmente designa-se de preparatório, no entanto não
é menos preparatório que o restante período em que há competição formal. Aliás deve
contemplar a mesma essência, tanto a nível conceptual como metodológico. A
finalidade deste período da época passa por possibilitar que a equipa desde o primeiro
jogo oficial revele um bom desempenho, isto é, eficaz e condizente com aquilo que se
deseja que a equipa manifeste como identidade. Claro que face à precocidade ou
imaturidade do processo, devo ter cuidados especiais nomeadamente, o estado de
possibilidade presente dos jogadores, estar atento à necessidade de agilizar o Corpo
que ficou adormecido durante as férias, ter atenção com os tempos de exercitação e
não menos importante com os de recuperação, que devem ser substancialmente mais
alargados. Mas fazendo isso e tendo esses cuidados, sempre tendo como pano de
fundo o que queremos vir a revelar como identidade colectiva, e aquilo que queremos
fomentar como fundamental do nosso processo de treino. Por esse motivo uma
premissa fundamental para que tal se verifique relaciona-se com a necessidade da
presentificação continuada do Morfociclo Padrão, fazendo com que esse padrão de
desempenho semanal vigore desde a primeira semana de treinos. Mas para que tal
suceda é fundamental que o treinador estabeleça previamente qual o caminho que
pretende percorrer, ou seja, qual a concepção de jogo que pretende operacionalizar no
seu processo. O que se pretende é que se treine em função da aquisição de uma
determinada adaptabilidade, a um processo de treino e a um jogar. Daí que se torne
fundamental que desde a primeira semana de treinos se procure instalar a habituação
a uma matriz metodológica (Morfociclo, e Princípios Metodológicos), que contemple a
relação recuperação desempenho que na continuidade vou ter ao longo da época. E
claro, simultaneamente também a habituação à Forma, o jogar que essa matriz
metodológica deve ter implícito, uma relação necessária, já por mim salientada numa
questão anterior. Acreditamos que o que faz neste momento da época é de facto
determinante, mas não no sentido convencional. Ele é determinante, porque inicia nos
mesmos moldes um processo de habituação que pela continuidade e repetibilidade vai
fazer emergir uma determinada identidade colectiva. Consideramos que o Morfociclo
Padrão sendo o núcleo duro do processo, permite a habituação a um padrão semanal
que contemplando de forma conveniente a dialéctica EsforçoDesempenho não
hipoteca a evolução qualitativa de um jogar (por respeito permanente da sua matriz), e
que para além disso, possibilita a habituação desde o início do processo a uma
elevada densidade competitiva por vivenciação de uma lógica de treino e de
alternância que mesmo na ausência de tal densidade a contempla como necessidade.
A vivenciação e consequente habituação por parte dos intervenientes do processo, de
modo mais evidente por parte dos jogadores, a um determinado padrão semanal,
Morfociclo Padrão, capaz de atender aos aspectos referidos, é determinante para que
a equipa se habitue à fadiga relativa que se verifica nos momentos de elevada
densidade competitiva. A existência desta matriz processual ou metodológica
(Morfociclo Padrão), que por sua vez tem subjacente uma determinada matriz
conceptual (concepção de jogo – Especificidade) torna possível que as equipas,
mesmo em períodos da época altamente exigentes e em regime de fadiga relativa
continuem a expressar desempenhos de qualidade sem perda de identidade e
funcionalidade fluida. Daí que considere este momento da época fundamental, mas
não menos que os que se seguem, pois é esse encadeamentos sequencial que vai dar
sentido a tal articulação.

Salientada que está a relevância de tal momento da época, importa ponderar vários
aspectos. Por exemplo, se se trata de dar continuidade, ou assumir pela primeira vez a
equipa, e no caso desta última se tal implica um ruptura metodológica e ou conceptual.
Não obstante as diferenças claras, as preocupações são sempre relacionadas com a
aquisição de um jogar, se estou a começar é mostrar a paisagem global do que se
pretende e ver o grau de adesão e de conforto de quem realiza. Se vou dar
continuidade aí importa reavivar e rever para depois fazer crescer o jogar. Se eu vou
dar continuidade a um processo, por exemplo quando inicío a segunda época no
clube, parto do princípio que já há uma determinada identificação com a minha forma
de treinar e de jogar. Nesse caso terei de atender ao que referi anteriormente, que é a
necessidade de agilizar o corpo e também terei de reavivar aspectos importantes do
meu jogar, através de uma lógica de treino que eles já conhecem. Se pelo contrário
estou a iniciar um processo onde tanto a metodologia de treino como o jogar são
diferentes daqueles que desejo, eu tenho necessidade de equacionar várias coisas.
Desde logo tenho que ter sensibilidade para saber como os trazer para o que desejo
sem conflituar com aquilo que eles têm incorporado. Tenho também de reconhecer,
que a manifestação do meu jogar, ou aquele que eu desejo, poderá implicar uma
adaptabilidade anatómica e biomecânicas distintas daquelas que eles manifestam,
fruto da habituação a uma determinada forma de jogar e de treinar. Esse é um aspecto
muito importante, que se eu não contemplo me pode prejudicar consideravelmente o
processo, pois a propensão para lesões, fruto de incompatibilidades corpóreas, poderá
aumentar consideravelmente. Por isso, quando inicio um processo e desejo
implementar uma forma de jogar e de treinar reconhecidamente diferente, deverei ter
sensibilidade para gerir muito bem as exigências e consequentes implicações motoras
que tal representa para os jogadores. Por isso tenho que ter muito cuidado com os
tempos de exercitação, de recuperação e com a necessidade de conferir
extensibilidade aos grupos musculares. Por esses motivos poderá até mesmo fazer
sentido realizar mais que uma sessão de treinos por dia. Mas não necessariamente
treinar a dobrar, opto por fazer duas sessões porque fracciono uma em duas para que
possa prolongar e salvaguardar devidamente os tempos de recuperação, o que
permite que os jogadores estabilizem melhor o que pretendo que adquiram, e tenham
melhores condições, pela maior frescura, para adquirir. Treinar com qualidade implica
isso, criar condições para adquirir e se o meu processo coloca a enfâse na
Intensidade, associada à concentração mas também á necessidade da concretização
se fazer com uma gestualidade fluída, ainda mais pertinente se torna. Além disso esta
estratégia de dividir neste período inicial da época as sessões de treino em duas
permite que os jogadores se mantenham ocupados, e como o treino não deve ser
castigo, ocupados com algo que lhes dê prazer. Mas só é prazer se não fizerem o que
convencionalmente se faz, e se de facto desfrutarem evitamos a maçada que é passar
tempo e tempo no hotel como sucederia se apenas realizássemos uma sessão de
treino por dia. Até por isso pode ser vantajoso, ou seja, para melhor rentabilizar o
tempo que os jogadores têm durante os períodos de estágio.

No que diz respeito mais concretamente ao que adquirir e ao modo como se processa
tal aquisição entendo ser fundamental estar receptivo àquilo que os jogadores
manifestam como parte deles. Embora a ideia de jogo seja nossa, são eles quem a
concretizam, daí que não devamos ignorar aquilo que eles são para que
paulatinamente os possamos trazer para o que desejamos que eles venham a ser.
Salvaguardando esse aspectos, devemos partir do global, isto é, de um esboço global
que vai sendo aperfeiçoado e aprimorado a nível de pormenor á medida que o
processo se vai desenrolando e assim me vai permitindo. O fundamental no inicio do
processo é transmitir a paisagem mental do todo. Levá-los a identificarem-se com o
que desejo, levá-los a vivenciar isso, e desde inicio sempre que tal se proporcionar
levá-los do fazer à consciência do que fazem, para que desse modo desenvolvam
concomitantemente o saber fazer e o saber sobre esse saber fazer.

A adaptabilidade que se pretende desde o início da época é em tudo idêntica, ainda


que diversa em grau, da que se deseja ao longo da época, motivo pelo qual, volto a
salientar, deve ser vivenciada desde o primeiro treino respeitando a lógica
metodológica prevalecente ao longo do processo, ou seja, em termos do que se
pretende para o jogar e para o modo como se leva a efeito, a nível geral, a matriz
mantém-se inalterada. Só deste modo se torna possível que a equipa, segundo esta
lógica de treino, possa estar em condições aceitáveis desde o primeiro jogo da época.
Este é mais um dos aspectos em que a Periodização Táctica se destaca, pois não
perde tempo com aspectos acessórios. E desse modo, centrando-se no essencial,
naquilo que é caracterizador e diferenciador dos desempenho de qualidade, a
organização colectiva, consegue que as equipas apresentem, se o jogar e o processo
tiverem qualidade, desempenhos de qualidade desde a primeira época. Isto é
possível, porque fruto de tal vivenciação continuada e desde início, se obtém uma
adaptabilidade a vários níveis, tendo subjacente ou sendo sobredetermianda por uma
ideia de jogo, que assim induz no Corpo uma adaptabilidade conforme capaz de
permitir a concretização dessa ideia. Uma adaptabilidade altamente complexa que
resulta da interacção entre a adaptabilidade motora e fisiológica que emerge e que é
condizente com a vivenciação de um determinado jogar. Permite portanto uma
adaptabilidade à intencionalidade colectiva, mais Macro, e uma adaptabilidade que
necessariamente se tem de instalar a nível do individual, mais Micro, tanto ao nível da
identificação com o que se deseja, como também ao nível da possibilidade do
organismo estar apto para manifestar e concretizar tal intencionalidade.

14. Luis Esteves: Como o professor idealiza nos dias da semana os assuntos a
serem treinados? Se possível dê um exemplo hipotético sobre uma semana de
treinos em termos de princípios, sub-princípios, sub-sub princípios...

Jorge Maciel: Quanto ao modo como idealizo as prioridades a serem treinadas em


cada unidade de treino, penso que já salientei numa das questões anteriores, e tem
fundamentalmente a ver com a necessidade de eu eleger para cada treino aspectos
que pretendo treinar, mas tendo sempre em consideração a necessidade de respeitar
uma configuração de exercitação que permita que a propensão seja a desejada e a
implicada nas subdinâmicas de cada dia.

Quanto a relatar uma semana de treinos, não parece que faça muito sentido porque
cada processo tem uma história, e cada semana as suas particularidades. Por esse
motivo determinadas coisas que se fazem podem aparentemente fazer todo o sentido
no abstracto mas não se justificarem naquele contexto, e o contrário também é
verdade, coisas que à partida são disparatadas naquele contexto podem fazer sentido.
Uma mensagem que importa passar, sobretudo se as pessoas querem de facto se
inteirar do que é a Periodização Táctica, é que a Periodização Táctica sendo uma
metodologia de treino de futebol atribui uma enorme relevância ás particularidades do
contexto em que é levada a efeito, e isso prende-se fundamentalmente não com a sua
dimensão formal, mas com a sua dimensão operativa. Por isso, não é nem pretende
ser uma metodologia in vitro, mas sim in vivo. As pessoas têm de perceber, e não ter
medo de tomar consciência que a realidade nos coloca perante contextos singulares,
em constante mutação e com particularidades únicas que não podem ser
descodificadas, em termos de pormenor, à priori. O processo de treino tem
necessidades circunstânciais, face àquilo que emerge do próprio processo. E o modo
como eu as devo solucionar deve estar balizado pelos nossos grandes referenciais,
mas para solucionar tais necessidades, temos de as reconhecer para gerir e actuar
sobre o processo em conformidade. Nesta gestão difícil e complexa é fundamental que
eu consiga articular de forma coerente e consistente a altamente dinâmica relação
entre quantificação à prior (concepção de jogo, um esboço geral) e à posteriori (os
acertos que vou fazendo para que o que emerge do processo não fuja da configuração
geral estabelecida á priori). O caminho faz-se de facto caminhando, e cada caminho é
singular porque tem configurações únicas, singulares que como tal requerem
ajustamentos em conformidade. Noto que há uma crescente necessidade da parte das
pessoas para procurarem receitas, mas isso não encontrarão na Periodização Táctica.
A Periodização Táctica estabelece pilares metodológicos que possibilitam que cada
um, dentro da sua sensibilidade e capacidade, seja capaz de dar vida e gerir o seu
processo. Por isso, em vez de receitas estereotipadas, e válidas para qualquer jogar e
para qualquer realidade, existem referenciais metodológicos que cada deve
operacionalizar e assim criar a sua própria receita. Por isso se diz que a Periodização
Táctica é um fato feito por medida e não um fato pronto a vestir. É portanto muito mais
a arte das trajectórias que a teoria dos alvos, requisitando por isso mesmo do sentido
da divina proporção por parte de quem dinamiza tal processo.

Acho que a única coisa que faz sentido é reforçar que nas terças feiras, as
preocupações em termos das escalas de complexidade do jogar centram-se nos
subprincípios e subsubprincípios, o mesmo sucedendo com a quarta feira, a sexta
feira e o sábado. Na quinta feira as preocupações centram-se nos grandes princípios.
Claro está, que cada dia leva a efeito tais propósitos com configurações de
exercitação, em termos de padrão, distintas, para que a propensão para as
subdinâmicas desejadas em cada unidade de treino se verifiquem. Penso que isto é
que é de facto o mais relevante, perceber o que fazer e como fazer em função de cada
dia do Morfociclo, pois é essa a base de que se parte para a construção das unidades
de treino. Depois a nuanciação que cada semana ou cada treino tem em termos de
pormenor, resulta tal como já referi da hierarquização que vou fazendo ao longo do
processo. Quero contudo aproveitar para reforçar um aspecto que me parece
pertinente. Devemos ter em atenção que para que haja coerência e continuidade no
que se deseja, e por conseguinte se torne possível o emergir de uma identidade, não
devemos andar a saltar de umas coisas para outras. O fio condutor deve estar sempre
subjacente aos propósitos a vivenciar e deve ser a partir dele que o jogar se
complexifica ao longo do processo. As prioridades que estabeleço semanalmente têm
a ver e têm de ter em conta o que está para trás, o presente e o que desejamos que
venha a ser o nosso futuro. Se semanalmente as prioridades deixam de ter articulação
com o que já existe e com o que esperamos que venha a existir, andamos a saltar e
perdemos o rumo do que desejamos. E isso por vezes acontece ou por excessivo
enfoque no erro verificado em competição, ou por exagero na dimensão estratégica ou
porque deixamos que o acessório prevaleça sobre o essencial.

15. Luis Esteves: Para o professor qual a importância do Erro no processo de


ensino?

Jorge Maciel: o erro é parte importante em qualquer processo de aprendizagem e


para mim o treino é isso mesmo, um processo de ensino aprendizagem. Perceber
porque se erra, alertar para o que está subjacente ao erro são aspectos
determinantes, mas para isso o processo tem de permitir o erro, o problema é que
muitas vezes a tensão criada pelos treinadores é tão grande que o jogador acaba por
ter medo de errar, e claro, erra ainda mais, ninguém lhe dá pistas para corrigir o erro, e
fica sem condições para lidar com o erro, entra numa espiral corrosiva. Além disso
parece-me que os treinadores querem sempre tudo muito direitinho, têm a vertigem
pelo controlo pleno das situações de treino, querem ser deuses de Laplace quando na
verdade a essência do Jogo não é essa. O Jogo tem erro, tem ruído, tem inopinado e
se treinarmos tentando diminuir isto ao máximo estamos a esterilizar uma realidade
que não pode ser colocada num tubo de ensaio. Se vivido in vitro os jogadores errarão
menos certamente, mas tornar-se-ão muito menos criativos e sucumbirão perante as
novidades e imponderáveis que emergem da estrutura acontecimental do jogo. Tornar
o erro fecundo, saber lidar com o erro e criar contextos que não o hipotequem é
também uma forma de potenciar a criatividade dos jogadores. Além disso há a
intervenção do treinador, que por vezes pode servir-se do erro como catalisador das
aquisições que pretende, e tal intervenção poderá servir não somente para quem erra
como também para os restantes jogadores. E aqui importa também salientar aquele
que é um dos grandes propósitos da Periodização Táctica, o desenvolvimento
concomitante de um saber fazer com um saber sobre esse saber fazer, pois é esse
saber sobre esse saber fazer que vai levar o jogador a tomar consciência que errou,
ou que determinado tipo de ajustamento ou resposta que dá ao contexto, segundo
aquele saber fazer é desajustado. Mesmo que tal não fosse noutro jogar, ou
relativamente àquilo que poderia ser anteriormente (com outro treinador) uma
prioridade, mas que agora se assume como um erro. O que reforça a dimensão
relativa do erro e a necessidade de sintonização com o que se pretende. Por exemplo
a maior parte das pessoas diz “que para trás anda o caranguejo” e quando vêm um
passe atrasado abanam logo com a cabeça, mas isso em determinadas circunstâncias
pode ser algo que revela um critério congruente com aquilo que eu posso desejar, logo
não valorizo como erro.

16. Luis Esteves: Como o professor vê a utilização de diferentes métodos


(visual, auditivo e cinestésico) para atingir o melhor entendimento dos
jogadores?

Jorge Maciel: São muito importantes, sobretudo as imagens no sentido de


sintonizar e tornar objectivável o que se pretende. Curiosamente na recente
experiência que tive na Líbia tive a confirmação que de facto assim é. Aquela
que foi para mim a melhor aula de língua árabe enquanto lá estive consistiu
numa ida ao hipermercado com o motorista. Foi muito engraçado, pois foi o
momento em que aprendi mais palavras árabes, porque apontava ou pegava
num determinado produto e perguntava qual era o nome em árabe. O facto de
poder ter persente a imagem ou o objecto tornava muito mais fácil a sua
identificação e a familiarização, praticamente sem qualquer margem de erro,
com a designação árabe do mesmo. Era algo de concreto, palpável. E penso
ser uma analogia muito significativa para aquilo que pode representar o recurso
a diferentes meios, no sentido de nos identificarmos com determinada
realidade, sobretudo se for uma realidade que é novidade para nós, como era o
caso da língua árabe para mim.

Na Líbia tínhamos talvez como principal barreira a comunicação verbal, como


tal tivemos de recorrer a vários meios. Usava-mos muito os vídeos, mas
também explicações no terreno com ajuda de pranchetas ou o que achávamos
necessário. E além disso marcávamos a nossa intervenção por uma grande
gestualidade. Comunicávamos muito com o corpo e tínhamos a preocupação
de ter muita atenção para perceber se o grau de sintonia e identificação
manifestado pelos jogadores era o mais conveniente ou não. Por isso, entendo
que de facto são muito importantes todos os meios que nos possam auxiliar a
passar a mensagem pretendida, mas não menos importante é ter a
preocupação de perceber se a mensagem está a passar, e a sensibilidade para
detectar se a mensagem que passa condiz ou é interpretada em sintonia com o
que desejamos. É por esse motivo, que a prática se torna fundamental,
devendo ser sempre o primado. Além disso o uso de tais instrumentos deve
fazer-se tendo muita sensibilidade relativamente à qualidade da mensagem, o
que se transmite e como esta é recebida, mas também tendo sensibilidade em
relação à dosagem da mensagem. Quero com isto dizer que devemos recorrer
a estes meios mas sem massacrar ou saturar os jogadores, porque se tal
acontecer a receptividade será diminuta e passamos para uma conversa de
surdos.
17. Luis Esteves: Qual a opinião do professor sobre os treinos coletivos,
11x11 (de conjunto em Portugal)?

Jorge Maciel: Se, se fizerem por tradição acho que é o fomentar de um mito.
Mas se pelo contrário tiverem outros propósitos, desde que o treinador saiba
quais, e como os enquadra na dinâmica de esforço recuperação semanal, não
vejo grande problema, se de facto entender que é importante. Por exemplo, na
Líbia nós tínhamos um plantel muito grande, chegamos a treinar com 32
jogadores, e quando chegamos o nosso conhecimento das potencialidades dos
jogadores era nulo, foi se tornando maior à medida que os treinos e os jogos se
foram desenrolando. Por tudo isso, decidimos que no dia a que se seguia a
competição oficial se realizaria sempre que possível um jogo para os jogadores
não utilizados, geralmente com equipas de segunda divisão. A realização
destes jogos era muito importante e tornou-se fundamental para a necessidade
de rotatividade que fomos tendo. Em 10 jogos não repetimos um onze titular,
porque havia selecções, jogadores suspensos devido a cartões amarelos,
lesões e além disso jogadores que graças a esses jogos nos mostraram que
poderiam ser soluções face a determinado tipo de problemas que a equipa
poderia enfrentar. Ou seja, foi mais um meio para conhecermos melhor o
plantel e as particularidades de cada jogador. Além disso devemos ter
consciência que um dos aspectos que mais deve preocupar um treinador é o
estado anímico e funcional dos jogadores que não são titulares. E a adopção
destes jogos foi muito importante também a esse nível. Os jogadores
empenhavam-se bastante e encaravam estes jogos de forma muito séria,
porque sentiam precisamente isso, ou seja, que o desempenho que naqueles
momentos revelassem poderiam pesar nas escolhas que se seguissem nos
jogos oficiais seguintes, e aliás nós fazíamos questão de salientar isso. E
podíamos fazê-lo porque apesar de se tratar de um plantel grande era um
plantel equilibrado em termos qualitativos, ainda que mal estruturado ao nível
do número de jogadores por cada posição.

