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A Melo-mania ou a voz objeto de paixões

Jean-Michel Vives
Traduzido do francês por Maurício Eugênio Maliska

Os trabalhos dos psicanalistas abordam pouco a questão da voz, que se encontra,


contudo, no coração mesmo do dispositivo estabelecido por Freud. Basta, para verificar este
relativo desinteresse, folhear os dicionários e enciclopédias publicados nesses últimos anos:
nenhuma entrada é dedicada à voz ou à pulsão invocante. Nada em L’Apport freudien (1993)
editado sob a direção de Pierre Kaufmann pela Editora Bordas; encontra-se aí, entretanto, uma
entrada dedicada ao olhar como objeto da pulsão escópica. Nada no Dictionnaire de la
psychanalyse (1995), publicado pela Larousse sob a direção de Roland Chemama e de Bernard
Vandermersch. Nada ainda no Dictionnaire de la psycahalyse (1997) editado sob a direção de
Elisabeth Roudinesco e Michel Plon pela Fayard. Nada também no Dictionnaire de la
psychanalyse (2001) publicado conjuntamente pela Encyclopædia Universalis e Albin Michel.
Mesmo o monumental e precioso Dictionnaire international de la psychanalyse (2002), com mais
de duas mil páginas, e publicado pela Calmann-Lévy sob a direção de Alain de Mijolla, não é
exceção à regra. Pode-se ler ali uma notícia referida ao olhar, uma outra à delicada questão das
relações entre “música e psicanálise”, mas a voz está ausente.
A contrario, as ciências que se preocupam com o humano: a neurologia, a filosofia, a
antropologia, a etnologia, até mesmo a história, não conhecem esse desinteresse. Nossa intenção
não é, aqui, fazer a recensão do conjunto dos trabalhos que abordaram a questão da voz fora do
campo psicanalítico, mas antes, a partir deste parcial e muito rápido sobrevoo, precisar o aporte
original do pensamento psicanalítico sobre a questão que nos ocupa: a paixão da voz.
As neurociências se interessaram pelo enigma do investimento da música e das
condições de sua produção, ao ponto de utilizar a relação específica do sujeito com a voz e com
a música para, com isso, fazer um terreno de observação da neuroplasticidade. Recentemente, a
equipe do professor Micah Murray, de Lausanne, mostrou, por intermédio do estudo do
tratamento da voz1 que, contrariamente ao que se acreditava até o momento, a voz como sinal não
é somente tratada por uma zona específica do lobo temporal, mas que diferentes regiões do
cérebro trabalham conjuntamente para identificar todos os sons que nos chegam e para nos
permitir, dessa forma, adotar comportamentos adaptados às situações, às demandas e aos perigos
que se apresentam. Esse estudo põe em questão os modelos baseados na especialização funcional
do cérebro. Ademais, essa equipe demonstrou que o cérebro não trata os diferentes ruídos na
mesma velocidade. Esses resultados incitam a pensar que o cérebro reconhece as vozes tão rápido
quanto reconhece os rostos, demonstrando assim o que a psicanálise já tinha observado: a voz não
é um estímulo como outro qualquer e seu tratamento “prioritário” pelo cérebro humano indica
que ela é o objeto de um investimento particular.
A Filosofia, por sua vez, desenvolveu trabalhos visando elucidar o enigma das vozes,
como pôde fazê-lo, mais especificamente, a psiquiatria de orientação fenomenológica. Da
interpretação de Husserl concernente à expressão como ato intencional de um si [soi] que
exterioriza um sentido por uma voz, proferida ou não, às sutis análises das manifestações
alucinatórias acústico-verbais realizadas por L. Binswanger e retomadas por H. Maldiney, este
campo teórico-clínico desenvolveu uma abordagem original da voz 2. Retemos disso,

