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Jean-Michel Vives
Traduzido do francês por Maurício Eugênio Maliska
1
De Lucia, M., Clarke, S. & Murray, M. (2010). A Temporal Hierarchy for Conspecific Vocalization Discrimination
in Humans. The Journal of Neuroscience, 30(33), 11.210-11.221.
2
Binswanger, L. (1973/1961). Le Problème du délire dans la perspective de la phénoménologie pure (B. Rordorf,
Trad.) (pp. 39-41). In Présent à Henri Maldiney. Lausanne: L’Âge d’homme; Binswanger, L. (1993/1965). Délire.
Grenoble: Millon; Cohen-Levinas, D. (2006). La Voix au-delà du chant. Une fenêtre aux ombres. Paris: Vrin;
Derrida, J. (1967). La Voix et le Phénomène. Paris: PUF; De Waelhens, A. (1971). La Psychose. Essai
essencialmente, a fina articulação entre Stimme (voz) e Stimmung (disposição) no que Stimme,
expandindo-se em Stimmung, nos faz passar do estatuto de voz única, referindo-se a um sujeito
vocalizante, a uma vocação ética; Stimmung designando uma aptidão a estar em acordo com o
outro. A interpretação filosófica dos efeitos da ressonância da voz do Outro no sujeito nos parece
interessante e, muito particularmente, em suas consequências éticas: a recepção da voz do Outro
implica uma “outrificação” [autruification] do sujeito. Não há acesso possível a uma voz própria
sem Outro que tenha feito previamente a doação [le don]. Com a recepção e o acolhimento da voz
do Outro o “eu é/torna-se um outro” [je est/devient un autre].
A antropologia e a etnologia3 estão igualmente direcionadas para a voz e se detiveram
a pensar como, tão logo emitida, ela se torna um elemento essencial no desenrolar de nossa vida
cotidiana e se transforma em potência de expressão para o outro em quem ela ressoa. A voz se
inscreve, então, num sistema identitário tributário das relações sociais, pois o locutor se assume
uma voz própria à particularidade da pessoa que está a sua frente e ao teor de seu propósito. A
voz ─ e não somente o código linguageiro ─ informa de maneira decisiva as relações entre os
indivíduos de uma sociedade. Existem estruturas elementares que obedecem às regras da
linguagem tais como descritas por Lévi-Strauss4, mas esta antropologia estrutural se encontra, à
luz desses recentes trabalhos, completada pelo fato de que não se trata mais somente de escutar a
fala e suas formulações, mas igualmente a voz, suas vibrações, sua textura, suas singularidades e
a que isso induz naquele que a escuta. Mais uma vez, os efeitos da voz naquele que a recebe estão
no centro dessas pesquisas.
Enfim, mesmo os historiadores, por mais surpreendente que isso possa parecer, uma vez
que a voz é efêmera e somente há muito pouco tempo temos seus traços registrados, estão
engajados a tentar elucidar os efeitos deste objeto histórico5. Através dos arquivos nos quais foram
notados, por vezes, os timbres da voz e as entonações de uns e outros, pesquisadores delimitam
um território onde conseguem fazer ouvir essas vozes mortas. Arlette Farge nota que:
se as vozes têm uma tão grande importância e estão tão abundantemente descritas e
desacreditadas, é porque elas formam o cimento das sociedades populares, das assembleias de
todos os tipos e da vida do espaço público [...] Escutar a voz dos mais desafortunados desafia
[démunis défie] a lógica; mas por que esses cantos, melodias ou gritos não poderiam ser
esboçados a partir dos milhões de arquivos existentes? [...] Faltam as vozes para sempre, mas
não sua pesquisa, que, mesmo se permanece sem resposta, testemunha uma presença ativa e
persistente6.