A realização destes jogos foi uma óptima estratégia metodológica, porque nos
permitiu ver e conhecer melhor alguns jogadores em competição, acelerar o
nosso conhecimento em relação ao que podíamos esperar deles e o que nos
poderiam dar, e também acelerar a identificação deles com as nossas ideias e
com o nosso processo de treino. Nesse sentido tínhamos uma intenção clara e
que nos ajudou imenso, porque a competição, mais formal, não era descurada
e todos tinham possibilidade de ter um momento de competição regularmente,
a qual era devidamente enquadrada na nossa lógica de alternância. Tínhamos
atenção a alguns aspectos no sentido de controlar o tempo de participação
nestes jogos de alguns jogadores, por exemplo os jogadores que jogavam
alguns minutos na véspera apenas faziam meia parte ou pouco mais que isso,
os jogadores que não tinham jogado mas que tinham sido titulares
ultimamente, e como tal tinham maior densidade também raramente jogavam o
tempo todo. E o mesmo sucedia com alguns jogadores que regressavam após
lesão prolongada, e havia vários quando lá chegamos. Estes jogos eram muito
importantes para esses jogadores, porque lhes permitia um momento que eles
encaravam de forma ainda mais séria que o treino, mas com a tranquilidade de
ainda não ser a verdadeira competição. O que é um aspecto muito relevante,
porque os jogadores quando recuperam de lesões que os impedem de estar
disponíveis durante algum tempo têm muita necessidade de sentirem que são
capazes, porque se sentem inseguros e de certa forma desconfiados
relativamente à sua verdadeira condição. Então nós servíamo-nos destes jogos
para que esses jogadores fossem progressivamente integrados em situações
de carácter mais competitivo, adquirissem confiança e se sentissem seguros.
Porque muitas vezes mais grave que a lesão é a cisma que o jogador sente e
que o leva a pensar que ainda não está bem. Com estes jogos, e aumentando
progressivamente o tempo de intervenção destes jogadores conseguíamos
mais facilmente mostrar-lhes que estavam recuperados. Do mesmo modo, era
importante porque os jogadores sentiam que estavam preparados, a todos os
níveis, para entrar a qualquer momento. Muitas das vezes, quando não jogam
regularmente receiam poderem estar com défices do ponto de vista físico, para
muitos deles essa é mesmo a principal razão pela qual não jogam, porque
foram habituados nessa lógica. E a realização destes jogos ajuda-os a sair
dessa ilusão e prova-lhes que treinando bem, da forma como o fazemos, não
precisam de qualquer tipo de treino exclusivamente físico. Essa foi mais uma
constatação que pude reter, inicialmente quando lá chegamos alguns pediam
para dar umas corridinhas ou fazer outro tipo de coisas por pensarem que a
razão para não jogarem passava por possíveis défices do ponto de vista físico.
Quando tal nos era solicitado, tínhamos sensibilidade para perceber
precisamente porque sentiam tal necessidade, pois só desse modo poderíamos
desmontar essa mesma necessidade. Falávamos com eles e explicávamos-
lhes que se treinassem bem se, se empenhassem nas situações de treino não
sentiriam qualquer necessidade de após o treino fazerem o que quer que fosse.
A verdade é que passado menos de duas semanas já ninguém solicitava o que
quer fosse, e sentiam-se bem com aquela forma de treinar e aptos e
confortáveis quando eram chamados a participar em competição,
independentemente da utilização ser maior ou menor nos jogos anteriores.

No entanto, julgo que o propósito que leva os treinadores a realizarem a meio


da semana de treinos os ditos treinos de conjunto nada tenha a ver com as
preocupações que fui referindo. E aliás um aspecto muito relevante passa pelo
enquadramento que estes treinos por norma têm na semana de treinos. Um
enquadramento por vezes desajustado, por não respeitar o necessário tempo
de recuperação relativamente ao momento de competição imediatamente
anterior, ou noutros casos relativamente ao momento competitivo que se
segue, ou até mesmo relativamente a ambos. Aí penso que se trata de uma
opção por um treino generalista, que revela o não entendimento daquilo que
representa a fractalidade do jogar, sendo inclusive frequente ouvir-se os
treinadores que o fazem argumentar que “não há nada mais específico que o
11x11”. Nesse tipo de treino a propensão para o caos se tornar caótico é
claramente maior do que a que se verifica num treino que segue os referenciais
de alternância da Periodização Táctica no qual se abordam os grandes
aspectos relativos do nosso jogar. Nesse caso, a modelação dos contextos
permite-nos muito mais incidir sobre o que mais pretendemos em função da
hierarquização estabelecida para aquela semana e em particular para aquela
sessão, por isso mesmo, porque modelamos e conseguimos gerir melhor o
aqui e agora que num simples conjunto, a propensão vai muito mais no sentido
de fazer emergir um determinado caos determinístico.
18. Luis Esteves: Como se dá o processo de criação de exercícios na sua
visão? Quais as preocupações que tem e que parâmetros utiliza?

Jorge Maciel: O processo de criação de exercícios, conforme se depreende de


muito do que já referi resulta da contemplação de muitos aspectos,
fundamentalmente relacionados com o que treinar, ou seja, com a matriz
conceptual, e também relacionados com o como treinar, isto é, relacionados
com a matriz metodológica do processo. Um pressuposto fundamental passa
por saber o que se deseja treinar, e isto em termos gerais, tem a ver com o
jogar que queremos parir, mas também em termos de maior pormenor como
por exemplo equacionar o que fazer em cada dia. Os parâmetros que utilizo
são; escalas do jogar a vivenciar na unidade de treino em questão (grandes,
sub e subsub princípios), os níveis de organização da equipa (individual,
sectorial, grupal, intersectorial, colectivo), o padrão de contracção muscular
dominante, o espaço, o tempo tanto de exercitação como de repouso, os
efectivos numéricos implicados em cada situação, a necessidade de recuperar
dos desempenhos de treino e de competição, o assegurar do padrão
metabólico dominante desejado, o desgaste emocional… pois é tudo isto que
nos vai permitir dar uma configuração ao treino que nos leve para as dinâmicas
desejadas para cada dia do Morfociclo. E consequentemente, respeitar e
operacionalizar convenientemente o Principio da Alternância Horizontal em
especificidade. Depois a minha criatividade na criação ou até “roubo” de
exercícios deve também respeitar o Princípio das Propensões, para que
através do treino eu consiga potenciar o que desejo, e permitir que aquilo que
desejo venha acontecer, aconteça com regularidade. E claro, eu tenho de
perceber que a minha criatividade deve ter em consideração a minha realidade,
e o estado de maturação dessa mesma realidade, isto é o estado de
maturidade que o processo evidencia e o nível de adaptabilidade dos jogadores
ao mesmo. E aqui está manifestamente presente o Principio da Progressão
Complexa. É um aspecto muito importante, para a calibragem dos exercícios e
para que as rotinas não caiam em rotina, e estar consciente e saber o grau de
habituação relativamente ao processo, aos exercícios (ao nível da
configuração, da duração, da dinâmica desejada…) Por exemplo, e
relembrando, enquanto estivemos na Líbia, e de modo mais evidente nos
primeiros tempos, não variávamos muito os exercícios porque a identificação
dos jogadores com o processo era ainda recente. Tínhamos de ter
sensibilidade para não hipotecar a progressão do processo, devido ao desejo
de inovação. Era naquele contexto uma necessidade, e se não atendêssemos
a isso, o que possivelmente representaria perda de relação com o que já tinha
sido feito, correríamos o risco de entrar num processo de iniciação continua.
Nós tivemos que os habituar a uma forma de treinar, inicialmente sem
diversificar muito, ainda que respeitando a necessidade de alternância
horizontal. Não podíamos variar muito devido à precocidade do processo, à
existência de uma habituação contrária à que estávamos a levar a efeito e
também porque tínhamos limitações de comunicação. Este último aspecto, teve
um grande peso na configuração dos exercícios, pois motivou que tivéssemos
que ter grandes preocupações, no sentido do que fazíamos ser bastante
funcional e de o exercício ter necessariamente que ser propenso ao desejável.
A nossa intervenção, embora não feita em língua árabe, não deixava de estar
presente, através do inglês, da emotividade e fundamentalmente através de
muito linguagem corporal. O exercício sendo importante, e potencialmente
catalisador do que desejamos, necessita obrigatoriamente de uma intervenção
conforme, porque senão, a coisa rola, mas pode rolar de muitas formas e
muitas das quais contrárias e contraproducentes com o que desejamos.
Reforço por isso a ideia que o exercício por si só não basta ele é
potencialmente aquisitivo ou catalisador de aquisição, mas depois há que o
alimentar para maximizar as suas potencialidades. E o exercício é alimentado
pela qualidade de intervenção, gestão da qualidade dos desempenhos, dos
tempos de exercitação e de recuperação, componente emocional… Por isso é
que com os mesmos exercícios se obtém resultados muito diversos.

19. Luis Esteves: Que preocupação tem com os tempos de exercício e os


tempos de recuperação?

Jorge Maciel: Esse é um aspecto muito importante, e que por vezes as


pessoas que se dizem identificadas com a Periodização Táctica ignoram ou
não lhe concedem a devida relevância. Muito erradamente algumas pessoas
que se tentam identificar com a Periodização Táctica enfatizam
excessivamente a dimensão aquisitiva do processo, mas negligenciam a
dimensão bioenergética e motora que o suporta. É um erro, porque se de facto
é importante que os jogadores saibam como jogar e estejam identificados com
um jogar, não é menos importante criar condições que lhes permitam
manifestar esse jogar com qualidade. E para o fazerem é fundamental que a
dimensão metabólica e motora subjacentes á manifestação de um jogar sejam
equacionadas no processo de treino. Eu não posso querer uma equipa cheia
de boas intenções, eu quero uma equipa que seja capaz de concretizar tais
intenções, e só é capaz se em cada individuo, através da vivenciação de
referenciais colectivos em contextos diversos, se instalar uma adaptabilidade a
todos os níveis (aquisitivo – bioenergético - funcional…), que o permita. Para
que tal adaptabilidade se instale a relação entre os tempos de exercitação e de
recuperação é determinante. Essa relação, sendo diferenciada em cada dia faz
com que a descontinuidade em cada unidade de treino seja a desejada.
Descontinuidade que é fundamental, conjuntamente com outros parâmetros,
para assegurar a presentificação das subdinâmicas dominantes de cada dia, e
não menos importante para que o organismo experimente uma espécie de
resiliência biológica, necessária à sua maximização e consequentemente à
maximização do todo. Esta noção de resiliência metabólica tem a ver com a
necessidade de fatigar aquando da exercitação, para que posteriormente se
instale no organismo um estado de transcedência, após a necessária
recuperação se estabelecer. Isto implica de facto, conceber o Corpo e as suas
partes constituintes e prestativas como uma estrutura dissipava capaz, pela
confrontação e interacção com o contexto, de aspirar e evoluir para formas
superiores. Mas isso só é possível se eu permitir que pós exercício os tempos
de recuperação sejam devidamente respeitados, isto é, permitam que o
organismo não volte a ser estimulado e a estar implicado com índices de fadiga
acentuados e perpetuados.

Eu devo também ter em consideração que do modo como faço a gestão entre
tempos de recuperação e de exercitação, resulta uma determinada
adaptabilidade metabólica. E a incidência sobre uma determinada matriz
metabólica dominante no meu processo de treino deve ter relação com a matriz
metabólica que eu quero que a minha equipa manifeste quando joga. O que
quero com isto dizer, é que se em termos ideiais eu desejo que o meu jogar
tenha muitas variações de velocidade, com pausas, elevada intensidade
metabólica mesclada com instantes de baixa intensidade metabólica, à
semelhança do que sucede com os jogares de TOPTOP, como o Barcelona,
então o meu processo tem de respeitar esta matriz metabólica. Daí que se a
minha opção for um jogar deste género, e tendo em consideração que os
sistemas energéticos funcionam em simultâneo ainda que com dominâncias
diferentes, o meu processo de treino deve dominantemente permitir que os
contextos de exercitação incidam dominantemente sobre o sistema metabólico
dos fosfagénios. Pois é este que salvaguardados devidamente os tempos de
repouso, não me hipoteca a potenciação concomitante dos demais sistemas
energéticos e me permite que a adaptabilidade metabólica que emerge seja a
que eu desejo e por conseguinte também emirja a adaptabilidade anatómica e
funcional que este tipo de jogar tem implicadas. Somente se o processo incidir
sobre este padrão metabólico se torna possível que a adaptabilidade
incorporada seja essa e não outras, não raras vezes contraproducente
relativamente ao que desejo para o meu jogar, e em muito devido ao não
respeito da relação necessária entre os tempos de exercitação e os tempos de
recuperação.

O reconhecimento da necessidade dos tempos de recuperação, não deveria


ser estranho para quem treina de formas mais convencionais, no entanto,
parece que não é o que se verifica. E o motivo é simples, institucionalizou-se a
necessidade de treinar muito e de treinar cansado, mesmo que isso implique
contrariar princípios de treino tidos como fundamentais nessas metodologias.
Convencionalmente reconhece-se aos tempos de recuperação uma grande
relevância, naquilo que em termos convencionais se designa “prémio de
pausa”, e que suporta a ideia de sobrecompensão após um organismo ser
submetido a um estimulo. Após a administração de um estímulo,
convencionalmente designado de “carga”, verifica-se se a recuperação for
contemplada, a chamada fase de exaltação, na qual se dá um estado
optimizado do organismo. O que vai de encontro à ideia que referi
anteriormente de resiliência metabólica ou se quisermos orgânica. Torna-se
evidente, que mesmo aspectos tidos como basilares da teoria do treino, se
devidamente interpretados se constituem como as suas principais fontes de
refutação, e simultaneamente de sustentação inequívoca da Periodização
Táctica.
20. Luis Esteves: Se possível exemplifique em cada dia que tempos utiliza
e os tempos de recuperação:

Jorge Maciel: Também aqui faz sentido falar em singularidade do processo,


pois os tempos de exercitação não devem ser tidos como uniformes para
qualquer processo. Pode até ser pernicioso, para mim que os refiro, e também
para quem depois possa ler tais referências. Porque aqueles tempos para o
meu processo, podem ser ajustados, mas para outro processo serem
totalmente desajustados. E no que é que isso pode resultar, numa
adaptabilidade que emerge e que não respeita o que referi na questão anterior.
Eu compreendo a questão, e de certa forma até a considero pertinente, se é
relevante, então que tempos devo utilizar?! Não é. No entanto, acaba por ser
praticamente a mesma coisa que chegarem junto de mim e dizerem; «para
treinar isto que exercício usas?!» E eu dou um exercício que faço, e depois a
pessoa que me perguntou usa-o, mas não funciona porque se esquece que eu
o faço porque os jogadores estão englobados num processo que o permite.
Estão habituados ás dimensões do espaço de exercitação, têm qualidade para
o fazer, aquele exercício resulta da vivenciação passada de situações
semelhantes e que foram sendo complexificadas e nuanciadas… E nos tempos
de exercitação a coisa sendo diferente, e com escalas de variação
possivelmente menores, não é necessariamente muito diferente. Volto a
repetir, que as pessoas procuram na Periodização Táctica receitas, mas não
encontram porque cada processo é singular, cada um faz o fato à sua medida,
por isso é uma asneira querer receitas, cada um tem de ser o cozinheiro do seu
próprio jogar. Não obstante, sendo uma metodologia fornece, como já salientei
orientações para fabricar o jogar, Princípios Metodológicos. Mas aspira muito
mais a ser a arte das trajectórias que a teoria dos alvos, daí que se norteie pelo
ditado chinês que sugere que não se deve dar o peixe, mas antes a cana e
ensinar a pescar.

Depois repare-se, eu poderia dar algumas referências de tempo, mas isso


também depende bastante da própria configuração dos exercícios. Se eu faço
um exercício jogado o tempo será necessariamente diferente de uma situação
em que a exercitação se faz por vagas, ou de um treino em estrutura
holandesa etc., etc., etc…. Há exercícios que pelo modo como se realizam
asseguram-me o tempo de recuperação, outros não, são mais contínuos ainda
que a intervenção dos que nele estão implicados seja intermitente.

Aquilo que me parece mais ajustado, no sentido de dar a cana e ensinar a


pescar, é caracterizar os diferentes dias do Morfociclo em termos de
densidade. Densidade como sendo a relação proporcional entre o tempo de
exercitação e o respectivo repouso. Por exemplo 1/3, sugere que a cada tempo
de exercitação correspondem 3 de repouso. No entanto, devemos ter
consciência que a densidade sugerida serve exclusivamente como um
referencial geral que visa padronizar as dominâncias metabólicas requeridas, e
que faz sentido se a Intensidade de treino se revelar de facto como tal. Estes
referenciais não devem ser encarados de forma estanque e deverão ter em
consideração muitos aspectos, como a maior ou menor precocidade e
habituação a um processo de treino ou até a própria configuração dos
exercícios, conforme já salientei. Assim, de uma forma geral podemos
conceber para a terça feira uma densidade de 1/8 – 1/9, para quarta-feira de
1/4, para quinta-feira de 3/1 – 4/1, para sexta-feira de 1/8 – 1/9 e para sábado
de 1/10.

Quanto á gestão dos tempos de exercitação, importa ter em consideração que


quanto mais rápida a estimulação também será a recuperação desse
desempenho. No entanto, considero que mais importante que definir
taxativamente tempos é deduzir subjectivamente os níveis de fadiga dos
jogadores, porque o que se pretende é que eles se exercitem continuadamente
sem índices de fadiga não recuperados e não permitindo incidir
dominantemente sobre o padrão metabólico desejado. Nós podemos deduzir
os índices de fadiga dos jogadores através de indicadores indirectos como a
respiração, o modo como conseguem ou não falar, o decréscimo de
rendimento. Devemos estar permanentemente atentos a estes aspectos, pois
só salvaguardando que a fadiga não se reinstala, é que se torna possível incidir
sobre a matriz metabólica desejada, uma gestão que se faz com muita
sensibilidade e também ela na fronteira do caos, e na qual que mais vale pecar
por defeito do que por excesso.

21. Luis Esteves: Qual a importância das emoções no processo da


habituação? Como o professor gere o processo da emoção no treino?

Jorge Maciel: A emoção sabe-se hoje através das neurociências que são
determinantes em qualquer processo de habituação e de aprendizagem. Mas
mesmo empiricamente, podemos ter alguma percepção sobre o grau de
relevância que as emoções têm em várias aprendizagens que fomos
adquirindo ao longo da vida. As nossas vivências foram sendo marcadas
emocionalmente como nos explica a tese dos marcadores somáticos. Mais que
isso, sabe-se que o mapeamento das emoções tem repercussões notórias na
nossa postura, ou seja, naquilo que somos e no modo como interagimos com o
que nos rodeia. Face a isso num processo de treino, cujo intuito é a habituação
e aquisição de uma determinada realidade através da sua vivenciação
modelada, o papel das emoções é determinante. E deve estar presente em
quem aprende e em quem ensina. Não concebo uma realidade em que a
interacção humana esteja presente, sem qualquer tipo de emotividade. O treino
não pode ser emocionalmente neutro, a emoção, aspirante a sentimento, deve
ser parte necessária do contexto em que se desenvolve o processo.

A emoção e um conceito plural, capaz de se manifestar de várias formas e


inclusivamente de forma antagónica, por isso também a emocionalidade
presente no processo deverá ter o viés que queremos dar ao processo. O
treinador deve envolver-se emocionalmente no treino, mas deve ter
consciência da sua emocionalidade e fazer com que esta seja convergente
com o que pretende. Deve aculturar o seu subconsciente para que mais
facilmente e coerentemente aculture o dos jogadores. Para isso deverá reflectir
continuadamente sobre o processo, para que os modelos implícitos estejam em
sintonia com os seus modelos explícitos. Naõ deve deste modo haver da parte
do treinador conflitos emocionais, digamos assim. Se houver, poderão ser
facilmente apreensíveis através de incoerências ao nível da intervenção sob
pressão, mas também através de condutas bem menos evidentes. O que
sucede por exemplo quando o discurso não condiz verdadeiramente com as
suas convicções. Sabe-se a este respeito que temos a possibilidade de
contágio emocional à distância, conforme demonstram os corpos morficos, por
isso qualquer indício de incoerência, consistência ou de insegurança poderá ter
repercussões sobre o grupo, sobretudo se as ligações que com os seus
membros estabelecemos são fortes. Por tudo isso penso que o melhor modo
do treinador gerir a sua emotividade é, tendo consciência da mesma, e no
processo de treino manifestar paixão pelo que faz, pelas suas ideias e pelo
jogo de uma forma geral. Se for espontâneo ao fazê-lo conseguirá contagiar os
jogadores, que por sua vez em tal contexto emocional induzido pelo treinador
se sentirão mais receptivos para o processo. É fundamental assegurar que o
processo permite aos jogadores sentirem prazer e satisfação ao treinar, pois há
um pressuposto muito básico que quem ensina deve ter em consideração, só
se aprende o que se quer. E quando nos sentimos bem com algo é mais fácil
querer. Por isso é que o treino não pode ser castigo.

22. Luis Esteves: Qual a importância da Velocidade no futebol atual?

Jorge Maciel: Depende do que se entende por velocidade, pode ser


determinante, e pode ser um equivoco. A velocidade é para mim um conceito
polissémico, tem vários significados, ainda que normalmente esteja associada
exclusivamente à velocidade de deslocamento, muito por força do contexto
cultura instalado, um contexto onde a vertigem da pressa faz escola e nos
afecta subconscientemente e infelizmente de forma cada vez mais precoce. E
sendo o futebol um bom espelho da sociedade isso verifica-se no modo como
vivenciamos o jogo, cada vez mais frenético e sem lucidez, e no modo como o
concebemos e compreendemos, ou seja, acabamos por não tomar consciência
do quão perniciosa é esta vertigem para a qualidade de jogo.

Quando falamos em velocidade temos de ter noção que estamos a tratar de um


conceito plural e que como tal pode ter subjacente um significado muito
diferente daquele que à partida é o mais comum. Podemos falar mais
correctamente da velocidade da bola, de execução, de decisão, de
deslocamento, de reajustamento… Mas sendo o futebol uma modalidade que
implica coengendração entre as várias velocidades e entre estas e o
envolvimento que requisita e despoleta as suas manifestações, torna-se
necessário que estas tenham um cunho qualitativo e permitam dar as
respostas ajustadas às circunstâncias. No futebol a noção de timing é capital
para a sua concretização com qualidade, e refiro-me ao timing de efectivação,
de antecipação e de articulação entre as diferentes estruturas implicadas no
acto. Portanto a velocidade é de facto um aspecto determinante no futebol
actual, mas não a velocidade linear, tem de ser uma velocidade com curvas,
rectas, travagens, acelerações, desacelerações, e tudo isto em conformidade
com o que a cada instante o jogo e o jogar requisitam.

