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lvaro de Campos
NOTAS PARA A RECORDAO DO MEU MESTRE
CAEIRO (algumas delas)
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Meu mestre, meu mestre, perdido to cedo! Revejo-o na sombra que sou em
mim, na memria que conservo do que sou de morto. . .
Foi durante a nossa primeira conversa. Como foi no sei, e ele disse: Est
aqui um rapaz Ricardo Reis que h-de gostar de conhecer: ele muito diferente
de si. E depois acrescentou, tudo diferente de ns, e por isso que tudo
existe.
Esta frase, dita como se fosse um axioma da terra, seduziu-me com um
abalo, como o de todas as primeiras posses, que me entrou nos alicerces da
alma. Mas, ao contrrio da seduo material, o efeito em mim foi de receber de
repente, em todas as minhas sensaes, uma virgindade que no tinha tido.
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o mesmo. pena a gente no ter exactamente os olhos para saber isso, porque
ento ramos todos felizes.
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contente consigo? E ele respondeu: No: estou contente. Era como a voz da
Terra, que tudo e ningum.
Nunca vi triste o meu mestre Caeiro. No sei se estava triste quando morreu,
ou nos dias antes. Seria possvel sab-lo, mas a verdade que nunca ousei
perguntar aos que assistiram morte qualquer coisa da morte ou de como ele a
teve.
Em todo o caso, foi uma das angstias da minha vida das angstias reais
em meio de tantas que tm sido fictcias que Caeiro morresse sem eu estar
ao p dele. Isto estpido mas humano, e assim.
Eu estava em Inglaterra. O prprio Ricardo Reis no estava em Lisboa; estava
de volta no Brasil. Estava o Fernando Pessoa, mas como se no estivesse. O
Fernando Pessoa sente as coisas mas no se mexe, nem mesmo por dentro.
Nada me consola de no ter estado em Lisboa nesse dia, a no ser aquela
consolao que pensar no meu mestre Caeiro espontaneamente me d. Ningum
inconsolvel ao p da memria de Caeiro, ou dos seus versos; e a prpria ideia
do nada a mais pavorosa de todas se se pensa com a sensibilidade tem,
na obra e na recordao do meu mestre querido, qualquer coisa de luminoso e
de alto, como o sol sobre as neves dos pncaros inatingveis.
1931
Textos de Crtica e de Interveno . Fernando Pessoa. Lisboa: tica, 1980: 267.
Lacunas completadas segundo o original. 1 publ. in Presena, n 30. Coimbra: Jan.-Fev. 1931.
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