Pegue, por exemplo, os casos do pesquisador em sexologia Alfred Kinsey. Afim de bem conduzir
seu vasto projeto de pesquisa sobre a sexualidade contemporânea, ele interrogou sozinho
aproximadamente dez mil pessoas, para o espanto do resto da faculdade de Indiana University
[...] Sua satisfação sexual estava ligada ao meio mesmo da entrevista: a voz humana. Aí estava
seu verdadeiro objeto sexual13.
12
Pensemos nas filas de várias horas e nos sacrifícios financeiros por vezes importantes que os admiradores de uma
cantora estão dispostos a fazer, ou no esgotamento, quase desmoronamento, que o frequentador de festas rave se
inflige...
13
Leader, D. (2003/2002). Faut-il voler la Joconde? Ce que l’art nous empêche de voir (p. 78) (S. Mendelsohn,
Trad.). Paris: Payot.
14
Pode-se ler a este respeito a notável análise de Michel Poizat concernente ao lugar da voz no funcionamento do
regime hitleriano: Poizat, M. (2001). Vox populi, vox Dei. Voix et pouvoir (pp. 154-228). Paris: Métailié.
15
Há também o amante do som, é o audiófilo [audiophile]. Aquele que dedica seu tempo e seu dinheiro a melhorar o
material de reprodução do som. Isso parece ser mais sensível às proezas da técnica que às dos intérpretes. Ele não
pode compreender que um melômano se extasie diante de uma gravação do início do século passado, audível a
duras penas, mas onde o apaixonado ouve, para além das imperfeições técnicas, uma perfeição vocal ou
instrumental que lhe fala. Esta diferença do filo [philein] (amar) e da mania (loucura [folie]) esboça uma linha de
demarcação entre o que remete ao prazer e o que remete ao seu além, o gozo.
16
O neurologista Oliver Sacks, a partir de um referencial bem diferente do nosso, uma vez que se trata de neurologia,
se dedica a localizar as manifestações desta possessão, que propõe nomear como “musicofilia [musicophilia]”
enquanto que os exemplos não cessam de colocar em primeiro plano a dimensão “assombrante” [hantante] ─ um
capítulo traz, aliás, o título Assombrado pela música [Hanté par la musique] ─ desta captura da e na música.
Esperar-se-ia encontrar aqui, de preferência, uma “musicomania” (Sacks, O. (2009/2007). Musicophilia. La
Musique, le cerveau et nous (Chr. Cler., Trad.). Paris: Seuil). Theodor Reik, um dos raros psicanalistas
contemporâneos de Freud a interessar-se pela música e pela voz, já tinha perfeitamente identificado esta dimensão
de possessão: uma de suas obras se intitula The Haunting Melody (a melodia obsedante [obsédante], ou, para ser
De fato, a voz é ativamente procurada pelo que ela permite sentir [éprouver]: deliciosos
sofrimentos, em que se encontram mesclados lágrimas e prazer intenso17.
Esta procura apaixonada pela voz pode, às vezes, rebaixar esta última ao nível de
mercadoria, como nos lembra Jules, o jovem carteiro lyrico-mane do filme de Jean-Jacques
Beineix, Diva18; ele, que arriscará sua vida para conservar o traço, numa fita cassete, dessa voz
adulada que a cantora recusava gravar. Este comportamento tão frequente entre os amantes de
ópera permite recuperar a dimensão de fantasma que o sustenta. Frequentemente, a qualidade
dessas gravações feitas “ao vivo”19 é tão insuficiente que a voz do intérprete torna-se
irreconhecível. A voz conservada em uma fita cassete é então analisada, no sentido de um
processo de retenção anal: trata-se de conservar o objeto precioso, de retê-lo. A cassete, por
polissemia, não é somente o objeto no qual o avaro conserva seu bem, mas igualmente aquele no
qual o liricômano [lyricomane] conservava o seu 20 – a voz se fazendo então tesouro a reter
preciosamente, objeto fetichizado.
Se a depreciação é um dos possíveis e frequentes destinos do objeto21, ele não é o único.