Paradoxalmente a velocidade só faz sentido se contemplar a existências de


pausas, caso contrário não é distinta nem um aspecto diferenciador em termos
qualitativos. Repare-se no caso do Barcelona, é talvez a equipa que mais
velocidade coloca no jogo, porque pela dinâmica que apresenta e identificação
ou incorporação com tal intenção, joga espontaneamente e de forma regular a
um toque. E jogar a um toque, com sucesso, é para mim a melhor expressão
do que deve ser a velocidade máxima no futebol, pois implica velocidade na
bola, na interacção agindo fazendo, e no constante ajustamento dos jogadores
que tal dinâmica implica. O Barcelona é de facto um exemplo muito bom
daquilo que deve, para mim, ser a velocidade e do que lhe deve estar
subjacente. Apesar de ser a equipa que mais facilmente e com qualidade, isto
é com critério, acelera o jogo é também a equipa que mais o pausa, tem
variabilidade de ritmos e de velocidades, conseguindo-o fazer sem perda de
critério na identificação dos instantes em que deve acelerar o jogo. É de facto
uma equipa inteligente, que joga com critério com toda a caixa de velocidades,
e como é um “carro” de TOP tem mais que as habituais seis velocidades. O
jogar de qualidade joga-se a 4 dimensões, e o Barcelona percebe essa
necessidade melhor do que qualquer outra equipa. Tem inteligência para gerir
bem a relação EspaçoTempo, percebe que parando pode alargar o tempo e
ganhar espaço para acelerar e colocar a velocidade necessária no jogo.

23. Luis Esteves: José Mourinho como grande representante desta forma
de pensar o treino, diz que utiliza a Descoberta Guiada como processo de
ensino no treino, porém nota-se na literatura divergências quanto a forma
de utilizar este método, alguns autores afirmam que a intervenção do
treinador deve ser no momento do erro, não deixando que o mesmo
ocorra novamente, já outros autores acreditam que o jogador deva
perceber o erro, e através de intervenções específicas questionam os
jogadores em busca de um denominador comum porém já definido pelo
treinador, qual a opinião do professor sobre isso e como o professor
define a Descoberta Guiada? Se possível exemplifique em determinado
contexto:

Jorge Maciel: A descoberta guiada no caso do treino de futebol passa por eu


criar num grupo uma necessidade que vou continuadamente alimentando e
complexificando. Uma necessidade que tem uma intencionalidade, que à
partida não têm de reconhecer, mas para a qual devem ser incitados a
caminhar. Trata-se portanto de lhes criar um desejo pelo desconhecido, mas
um desconhecido que eu quero sobredeterminar, daí que o modo como eu o
vou alimentando deva ser sobredeterminado pelo que eu quero que eles
descubram. A descoberta guiada é uma estratégia metodológica a que eu devo
recorrer para permitir que os jogadores estejam mais implicados na construção
e criação do jogar, e para que consequentemente o sintam mais como um
projecto seu, para o qual contribuíram ao nível da elaboração da sua lógica,
pois foram levados a isso, e desse modo mais facilmente se identifiquem com
esta, a incorporem. Torna-se deste modo relevante na aspiração que temos em
tornar concomitante o saber fazer com o saber sobre esse saber fazer.

Quanto ao modo de levar a efeito esta estratégia metodológica, penso que não
faz sentido estabelecer regras, ou catalogar o que fazer em que circunstâncias.
É um aspecto que requer o Sentido da Divina Proporção, e que nos deve fazer
inclusive ponderar se em todos os contextos e circunstâncias fará sentido
recorrer a esta estratégia. Penso que devendo ser uma estratégia fundamental,
e de que me devo socorrer devo também ter consciência que ela poderá não
se ajustar para certos conteúdos a adquirir e pode não se justificar em
determinados momentos e circunstâncias. E eu como treinador é que tenho de
saber perceber e ter sensibilidade para identificar quando a utilizar ou abdicar
em detrimento de estratégias de maior deposição de saber do que de
descoberta de saber.

24. Luis Esteves: Como o professor vê a questão da musculação, que


alterações podem provocar os exercícios em máquinas na propriocepção
muscular?

Jorge Maciel: Considero que de uma forma geral a musculação é


desnecessária para se jogar futebol. E aqui não estou a contemplar a
possibilidade de haver jogadores com patologias, ou até mesmo a necessidade
de nós termos sensibilidade para perceber que há jogadores que fruto da sua
habituação a fazerem-no têm necessariamente que o fazer, pois caso não o
façam sentem-se desconfortáveis. Mas também nesses casos a nossa
intervenção deverá ser no sentido de diminuir e quem sabe abolir com tais
necessidade subconscientes somatizadas.

Mas quando digo que não considero a musculação como algo de fundamental
para se jogar futebol, parto do princípio que agindo nós com base em padrões
de reconhecimento, a única forma de o fazer é treinando, jogando no terreno
de jogo, exercitando em contextos propensos ao emergir do que considero
relevante para o meu jogar. É nisto que acredito, e penso que com fundamento.

A musculação procura retratar uma realidade irreal, é um contexto postiço,


desde logo porque não permite estar em relação com a bola e o contexto de
jogo, por isso terá necessariamente perdas. A propriocepção é algo concreto,
contextual e os estímulos que emanam do contexto de jogo não são passíveis
de serem reproduzidas numa sala de musculação. A propriocepção tem a ver
com a configuração acontecimental da circunstâncias, com o modo como eu as
identifico e interajo com esta, com o modo como me ajusto e nalguns casos
reajusto para poder agir ou antecipar em conformidade com o que aquela
solicitação exige. Eu entendo o Corpo como uma realidade inteligente, que
como tal carece de ser aculturada. Trata-se inegavelmente de uma realidade
plástica, sobre a qual o treino pode actuar. Mas que treino?! Para mim a
plasticidade tem de rimar com selectividade e consequentemente com
Especificidade. Nós tornamos-nos selectivos pelo que fazemos, assim como a
adaptabilidade que imana do que fazemos tem a ver com essa selectividade.
Se o meu processo de adaptabilidade actua sobre a plasticidade num
determinado sentido, ou de uma determinada forma, é essa a modelação que
eu vou conferir ao Corpo. Portanto se é em função de um jogar, que eu aspiro
que a adaptabilidade se instale nos Corpos que compõem a minha equipa, a
selectividade do processo tem que ir nesse sentido, e só assim é se norteado
pela Especificidade, pela vivenciação continuada de um jogar respeitando os
Princípios Metodológicos. Repare-se por exemplo no insucesso que tem sido a
tentativa dos principais jogadores de futsal e de futebol de praia se tornarem
jogadores de futebol de onze. E porquê?! Porque a adaptabilidade necessária a
todos os níveis é significativamente diferente, requer timings diferentes e um
ajustamento e formas de interacção diferentes com o contexto envolvente, e
que não permitem que o desempenho de excelência que têm no futsal ou no
futebol de praia, não se verifique com o mesmo nível de expressão no futebol
de onze. E estamos a falar de coisas que em termos gerais são muito
semelhantes, mas que como se verifica delas resultam adaptabilidades bem
diferentes, agora imagine-se o que sucede quando parte do processo se
destina à musculação e a uma preparação física descontextualizada?!

Reforço a ideia que adaptabilidade é uma emergência decorrente daquilo que


faço regularmente e em função disso mesmo. E eu tenho que saber que as
repercussões que isso assume, assim como as respectivas implicações se
verificam a inúmeros níveis. E não menos relevante, sei também que ao
interferir sobre uma poderei modificar de forma muito significativa a
coordenação entre estas partes que constituem um todo tão complexo. Um
todo que é um determinado se for de um modo, e que será outro se for outro o
modo de o levar a efeito. Com a agravante de se tratar de um todo altamente
complexo, isto é, extremamente sensível às condições iniciais. Adaptabilidade
tem de ser adquirida pela vivenciação em Especificidade, é dessa que resulta a
adaptabilidade orgânica que eu quero e que me permite que cada jogador e
consequentemente a equipa revele uma adaptabilidade funcional e intencional
comum. E isto a todos os níveis, ao nível da intencionalidade e do critério na
decifração das escolhas mais ajustadas face ao contexto, mas também ao nível
do que me permite a concretização dessa dimensão, isto é, a gestualidade e o
metabolismo têm de ter adaptabilidades conformes. Tudo isto é interactivo e o
nosso Corpo necessariamente tem de o Incorporar interactivamente e através
da decifração contextual daquilo que se constitui como estímulo específico.

Para se perceber um pouco como o nosso Corpo é complexo e para se


perceber o quanto é complexa a sua modelação, e a sua especificidade
proprioceptiva em função do que se habitou a fazer, vou salientar uma história
que pode ser pertinente. Recentemente um amigo meu comprou um carro
novo, e contrariamente ao carro que tinha anteriormente e que conduziu
durante anos, este era automático. Ele contou-me que inicialmente foi para ele
um enorme conflito, porque andava sempre à procura do pedal da
embraiagem. Ele sabia que o carro era diferente, mas o Corpo ainda não
estava aculturado para a diferença, porque não a havia vivenciado o suficiente.

Aproveito esta questão para tentar tornar presente nas pessoas a consciência
que a musculação, resulta de uma necessidade criada devido a interesses
comerciais. O que me parece é que o fomentar da musculação se deve
fundamentalmente a interesses comerciais e tem por trás muito investimento,
mas não menor retorno para as áreas médicas. A musculação como o doping
formam um conjunto de necessidades impostas que servem para algumas da
principais indústrias mundiais, medicina e farmacêutica, exponenciarem os
seus lucros. A prova evidente disso passa por ver quem promove, divulga e
comercializa tais produtos. São precisamente os mesmos, que sugerem que as
crianças não devem andar com mochilas às costas, mas que pelo contrário
querem que os jogadores andem com peso acrescido em todo o corpo, fruto da
hipertrofia causada pela musculação que apregoam. Não será tão ou mais
nefasto que as mochilas das crianças?! Até dói de pensar, sobretudo se
tivermos em consideração o quanto são exponenciados tais pesos em alguns
dos movimentos e gestos implicados no futebol!!

25. Luis Esteves: Como vê a utilização de exercícios de força como o


“agachamento” com barras entre os exercícios de 3 x 3 por exemplo, nos
dias de quarta-feira, em um “morfociclo normal” de jogo domingo à
domingo?

Jorge Maciel: Desde já importa salientar que isso não é de um “morfociclo


normal”, porque quem o faz pertence a outra lógica necessariamente, porque
se o faz, e o faz deliberadamente na continuidade sem motivo para o fazer,
mas porque entende que aquilo é o essencial, não percebe o essencial da
Periodização Táctica, logo não a pode operacionalizar. Por isso vejo-o do
mesmo modo que vejo se fosse feito noutro dia, ou seja, é uma estupidez, não
faz sentido. É um tipo de movimento que não acontece em jogo, além do
padrão motor implicado não ter nada a ver, até porque não implica, timings,
qualquer forma de comando e controlo do movimento tendo em conta um valor
alvo qualitativo, nem tem uma determinada exigência de interacção com algo
em concreto e relativo ao jogo e a um jogar.

Se, me dizem que o fazem para ir de encontro ao padrão de contracção


dominante a respeitar numa determinada sessão, ainda mais me convenso que
não sabe o que é a Periodização Táctica. Além disso se tenho necessidade de
fazer agachamentos é porque como treinador não sou capaz de lidar com a
Periodização Táctica, porque não tenho criatividade suficiente para em
situações de jogo elevar a propensão para a existencia de contracções
excêntricas, por exemplo. Se por outro lado o meu exercício até o permite, mas
eu mesmo assim faço agachamentos e coisas do género, estou a interfir numa
coisa que é fundamental que é a necessidade de recuperar e não fatigar
continuamente os músculos, no caso dominantemente os dos membros
inferiores. É também uma insensatez. O que é que vou ter se intercalo isso
com exercícios jogados?! Perda de qualidade de desempenho, por fadiga e
consequente descoordenação motriz no concretizar e na identificação do que o
jogo exige. Como consequência disso aumento o desconforto dos jogadores na
vivenciação de um jogar, por errarem e por quererem e não poderem. Se se
instala esse grau de frustração nem há aquisição nas condições ideais, porque
não o fazem como desejado e também a predespisoção para adquirir é
claramente contraproducente. Eu não faço bem, o que faço contrariado ou o
que me leva à frustração por incapacidade, as neurociências justificam muito
bem isso. O desprazer sabe-se está associado ao mau agir, e o prazer pelo
contrário, está associado ao fazer bem-sucedido.

Sei que a questão resulta do facto de haver pessoas que se dizendo


identificadas com a Periodização Táctica, o fazem regularmente, e lá está é
mais um erro decorrente da não compreensão do modo como deve ser
operacionalizado o Morfociclo. Mas de facto a mim choca-me, que pessoas que
se dizem identificadas com a Periodização Táctica falem em musculação, em
enquadrar na semana sessões de musculação, sessões de potência… e essa
é uma confusão das pessoas não perceberem o Morfociclo Padrão e
fundamentalmente o que se quer dizer com contracção muscular com tensão
ou duração ou velocidade acrescida. Por não saber isso, baralham tudo e
confundem a dominância ao nivel de padrão de contracção muscular com algo
que não tem nada a ver e claramente associado a uma dita capacidade
condicional. É normal ver-se que na quarta feira há uma conotação com o
treino da força, na quinta com a resistência e na sexta feira com a velocidade.
Não é nada disso. Isso faz tudo parte da mesma lógica, costumo dizer que só
mudam as moscas, porque o propósito com mais ou menos adornos é sempre
o mesmo, desenvolver a dita condição física dos jogadores, no caso atletas. A
Periodização Táctica não tem nada a ver com isso, porque o que se pretende é
melhorar o desempenho colectivo, através da indução de melhorias no todo e
nas partes, tendo como referencial o todo. Não tem como propósito
fundamental melhorar a dita condição física dos jogadores, a tal ponto que não
entende como necessário qualquer tipo de testes físicos ou coisas do género.
No entanto, não deixa de ter preocupações metabólicas e preocupações
relativas à frescura e funcionalidade do Corpo, conforme evidencia a correcta
contemplação do Morfociclo Padrão.

26. Luis Esteves: Como o professor vê a questão da alternância do tipo de


contração em termos de tensão, duração e velocidade? Qual a
importância desta variação de propensão?

Jorge Maciel: este é um aspecto fundamental para a correcta


operacionalização do Morfociclo Padrão, pois trata-se de uma das sub
dimensões da complexidade que corporizam esta matriz metodológica. É
imperativo, para funcionar de acordo com a Periodização Táctica que se
entenda o porquê e como levá-la a efeito. Não vou abordar o como porque
penso ter sido esclarecido numa questão anterior. Relativamente ao porquê,
importa ter consciência que esta lógica de alternância ao nível do padrão de
contracção muscular visa a não massificação das estruturas implicadas na
vivenciação do jogar, tanto em competição como em treino, e por conseguinte
evitar índices de fadiga acentuados, procurando salvaguardar a devida frescura
para os momentos de competição sem hipotecar a possibilidade de evolução
do jogar. Esta lógica sequencial a vivenciar ao longo da semana, procura
também que concomitantemente à vivenciação de um jogar, uma organização
colectiva, se induza a nível individual uma adaptabilidade que permita dar
resposta às necessidades inculcadas por esse mesmo jogar. Este é um
aspecto muito relevante, a possibilidade de incidir e ter repercussões a nível
individual, isto é fazer emergir uma adaptabilidade a nível individual que
possibilite a manifestação qualitativa de uma intencionalidade colectiva, mas
fazendo-o tendo em consideração que essa adaptabilidade individual é
sobredeterminada por propósitos colectivos, e vivenciada não necessariamente
e não com dominância de contextos individualizados. Tendo em conta esta
preocupação, pode dizer-se que a Periodização Táctica não se preocupando
com a individualização do treino é, a que mais a respeita, pois é a mais
individualizante das metodologias fazendo-o tendo em consideração uma
verdadeira Especificidade. Esta lógica de alternância procura também evitar
algo que se verifica com frequência, que é uma alternância vertical, e que
consiste numa mesma unidade de treino, ter dominâncias distintas resultando
daí uma mistura de várias coisas, um padrão caracterizado por não ter padrão.
Em alternativa propõe uma lógica de alternância muito inteligente e sensata,
digamos assim. Uma lógica capaz de assegurar a aquisição de uma realidade
colectiva, salvaguardando que as implicações que o levar efeito desses
propósitos requer a nivél individual, não representam desgaste perpetuado e
possibilitam maior frescura tanto em competição como em treino. Propõe-se a
criar condições para dquirir sem massacrar e perpetuar fadiga. Referi em cima
que se trata de uma lógica inteligente e sensata, e acho mesmo que talvez
sejam as palavras mais indicadas, pois resolvem um dos grandes problemas
com se depara um treinador, que é, a necessidade de salvaguardar a
necessidade de recuperar sem que deixe de haver aquisição, e fazendo-o
assegurando que a nível individual incido sobre e do modo que pretendo, sem
que o jogador perca funcionalidade e além disso acelere a sua recuperação. Já
salientei a importância daquilo que chamo de regra dos 4 dias, e esta é a única
forma que conheço, que admite que que face à necessidade dos 4 dias de
recuperação, eu posso treinar, e fazê-lo de forma aquisitiva, fazendo algo que
tem que ver com o nosso jogar, sem colocar qualquer estorvo á necessidade
de estar fresco e ainda por cima, se devidamente operacionalizado acelerar a
recuperação. Quando começamos a relacionar esta necessidade de
alternância, com a necessidade de assegurar um determinado padrão
metabólico, e a necessidade dos Princípios Metodológicos percebemos o quão
bem engendrada está a Periodização Táctica, e o quanto é fascinante a
complexidade que ela comporta. Por isso é também de certa forma um desafio,
conforme referia Morin a complexidade é um desafio.

27. Luis Esteves: Notadamente o ganho de massa muscular é uma preocupação


no futebol, aqui no Brasil por exemplo temos sempre surgindo jogadores
esguios, magros e de baixa densidade muscular, porém com grande qualidade
técnica, velocidade e outras características, a exemplo ultimamente de Neymar e
Paulo Henrique Ganso, e em outros tempos Robinho, Nilmar, Pato, dentre
outros. O que o professor acha da teoria de modificar a estrutura deste tipo de
jogador, dando-lhe mais massa muscular para suportar futuros choques ou algo
do tipo?

Jorge Maciel: Não será um contra-senso, abdicar daquilo que nos torna diferentes, e
no caso melhores, para investir naquilo que não temos como património ecogenético e
nos leva a sermos iguais aos outros?! Se o futebol do Brasil ao longo da história,
assim como o de Portugal, foi tendo contornos únicos em parte devido à corporalidade
padrão do país e até foi bem-sucedido, fará sentido nós querermo-nos assemelhar aos
outros naquilo que eles são melhores e em que partem em vantagem?!

Acho que é muito pertinente essa referência a alguns jogadores, a eles podemos
juntar os maiores craques de todos os tempos. Em 100 dos maiores talentos mundiais,
1 deve perfazer o morfotipo apreguado por quem sugere a inevitabilidade de se fazer
musculação no futebol. Quem o faz não percebe as implicações que isso tem a nível
biomecânico, e muito menos pondera a história do Corpo. Parte do pressuposto,
errado, que o músculo é exclusivamente um órgão efector de movimento, mas não, o
músculo (e tudo o que lhe dá vida) tem inteligência, sensibilidade e como tal ao sofrer
alterações no sentido de haver mais músculo, haverá ali uma parte nova que é
estranha que como tal necessita de ser educada. Há perda de proprioceptividade
sobretudo no que se refere à manifestação de uma actividade específica (o futebol)
sobretudo porque essas mudanças se fizeram tendo por base uma estimulação que
em nada se assemelha ao que depois será exigido. Por tudo isto, pelo desfasamento
na forma de adquirir, pelo desfasamento entre o corpo e o cérebro (corpo não tomou
consciência das alterações) a propensão para lesões e descoordenação é muito
maior. É comum jogadores que em poucos meses verificaram incrementos
significativos, manifestarem perda de fluidez de movimentos, maior descoordenação
com a bola, e nalguns casos um acentuar significativo do número de lesões.

Alterar o morfotipo de um jogador de futebol, para que pretensamente ele seja melhor
sucedido em determinadas situações em jogo, é acreditar que podemos em meses
mudar, sem estorvo um Corpo que tem um história de anos e que se desenvolveu em
função dessa história e suportado nesse Corpo. Em Portugal diz-se que «não se
engorda um peru para o Natal em quinze dias». E acho muito válido para estes casos.
Eu tenho que perceber que fruto do desenvolvimento e crescimento de cada jogador,
ficou marcado no Corpo de cada um, um conjunto de vivências e de mecanismos ou
estratégias que em jogo, lhes foram permitindo ser bem-sucedidos perante aquilo que
á partida eram adversidades decorrentes das aparentes desvantagens morfológicas
que apresentavam. E isso até me parece não ser muito difícil de detectar, basta estar
atento. Por exemplo no último mundial de futebol, na África do Sul, a generalidade das
equipas africanas tinha jogadores que mais pareciam ser porteiros de discoteca, mas
jogar futebol nada, e nos duelos então eram os mais facilmente ultrapassados. Outro
exemplo, na final da Liga dos Campeões Europeus entre o Barcelona e o Manchester
United, vimos jogadores como o Messi e o Villa a utilizarem o Corpo em disputas e a
conseguirem derrubar jogadores claramente muito mais atléticos que eles!

A hipertrofia que se sugere aos jogadores pode ter implicações muito profundas sobre
os jogadores, relembro a história das mochilas das crianças, e reforço a ideia de que
deve ser muito desconfortável para um organismo, habituado durante anos a um
determinado, num curto espaço de tempo ver-se com ganhos de massa muscular que
representam aumentos de peso que podem chegar às dezenas de quilos. Imagine-se
só, o impacto e desregulação que tal pode implicar a nível das articulações, e ao nível
dos fusos neuromusculares e dos órgãos tendinosos de golgi. Não somente o impacto
necessário a suportar é muito maior, como a qualidade de informação dos estados
corporais vivenciados requer um reacerto, que inicialmente não existe. Face a isto
percebe-se que o risco de lesão pode estar substancialmente aumentado. Mas além
disso, geralmente associada à hipertrofia, aumento do volume das células, tem a
hiperplasia, isto é, aumento do número de células por tecido. Um incremento que
representa necessariamente uma maior necessidade energética, e também um maior
dispêndio em exercitação e maior necessidade de recuperação, porque tenho mais
células para alimentar e posteriormente para regenerar. Se juntarmos isso ao que
referi antes, nota-se que a propensão para a ocorrência de lesões está claramente
acentuada. Além disso, contraria aquela que é uma das principais preocupações da
Periodização Táctica, o não acentuar dos índices de fadiga.

Para terminar, e referindo-me em concreto ao Brasil, penso que deveria haver uma
reflexão profunda no sentido de tentar perceber o que fez e faz do Brasil um país com
tão bons jogadores. Noto que as academias que agora se constroem no Brasil são
Top, e ainda mais as salas de musculação que têm, mas quanto dos jogadores
TOPTOP do passado brasileiro tiveram essas condições? E será que o Brasil no futuro
continuará a ser o país no mundo onde reconhecidamente emergiam os melhores
talentos? E será que ainda o é no presente? Eu penso que o segredo do futebol passa
por recuperar o que se fazia na rua, nas praias em qualquer lado, mas jogando
sempre futebol e experimentando um conjunto de vivências paralelas que
desenvolviam muito do potencial de cada talento, acho que esse foi o segredo dos
grandes craques da história.

28. Luis Esteves: Qual a importância do alongamento? Como define a utilização


dos mesmos nas sessões de treino? Diferencia a utilização do alongamento nos
diferentes dias da semana?

Jorge Maciel: O alongamento é uma parte importante do processo de treino, porque


eu tenho que reconhecer que a vivenciação continuada de um jogar, em treino e em
competição, tem implicações e repercussões anatómicas muito significativas, e que
tendem a induzir em cada jogador uma determinada adaptabilidade, que se pode
paradoxalmente constituir como um estorvo à manifestação da Adaptabilidade
intencionalizada que eu quero manifestar como regularidade. Por vezes as pessoas
quando falam de Periodização Táctica dizem muito erradamente que “físico não existe
na Periodização Táctica” Isso é uma aberração, claro que existe, não do modo
convencional mas existe e eu tenho de saber, não somente que existe, como que ao
existir tem implicações no modo como eu faço a gestão do processo. Eu tenho de ter
consciência que o facto de os meus jogadores estarem constantemente sujeitos a um
determinado padrão de actividade tem sobre eles determinadas implicações a nível
anatómico e funcional. Esse tipo de repercussões, por exemplo decorrentes do
encurtamento das massas musculares mais solicitadas e implicadas na vivenciação do
meu jogar pode ser contraproducente e nalguns casos até mesmo constituir-se como
patológico. E aí o alongamento assume um papel determinante no sentido de atenuar,
minimizar e se possível evitar ou contrariar essa adaptabilidade, encurtamento, que
sendo resultante da vivenciação continuada do jogar se constitui como um estorvo à
sua manifestação qualitativa.

O alongamento é uma ferramenta muito importante, diria mesmo fundamental para


evitar o encurtamento das massas musculares, para possibilitar a uma maior
agilização do Corpo em movimento e em interacção com o que o rodeia. Do mesmo
modo que não há princípios sem pessoas, também não existe possibilidade de os
concretizar e dar vida se o Corpo e a gestualidade que os manifestam ou tentam não o
permitem, porque não estou ágil, nem flexível e não consigo concretizar ou concretizo
sem eficácia determinadas acções ditas técnicas porque a minha amplitude articular
não o permite.

Quanto ao modo de levar a efeito os alongamentos, eu identifico os grupos


musculares mais implicados no nosso jogar e não vario de sessão para sessão os
músculos a alongar. Sei quais os grupos musculares dominantemente e
continuadamente implicados e alongo-os sempre, até por uma questão de habituação
da parte dos jogadores. Dos poucos aspectos que pondero e isso vai da sensibilidade
de cada um, é evitar que se sentem, levantem e voltem a sentar. Para além disso não
tenho muitas mais preocupações, até porque as necessárias, me são salvaguardadas
pela própria configuração fraccionada das sessões de treino. Isto é, sei que em
determinadas unidades de treino, pela sua configuração padrão, tenho mais
necessidade de alongar. No entanto, e por isso é que a Periodização Táctica está tão
bem engendrada, as sessões em que mais necessito de alongar são também aquelas
que mais me permitem fazê-lo, pois são as mais fraccionadas.

29. Luis Esteves: Como o professor vê a Fadiga física e Mental, e quais as suas
particularidades?

Jorge Maciel: Eu vejo a fadiga como um todo. Apesar de convencionalmente se falar


em fadiga central e periférica, eu entendo que ainda que uma possa ter mais
predominância do que outra em determinados momentos, uma vez que elas estão
mutuamente implicadas não as considero isoladamente, até porque quando recupero
também não o faço. Estou fatigado, quando o meu Corpo está fatigado e para mim o
Corpo é tudo. Esclarecida esta minha perspectiva, entendo que a fadiga é dos
aspectos mais relevantes a ter em conta no processo de treino. E sem dúvida que a
Periodização Táctica tem como grande preocupação a fadiga, ou mais precisamente a
possibilidade de através de um lógica de desempenho recuperação possibilitar que a
fadiga não se instale nem se perpetue numa equipa, sem que esta perca possibilidade
de adquirir e evoluir, mas salvaguardando a sua frescura nos momentos de
competição. Gestão complexa que só é possível através da adequada
operacionalização do Morfociclo. Infelizmente o que se observa por norma, é que a
lógica de não alternância dos processos de treino não permite que as equipas se
encontrem frescas no momento de competição. As equipas preocupam-se em treinar
bastante durante a semana e descansar ao fim de semana, facto que só não é mais
evidente porque por norma jogam em pé de igualdade. Aliás penso que esse
fenómeno é muito evidente no Brasil por alturas dos estaduais, quando a densidade
competitiva é grande e nem todas as equipas têm as mesmas condições temporais
para treinar, ou fruto de serem estruturas com dimensão diferente não têm a mesma
possibilidade de treinar. Então o que é que se verifica, verifica-se que equipas com
orçamentos muito mais reduzidos, e com menos meios (mas talvez os necessarios)
para treinar e disponibilidade de tempo, acabem por antes dos jogos treinarem menos
que equipas com maiores orçamentos e com maiores aspirações, no entanto, apesar
de tudo aparentar serem desvantagens quando em confronto acontecem surpresas,
especulo eu que devido á maior frescura das equipas ditas mais modestas. Porquê?!
Porque treinaram menos e não se cansaram durante a semana.

Mas voltando à resposta e salientando a importância da fadiga no processo de treino,


importa referir que a fadiga é uma necessidade para a potenciação e maximização dos
desempenhos. No entanto, tem de ser circunstancial. A necessidade de induzir fadiga
é reconhecida como fundamental pela generalidade das metodologias de treino e aqui
a Periodização Táctica não é excepção, contudo, também aqui ela se revela
transgressora, porque reconhecendo-a como fundamental equaciona-a de forma
diferente. E é diferente porque tem como preocupação a não perpetuação da fadiga e
a não exercitação em condições de fadiga acumulada e acentuada. Além disso, aquilo
que a motiva, que motiva a fadiga, são estímulos relativos aos desempenhos relativos
a um jogar, e não as ditas “cargas” físicas.

Na Periodização Táctica entende-se que a adaptabilidade decorre da vivenciação


continuada, ainda que em diferentes escalas, de um jogar. Uma vivenciação que
devendo ser qualitativa deverá necessariamente induzir fadiga, caso contrário seria
um estímulo irrelevante do ponto de vista aquisitivo. Para quem pensa o treino deste
modo, deve conceber o Corpo como uma estrutura dissipativa, ou seja, como uma
realidade complexa que carece de ser constantemente e continuadamente levado aos
limites do possível para que se transcenda e possa atingir estados de complexidade
sucessivamente mais complexos e maximizados. Portanto, para que se observe tal
transcendência o organismo, no caso em interacção induzida pelo treino, tem de ser
levado aos limites, para que nele se instale uma desestruturação, que possibilite
posteriormente a sua regeneração ou reestruturação passível de alcançar níveis de
adaptabilidade superiores. Sendo isto relevante, ou reconhecendo-se que isso de facto
acontece, importa equacionar de que modo o organismo ou o Corpo após ser
submetido a um estímulo que o levou aos limites, a todos os níveis, pode reorganizar-
se sem deixar de respeitar o que era, mas fazendo-o de forma exponenciada.
Considero este processo como um processo de resiliência orgânica ou Corpórea, no
qual o organismo sofre um estímulo que não é nem deve ser inócuo, desestruturando-
o, mas que depois de superar esse conflito se revela reorganizado e potenciado sem
perda de identidade. No entanto, entendemos que para o Corpo ser capaz de ser
resiliente, carece de tempo para se repor do abalo a que foi submetido, somente
desse modo a reorganização se torna possível. Ora isto implica que após eu submeter
o organismo a um estímulo de treino, o qual lhe induziu fadiga considerável, eu só
devo fazê-lo novamente depois de proporcionar o tempo necessário para que a fadiga
não esteja presente no organismo, ou esteja de forma muito residual.

Quanto ao modo como a fadiga se pode manifestar ele pode ser muito diverso, e é
muito importante que eu enquanto treinador saiba identificar e detectar quando os
jogadores estão fatigados, para evitar entrar num processo corrosivo de degradação
permanente de performance quando o que pretendo é o contrário. A fadiga pode por
exemplo manifestar-se na concretização da gestualidade, mas também no critério que
a suporta e nos timings de manifestação, quando a fadiga se instala observa-se como
que um prolongar que leva a que a coisa não saia tão fluida. Sabe-se, embora ainda
muito pouca gente, que o ATP tem dupla função o que é mais uma prova que ambos
os tipos de fadiga se implicam mutuamente. E este é um aspecto muito importante
para o treino e para a qualidade do processo de treino. O ATP além de se constituir
como elemento fundamental no mecanismo de contracção, conforme se sabe
generalizadamente, é também um elemento determinante no controlo e comando do
movimento. Trata-se portanto de uma molécula determinante para a
proprioceptividade e para a sua manifestação qualitativa, pois auxilia nas tarefas de
informação sobre os diferentes estados que o corpo experimenta a cada momento.
Daqui se depreende que a sua depleção ou não ressintese, devido à sua utilização
anterior e nalguns casos sobreutilização, terá implicações muito significativas na
qualidade da gestualidade, tanto ao nivel da sua concretização como na sua
componente informacional, a possibilidade de antecipar será certamente muito menor
por exemplo, porque o Corpo está letárgico adormecido, ou melhor dizendo
desinformado. Será um Corpo cego e sem inteligência. Este aspecto reforça ainda o
que referi antes, ou seja, a necessidade de dar tempo para que o organismo retome a
sua funcionalidade normal, no caso para permitir a ressintese de ATP, antes de ser
submetido a novo estimulo. O que contraria muito do que é postulado nas lógicas de
treino convencionais, nas quais o propósito é induzir fadiga, mas de forma continuada,
para que através da sua perpetuação, acreditam eles cheio de boas intenções, o
organismo consiga responder melhor em condições de fadiga. Ora o que se persegue
na Periodização Táctica não é nada disso, pois reconhece-se que tais intentos
contrariam a possibilidade de fazer emergir a adaptabilidade desejada, hipotecando
por exemplo, a possibilidade do padrão metabólico dominante ter como suporte
fundamental e predominante o metabolismo anaeróbico aláctico, aquele que torna
possível ir á fronteira do caos e por conseguinte elevar o Corpo para patamares de
desempenho continuadamente superiores.

30. Luis Esteves: Quais métodos utiliza no processo de recuperação fora os


exercícios?

Jorge Maciel: Na verdade não são métodos são instrumentos utilizados por quem
operacionaliza o processo de acordo como uma Metodologia, a Periodização Táctica.
O Professor Vítor Frade designa-os de “afinar porcas e parafusos” numa analogia aos
carros de fórmula 1. É que tal como os carros de fórmula 1, também os jogadores pela
vivenciação do processo de treino e competição, fazendo-o como desejado nos limites
do possível, se vêem obrigados a constantes afinações, conforme salientei numa
resposta anterior. Não é um preciosismo dizer que não são métodos, a Periodização
Táctica é una, não tem nem precisa de complementos, e quem entender ou disser que
isso são complementos não percebe a essência do que se está aqui a tratar, porque
não compreende nem reconhece os diferentes níveis que o jogar comporta. Por vezes
fala-se em fractais mas esquecemo-nos que um fractal deve ser um fractal de tudo, se
não, não o é, e a necessidade de recuperar e salvaguardar a funcionalidade das
estruturas que concretizam a gestualidade implicada no jogar tem de ser entendida
como uma parte do nosso jogar e com a qual devemos ter especial preocupação. A
Periodização Táctica requer que o processo de treino tenha qualidade, logo
intensidade, e seja capaz de envolver os jogadores no sentido de os levar aos limites
do possível, relativizando-se isto em função da configuração de cada sessão. É da
qualidade do processo que emerge a manifestação exponenciada da Especificidade
que desejo, e para isso é fundamental que os jogadores experimentem constantes
estados de adaptabilidade melhorada, o que implica que eu os desafie e os estimule
no sentido de andarem constantemente nos limites do possível, que deste modo
desejo que seja um constante estado de transição. Para que haja uma evolução a
nível individual e colectivo torna-se fundamental que os estímulos induzam nos
jogadores, e consequentemente na equipa, a necessidade de reestruturação
permanente, sem que se verifique a perda de integridade. Estamos portanto perante
um dos grandes desafios do treino, o doseamento e o ajustamento. Como estimular
aquisitivamente sem induzir um estado de desregulação tal que não hipoteque a
evolução e assimilação contínua da aquisição. Isto implica perceber o processo e a
adaptabilidade induzida em cada jogador como uma espécie de estrutura dissipativa,
que através de um processo de resiliência corpórea experimenta, uma
desestruturação momentânea, para posteriormente ascender ou fazer emergir um
nível de complexidade superior. Não obstante o que referi, isto só se torna possível se
a recuperação o permitir. A necessidade de recuperar é fundamental, e deve ser
equacionada a vários níveis, entre jogos, entre treinos e no próprio treino, para que o
processo tenha qualidade. Pelo facto da recuperação e das “ferramentas” de que me
socorro para a levar a efeito serem uma dimensão do nosso processo, não as posso
conceber como uma metodologia ou metodologias auxiliares e à parte. É muito
simples, de que me adianta ter uma determinada concepção de jogo, treiná-la, mas
não atender ao desgaste que ela provoca?! É uma especificidade canhestra, uma
espécie de holismo balofo. Eu tenho de ter consciência que o Jogo, e de modo
particular o meu jogar têm implicações biológicas, isto é, a todos os níveis, cognitivos,
metabólicos, musculares… e na relação altamente complexa entre tudo isto, e se não
atender a isso no meu processo de treino nada feito. A Especificidade só emerge do
processo se eu tiver Intensidade na vivenciação do meu processo e para isso importa
respeitá-lo em todas as suas dimensões. Se não o fizer estarei a hipotecar a
possibilidade de vivenciar e expressar com regularidade e com o grau de desempenho
desejado (em treino e competição) aquilo que pretendo como identificador do meu
jogar. O não respeito por isso hipoteca a Especificidade, daí que não sejam metodos
per si, mas ferramentas de uma metodologia que é única e que se preocupa com tudo
o que está relacionado com o fazer emergir uma forma de jogar.

Dos aspectos mais relevantes na configuração de cada sessão de treino que


compõem o Morfociclo Padrão são a intermitência da sessão e os tempos de
exercitação e não menos importante de repouso. E por vezes parece-me que são
entendidos como aspectos irrelevantes. Muito pelo contrário são determinantes, pois
são o que me garante, em conformidade com o regime dominante no treino, que os
exercícios tenham a intensidade pretendida, que a aquisição tenha momentos de
aquisição verdadeiramente aquisitivos, que se verifiquem períodos para a
estabilização de tais aquisições, que o padrão metabólico dominante que quero
implicado na vivenciação seja assegurado e que me permite que não se instale na
equipa um estado de fadiga permanente e perpetuado. O modo como rentabilizo os
momentos de pausa é determinante em tão complexa gestão. E eu rentabilizo-os com
as tais “ferramentas” que me ajudam a salvaguardar a funcionalidade de cada jogador.
Recupero no próprio treino através de momentos de extensibilidade, alongamentos
portanto, através da realização de abdominais. E posso fazê-lo estando a falar sobre
os desempenhos verificados nos exercícios anteriores, falando sobre a relevância de
determinando aspecto, sobre a articulação disto com aquilo. São momentos do treino
em que eu posso aproveitar para recuperar através da realização de alongamentos,
hidratação, abdominais, e simultaneamente de forma mais formal identificar e
sintonizar os jogadores com o que se fez, se tem feito e a relação disso com o que se
perspectiva vir a fazer.

Anteriormente já falei sobre a importância dos alongamentos, mas penso ser


igualmente importante salientar a importância da realização de exercícios abdominais,
e fundamentalmente elucidar o porquê de tal necessidade, o que penso a
generalidade desconhece. Eu não faço abdominais para os jogadores ficarem bonitos
na praia. A maior parte das vezes quando se fala na realização de abdominais as
pessoas referem a necessidade de os tonificar. Eu acho que está muito para além
disso. A zona da bacia é uma zona que devido à aquisição do bipedismo sofreu várias
alterações, que no entanto nos colocam alguns entraves quando, como no caso do
futebol, se observa uma sobreestimulação das estruturas que aí se inserem.
Fundamentalmente tenho de perceber que naquela zona do nosso corpo se inserem
várias porções musculares, as quais se “digladiam” por espaço, o que não abunda
dada a elevada densidade de fibras musculares que ali existem. Verifica-se portanto
uma incompatibilidade anatómica decorrente do facto de ter muito para meter em
pouco espaço. É como se tivéssemos uma mala para viajar e o que nela queremos
colocar se não for devidamente acomodado e devidamente dobrado não poderá ir
dentro, ou se for corremos o risco de rebentar com os fechos. E naquela zona temos
este problema, que quando não devidamente equacionado e operacionalizado pode
resultar em lesões, que na realidade são a expressão do não reconhecimento das
exigências funcionais que a vivenciação continuada de um jogar implica. Ou seja,
resulta do não reconhecimento dos vários níveis de especificidade que permitem o
emergir da nossa Especificidade. O caso mais evidente deste quadro de “desrespeito”,
e também de “desrespeito” pelo binómio EsforçoRecuperação é a pubalgia. A pubalgia
é uma consequência da amplificação do desequilíbrio muscular que se observa ao
nível da parede abdominal. Sendo consequência da alteração de equilíbrio que deve
verificar-se entre os músculos abdominais e as massas musculares dos membros
inferiores que se inserem na zona pélvica. Devemos ter consciência que no futebol,
acções como o remate, salto, deslocamento lateral, travagens, mudanças de
direcção… assumem uma grande relevância na alteração de tal equilíbrio,
contribuindo consequentemente para a sua disfuncionalidade. Por norma observa-se
que nos jogadores de futebol há um sobredesenvolvimento dos músculos adutores e
um subdesenvolvimento dos músculos abdominais. Podemos evitar que tal
desequilíbrio se instale, e se salvaguarde a funcionalidade harmónica desta região
anatómica tão implicada e tão importante no futebol se controlarmos bem o
doseamento necessário nas sessões de treino e se nos momentos de pausa
aproveitarmos para estimular a região abdominal e respectivo alongamento assim
como para alongar as massas musculares dominantemente implicadas durante a
exercitação, entre as quais os músculos adutores e o psoas ilíaco, “para que todos
caibam na mala”, sem se digladiarem. Importa por isso referir que mais do que
tonificar a região abdominal, o relevante é a sua agilização. Por esse motivo o
alongamento desta região é também muito importante para a fluidez da gestualidade e
para a prevenção de lesões. Sendo o meu objectivo a agilização desta zona, não faz
sentido que eu a estimule em isometria, por exemplo. Mas também não os devo
estimular de forma dinâmica de modo indiferenciado. Muitas vezes observo que
grande parte dos exercícios abdominais que se realizam são desajustados, ou quando
não o são não são devidamente realizados, nem há intervenção no sentido de os
corrigir. Não raras vezes aquando da realização de exercícios abdominais existe uma
solicitação parasita de músculos já sobresolicitados pela vivenciação do jogar,
nomeadamente o psoas ilíaco, o recto anterior, tensor da fáscia lata e também os
adutores. Como diria o professor Vítor Frade fazê-lo é como dar sal a alguém que é
hipertenso. A sobresolicitação destes músculos hipersolicitados na prática de futebol,
contribuirá de forma muito negativa para o desequilíbrio, cada vez maior entre os
músculos da parede abdominal, enfraquecidos, e os da perna, geralmente muito
desenvolvidos. É por isso que devemos ter muito critério na escolha dos exercícios
abdominais, fugir do desejo de inventar coisas diferentes e assegurar que temos um
controlo qualitativo do modo como os jogadores os realizam. É por tudo isto que
treinar é altamente complexo, mas não menos desafiante.

31. Luis Esteves: Como vê a crioterapia no dia a dia de uma equipe?

Jorge Maciel: O recurso à crioterapia vejo-o como vejo o recurso a outros meios que
tentam acelerar a recuperação dos jogadores, seja através de suplementação
vitamínica, seja através de massagem ou de qualquer outra forma. Ou seja, entendo
que se o que se pretende com o treino é uma determinada Adaptabilidade, a um
referencial colectivo e ao processo que lhe dá vida, mas que se deve instalar em cada
um dos organismos intervenientes no processo, o recurso a tais meios poderá
constituir-se como um estorvo e até de certa forma como uma dependência por parte
do organismo em relação àquele que é um dos meus objectivos com o treino. O
Professor Vítor Frade tem uma expressão muito boa relativamente ao que tento referir,
quando diz que recorrer a esses meios consiste em “dar muletas ao corpo”. E de facto
é, eu comparo-o às mulheres girafa de algumas tribos africanas e asiáticas, ao longo
de um processo de desenvolvimento e crescimento vão-lhes sendo colocadas argolas
em torno do pescoço, o que além de o tornar maior também lhe serve de suporte, por
isso a musculatura daquela zona acaba por atrofiar e perder sensibilidade, a tal ponto
que se as argolas forem retiradas a cabeça tomba sobre o tronco e elas morrem. Pode
parecer uma visão excessivamente Lamarckiana, mas não me choca e eu acredito
que o mesmo suceda com os jogadores quando lhes damos tais muletas. “A função
faz o órgão”, por isso se treina, para criar uma adaptabilidade que se constitui em
várias alterações a nível orgânico, e não para que fique tudo na mesma. Se o que
pretendo é induzir uma adaptabilidade a um determinado padrão de esforçar
recuperar, Morfociclo Padrão, e se reconheço que o processo e as entidades
Biológicas que lhe dão vida são altamente complexas, e por isso mesmo
extremamente sensíveis às condições iniciais qualquer pormenor, e sobretudo no
inicio do processo, pode ter repercussões inesperadas sobre o que se deseja.