A teoria psicanalítica nos propõe, ao contrário, uma visão mais aberta a respeito. Em Pulsão e
destinos das pulsões, Freud o definiu assim:
O objeto da pulsão é aquele no qual e pelo qual a pulsão pode atingir sua meta. É o que há de
mais variável na pulsão, não está originalmente conectado, ao contrário, ele somente está
associado em razão de sua atitude particular em tornar possível a satisfação. Não é
necessariamente um objeto estranho, mas é igualmente uma parte do próprio corpo22.
O objeto voz não faz parte da lista estabelecida por Freud, que identificou
essencialmente os objetos oral (o seio), anal (as fezes) e fálico (o falo). Será necessário esperar os
anos 1960, e os trabalhos de Lacan sobre a psicose, para que sejam introduzidos, na dinâmica
pulsional, o objeto “olhar” e o objeto “voz”. Conferindo à invocação, assim como ao olhar, o
estatuto de pulsão, Lacan propõe uma nova dialética das pulsões. Ao lado do objeto oral e do
objeto anal, articulados à demanda (o objeto oral é associado à demanda ao Outro, o objeto anal
à demanda do Outro), Lacan introduz o olhar e a voz que, ambos, concernem ao desejo – o olhar
está associado ao desejo ao Outro, a voz ao desejo do Outro. Em Lacan, a abordagem da voz
encontra sua origem no estudo das alucinações psicóticas que invadem e tomam posse do sujeito,
notadamente no caso do delírio paranóico. Entretanto, Lacan extrairá muito rapidamente o objeto
voz desta particularidade psicopatológica para incluí-la na dinâmica mesma do tornar-se sujeito.
A voz adquirirá pouco a pouco no campo pulsional um estatuto particular dado o fato de sua
estreita ligação com o significante e com a fala.
Se retomamos a definição dada por Lacan do objeto da pulsão – “alguma coisa da qual
o sujeito, para se constituir, se separou como órgão”23 – não é nem o sujeito nem o órgão, enquanto
tal, que contam, tomados isoladamente um do outro; mas é o entre-dois [entre-deux] que os
mantém à distância. Este espaço marcará o objeto da pulsão com o selo [sceau] da falta e da perda.
mais preciso em relação ao processo descrito por Theodor Reik, a melodia assombrante [hantante]). A tradução
francesa muito estranhamente modificou totalmente este título, fazendo desaparecer a dimensão de possessão.
(Reik, Th. (1972/1953). Variations psychanalytiques sur un thème de G. Mahler (Ph. Rousseau, Trad.). Paris:
Denoël).
17
Michel Poizat notavelmente evidenciou e analisou esta busca, por vezes louca, do liricômano [lyricomane] que
corre de sala em sala de ópera (Poizat, M. (1986). L’Opéra ou le Cri de l’ange. Essai sur la jouissance de
l’amateur d’opéra. Paris: Métailié).
18
Diva, filme francês de Jean-Jacques Beinex, 1981.
19
Este “vivo” de que o amante tenta se apropriar sob o risco ─ como nós podemos identificá-lo com a paixão devoradora
desenvolvida pelo barão de Gortz em relação à voz de Stilla, em Le Château des Carpathes, romance de Jules Verne
─ de transformá-lo em “morte”. (Verne, J. (1997/1892). Le Château des Carpathes. Arles: Actes Sud).
20
As “cassetes”, hoje em dia, desapareceram, deixando lugar para os gravadores miniaturas, mas o processo de
“retenção” continua idêntico.
21
Freud, S. (1998/1912). Du rabaissement généralisé de la vie amoureuse. In J. Laplanche, A. Bourguignon & P.
Cotet (Eds.). Contribution à la psychologie de la vie amoureuse II, Œuvres complètes (t. XI, pp. 127-141) (J.
Altounian, Fr. Robert et alii, Trad.). Paris: PUF.