Agora entendo que há aspectos que devemos ponderar, mas por princípio no início da
época parece-me desaconselhado, lá está, porque quero que seja o organismo por si
a ter que revelar resiliência orgânica e crie uma adaptabilidade ao processo sem
intervenção de meios exógenos, porque isso iria induzir a nível metabólico uma certa
dependência e uma adaptabilidade condicionada e regulada também externamente.

Entre os aspectos que nos podem fazer ponderar sobre o uso ou não de tais meios, a
densidade competitiva pode ser talvez o mais relevante. Quando a densidade
competitiva se adensa, a necessidade de acelerar a recuperação é o aspecto mais
fundamental, não para os cansar em treino como sucede na generalidade dos casos,
mas antes para que a equipa possa estar o mais fresca possível nos momentos de
competição. Quando temos na continuidade muitos jogos em curto espaço de tempo
pode fazer sentido recorrer a tais meios. Mas repare-se, se eu o fizer quando de facto
necessito o efeito será mais proveitoso, se pelo contrário ao longo da época e desde
inicio os jogadores foram se socorrendo de tais meios, que acrescento eles poderão
constituir em tais momentos que mais preciso?! Se não habituei o organismo a esses
meios e pelo motivo apontado vejo que naquele momento se torna pertinente, aí sim
vou tirar grande rentabilidade, vou conseguir potenciar o efeito que desejo com o
recurso àquele meio, porque até então, e como o organismo não tem necessidade do
que desconhece e daquilo que não se instala como necessidade, passa a contemplar
aquele meio como um acrescento diferenciador.

Outro aspecto importante a ter em consideração é os hábitos e as crenças dos


jogadores. Há jogadores que têm uma história, e cada qual tem a sua por isso é tão
complexo e interessante treinar, que passa pela utilização continuada de meios como
a crioterapia, a massagem, banhos ou suplementação vitamínica e isso tem um peso
enorme sobre eles. Aí é fundamental ter sensibilidade para perceber as motivações
dos jogadores quando recorrem a tais meios, e ter muita sensibilidade para tentar lhes
fazer perceber o que referi em cima, ainda que com outra linguagem. Os jogadores
são muito inteligentes e têm muita sensibilidade para estes aspectos, desde que
saibamos mostrar que o que lhes estamos a dizer faz sentido. Por exemplo eu posso
dizer no inicio da época que será melhor ele não recorrer ao que quer que seja,
justifico e explico os motivos, e dou-lhe até ao inicio da competição para ele
experimentar, porque aí o lado da superstição e da crença não é tão relevante, pelo
menos em termos de resultado, depois se ele não se sentir confortável a partir daí ok,
acordamos ele continuar a fazer o que fazia até então em termos de ajudas exógenas.
E este período o que é que me permite?! Desde logo, permitiu que num período
importante e considerável de tempo, em que eu desejo uma adaptabilidade a um
processo e a um padrão de desempenho recuperação, que ele vivenciasse tal
processo sem estorvos externos e como que fosse o organismo a adaptar-se. E além
disso pode até resultar e abolir por completo a crença que tinha. Aliás a propensão
para isso será, parece-me, muito maior com a Periodização Táctica do que com outras
metodologias, porque o sentimento de desconforto e de extenuação sentido nas ditas
pré épocas não se verifica de forma tão marcada como nas outras metodologias.
Logo, o jogador mesmo crente que precisa, o processo requisita menos tal
necessidade porque a reacção do organismo é menos violenta. Penso mesmo que o
recurso a tais meios, sobretudo em momentos precoces das épocas resulta disso
mesmo, da enfâse que é dada à dita dimensão física na generalidade dos processos
de treino, e nesses casos talvez seja de facto uma necessidade e até inevitabilidade,
pois há quem faça coisas completamente desumanas, as quais induzem no organismo
um desconforto terrível e uma enorme desregulação.

32. Luis Esteves: Feedback e Feedfoward são dois pontos importantes na


facilitação do entendimento das informações, gostaria de saber do professor
que importância atribui a cada um deles, e em que momento utiliza-os?

Jorge Maciel: De facto, tanto o feedback como o feedfoward são dois aspectos, ou
estratégias de intervenção determinantes para o alcance ou concretização daquela
que é uma das grandes pretensões da Periodização Táctica, e que passa pelo
desenvolvimento concomitante do saber fazer com o saber sobre esse saber fazer.
Também aqui mais importante do que conhecer e pronunciar os conceitos importa
reconhecer o seu potencial operativo e ainda mais, importa que os saibamos utilizar de
forma adequada e contextualizada. São por isso ambos de extrema importância se
devidamente operacionalizados, não consigo estabelecer um grau de relevância de
um em relação ao outro porque de facto ambos são determinantes para a
identificação, esclarecimento, sintonização e concretização da intencionalidade
colectiva desejada e vivenciada. Trata-se portanto de uma questão, não de grau de
relevância mas antes de uma questão de ajustamento, de critério relativo aos instantes
em que nos socorremos de cada um e ao modo como o fazemos. Não obstante deve
se reconhecer que o feedback tende a ser mais favorecedor de uma aprendizagem por
recepção, enquanto que o feedfoward vai mais de encontro a um processo de
descoberta. Compete por isso ao treinador perceber quando recorrer a cada um deles,
ou se assim o entender a geri-los inclusive de forma conjunta. Para isso tem de
perceber a realidade envolvente, o que tem para transmitir, quem tem para receber tal
transmissão e em que circunstâncias isso acontece. Por exemplo no caso da nossa
situação na Líbia tínhamos de pesar muito bem estes aspectos, porque estando com
ou sem tradutor sentíamos que a comunicação em termos de linguagem não era a
ideal e nesse sentido, a consciencialização em relação ao que queríamos que
fizessem ficava mais dificultada e por vezes era mesmo impossibilitada. Reconheço
que idealmente, num mundo sem circunstâncias, e portanto num mundo irreal, seria
preferível a dominância estar no lado do feedfoward, mas a realidade obriga-nos a ter
que reconhecer que aquilo que é didaticamente ideal, na prática, num determinado
contexto pode não o ser. O que quero com isto dizer é que face às circunstâncias tudo
tem de ser ponderado parcimoniosamente, ainda que aparentemente e
paradoxalmente não raras vezes intuitivamente, para que a intervenção seja
contextualizada, pois só essa me permite chegar de facto onde quero, isto é, ao fazer
emergir uma determinada Especificidade. Por exemplo, enquanto treinador temos de
perceber que muitos aspectos, habituação dos jogadores, incapacidade dos jogadores
para descobrir o caminho ou incapacidade do treinador para lhe dar as pistas certas
para o encontrar, urgência de resultados, falta de tempo para construir um processo
assente dominantemente na descoberta guiada… entre muitos outros, podem
condicionar o meu desejo de os levar a tomar consciência, pela descoberta, daquilo
que se deseja adquirir. Quando assim sucede mais vale reforçar as respostas que eles
nos vão dando no fazer e a partir daí identifica-los como o queremos e trazê-los para a
esfera do saber sobre esse saber fazer. Mas devemos ter consciência que no primado
está a acção, ou se quisermos a interacção. E sobretudo aquilo que eles à partida já
manifestam como sendo a representatividade de determinada acção. Com base nisso,
no que eles fazem tentamos identificá-los com o que desejamos, descomplexificamos
o processo por vezes dando pistas que são quase soluções e reforçando, positiva ou
negativamente, o que eles vão concretizando ao longo do processo e sempre que
possível torná-los envolvidos na construção do processo. Portanto, paradoxalmente a
ideia, que é inicialmente do treinador, tem de ser transmitida partindo
fundamentalmente de quem a vai receber e incorporar, os jogadores. E é à medida
que ela vai sendo assimilada e tornando-se cada vez mais dos jogadores que o
treinador deve a fazer convergir, de forma mais “forçada”, com aquilo que são as suas
ideias. Isto é, inicialmente os contornos gerais da ideia devem ser transmitidos
partindo daquilo que é o grupo de jogadores em questão, daquelas que são as suas
crenças, habituação… e a partir daí, quando a crença e adesão ao esboço da ideia se
vai tornando cada vez mais consolidado é que o treinador deve modelar a ideia nos
seus contornos em função do que pensa ser relevante para a potenciação do esboço
inicial. Ainda que tal potenciação deva respeitar a ideia inicial, ou intenção prévia do
treinador, ela não pode ser autista, daí ter de considerar se de facto os contornos que
o treinador quer dar à “coisa” fazem sentido ou são exequíveis perante aquele
contexto e grupo de jogadores. Concretizando eu tenho que os identificar com o que
quero, reforçar quando o fazem e á medida que o processo se desenrola torná-los
conscientes da profundidade daquilo que fazem. Por exemplo, se eu tenho uma
equipa que tem uma habituação de anos em que as referências defensivas de
marcação são individuais eu vou ter muito trabalho e necessariamente terei de ter
muita sensibilidade para lhes transmitir e fazê-los incorporar aquilo que é um desejo
meu. Terei de partir deles para perceber como desmontar tal habituação, terei que os
identificar com o que quero, levá-los a fazer e estar muito atento na intervenção para
intervir em conformidade e reforçar o que vai acontecendo e sendo por eles manifesta,
ao longo de todos este processo vou tentar que eles sintam e percebam porque o
devem fazer e que implicações tal funcionalidade tem, em cada um e no colectivo. Não
é fácil, e sobretudo temos de ter perfeita noção que não há receitas, apela
fundamentalmente ao Sentido da Divina Proporção, daí que não faça sentido
estabelecer momentos para a utilização tanto do feedback ou do feedfoward. E esse é
o lado engraçado e desafiador do processo, não há receitas, tem de haver arte na
gestão de tudo isto. Eu penso inclusive que muita da robotização manifesta por muitos
jogares resulta da renúncia da parte dos treinadores ao lado intuitivo da gestão dos
processos de treino. Parece que parte da pergunta feita, “em que momentos utiliza-os”
espelha uma tendência generalizada nos treinadores, e que quanto a mim radica na
não capacidade de lidarem com a complexidade e com o que esta implica,
nomeadamente a necessidade de estarmos perante uma realidade que não é à partida
totalmente conhecida. Quando lidamos com uma realidade como o treino e o jogo
temos de ter consciência que, apesar de estarmos a lidar com uma realidade que
queremos no global sobredeterminada pelos nosso intentos, na verdade não passa de
uma realidade em parte, ao nível do pormenor, imprevisível. E isto cria receio nos
treinadores, que na verdade desejam ser verdadeiros deuses de Laplace e ter um
controlo total sobre tudo, o que é impossível. E reconhecer isto é quanto a mim um
passo muito importante para melhor lidar com o desconforto que é lidar com o
desconhecido. Se assim encararmos o treino esse desconforto adrenalinico torna-se
muito estimulante e desafiador, é de facto o que nos dá pica.

33. Luis Esteves: Qual o conceito do professor sobre a Intensidade máxima


relativa?

Jorge Maciel: Quando se fala em intensidade máxima relativa, devemos considerar


que tem a ver com a necessidade de se perceber o que é um valor alvo, ou seja, trata-
se de um problema de escolha e de critério face aos condicionalismos circunstanciais
que o contexto me coloca. Tem portanto que ver com o ajustamento. Por exemplo eu
posso ter uma velocidade de deslocamento máxima bastante grande, mas não fazer
dela o melhor uso, ou seja, não a aproveitar em conformidade com o que o jogo me
requisita. O Messi não é mais rápido que o Walcott, mas tem muito mais critério no
uso que faz da velocidade, tem timings mais ajustados, acelerações, travagens e
mudanças de direcção em conformidade com o que lhe vai sendo necessário, por isso
joga regularmente em intensidades máximas relativas, porque face ao contexto ela
ajusta para lhe responder com o desempenho mais eficaz e eficiente. Isto no que se
refere à intensidade relativa ao nível do desempenho de um jogador, ainda que como
se torna evidente em interacção cooperante ou de oposição. Mas podemos também
falar noutro tipo de intensidade máxima relativa, a que se reporta ao grau de
intensidade ou complexidade requerido em cada dia do Morfociclo. O que se pretende
na Periodização Táctica é que a intensidade na vivenciação de um jogar seja sempre
máxima, entendendo-se a intensidade associada à concentração e também à
qualidade do desempenho, o tal problema do ajustamento que salientei. Contudo,
como a configuração padronizada de cada dia difere, também a intensidade implicada
nas várias unidades de treino difere. Há portanto que relativizar a noção de
intensidade máxima. O treino de quarta-feira tem nos exercícios menos elementos em
interacção que o de quinta-feira, o que faz com que a intensidade de quinta seja “mais
intensa”, pela maior complexidade que comporta, que a de quarta-feira que no
entanto, para aquele padrão de desempenho tem de ser máxima. O mesmo sucede
com os restantes dias do Morfociclo padrão, as intensidades têm de ser relativizadas
em função do padrão de exercitação e de aquisição implicados na respectiva sessão,
sendo que a intensidade máxima em cada dia emerge da qualidade dos desempenhos
manifestos, ou seja, do modo como os jogadores se ajustam e reajustam aos
estímulos que sobredeterminam as suas acções nos contextos de exercitação.

34. Luis Esteves: A concentração é fundamental na intensidade, porém na sua


visão como ocorre o processo de evolução da continuidade da concentração?

Jorge Maciel: Na Periodização Táctica a intensidade está necessariamente associada


à concentração, e a sua evolução ocorre do mesmo modo, ou de forma análoga ao
que sucede com a evolução do jogar. Isto é, acontece fundamentalmente fazendo. E
claro, eu entendo que há um aspecto determinante para que o processo tenha
intensidade, que é a capacidade que o treinador tem para liderar o processo. Só
sabendo liderar, independentemente do modo, se pode exigir dos jogadores, ou
melhor, se eu for de facto líder consigo catalisar os jogadores no sentido de se
implicarem activamente, e necessariamente concentrados, na vivenciação do
processo, ou seja, liderar é fundamental para ter qualidade e como tal intensidade nos
desempenhos e somente desse modo emergirá uma Especificidade de qualidade.
Depois claro está, há também outros aspectos como a necessidade de alimentar a
concentração em função daqueles que são os estados que a equipa vai manifestando
ao longo do processo, e aí além da liderança os próprios conteúdos de treino e o
ajustamento ás circunstâncias de determinado período ou circunstâncias que a equipa
está a viver são aspecto relevantes. De uma forma geral temos de ter consciência que
a evolução da complexidade vai de encontro ao Princípio da Progressão Complexa, do
menos para o mais complexo e sabendo que isso não é linear, e que além disso em
determinadas alturas menos é mais. Um aspecto interessante é que, em termos
ideais, eu não imponho concentração devo antes levá-los a estarem concentrados
pelo fazer, pelo perceber e por gostarem de fazer e perceber, nesse sentido é também
uma emergência do processo. Se o meu processo é desmotivante, não evolui involui,
regride, se for estimulante passa a instalar-se como hábito e como tal acontece
espontaneamente. E aqui eu penso que a Periodização Táctica apresenta várias
vantagens relativamente às restantes metodologias, desde logo permite que os
jogadores adquiram algo em concreto fazendo o que gostam, isto é, jogando, e além
disso pela tentativa de desenvolvimento concomitante do saber fazer com o saber
sobre esse saber fazer faz com que os jogadores se sintam mais implicados e activos
na construção do jogar, logo também à partida mais motivados para o fazer, pois
sentem esse jogar como parte sua.

35. Luis Esteves: Como o professor vê a questão da organização em uma equipe


de futebol? A organização deve ser rígida ou seja, partindo de uma ordem, ou
deve ser flexível partindo de uma desordem?

Jorge Maciel: Olhemos por exemplo para o futebol de rua, o futebol de rua é
organizado, porque há algo de organizativo que emerge do facto de estarem em
interacção, no entanto, o modo como essa organização se manifesta é o que
desejamos?! A vantagem do treino é precisamente essa, permitir dar um sentido ao
que emerge, e aí o treinador assume-se como mentor, mas também e não menos
importante como catalisador, pois é ele o responsável máximo do processo que vai
permitir dar vida ao que inicialmente era apenas uma intenção colectiva sua, se
possível complexa e capaz de aspirar a um jogar de qualidade. Para que assim seja
devo reconhecer que a riqueza de uma determinada realidade resulta da sua
complexidade, a qual é tanto mais rica quanto mais permitir que organização e caos se
expressem sem um estar à revelia da outra. A organização deve possibilitar aquilo que
o Professor Vítor Frade diz ser o “máximo de regularidade em concomitância com a
máxima variabilidade”, portanto admite-se que a desordem é de facto um aspecto
essencial para o emergir de uma ordem complexa. Se a minha organização
contemplar esta necessidade, sem perda de identidade e funcionalidade, ela estará
mais preparada para dar respostas aos contextos altamente instáveis que
caracterizam a essência do jogo de futebol, ainda que o façam suportadas num
referencial organizativo que procura sobredeterminar tal imprevisibilidade. O jogar de
qualidade tem a ver com a necessidade de eu permitir que o caos seja determinístico,
e isso só é possível se a desordem ou caos for circunstancial, manifesto a nivel de
pormenor sendo por isso necessariamente sobredeterminado pela ordem global do
sistema. O jogar de qualidade tem de ser o suficientemente permeável para
contemplar o novo e a diferença, pois só assim o sistema evolui qualitativamente, mas
tem que simultaneamente ser selectivo nessa permeabilidade. E é tanto mais selectivo
nessa permeabilidade quanto mais coerente e consistente forem os pilares que
suportam a organização colectiva e o processo que lhe permite manifestar-se. Ou
seja, subjacente à desordem aparente manifesta por um jogar tem de haver uma
ordem “escondida” como diria o Stacey. Uma espécie de pano de fundo ou de
plataforma em torno do qual tudo o resto se deve manifestar, e que é composto por
princípios simples mas de expressão regular capazes de conferir consistência ao
sistema e de potenciar a possibilidade de emergência de irregularidades, que se
assumem como acrescentos qualitativos por estarem sobretdeterminados por essa
ordem mais global. O caos que cada jogar abarca, deve apenas representar um
modelo de desordem ao nivel do pormenor, o qual emerge ou deve emergir dentro de
uma ordem global assente em princípios simples que se manifestam como
regularidades. Importa salientar que também a este nível eu devo ter em consideração
o contexto, e ponderar os graus de liberdade que o meu jogar e o processo que lhe dá
vida deve ter. Eu tenho de perceber que numa determinada realidade, pela qualidade
e inteligência dos jogadores eu deixo a coisa andar com interferências mínimas e com
identificação com os princípios gerais e a coisa cresce e cresce bem. Nesses casos os
princípios são de facto princípios, um referencial geral de base que depois eles
concretizam de forma autónoma respeitando o devido critério que este contempla. No
entanto, há casos em que os princípios poderão ter que ser mais fechados ao nivel do
pormenor, quanto maior a necessidade que eu vou tendo para os fechar ao nível dos
níveis menores, mais determinístico se tornará o jogar, mas por vezes esse poderá ser
um mal menor. Não obstante, eu devo partir sempre do pressuposto que os jogadores
são capazes de tudo, ou seja, me permitem que partindo do que eles manifestam a
minha concepção pode ser concretizada. Quando reparo que não é bem assim, aí
tenho que fechar, mas nunca o devo fazer à partida, porque se o fizer poderei perder
coisas úteis que à partida desconhecia e não estava à espera, mas que naquele
contexto são muito úteis e se justificam. Em suma, parto sempre para o processo em
que o princípio é isso mesmo, um ponto de partida, mas tenho de ter sensibilidade
para perceber se ele pode, na continuidade ser nutrido por esse pressuposto sem que
eu perca o rumo que quero, ou se pelo contrário o princípio passa a ter que ser um fim
para que eu não perca o rumo. E há vários aspectos que motivam a necessidade do
princípio, a nível de pormenor, passar a ser um fim, por exemplo a não capacidade,
pela habituação, dos jogadores se orientarem por determinados referenciais
posicionais ou de interacção, a não existência de tempo e simultânea necessidade de
vencer. Por exemplo se chego a uma equipa onde os referenciais de marcação são
individuais e eu quero que eles joguem num padrão defensivo zonal, inicialmente os
princípios vão ter que ser muito mais fins, porque eu tenho que lhes dizer com
pormenor o que quero e não raras vezes como quero, posteriormente quando a
identificação com o que quero é maior, ou em casos em que a equipa já tem uma
habituação a jogar dessa forma, os princípios são-no de facto e eu já não digo como
quero, pois é suficiente dar-lhes pistas sobre como quero e eles chegam lá.

O futebol de rua é organizado, porque há algo de organizativo que emerge do facto de


estarem em interacção, mas a vantagem do treino é permitir dar um sentido ao que
emerge, e aí o treinador assume-se como mentor, mas também e não menos
importante como catalisador, pois é ele o responsável máximo do processo que vai
permitir dar vida ao que inicialmente era apenas uma intenção colectiva sua.

36. Luis Esteves: Como o professor vê a questão da comunicação no dias da


semana, faz sentido comunicarmos com os atletas de forma diferente a cada dia,
por exemplo, terça-feira intervenções mais relacionadas a correções individuais,
gestuais, quarta-feira ( em exercícios de maior choque como 3x3 , 4x4)
intervenções mais agressivas etc..

Jorge Maciel: Isso vai de encontro a uma das questões anteriores. E eu respondo que
a forma de comunicar também faz parte da arte. No entanto, compreendo a pergunta,
pois poderá haver alguns aspectos que devo ter em consideração, mas muito pouco
ao nível da forma e muito mais ao nível do conteúdo. Isto é, em função das prioridades
que estabeleço para a sessão de treino a minha intervenção deverá, lá está, ao nível
do conteúdo incidir dominantemente nesses aspectos sem que eu perca a
sensibilidade para intervir em função do que está acontecer e como tal se assim se
justificar intervir em função de aspectos que à partida não havia ponderado, mas que
aconteceram e mereceram essa atenção e intervenção da minha parte. Como o faço,
isso não acho muito relevante, sobretudo, não acho relevante que a forma de
comunicar seja estabelecida á partida. Isso leva a uma teatralização e snobismo que
são bem visíveis no modo de intervenção de alguns treinadores, torna a coisa pouco
espontânea, muito forçada e para mim a intervenção no treino tem de ser algo natural,
até porque eu nunca sei o que o processo no aqui e agora vai requerer de mim. Acho
muita piada por vezes quando observo alguns treinos ver o modo como alguns
treinadores teatralizam os seus gestos, as suas expressões, o modo como comunicam
e as expressões verbais que usam. Muitas vezes é notória a necessidade de agradar,
de treinar para a bancada. Há, quanto a mim uma confusão, torna-se o essencial
acessório e vice-versa, pois mais do que passar a mensagem para os jogadores, o
que de facto passa a ser relevante é passar uma imagem e uma mensagem aos
adeptos e directores. E também acho curioso porque empiricamente noto que isso se
reflecte no modo como as equipas se revelam em jogo, no caso dos treinadores
espontâneos na intervenção há tendência para uma manifestação mais genuína,
natural e espontânea dos desempenhos, é tudo muito menos forçado e postiço.

Quanto á variação da comunicação nos diferentes dias que compõem o Morfociclo,


acho fundamental que o treinador tenha também ele um padrão na sua intervenção e
conduta perante os jogadores. A identidade do treinador deverá também espelhar
estabilidade no modo de intervir, ainda que aceite que possa e inclusive deva, ter
nuances na forma de intervir nas diferentes unidades de treino e inclusive dentro de
uma mesma unidade de treino se assim se justificar, pois sendo o contágio emocional
uma parte relevante do processo o treinador não deverá ter uma postura neutra, pelo
contrário deverá com a sua emotividade e sentimentalidade funcionar como um
catalisador do que deseja.

Por isso, embora possa reconhecer que da configuração dos diferentes dias emergem
diferentes interacções entre os jogadores, e consequentemente emergem deles
também necessidades de intervenção diferentes ao nível da forma em termos de
pormenor, o que de facto é relevante é saber gerir isso com sensibilidade de modo a
que a forma de intervir seja condizente com aquilo que é o treinador, a realidade em
que se encontra e fundamentalmente com as pretensões desejadas. Há aqui também,
face á configuração de cada dia, uma espécie de propensão ao nível da tipologia da
intervenção ou da forma de comunicar. Como é óbvio, se o exercício é mais individual
não vai haver uma intervenção colectiva, o que não quer dizer que não haja
advertências para as repercussões que aquilo pode ter a nível sectorial ou colectivo. A
configuração padrão de cada dia potenciará, ou terá maior probabilidade para
desencadear mais determinado tipo de intervenção, e o contrário também deverá
suceder. Ou seja, a forma de comunicar e intervir deverá catalisar e criar uma
determinada propensão para que a dinâmica desejada se verifique. Conforme é
referido na pergunta a unidade de treino de quarta-feira contempla um conjunto de
situações em que de facto o estorvo, o confronto, as disputas… estão mais implicadas.
Mas pela própria configuração dos exercícios isso já vai, à partida acontecer e se eu
conferir ao processo um carácter altamente competitivo ainda mais provavél é que
assim seja. Por isso, se acontecer eu tenho é que não incendiar, se não acontecer aí
sim incendeio, e para isso posso de facto ter uma postura, tom de voz, vocabulário
mais agressivo ou qualquer outra coisa que eu ache que vai permitir fazer com que o
que não está a acontecer, aconteça de facto. Há bocado dizia que não há receitas e
aqui isso faz também todo o sentido. Ao reconhecermos que a realidade em questão é
imprevisível, a nível micro, devemos reconhecer que esta é também uma dimensão
que deve estar presente na sua treinabilidade, na gestão e na forma de comunicar em
tal processo. Penso que isso, será inclusivamente potenciador da possibilidade de
emergência da criatividade. Considero que quanto mais intuitiva a intervenção do
treinador, mais ele estará receptivo ao que o processo lhe dá e mais rico e dinâmico o
processo se tornará. Importa notar, que quando digo intuitiva tenho em consideração
que essa intuição é balizada por uma Especificidade, e que é algo que pode ser
aculturado tendo subjacente um conjunto de pilares coerentes dos quais emerge um
padrão de intervenção e de comunicação igualmente coerente e congruente com a
intencionalidade implicada no processo. Se estereotiparmos um conjunto de coisas
previamente, tanto ao nível do que queremos em termos de aquisição como inclusive
ao nível das estratégias de intervenção e comunicação, sobretudo se estas forem da
esfera do plano mais detalhado - mais micro - não vamos estar receptivos a coisas
novas que podem emergir, recusámo-las e aí a tendência para cristalizar é enorme.
Aspecto exacerbado pelo facto de nos querermos impor, ou de impor a nossa ideia,
aos jogadores, não partirmos dos jogadores na modelação do processo, adoptando
uma postura autista partindo exclusivamente da nossa perspectiva, porque queremos
o jogo e o processo que idealizamos sem ruídos nem estorvos, mesmo que esses
aspectos, por vezes façam soar muito melhor a nossa música e a vão alimentando
continuamente. O papel do treinador passa também por aí, identificar e perceber se as
emergências de pormenor do processo são compatíveis e catalisadoras ou não do que
deseja. Mas identificar e perceber também que por si só não chega, é fundamental
intervir e comunicar em conformidade, como e com que meios?! Não sei, depende, e
depende de muitas coisas. Isto é que se constitui de facto como a Fenomenotécnica
do treinar.

37. Luis Esteves: Como o professor explica as intenções em ato e as intenções


prévias?

Jorge Maciel: As intenções prévias têm a ver com o critério, com o que deve
sobredertimar a interacção, portanto tem a ver precisamente com o plano intencional,
tem portanto a ver com a representatividade daquilo que eu faço, é a dimensão
simbólica que me leva a agir de determinado modo. As intenções em acto têm a ver
com o plano da concretização, é o que se manifesta no fazer. Para tornar mais
perceptível para a generalidade das pessoas, relembro a história do carro novo do
meu amigo e vou acrescentar um exemplo que poderá tornar mais acessível a
apreensão destes dois conceitos. Eu quando como, faço-o com a boca fechada e uso
talheres para me alimentar, isto é o que eu manifesto quando estou numa refeição, é a
intenção em acto. No entanto, eu só o faço porque a configuração axiológica em que
cresci e a cultura em que me desenvolvi assim o sugere, e assim valora o acto de
estar à mesa numa refeição. Mas eu quando nasci não o fazia, mamava, pegava nas
coisas à mão, eram na altura as minhas intenções em acto, coisas que se fizesse
agora publicamente motivavam que as pessoas olhassem para mim com estranheza e
rejeição, porque a representatividade normalizada do acto de comer não tem a ver
com esse tipo de atitudes, a intenção prévia generalizada não é essa. O que se
verificou é que fruto de um processo de aculturação eu passei a comer de
determinada forma, condizente com o contexto que me envolvia e envolve. E isso só
foi possível porque me levaram a fazê-lo, me foram dando referenciais sobre como o
fazer e porque eu observava os outros fazer. Curiosamente, no início o conflito é
grande, sabemos que não devemos comer de determinada forma mas acabamos por
o fazer, nessa altura experimentamos o período do estranhar, paulatinamente o
conflito vai diminuindo e aquilo que quero fazer tem cada vez mais a ver com o que
faço, até que depois o faço espontaneamente, como hábito. Aí já se entranhou, o
mesmo é dizer, já se instalou a relação mente-hábito.

Isto para mim tem tudo a ver com treino, e muito precisamente com a questão
colocada. Porquê?! Aquelas que eram inicialmente as minhas atitudes manifestas,
intenções em acto, foram se alterando em conformidade com o quadro de valores que
me envolvia. Eu fui contactando e indo modelá-lo em função dessa cultura, dessa
intencionalidade colectiva partilhada, e que aqueles que me educaram tinham como
intenção prévia para a minha educação. O treino visa precisamente fazer com que
diferentes intenções prévias (as que cada jogador tem como suas), diferentes formas
de viver e de sentir o jogo se tornem congruentes com uma única, que deve ser a do
treinador (intenção prévia do treinador é a sua Ideia de Jogo). Ainda que a deste deva
respeitar ou pelo menos ponderar aquele que é o património intencional, digamos
assim, de cada jogador. O que se persegue no treino é tornar possível o emergir de
uma intencionalidade comum, para que no fazer haja sintonia, complexificada pela
necessidade de interacção, e da qual resulta a possibilidade de um número
considerável de jogadores pensar em função da mesma coisa ao mesmo tempo. Tal
estado de desempenho é possível quando se instala no organismo uma
adaptabilidade que permite a manifestação concomitante da intenção prévia com a
intenção em acto. Nesta espécie de fusão, aquilo que inicialmente era uma impostura
passa a ser de facto uma postura, foi Incorporado. Isso é que é o desenvolvimento e
no caso concretização de um saber fazer concomitantemente com um saber sobre
esse saber fazer. O qual ao se manifestar, manifesta critério e sintonia colectiva,
expressa-se sob a forma de ressonância empática partilhada e intencionalizada, que
mais não é do que a manifestação sublime de um jogar de qualidade, sobretudo se
esta fusão for manifestada com base em desempenhos de elevada qualidade e
variabilidade de execução.

38. Luis Esteves: Como o professor gere a densidade de repetições na unidade


de treino? Existe uma preocupação com isso na sua visão?

Jorge Maciel: Claro que isso deverá ser uma preocupação e vai de encontro à
necessidade de recuperar e de respeitar os tempos de repouso de modo a que os
jogadores possam continuadamente vivenciar o jogar, em treino e competição, sem
índices de fadiga acentuada. Só deste modo os seus desempenhos poderão ser
suportados predominantemente nos sistemas metabólicos que eu pretendo,
nomeadamente com base no metabolismo anaeróbico aláctico, e consequentemente
instalar pela incidência a esse nível, uma adaptabilidade condizente. Importa realçar
que o termo repetições pode induzir algumas confusões que importa esclarecer.
Desde logo pode levar as pessoas a pensarem na quantificação do dito volume de
treino, e na Periodização Táctica isso não é relevante, porque o que nos interessa é
um volume de intensidades, ou melhor dizendo um volume de Intencionalidades,
portanto um volume de qualidade. Mas se mesmo assim, numa perspectiva mais
quantificadora do treino quisermos determinar a densidade de repetições, pode fazer-
se o seguinte raciocínio. O nosso treino não tem mais que 90 minutos, por isso em
função do padrão da unidade de treino em questão estabelece-se uma determinada
densidade subjacente àquele padrão de esforçar-recuperar que preencha esses 90
minutos, tendo em conta a maior ou menor continuidade ou descontinuidade do treino,
o grau de assimilação do que se está a abordar e claro o grau de familiarização e de
habituação da equipa ao jogar e ao processo. Temos de ter em consideração que a
densidade não é sempre a mesma, porque se digo que adquirir passa por criar
condições para adquirir então tudo isso pesa na gestão que faço da relação entre os
desempenhos e a recuperação dos mesmos. Uma gestão que volto a frisar não é
linear, e daí que respeite também a necessidade de Progressão Complexa.

Outro aspecto relativo à noção de repetição que importa esclarecer prende-se com o
facto de que o que se repete, são configurações ou propensões para que surjam
determinadas interacções que impliquem a manifestação dos critérios que queremos
que suportem o nosso jogar, e não um conjunto de acções previamente determinados
e fechados passiveis de mensuração. Trata-se portanto de uma repetição não
fechada, mecanismos não mecânicos, que contempla variabilidade e imprevisibilidade
na concretização e no que a motiva em termos de pormenor, apesar de
paradoxalmente essa variabilidade estar suportada e balizada por uma regularidade
que lhe dá sentido, o nosso sentido. Esta noção de repetição do que acontece é
probabilística, e deverá tender para o que pretendemos, isto é para interacções que
tornem mais provável a ocorrência de determinadas acções ou interacções. Não são
portanto repetições no sentido convencional do termo e como tal não haverá, na
concretização, duas acções ou interacções iguais, ainda que o critério das mesmas
deva ser semelhante e estar sobredeterminado por aquilo que é a nossa
intencionalidade colectiva.

39. Luis Esteves: O professor Frade diz que o treino é como uma Moeda, tem o
lado da aquisição e o lado da recuperação. Como ter o feeling de estar em
recuperação e estar em aquisição no treino?

Jorge Maciel: Não diz isso, diz algo mais profundo que isso. A metáfora da moeda vai
além disso, o professor diz que são duas dimensões da mesma face da moeda, ou
seja elas têm uma implicação recíproca e como tal têm de ser equacionadas e
operacionalizadas conjuntamente, e portanto estabelecer desde logo esse dualismo
“estar em recuperação e estar em aquisição” deixa de fazer sentido. Penso que a
dificuldade das pessoas perceberem o que acabei de dizer resulta de um problema de
categorização, diria sem categoria, porque é redutora. Passo a explicar, geralmente
para as pessoas só há preto ou branco nunca cinzento. E isto resulta das pessoas
colocarem as coisas em lugares estanques, o que as leva a pensar que ou se está em
recuperação ou em aquisição, e na Periodização Táctica não é nada disso, porque se
o problema é complexo eu tenho de o equacionar de forma complexa o que passa por
necessariamente perceber a relação entre as coisas, e levá-las a efeito de forma
conexa. E de facto tenho notado que o grande desafio da complexidade passa
precisamente pelo que referi, por as pessoas categorizarem de forma diferente a
realidade, percebendo que a interacção é possível e necessária entre realidades
aparentemente, ou culturalmente assumidas como opostas. Um passo importante
passa portanto por uma concepção mais flexível do modo como categorizamos as
coisas, só assim faz sentido falar em inteireza inquebrantável. E isto vale para o modo
como concebo o meu jogar mas também para o modo como concebo o processo de
treino e o operacionalizo. A categorização deve ser entendida a quatro dimensões,
porque a dimensão temporal assume muita relevância. Vamos a um exemplo muito
concreto e fácil de perceber. Para mim a categorização tem a ver com isto; pede-se às
pessoas que perante um conjunto de músicas façam duas playlists (no fundo duas
categorias), uma com as músicas preferidas e outra com as que não gostam. Isto vai
criar desde logo uma dificuldade que passa por onde meter músicas que eu até gosto
mas não o suficiente para serem as minhas preferidas e onde colocar aquelas que não
gostando até tolero e admiro (aquelas que nunca compraria, mas que se estiverem a
passar na rádio eu ouço)?! Esse é o problema do branco e do preto sem existência de
cinzento. Mas há outro problema e que tem a ver com a temporalidade, passados
alguns anos relembram-nos da seriação que fizemos, e damos por nós a pensar,
«como é possível, eu gostava daquela música pirosa, era a minha preferida» ou então,
«como é que eu dizia que isto não prestava?!». Quero com isto salientar que o
processo de categorização é altamente dinâmico, requisitando por isso de articulação
na relação entre as diferentes categorias e uma percepção dinâmica do modo como
essa relação se processa no tempo. Além disso devemos ter consciência que
determinada coisa pode estar implicada em mais que uma categoria, e isso é muito
relevante no modo como concebemos o jogo e o sistematizamos, porque passa por
reconhecer que determinados princípios são relevantes num determinado momento,
mas também o são noutros, ou que um subprincípio ou subsub pode alimentar mais
que um princípio de determinado momento. Portanto é fundamental, para se entender
a Periodização Táctica que se perceba a profundidade da conexão entre as coisas e
não estabelecer compartimento rígidos entre o que constitui a realidade.

É partindo desse pressuposto que faz sentido dizer que o treino e recuperação não
são duas faces da mesma moeda, mas antes como afirma o Professor Vítor Frade,
que são duas dimensões da mesma face da moeda. Não se está em recuperação ou
aquisição. Há um termo que quando utilizado pode parecer um preciosismo linguista,
mas na verdade não é. Trata-se da utilização da palavra dominantemente. Quando
falamos em realidades padronizáveis e só assim passiveis de serem quantificáveis, o
uso desta palavra é fundamental. Muitas das vezes quando há referência à dinâmica
implicada em cada dia do Morfociclo devemos ter esse cuidado, ou seja, a tendência é
para que a contracção muscular tenha uma maior propensão para determinada
configuração, o que não quer dizer que as outras dimensões que caracterizam a
contracção muscular não estejam a acontecer em simultâneo. Estão mas de forma
menos relevante, ou até residual, ou seja de modo não dominante relativamente ao
padrão de contracção muscular mais implicado em determinado dia. E este mesmo
pensamento se aplica à questão colocada, isto é, dominantemente estamos num
treino de recuperação ou de aquisição, mas não exclusivamente num ou noutro,
porque todos os dias são dias de recuperação e de aquisição. Não podemos
absolutizar, embora tenhamos que saber que a predominância nuns dias recai mais
sobre a aquisição e noutros na recuperação. Em suma, inclusive nos treinos de
aquisição tenho preocupação em recuperar, por isso a descontinuidade é uma
determinada em função do padrão de desempenho dominante e por isso estou sempre
a “afinar porcas e parafusos” como diz o professor Frade. Do mesmo modo, inclusive
nos treinos de recuperação, ou seja, em que a enfâse tem tal propósito eu não deixo
de actuar no sentido de induzir consistência ao que tem vindo a ser adquirido, porque
inclusive defende-se que para recuperar devo estimular o que me levou a fatigar,
como tal estou a incidir sobre o meu jogar, ainda que o faça em níveis de
complexidade reduzidos, e quanto mais não seja, estou a garantir que pelo que faço
estou a criar condições para adquirir.

Depois relativamente ao modo de gerir isso e de o operacionalizar, é de facto muitas


vezes um feeling. A dosagem do processo e o estabelecimento das prioridades
emergentes a cada instante têm de ser equacionadas com muita intuição. Aí entra a
Arte dos treinadores, é um dos modos de expressão ou não, do Sentido da Divina
Proporção. Eu devo reconhecer que há indicadores indirectos, detectáveis a
olhómetro, que me permitem perceber os estados de fadiga da equipa ou dos
jogadores, nomeadamente o maior número de desacertos, maior desconcentração,
lentidão a decidir e descoordenação a executar, falta de mobilidade dos jogadores
sem bola, jogadores que se escondem, retardamento no timing de execução,
reactividade no que fazem, a impossibilidade de antecipar e não menos relevante os
próprios comentários e as expressões que manifestam indicam muito sobre o modo
como se sentem. Tudo isto, e não só, são aspectos que permitem detectar o estado de
fadiga ou de frescura apresentado pela equipa, ou nalguns casos por alguns
jogadores, e isso também é muito importante, perceber que nem todos reagem de
igual modo à fadiga por exemplo devido às diferenças de idades, pelo historial de
treino, por possíveis paragens que possam ter tido recentemente… E quando
detectamos que a equipa ou alguns jogadores se encontram num estado que não
permite condições para adquirir, aí a prioridade passa a ser criar condições para
adquirir, isto é, passa a ser recuperar. Claro, como dominância.

40. Luis Esteves: Alguns jogadores tem a habituação do treino analítico como
guia na metodologia do treino, principalmente com treinos especificamente
físicos com baixa relação com o jogo, como “convencer” estes jogadores que
esta não é a melhor forma para ter seu melhor rendimento?

Jorge Maciel: Essa é uma questão muito pertinente, e do modo como eu lhe
respondo perante um contexto habituado a metodologias convencionais pode ser
determinante para o meu sucesso nessa realidade. Trata-se de uma questão muito
sensível que requer da parte do treinador muita sensibilidade e muita convicção na
sua forma de treinar, porque se vacila e não tem consistência no que faz a tendência é
para seguir o instituído, ou não seguindo, fazer uma mistura e acaba nem por seguir
coerentemente uma forma de treinar nem outra. Perante um possível cenário como o
evidenciado na questão o treinador tem de perceber que os jogadores são pessoas, e
como tal têm uma história que pela continuidade com que foi sendo marcada, foi
incorporada e como tal exerce um peso enorme sobre aquilo que as pessoas são,
pensam e fazem. O Professor Vítor Frade nestas situações usa de forma feliz a
metáfora do café com leite. O objectivo é salientar que sendo a nossa pretensão
colocar os jogadores a beberem leite (representa a Periodização Táctica), sem que a
motivação deles vá nesse sentido, porque querem e estão habituados a café
(metodologia convencional), a passagem do café definitivamente para o leite deve
fazer-se de forma gradual. Isto é, sabendo que o leite tem pouca aceitação, fruto da
habituação e da crença generalizada relativamente ao café, o treinador sente
necessidade de atender a isso sem deixar de ter a pretensão de os habituar ao leite,
mas ao mesmo tempo tendo a sensibilidade para que a passagem não se faça de
forma conflituosa pela não habituação. Este é um aspecto muito importante, uma vez
que tudo que implica alteração de hábitos cria em nós desconforto, desconfiança,
estranheza e inicialmente até mau estar, por isso é que o treinador deve ponderar até
que ponto faz sentido passar do café para o leite, sem que haja uma espécie de
desmame. Se ele tem consciência disso, e se sabe que o estatuto que ostenta, porque
ainda não ganhou nada significativo por exemplo, não lhe permite romper de forma
inequívoca e passar directamente para o leite, é uma atitude reveladora de inteligência
ir paulatinamente adicionando ao café um pouquinho de leite, e pouco a pouco cada
vez mais leite, mas estando sempre atento á reacção que a mistura desperta nos
jogadores. Tem de perceber como se processa a aceitação. Esta metáfora do café
com leite, no fundo tenta de forma disfarçada retratar aquilo que se constitui como um
processo de desmame, ou seja de desabituação. Tenho referido que que na aquisição
de um jogar, o treinador deve partir dos jogadores para que estes assimilem as suas
ideias, o mesmo é válido para nestas situações em que querem mudar, não a nível da
concepção de jogo, mas a nível metodológico. Ou seja, tenho de perceber o que eles
têm, para que assim possa perceber como os trazer para o que desejo em termos de
operacionalização do processo. No entanto, importa realçar que esse desmame, essa
passagem do café para o leite, deve fazer-se já tendo em consideração a lógica
metodológica que pretendo implementar, ainda que por vezes com conteúdos
marcadamente mais ligados com o café do que com o leite. Ou seja, a lógica
metodológica deve obedecer aos pilares do leite, o modo como a levo a efeito,
disfarçadamente, é que pode contemplar conteúdos mais analíticos. Conteúdos que
devo saber misturar com o leite, mas lá está, sem misturar a lógica metodológica, e
que devem ser irrelevantes ao nível da adaptabilidade que poderão induzir nos
jogadores, para que não se constitua como estorvo àquilo que considero essencial. É
uma gestão difícil de facto, mas necessária.