22
Freud, S. (1994/1915). Pulsions et destin des pulsions. In J. Laplanche, A. Bourguignon & P. Cotet (Eds.). Œuvres
complètes (t. XIII, p. 170) (J. Altounian, Fr. Robert et alii, Trad.). Paris: PUF.
23
Lacan, J. (1973/1964). Le Séminaire, livre XI: Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse (p. 95). Paris:
Seuil.
A voz nela mesma, sua materialidade, funcionou como apito [...] que chama e impõe um dito,
uma interpretação da mãe. Esta telescopagem, onde a significação desvia o grito, produz um
trabalho de fissão em que o som toma um estatuto de significante. Ele deixa atrás de si, inútil ao
olhar da significação, o esqueleto de sua materialidade sonora. Este resto não quer dizer nada,
trata-se do objeto perdido, do objeto freudiano que Lacan designou com a letra pequeno a,
levando em conta [eu égard] sua falta de significação24.
Sem dúvida a música também fala; mas isso não pode ser senão em razão de sua relação negativa
com a língua e porque, se separando dela, a música conservou a impressão profunda de sua
estrutura formal e de sua função semiótica: não haveria música sem linguagem que lhe preexista
e da qual continua a depender [...] A música é a linguagem menos o sentido; a partir de então se
compreende que o ouvinte [...] se sente irresistivelmente levado a suprir este sentido ausente,
como o amputado atribuindo ao membro perdido as sensações que experimenta e que tem sua
sede no coto [moignon]31.
Esta breve passagem refere com precisão a posição da música em sua relação com a
linguagem, um lugar que Lévi-Strauss estabelece como sendo o negativo da linguagem. A voz e
sua instrumentalização musical visariam um além ou um aquém da linguagem, permanecendo
ligada a esta última. Vê-se aqui que Lévi-Strauss sustenta uma hipótese bem diferente, e mesmo
inversa, daquela de Jean-Jacques Rousseau sobre “a origem das línguas”. Em Lévi-Strauss, a
música não é fantasiada [fantasmée] como uma protolinguagem, ela é aquela que não poderia
existir sem a linguagem. A partir disso, a voz é o que se inscreve em negativo, como o buraco,
que não existe senão pelo que o circunda, e que ao mesmo tempo esvazia, até mesmo destrói, o
que o envolve. Aqui se desvela uma das modalidades do gozo ligado à voz: jogo de tensões entre
voz e fala, entre velamento da voz pela fala e desvelamento no grito. A idealização da voz, de que
Rousseau, como tantos outros, participa, permitiria sonhar com um lugar finalmente pacificado
como não pertencente [hors] à linguagem, uma comunicação “harmoniosa” imediata e, portanto,
fora [hors] do mal-entendido: um lugar onde a falta em ser [manque à être] não seria sentida e
onde o mais perfeito gozo poderia ser vivido. Nisso, é fácil compreender que esta idealização,
ligada a um perfeito e feliz gozo vocal, tenha uma vida dura: o programa que ela propõe tem tudo
para seduzir e permite manter o véu pudico que dissimula a violenta dimensão sexual que
acompanha a voz. Pois esta se situa ao menos tanto – se não até mais – do lado da tensão, da
29
Freud, S. (2006/1920). Au-delà du principe de plaisir. In J. Laplanche, A. Bourguignon & P. Cotet (Eds.). Œuvres
complètes (t. XV, pp. 273-338). (J. Altounian, Fr. Robert et alii, Trad.). Paris: PUF.
30
Rousseau, J-J. (1781). Essai sur l’origine des langues.
31
Levi-Strauss, C. (1971). Mythologiques, L’Homme nu (t. IV, pp. 578-579). Paris: Plon.
angústia e da busca desenfreada como daquele da beleza e do apaziguamento, como nos lembram
os melô-manos apaixonados pela Coisa vocal, verdadeiros errantes da voz.