Passando a um exemplo hipotético, imagine-se que chegamos a um clube onde o


culto do fisicismo está muito presente e até com alguns resultados. Nesse caso o que
é que se pode fazer?! Desde logo estar sensível para perceber isso. Mas como
operacionalizar o processo sem fugir do que desejamos, em termos de lógica, e sem
conflituar com o que naquele contexto é cultural?! Podemos por exemplo durante a
sessão de treino levar a efeito algumas coisas de que eles pensam sentir
necessidade, mas com dosagens muito insignificantes. Por exemplo, faço uma
situação jogada, e depois de recuperarem fazem umas corridinhas. Ou então por
exemplo, num treino típico de quarta-feira, levo a efeito situações de jogo que
cumpram com o que pretendo em termos de jogo, e no aquecimento, ou entre
exercícios ou no final realizo algumas situações mais analíticas onde a dominância ao
nível do aumento de tensão da contracção muscular esteja presente. Eu tenho que ser
é inteligente e criativo para lhes dar o que eles ainda necessitam, e ao mesmo tempo
criar pelo fazer uma habituação ao processo o mais condizente possível com a que
desejo. É um desafio muito engraçado, porque nos obriga a engendrar formas de o
fazer, mas ao mesmo tempo pode ser um processo que nos torna mais próximos dos
jogadores, porque nos obriga a percebê-los. E além disso, muitas vezes para os
percebermos comunicamos com eles e tomamos consciência do motivo pelo qual
aquilo para eles faz sentido. E claro em função disso, tentamos desmontar tal
necessidade, conversando com eles, dando-lhes a conhecer uma realidade que
desconhecem e sempre que possível servindo-nos de exemplos que vão acontecendo
e que lhes são próximos. Esse é um aspecto muito importante. Por exemplo, imagine-
se que temos um jogador na equipa com habituação ao treino convencional, e que tem
contacto regular com outros jogadores, nas selecções por exemplo, que já treinaram
segundo a Periodização Táctica, poderá ser pertinente incitá-lo a falar com esses
jogadores no sentido de desmontar a sua crença.

Em suma, penso que esta questão requer da parte dos treinadores muita
sensibilidade, criatividade, e fundamentalmente muita competência e não menos
importante, resultados. Os resultados são determinantes para a adesão. Por exemplo
na última experiência que tivemos na Líbia, foi também muito relevante a este nível. A
equipa estava habituada a uma metodologia de treino convencional e culturalmente,
por influência de treinadores egípcios e brasileiros fundamentalmente, o treino dito
físico está muito enraizado na generalidade das equipas e inclusive nos comentários
dos adeptos. Quando lá chegamos só ouvíamos dizer que a equipa estava mal
fisicamente, que tínhamos que “treinar o físico”, porque um dos problemas da equipa
era determinados jogadores não conseguirem fazer um jogo completo, e um dos mais
acérrimos defensores desta ideia era o nosso tradutor. E no fundo espelhava o que
pensava a generalidade das pessoas. Mas nós não demos ouvidos ao que se ia
dizendo e desde sempre treinamos como desejávamos, embora respeitássemos
algumas coisinhas sempre que os jogadores solicitavam. Por exemplo, no final do
treino havia um jogador ganês que não estava a jogar quando chegamos e que me
pedia para dar umas corridinhas ou para fazer com ele algumas acções explosivas, e
eu ficava com ele. Fazíamos coisas com pouca densidade e enquanto recuperava
aproveitava para conversar com ele e explicar-lhe que se treinasse bem, não tinha
necessidade de o fazer. Fazia-lhe perceber que onde ele tinha de correr é nos
exercícios de treino e não no final e que se o fizesse, fazia-o de forma muito mais
condizente com que o jogo requisita. Passado pouco tempo deixou de o fazer e
reconhecia que estava melhor do que nunca. Portanto, apesar de termos sensibilidade
para estes pormenores, e tentarmos a partir deles sensibilizá-los para a não
necessidade dos mesmos, desde o início treinamos como pensávamos que devíamos.
Tínhamos conversas entre nós, equipa técnica, onde comentávamos o quanto os
jogadores estranhavam sair do treino sem estarem a morrer, e no dia seguinte
estarem bem para voltar a treinar. Para o jogador sentir-se assim é estranho, e
acredito que para muitos desconfortável, por norma o jogador tem de sair do treino
morto, para sentir que treinou. Isto tem um peso incrível. Não raras vezes no início do
treino falávamos com eles para tentar perceber como estava a ser a adesão a esta
forma de trabalhar e como eles se sentiam. Era curioso reparar que inicialmente os
jogadores diziam que estavam bem e gostavam, mas nós sentíamos que dizendo-o
com sinceridade, evidenciavam muita estranheza e desconfiança. Felizmente
podíamos usar um argumento válido, ou talvez o mais válido, é que o Baltemar Brito,
ainda que como adjunto, já tinha ganho muitas coisas a treinar desse modo, e dizia-
lhes precisamente isso. Isto pode parecer um pormenor, mas não é, a adesão é muito
mais fácil quando se chega a um lugar com uma história de vitórias. Se quando nos
contratam, os jogadores nos olham e dizem «com este eu vou ganhar», eu
praticamente posso passar do café para o leite. Mas voltando à Líbia, depois de lá
estarmos dois meses, estávamos já em primeiro lugar com vantagem considerável
para o segundo, tendo uma densidade competitiva muito maior que as outras equipas,
sem ter qualquer derrota, com os jogadores que não aguentavam um jogo completo a
jogarem noventa minutos, e jogando bem… em mais uma conversa com os jogadores
onde abordamos o como se sentiam, voltaram a referir que estavam muito bem, mas
receavam que o facto de treinar desta forma e de treinarem pouco, segundo eles, lhes
poderia ser prejudicial no futuro. Receavam não aguentar o mesmo nível ao longo da
época. Estavam naquela situação em que se costuma dizer que «quando a esmola é
grande o santo ou pobre desconfiam». Mas este episódio é, pelo menos para mim,
muito relevante e identificador do quanto estas coisas pesam nos jogadores e no
quanto é difícil desconstruir tais crenças, o que consequentemente requisita da nossa
parte de grande sensibilidade.
41. Luis Esteves: O professor Frade diz que a Periodização Tática pode ser
aplicada a “70%, 80% 90%”. É adaptável as situações contextuais, o que o
professor acha disso?

Jorge Maciel: É preciso perceber bem o que se quer dizer com isso. Na questão
anterior torna-se evidente que muitas vezes nos confrontamos com realidades que se
afastam daquela que é a realidade ideal para desenvolver o processo do modo como
entendemos ser mais ajustado. E essas questões, habituação dos jogadores, a
história do clube associada a vitórias treinando de determinada forma, ou até a cultura
de treino de um país, assume um peso enorme sobre o modo como se vai concretizar
o processo e deverão ser aspectos que eu terei que ponderar com sensibilidade. Se
não atender a esses condicionalismos contextuais poderei não estar a ser muito
inteligente e inclusive poderei estar a dar tiros nos pés. Daí que eu possa ter
necessidade de disfarçar o processo com algumas coisas, que poderão de uma forma
superficial e perspectivadas de fora, parecer mais conotadas com o treino mais
analítico. Que de facto talvez me afastem dos 100%, mas no entanto, para mim que
estou por dentro do processo sei que se trata de uma opção deliberada para poder
ganhar espaço entre, os jogadores, direcção, adeptos, e no caso de ser adjunto
ganhar espaço relativamente ao treinador, para que depois sim, estando consolidado
esse espaço eu possa estar nos 100%. Muitas vezes as pessoas esquecem-se que
também esta conquista de espaço digamos assim, ou de aceitação relativamente a
uma realidade transgressora, se constitui como um processo que como tal é levado a
efeito num contexto que sobre ele exerce muita preponderância. À medida que a
aceitação vai crescendo eu vou puxando a realidade para o que desejo, tal como
sucede na aquisição de um jogar, isto é, parto com a minha ideia, mas parto da
realidade para a concretizar e paulatinamente vou tentado-a aproximar àquilo que eu
acho que deve ser a realidade. Mas há nesta estratégia metodológica alguns aspectos
muito relevantes, daí que tenha advertido para o facto de ser necessário perceber a
profundidade das palavras do Professor quando afirma que a Periodização Táctica
pode ser operacionalizada a 70, 80… 100%. Desde logo importa ter em consideração
que o que direcciona o processo é o que se faz dominantemente, por isso, o que se
faz em termos de disfarce, isto é aquilo que aparentemente é mais convencional, deve
ser o suficiente para parecer ilusório, mas simultaneamente suficientemente
insignificante para que não se constitua como relevante. Ou seja, o grosso do
processo deve ter o viés que queremos dar ao processo, pois é em função disso que a
adaptabilidade se instala. Por outro lado, e não menos importante temos de
reconhecer que independentemente do grau, para que seja de facto Periodização
Táctica, não podemos esquecer que o processo deve respeitar uma determinada
matriz metodológica, a da Periodização Táctica e que é composta por Princípios
Metodológicos únicos. Depreende-se assim que a lógica processual deve estar a
100%, o modo como é operacionalizada é que pode ter maior ou menor necessidade
de conteúdos à partida desnecessários, mas que o contexto requisita e justifica, ou
ainda por insuficiência do treinador ao nível da concretização do processo. Claro que
quanto mais próximo dos 100% for o modo de a operacionalizar melhor e também
mais rapidamente se conseguem os intentos desejados, mas por vezes é preciso
contornar muitas coisas com sensibilidade e com o cuidado de aquilo que é
potencialmente “ruído”, e nos afasta dos 100%, não interfira negativamente no que se
considera essencial, por isso é que o Modelo é tudo. Muitas vezes as pessoas vão ver
treinos e dizem que afinal é tudo a mesma coisa, quando na verdade não é, mas
dizem-no porque não ponderam o porquê das coisas, nem tão pouco o teor do que se
fez e muito menos o que o envolve. Vêem fotos e fazem um filme descontextualizado,
sem necessariamente contemplarem a temporalidade implicada naquele processo, por
isso não perspectivam o que está antes e o que se perspectiva vir a estar depois para
que o presente tenha aquele sentido.
O que importa perceber é que independentemente da percentagem é fundamental que
a lógica, que a matriz metodológica seja cumprida a 100%, o modo como é levada a
efeito é que poderá ser mais ou menos adequada, mas aí também depende da arte ou
criatividade dos treinadores para criarem exercícios que visem os propósitos
desejados respeitando as subdinâmicas implicadas em cada dia de treino. Para que se
perceba, quando me refiro ao modo, quero salientar que podendo ser mais jogada ou
não, com maior ou menor complexidade intrínseca, a matriz metodológica deverá estar
sempre presente, senão não é Periodização Táctica. Costumo dizer, e espero não ser
mal interpretado, que para aqueles que estão a 100% na Periodização Táctica ou
próximos disso, a quarta-feira é dia dos sub e subsubprincípios em regime de
dominância de contracção muscular em tensão, a quinta-feira é dia dos grandes
princípios em regime de dominância de contracção muscular em resistência e a sexta-
feira é dia dos sub e subsubprincípios em regime de dominância de contracção
muscular em velocidade. Enquanto que para os que estão em percentuais mais abaixo
esses dias são muito mais dias de tensão, de duração e de velocidade.

42. Luis Esteves: Como o professor entende na formação a hierarquia de


valores, o que deve-se ter como preocupações no processo formativo dos
clubes?

Jorge Maciel: Penso que a prioridade nos processos de formação deverá ser criar
jogadores que possam servir à primeira equipa. O problema é que não raras vezes a
prioridade passa por criar equipas, para ganhar competições durante os anos de
formação. Eu penso que não será impossível conciliar ganhar com criar jogadores de
qualidade, acho até mesmo que essa deve ser uma pretensão. Por isso quando me
refiro a criar jogadores, é tentar fazê-lo em contextos colectivos de qualidade, o que
requer uma concepção de jogo de qualidade, qualidade de treino e como tal bons
treinadores. Há um pormenor muito interessante que quanto a mim reflecte o modo
como os clubes pensam, ou melhor não pensam a formação e a relação que esta deve
ter com a realidade sénior. O pormenor passa por a generalidade dos clubes terem os
chamados departamentos de formação, sem estarem englobados no dito
departamento de futebol, é um pormenor, mas muito revelador da separação existente
entre estas duas realidades que deviam ter um fio condutor único, e verificável a nível
da concepção de jogo e também a nível da metodologia de treino. Mas infelizmente
são muito poucos os casos em que tal se verifica, mesmo que alguns dos poucos
sejam casos de sucesso. A generalidade dos clubes prefere investir continuadamente
em jogadores que não sentem, nem estão aculturados á realidade dos clubes, em vez
de criar condições e proporcionarem aos jovens da formação condições para
integrarem com sucesso a equipa principal. Parece que a formação existe apenas
para não parecer mal não ter, e para justificar a utilidade e vertente social dos clubes,
muitas vezes mascarada pelo desejo de usufruir de verbas extra a investir, de forma
desviada, na equipa sénior. Penso que é um contra senso pensar-se que se assim for
os benefícios, mesmo os financeiros são maiores. No imediato talvez, e talvez
alimente a ânsia de dinheiro de muita mais gente, mas a médio ou longo prazo não
penso que seja assim, porque o investimento elevado na formação, acima de tudo
depende de qualidade de ideias e da qualidade das pessoas para o levar as efeito, e o
retorno poderá ser muito grande. Porque o clube se tornará auto sustentável e poderá
inclusive rentabilizar essa concepção de formação com a venda e constante
valorização de jogadores provenientes de tais processos.

Penso que paradoxalmente a enfâse nos processos de formação deve centrar-se nos
jogadores, e mais concretamente se possível em conformidade com o tipo de
jogadores que queremos formar, o que implica que os clubes definam o que
pretendem em termos de jogadores para as diferentes posições. É importante definir
perfis padronizados de jogador para as várias posições, e fazê-lo tendo subjacente
uma determinada intencionalidade relativamente à forma de jogar, para que os perfis
sejam condizentes com o que o jogar implica. E os perfis não podem ser considerados
como imposições, nem como verdades absolutas, porque se o talento tem, como acho
que tem, muitas formas de se manifestar a padronização nunca poderá estar fechada
à possibilidade de contemplar jogadores que fugindo dos perfis à partida estabelecidos
se evidenciem de facto como mais-valias. Os perfis são referenciais gerais, que devem
ter significado para quem treina na formação e não menos importante para quem
detecta talentos. No meu entendimento para se formar jogadores de qualidade importa
reconhecer como essa qualidade se pode manifestar e reconhecer que a variabilidade
como se poderá expressar implica que tenhamos uma visão abrangente daquilo que é
um talento. Infelizmente penso que os olhos com que se vêm o talento nem sempre
são os melhores, nota-se claramente, pelo menos em Portugal, que nos escalões de
formação há uma predominância para a selecção se fazer com base em critérios
morfológicos e nos desempenhos físicos dos jogadores, em detrimento de aspectos
que de facto a Top fazem a diferença, como a inteligência, a qualidade posicional, a
capacidade para antecipar, o modo de interagir o critério com bola e sem bola, a
relação com o jogo e com a bola… Claro que isto é mais exigente do ponto de vista de
quem detecta talentos e de quem os treina, não há nada que permita quantificar a não
ser o olhometro e a sensibilidade de cada um. Mas infelizmente os talentos são não
raras vezes seleccionados a metro e a quilo, os jovens mais avançados
maturacionalmente têm grandes vantagens ao nível das oportunidades que lhes são
conferidas, porque os treinadores apenas contemplam o que cada um revela no
imediato e não o que poderá vir a revelar futuramente. Não entendem que o talento é
uma realidade em potencial, por isso optam por dar primazia nas escolhas a jovens
que são mais corpulentos, por serem mais eficazes no imediato. Estes jovens acabam
também por ser prejudicados, pois muitos deles tendo potencial para muito mais,
habituam-se desde muito cedo a viciar o seu jogo, suportando-o quase exclusivamente
nas suas vantagens morfológicas e físicas, não desenvolvendo por isso outras formas
de dar respostas ao que o jogo coloca. Não admira por isso que muitos destes jovens,
que se destacam até por volta dos juvenis depois percam a sua relevância, dando
lugar a jovens até então preteridos, porque as vantagens maturacionais que até então
apresentavam e que lhes permitiam ser mais eficazes deixaram de existir, e face à
dependência que criaram devido ao suporte de um registo de jogo assente no
fisicismo, não conseguem desenvolver nem evidenciar outros atributos. Perdendo
assim espaço para os demais, que inicialmente em desvantagem por serem
morfologicamente e do ponto de vista físico mais débeis, passam esbatidas as
diferenças maturacionais a ser os melhores sucedidos por apresentarem soluções de
outra ordem, são mais perspicazes e apresentam maior variabilidade nos seus
desempenhos. Infelizmente, nem sempre estes acabam por sobressair, em muito
devido à exacerbação da dimensão física nas concepções de jogo da generalidade
das equipas, e também na contemplação disso como dominante nos processos de
selecção de jogadores e nos processos de treino. Nesse caso sobressaem os
guerreiros, os abnegados perpetuando desse modo o mito dos atletas, e não
necessariamente os futebolistas de qualidade, os talentos inteligentes. Acho incrível
como é que no futebol um dos critérios de selecção na formação possa ser o tamanho.
Um critério de selecção que é simultaneamente de exclusão. Dói pensar quantos
possíveis talentos, não o chegaram a ser por causa desse disparate. E é mesmo um
disparate, porque se olharmos para a história do futebol mundial, há de tudo mas
curiosamente muito poucos são os que pertencendo a essa elite perfazem o perfil
morfológico que muitos procuram. Além disso penso que se pedirmos aos jogadores
de Top do futebol mundial do presente e do passado que se reportem às respectivas
infâncias, e reconheçam aspectos que os fizeram ser os jogadores que foram ou são,
verificamos que o que faziam tinha fundamentalmente a ver com jogar futebol e muito
pouco com o que se faz em muitos clubes, e que se faz claramente do espírito e dos
conteúdos que se viviam no futebol de rua.
Portanto em síntese penso que o essencial na formação passa por cada clube assumir
para si o compromisso de formar para si, mas para tirar proveito, depois terá de
perceber o que quer e treinar em função disso, reconhecendo que se aprende a jogar
jogando e se possível ganhando para que o habito de vitória esteja presente e se
instale como cultura. E essa aspiração penso será tanto mais possível quanto melhor
identificados forem os talentos, e quanto mais a evolução destes se verificar em
contextos colectivos de qualidade pois é isso que potencía simultaneamente jogares e
jogadores.

43. Luis Esteves: O que é jogar bem na sua concepção?

Jorge Maciel: O que é jogar bem, aí está algo com uma polissemia muito grande. O
que torna ainda mais pertinente a questão e fundamentalmente cada um, face à
pluralidade que tal pode representar, ter bem presente o que é para si um jogar de
qualidade. E para mim há pressupostos básicos na identificação ou construção de um
jogar de qualidade. Desde logo tenho de reconhecer que o futebol é uma modalidade
colectiva, e como tal toda a dinâmica deve assentar na interacção colectiva, de forma
organizada e coerente para que a funcionalidade manifesta seja de facto suportada
por referenciais colectivos e se manifeste de forma fluída e harmoniosa. Depois não
me posso esquecer que o futebol tem um objectivo muito claro, que é ganhar, e para
ganhar eu tenho de marcar mais golos que o adversário, por isso o jogar bem tem
como pretensão o desejo de atacar. Mas como, atacar por atacar?! Claro que não,
para atacar com qualidade eu tenho de manifestar uma dinâmica colectiva que me
permita fazê-lo tendo em consideração a existência dos diferentes momentos de jogo.
Ou seja, apesar da intenção ser atacar com qualidade a equipa deve estar organizada
nos diferentes momentos, para que esse desejo esteja sempre presente, e para que
ao acontecer eu tenha em consideração o jogo todo, isto é possibilidade de estando
com bola a perder, a possibilidade de quando a perder ou ganhar perceber o que o
jogo exige e ainda quando sem bola defender tendo em vista a possibilidade de
atacar. Portanto sendo o objectivo claro vencer, e com um futebol dominantemente de
ataque, é fundamental que a equipa revele uma identidade colectiva que manifeste
organização e congruência com os meus intentos. Além disso, esta identidade
colectiva, não deve ser castradora, por isso deve permitir que cada singularidade que
para ela contribui se expresse como um acrescento qualitativo ao todo, e
simultaneamente se potencíe como parte nesse mesmo todo organizado. Isso, tal
como nos diz a teoria da complexidade só é possível se o todo for organizado, o todo
organizado é mais que a soma das partes.

O Professor Vítor Frade refere-se ao trinómio Estética Eficácia e Eficiência como o


cerne do jogar de qualidade. E de facto assim é, a articulação bem conseguida entre
estes três aspectos é determinante, é da melhor ou pior consecução do mesmo que
emerge respectivamente um jogar de maior ou menor qualidade. Conforme referi, no
futebol há claramente um objectivo claro, vencer, ser eficaz portanto, mas perseguir
esse intento deve despertar em quem joga e em quem vê jogar um determinado
impacto e essa é a dimensão estética que o jogar deve contemplar. Além disso todos
estes aspectos devem ser alcançados tendo por base uma identidade própria, a
dimensão da eficiência tem a ver com esse apego a uma intencionalidade capaz de se
manifestar regularmente e de forma a dar resposta satisfatória aos problemas
colocados pelo jogo. A concretização deste trinómio é bastante complexa e difícil
também, porque por vezes a interferência sobre uma das dimensões poderá ter
implicações muito significativas nas demais. E uma vez mais, a calibragem de tudo
isso faz parte da mestria do treinador. Não obstante da necessidade de pontualmente
o treinador ter de aferir para tornar bem sucedida esta relação, penso que o jogar de
qualidade se expressa pela seguinte máxima do Professor Vitor Frade e resulta do
equilíbrio, feito nos limites entre “máxima redundância (a nível macro – Princípios de
Jogo) e máxima variabilidade (a nível micro – plano dos detalhes) ”. Conseguir isto é
aspirar à concretização do futebol elevado á sublimidade, mas implica um equilíbrio
altamente dinâmico entre atacar defender e passar de um para o outro, fazendo-o na
fronteira do caos tanto a nível colectivo como individual, pois é isso que me vai permitir
não perda de identidade pela “máxima redundância” e não perda de criatividade pela
“máxima variabilidade” de manifestação e de concretização ao nível das diferentes
escalas que compõem a equipa aquando da tentativa de materializar tal identidade. Se
assim for, e não é nada fácil, as equipas serão dominadoras e controladores, e
fundamentalmente organizadas, capazes de entusiasmar multidões e de vencer com
maior regularidade. No entanto, tudo isto é muito fácil, ou relativamente fácil de dizer,
o pior é como, isto é, com que identificação a suportar esse jogar bem. O que é que eu
reconheço como jogar bem e de que modo eu detecto o que num jogar bem é de facto
relevante. Por exemplo, posso dizer que gosto do Barcelona a jogar, mas saberei o
que o torna único?! Para uns o que o torna diferente é a qualidade individual dos seus
jogadores, são os dribles do Messi, as chuteiras da marca x…, para outros, sendo isso
relevante, só é possível ou melhor só é potenciado, pelo facto da equipa apresentar
uma identidade colectiva única, da qual emerge uma dinâmica determinada assente
em referenciais colectivos que potenciam a identidade colectiva e manifestação de
cada jogador. Depois e não menos importante, além da necessidade de identificação
com o que se constitui como fundamental no rendimento de uma equipa, e no caso
aquilo que lhe permite estar e manter-se a TOP, há que saber como parir isso, como
conseguir levar isso a efeito e como treinar para o conseguir fazer. Esse é sem dúvida
o maior desafio do treino, é mesmo a sua essência.

44. Luis Esteves: Todos queremos ganhar, mas para o professor o processo
inicia aonde? Jogar bem ou ganhar?

Jorge Maciel: Quando se está a um determinado nível, ou se calhar


independentemente do nível a que se está, vencer é uma prioridade, quando se
contrata um treinador o propósito é óbvio, «estás aqui para ganhar, se não ganhas…
vida difícil». O treinador lida permanentemente com este desafio, ganhar sempre e
mais que os outros. Depois, do mesmo modo que há muitas formas de treinar, haverá
também muitas formas de ganhar, apesar de eu ser mais adepto de umas do que de
outras. O que me intriga é ver que esta dicotomização, “ganhar ou jogar bem”, se
perpetua e influencia as pessoas. Trata-se de um reforçador cultural que pesa muito
negativamente na cabeça dos adeptos, dos treinadores, dos directores e dos
jogadores, e que faz transparecer a ideia que conciliar jogar bem com ganhar é
impossível. E isso é uma estupidez, temos provas mais do que evidentes de que
assim é de facto. Veja-se por exemplo os recentes exemplos da Espanha e do
Barcelona, vencem e não o fazem a jogar bem fazem-no a jogar muito bem,
superiorizando-se de forma categórica e regularmente à generalidade das equipas. O
facto de as pessoas não ponderarem esses dados tão evidentes, assim como o facto
de não ponderarem que a generalidade das equipas joga mal, logo ser desse grupo
que saem os vencedores, reforça a ideia de que para ganhar é preciso jogar mal. Mas
não é preciso, como mostram os exemplos da Espanha e do Barcelona, ou até mesmo
dos vencedores mais recentes do campeonato português, o Benfica venceu na época
anterior a jogar bem, e o FC Porto este ano ganhou a jogar muito bem, por isso
superiorizou-se em Portugal e na Europa. Importa desmontar a ideia que jogar mal
compensa. O processo inicia por aí, e continua com a necessidade de se ter uma ideia
sobre como queremos jogar, para jogar bem e vencer.

Agora indo de encontro ao que referi em cima, aquilo que persigo é tornar exequível o
trinómio Estética Eficácia e Eficiência, mas claro que isso tem de ter em consideração
o meu contexto. Por isso quando chego a um determinado contexto eu tenho de
perceber muito bem onde estou e até onde posso ir, para em função disso estabelecer
as minhas prioridades imediatas e a mais longo prazo. Portanto a hierarquização
também passa por saber onde estou e qual a minha margem, e isso pode pesar no
modo como eu articulo ou dinamizo o trinómio Estética Eficácia Eficiência, podendo
face às necessidade circunstanciais valorizar mais uma (ou umas) dimensão em
detrimento de outra ou outras. Por exemplo, se chegar a uma equipa que tem de
ganhar no imediato para concretizar os seus objectivos – títulos ou manutenção - e se
sei que a minha continuidade no meio e o prestígio dependem fundamentalmente de
eu ganhar naquele período as minhas preocupações serão determinadas mais no
sentido da eficácia. Mas se por outro lado sinto que tenho margem, preocupo-me em
criar um jogar mais complexo que me leva mais tempo a construir, mas que eleva de
forma mais graciosa o trinómio. O fim é sempre o mesmo, pelo menos para mim, e
passa por querer jogar bem para ganhar, mas eu tenho que perceber que em alguns
contextos, seja pela necessidade de pontuar, seja pela necessidade de desabituar os
jogadores a uma forma de treinar e ou de jogar, para jogar bem eu primeiro e de forma
imperativa eu tenho de ganhar. Porque quando se ganha tudo fica mais fácil,
ganhamos tempos, ganhamos margem para transmitir as nossas ideias, ganhamos
aceitação, e fundamentalmente a crença generaliza-se e a nossa empatia e
sintonização com quem treinamos diariamente cresce de forma incrível. Concluindo,
penso que não é impossível ganhar e jogar bem, assim como considero desejável
ganhar para jogar cada vez melhor.

45. Luis Esteves: Gostaria que o professor referisse os conceitos de: “Arte das
trajetórias” e “ Teoria dos alvos” que muitas vezes são citados em monografias
orientadas pelo professor Frade.

Jorge Maciel: São dois conceitos que representam duas formas antagónicas de
conceber o processo de treino. A arte das trajectórias tem a ver com uma forma de
conceber o treino respeitando a não linearidade que o processo deve contemplar. Por
outro lado a teoria dos alvos reporta-se a uma visão linear do processo de treino, e
representa aquilo a que por vezes se diz ser o “treinar sobre carris” ou conceber o
treino e o que nele se faz como mecanismos mecânicos. A Periodização Táctica
pretende ser muito mais a arte das trajectórias que a teoria dos alvos, desse modo a
dominância do processo deve conter como exercícios, contextos que se constituam
como servomecanismos ou cerebromecanismos e não mecanismos mecânicos. Os
dois conceitos são, face à sua designação, relativamente fáceis de apreender. A teoria
dos alvos remete-nos para uma realidade fixa, portanto imutável, fechada, ou seja com
pouca ou nenhuma imprevisibilidade intrínseca. A arte das trajectórias pelo contrário
apela à necessidade de escolha de entre várias hipóteses. A noção de trajectórias
reforça a ideia de variabilidade de percursos, ainda que volte a frisar, que
independentemente do percurso a finalidade é chegar a um destino determinado, daí
que as trajectórias, emergentes dos contextos de treino, devam fazer emergir com
propensão predominante os trajectos que caracterizam o sentido da nossa caminhada,
isto é do nosso jogar. É de facto uma arte, porque implica que cada um tenha
autonomia, alicerçada num referencial colectivo, para eleger qual a trajectória mais
ajustada. Tenho salientado que a Periodização Táctica tem como grande pretensão o
desenvolvimento e concretização de um saber fazer em concomitância com um saber
sobre esse saber fazer, por isso mesmo, é que esta forma de conceber o treino tem de
ser fundamentalmente uma arte das trajectórias. Deste modo, os jogadores vêm-se
obrigados a interagir de forma autónoma e encontram-se permanentemente
implicados, sendo assim parte activa, criativa e inteligente no modo como solucionam
os constantes e sucessivos problemas que o jogo coloca. No futebol os jogadores têm
de estar constantemente a tomar decisões, no entanto o grande problema que se
coloca aos jogadores é o problema das escolhas. Isto é, perante a variabilidade de
“trajectórias” decidir qual a que deve eleger face às circunstâncias. Ou seja, o
problema das escolhas tem de ser o cerne do treino, o treino tem de potenciar a
possibilidade do jogador, suportado em referenciais colectivos, eleger
convenientemente o que fazer a cada momento. O problema das escolhas vai por
isso, para além da profundidade do problema da tomada de decisão, porque se
reporta à necessidade de critério na tomada de decisão, de critério no modo como se
dá a interacção no aqui e agora. A maximização do critério só se consegue com base
na arte das trajectórias. As neurociências assim o sugerem, quando reforçam a
importância dos padrões de reconhecimento na acção humana. Por esse motivo o
treino não deve proporcionar o apontar para alvos, mas antes, permitir que as
configurações sendo variáveis em termos de pormenor, tenham subjacente uma
determinada padronização, que necessariamente temos de vivenciar para que em
contextos análogos possamos expressar desempenhos condizentes e de qualidade.

Até aqui referi-me a estes dois conceitos apontando para a perspectiva dos jogadores,
no entanto, e está relacionado, ele deverá ser igualmente perspectivado do ponto de
vista dos treiandores. O treinador, conforme já referi, tem de estar consciente das suas
insuficiências para controlar tudo o que envolve o processo de treino, e não pode fazer
disso um drama. Por isso, tem de entender o jogo e o treino como uma arte das
trajéctorias, o qual requisitando de regularidades (metodológicas e conceptuais)
contempla a aleatoriedade, requisitando por conseguinte o Sentido da Divina
Proporção, porque também o treinador se debate com o problema das escolhas. E tal
como os jogadores de escolhas em contexto de elevada caosplexidade. Se pelo
contrário quer tudo controlado, cai na vertigem da catalogação, e aí só poderá aspirar
a um jogar e um treinar sobre carris, onde à configuração x corresponde a acção y.
Daí emerge muito possivelmente um processo e o que dele resulta metaforizados pela
teoria dos alvos.

46. Luis Esteves: Para o professor, o que tem José Mourinho que o faz vencer
tanto?

Jorge Maciel: Essa é uma pergunta muito engraçada, e não é a primeira vez que ma
fazem. Geralmente respondo sempre do mesmo modo e com uma analogia, que é a
seguinte, todos nós aprendemos a escrever, mas depois alguns são escritores e
outros não, e dentro dos escritores há uns melhores que outros, e há alguns que
estando ao mesmo nível são de estilos literários diferentes. O que quero com isto dizer
é que a dimensão formal ou teórica da Periodização Táctica é passível de
compreensão da generalidade das pessoas, no entanto, a sua concretização conforme
só está ao alcance de alguns. O que determina verdadeiramente o sucesso é a
operacionalização do processo, que no caso de José Mourinho tem o suporte
metodológico ou científico da Periodização Táctica, mas ao qual ele acrescenta o seu
cunho pessoal. Treinar tem muito de Ciência, mas não menos de Arte, e é a
articulação bem conseguida entre estes dois planos que permite o sucesso. Muito
possivelmente haverá pessoas com igual ou superior apreensão formal daquilo que é
a Periodização Táctica quando comparadas com José Mourinho, mas o que as
distingue e que tornam de facto Mourinho diferente é o Sentido da Divina Proporção,
um MetaPrincípio que tem a ver com a Arte de gerir com Ciência uma realidade
altamente complexa e dinâmica, o que pressupõem muito saber, reflexão e intuição.

Cada processo é singular em parte, ou grande parte porque cada líder e cada contexto
são singulares, e o modo único como o líder gere isso determina o seu sucesso, e isto
é válido e para qualquer orientação metodológica, não só para a Periodização Táctica,
e para qualquer estilo de liderança. Por isso digo que dentro dos bons escritores há
uns que são romancistas, outros poetas e por aí fora. Também aqui não há receitas,
não duvido que num cenário hipotético em que pudéssemos ter José Mourinho e outro
treinador numa mesma realidade, a treinar do mesmo modo, com os mesmos
conteúdos de treino os resultados seriam bastante diferentes. Mourinho estaria
próximo de vencer e o outro de ser rebaixado. Porquê? Porque tem coisas da esfera
do indizível e do invisível que os outros não têm, é mestre no Sentido da Divina
Proporção.

47. Luis Esteves: Como vê o fenômeno FC Barcelona?

Jorge Maciel: Com enorme satisfação. Porque além de jogar de uma forma única
representa uma personificação colectiva daquilo que é a antítese do que normalmente
se diz que o jogo de qualidade deve ter. Inegavelmente contraria e refuta a
generalidade dos mitos instalados no futebol. Mostra que ganhar e jogar bem são
aspirações compatíveis, mostra que a aposta na formação tendo por base uma cultura
comum faz sentido, é a prova que pode haver simultaneamente ordem e criatividade, é
a prova que a necessidade de acelerar contempla necessariamente a pausa e mostra
que o talento não se mede nem se pesa a metro e a quilo. Em suma, é tudo e tem
tudo, o que dizem que o jogar de qualidade não deve ter. É uma equipa muito
inteligente que pela sua forma de jogar sobredetermina os adversários, lá está porque
reconhece uma verdade muito simples, mas muitas vezes ignorada, é que do mesmo
modo que não há natação sem água, também não há futebol sem bola, e quem a tem
e a gere com qualidade manda no jogo e condiciona-o, dentro dos possíveis.

Penso que o sucesso recente do Barcelona pode ser muito benéfico para o futebol em
geral, porque geralmente os referenciais que se adoptam são os dos vencedores, e o
Barça ganha como nunca, fazendo-o de uma forma sublime. Oxalá contagie.

48. Luis Esteves: Acredita ser válido a outras equipes “copiar” no bom sentido o
FC Barcelona e o seu Modelo de ver o futebol, de forma mais plástica?

Jorge Maciel: Acredito, mas não por geração espontânea. É preciso um strip tease
epistemológico que nos dispa e nos leve a ter necessidade de uma realidade
futebolística superior como o caso do Barcelona. No entanto, apercebo-me que nem
toda a gente tem pelo Barcelona apreço, há mesmo quem ache que o tipo de futebol
que praticam é fastidioso, e este é um peso cultural enorme, com grande inércia, mas
que importa travar. Temos de ter consciência que para despoletar tal mudança o
tempo necessário pode ser mínimo, pois aí referimo-nos ao plano ideológico, mas o
tempo necessário para efectivar e concretizar tal mudança é consideravelmente maior.
Mas sem dúvida penso que seja possível “copiar” o exemplo do Barcelona, acho até
que além de possível é desejável, visto que os referenciais para qualquer processo de
treino a mais curto ou longo prazo devem ser os de top e se possível vencedores. E o
Barcelona é tudo isso, é TOPTOPTOP e ganha desmistificando a ideia que é
incompatível vencer e jogar bem.

O Barcelona é a prova que é possível mudar, há menos de 20 anos a fúria espanhola


reinava e o Barcelona não fugia dessa tendência e conseguiu fugir disso porque
alguém, Cruyff, lhes mostrou algo que desconheciam. E como ninguém tem
necessidade daquilo que desconhece e muito menos do que ignora importa que
exemplos de qualidade sejam cada vez mais dados a conhecer às pessoas. Só deste
modo podemos evoluir e sair da cegueira que nos afecta. Geralmente as mudanças de
paradigma fazem-se por minorias transgressoras, e de certa forma podemos dizer que
a nivél conceptual o Barcelona é uma transgressão, do mesmo modo que o é a
Periodização Táctica a nível metodológico, e no entanto têm sobrevivido a muita
contestação, escárnio por vezes e até inveja. Mas o que se verifica é que são
realidades cada vez mais consistentes e cada vez são minorias maiores os que as
seguem. Não é uma mudança rápida, muito menos simples e fácil, mas é esse
precisamente o desafio que a complexidade nos coloca. E como diria Gaston Berger
“quanto mais uma árvore demora a crescer, menos se deve esperar para a plantar”.

49. Luis Esteves: O professor acaba de lançar um livro, gostaria que nos falasse
sobre o mesmo e as formas de adquiri-lo aqui no Brasil.

Jorge Maciel: Curiosamente o livro responde muito bem e de forma muito profunda a
aspectos relevantes da questão anterior. Resulta da realização da minha monografia
de final de licenciatura, que tive que apresentar em 2008 na Faculdade de Desporto da
Universidade do Porto. Penso que há no Brasil quem já tenha lido a minha monografia,
e de uma forma geral o livro contempla tudo o que nela consta, contando contudo com
alguns acrescentos e esclarecimentos que entretanto sentimos serem necessários.

De forma resumida apresenta cinco grandes blocos, no primeiro o Futebol é


apresentado como um Fenómeno Social Total, no segundo sugere-se que ele é mais
que isso, é um Fenómeno Antropossocialtotal, porque requisita na sua manifestação o
Homem em toda a sua dimensão. Depois sugere-se que apesar de se tratar de um
Fenómeno Antropossociatotal, ele é simultaneamente aparentemente ContraNatura,
uma vez que requisita uma destreza ao nível do trem inferior muito desenvolvida,
quando o que sucedeu ao nível da filogénese humana foi o ganho de destreza e
sensibilidade ao nível das mãos em contraste com a tendência verificada ao nível dos
pés. Ou seja, neste ponto realça-se que a evolução da espécie humana induziu em
nós um conjunto de alterações estruturais e funcionais que tornaram a prática do
futebol ContraNatura, no entanto, é apenas aparentemente ContraNatura, pois uma
das características mais significativas da evolução humana é a sua evolução ao nivel
da dimensão social, um aspecto também ele caracterizador da essência do futebol. No
ponto seguinte do livro faz-se um levantamento de muitas das brincadeiras de
jogadores de top e ex jogadores, que depois de devidamente reflectidas servem de
orientação para o que em nosso entender deve ser o processo de treino nas idades
mais jovens. No ponto seguinte fundamentam-se todas essas sugestões
cientificamente, recorrendo fundamentalmente a estudos recentes nas áreas da
Plasticidade, da Neurociência, da Epigenética, da Ecogenética, que não sendo
destinados ao futebol foram por nós entendidos como muito úteis e com grande
aplicabilidade para o futebol. De uma forma geral, trata-se de uma história bastante
profunda em torno da necessidade de tomar as rédeas da formação e de racionalizar
os processos de treino de jovens com o intuito de aumentar a qualidade dos mesmos
e consequentemente permitir que mais talentos floresçam.

Relativamente ao modo de o adquirirem no Brasil, a editora não tem de momento


prevista a sua internacionalização, mas quem desejar ter o livro pode contactar-me eu
encarrego-me de o enviar sem qualquer problema, aliás já o fiz.
50. Luis Esteves: Que literaturas recomenda para o estudo da Periodização
Tática?

Jorge Maciel: A Periodização Táctica, também a este nível pauta pela qualidade e
não pela quantidade. Não é muita a bibliografia disponível, pelo menos a directamente
relacionada com a Periodização Táctica, ainda que como é visível nas obras
conotadas com a Periodização Táctica esta se sirva de fontes provenientes de
diferentes áreas científicas ou não. Quanto a livros que retratam a Periodização
Táctica recomendo o da Marisa Gomes ou Marisa Silva “O desenvolvimento de um
jogar, segundo a Periodização Táctica”, o do Carlos Campos “A justificação da
Periodização Táctica como uma Fenomenotécnica”, o livro “Mourinho – Porquê tantas
vitórias?”, o meu livro “Não o deixes matar O bom Futebol e quem o joga Pelo Futebol
adentro não é perda de tempo!”, o livro do Xavier Tamarit “Que es la Periodization
Tatica”. Depois há todo um conjunto de Monografias muito boas orientadas pelo
Professor Vítor Frade e algumas também orientadas pelo Professor José Guilherme.
Além disso há os apontamentos que o Professor Vítor Frade disponibiliza com alguma
regularidade depois de devidamente lidos, anotados e sublinhados.

Aproveito esta pergunta para lançar um aviso às pessoas, no sentido de as alertar


para o facto de que a maioria dos documentos que circulam na internet sobre
Periodização Táctica deturpam-na, abordam-na superficial e erroneamente, e nalguns
casos pode mesmo dizer-se que são verdadeiras aberrações. Temos notado que é
cada vez mais frequente algumas pessoas se colarem a algumas frases do Professor
Vítor Frade, sem nunca terem falado com ele sobre a Periodização Táctica, e as
usarem como slogans para promoção pessoal. É óptimo verificarmos que há cada vez
mais interesse na Periodização Táctica, mas é péssimo sentir que tal pode ser
pernicioso, há quem tenha conhecimento superficial de algumas coisas, mas queira
fazer passar a imagem que sabe tudo sobre Periodização Táctica, e quando se
generaliza o que ela não é de facto, acaba por ser dada a conhecer uma versão
deturpada e nada condizente com o que ela é. Há quem pense que basta dominar a
terminologia para dominar o que de facto é a Periodização Táctica, e como são bem-
falantes e poucos dominam o que de facto ela é, acabam por ser tidos como
defensores da Periodização Táctica. Como se tal não bastasse, há ainda o
oportunismo de algumas pessoas que se servem da prostituição intelectual e de um
atrevimento parasitáritário para se promoverem, por vezes inclusive, intrometendo-se,
desrespeitando e pondo em causa pessoas que no terreno levam a efeito esta forma
de treinar. O Professor Vítor Frade diz várias vezes que “o atrevimento é o maior
sintoma de ignorância”. Sabemos de alguns casos, e pessoas até com
responsabilidades académicas, que num determinado contexto, como por exemplo a
Faculdade de Desporto da Universidade do Porto se dizem contrários à Periodização
Táctica, mas que quando lhes convém, em contextos diferentes se servem dela como
um exemplo, se dizem seguidores e nalguns casos até mesmo mentores. Na
Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, para que as pessoas saibam, só
existem duas pessoas verdadeiramente identificadas com a Periodização Táctica, o
Professor Vítor Frade e o Professor José Guilherme. Percebo que as pessoas se
seduzem facilmente pela Periodização Táctica, e como tal há necessidade de lhes dar
a conhecer o que ela é de facto. Mas infelizmente, o atrevimento que por vezes
domina nas diferentes áreas, e o treino não é excepção, acaba por não permitir que a
Periodização Táctica seja dada a conhecer como deveria.

Luis Esteves: Professor, mais uma vez gostaria de agradecer pela disponibilidade em
compartilhar seu conhecimento conosco, muito obrigado.

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