1
De Lucia, M., Clarke, S. & Murray, M. (2010). A Temporal Hierarchy for Conspecific Vocalization Discrimination
in Humans. The Journal of Neuroscience, 30(33), 11.210-11.221.
2
Binswanger, L. (1973/1961). Le Problème du délire dans la perspective de la phénoménologie pure (B. Rordorf,
Trad.) (pp. 39-41). In Présent à Henri Maldiney. Lausanne: L’Âge d’homme; Binswanger, L. (1993/1965). Délire.
Grenoble: Millon; Cohen-Levinas, D. (2006). La Voix au-delà du chant. Une fenêtre aux ombres. Paris: Vrin;
Derrida, J. (1967). La Voix et le Phénomène. Paris: PUF; De Waelhens, A. (1971). La Psychose. Essai
essencialmente, a fina articulação entre Stimme (voz) e Stimmung (disposição) no que Stimme,
expandindo-se em Stimmung, nos faz passar do estatuto de voz única, referindo-se a um sujeito
vocalizante, a uma vocação ética; Stimmung designando uma aptidão a estar em acordo com o
outro. A interpretação filosófica dos efeitos da ressonância da voz do Outro no sujeito nos parece
interessante e, muito particularmente, em suas consequências éticas: a recepção da voz do Outro
implica uma “outrificação” [autruification] do sujeito. Não há acesso possível a uma voz própria
sem Outro que tenha feito previamente a doação [le don]. Com a recepção e o acolhimento da voz
do Outro o “eu é/torna-se um outro” [je est/devient un autre].
A antropologia e a etnologia3 estão igualmente direcionadas para a voz e se detiveram
a pensar como, tão logo emitida, ela se torna um elemento essencial no desenrolar de nossa vida
cotidiana e se transforma em potência de expressão para o outro em quem ela ressoa. A voz se
inscreve, então, num sistema identitário tributário das relações sociais, pois o locutor se assume
uma voz própria à particularidade da pessoa que está a sua frente e ao teor de seu propósito. A
voz ─ e não somente o código linguageiro ─ informa de maneira decisiva as relações entre os
indivíduos de uma sociedade. Existem estruturas elementares que obedecem às regras da
linguagem tais como descritas por Lévi-Strauss4, mas esta antropologia estrutural se encontra, à
luz desses recentes trabalhos, completada pelo fato de que não se trata mais somente de escutar a
fala e suas formulações, mas igualmente a voz, suas vibrações, sua textura, suas singularidades e
a que isso induz naquele que a escuta. Mais uma vez, os efeitos da voz naquele que a recebe estão
no centro dessas pesquisas.
Enfim, mesmo os historiadores, por mais surpreendente que isso possa parecer, uma vez
que a voz é efêmera e somente há muito pouco tempo temos seus traços registrados, estão
engajados a tentar elucidar os efeitos deste objeto histórico5. Através dos arquivos nos quais foram
notados, por vezes, os timbres da voz e as entonações de uns e outros, pesquisadores delimitam
um território onde conseguem fazer ouvir essas vozes mortas. Arlette Farge nota que:

se as vozes têm uma tão grande importância e estão tão abundantemente descritas e
desacreditadas, é porque elas formam o cimento das sociedades populares, das assembleias de
todos os tipos e da vida do espaço público [...] Escutar a voz dos mais desafortunados desafia
[démunis défie] a lógica; mas por que esses cantos, melodias ou gritos não poderiam ser
esboçados a partir dos milhões de arquivos existentes? [...] Faltam as vozes para sempre, mas
não sua pesquisa, que, mesmo se permanece sem resposta, testemunha uma presença ativa e
persistente6.

Encontramos descritas, pela historiadora, as características do objeto voz tais como a


psicanálise nos permite localizar nas jogadas [enjeux] subjetivas: perda e, paradoxalmente para
além da ausência, presença ativa que se manifesta na busca e na tentativa de reencontros que este
desaparecimento suscita.
Todos esses trabalhos desenvolvem hipóteses estimulantes e apresentam resultados
frequentemente apaixonantes. Notar-se-á que todos têm por ponto comum abordar a voz
unicamente como produção do indivíduo e não como origem da produção mesma do sujeito. Ora,
é o que a psicanálise nos permite identificar: o sujeito não é somente produtor da voz, ele é
igualmente o produto dela. De fato, não há sujeito sem um “chamado primeiro” que o convide a
advir; não há sujeito sem endereçamento sustentado por uma voz, que esta seja sonora ou não, à
qual o bebê escolherá responder. A partir daí, a psicanálise nos autoriza a pensar a relação

d’interprétation analytique et existentiale. Louvain-Paris: Desclée de Brouwers; Husserl, E. (1964/1928). Leçons


pour une phénoménologie de la conscience intime du temps (H. Dussort, Trad.). Paris: PUF; Husserl, E. (1957).
Postface à mes idées directrices (L. Kelkel, Trad.). Revue de métaphysique et de morale, 62(4), 372-373; Maldiney,
H. (1975). Aîtres de la langue et demeures de la pensée. Lausanne: L’Âge d’homme; Maldiney, H. (1986). Art et
existence. Paris: Klincksieck; Maldiney, H. (1991). Penser l’homme et la folie. Grenoble: Million; Naudin, J.
(1997). Les Voix et la Chose. Phénoménologie et Psychiatrie. Toulouse: Presses universitaires du Mirail.
3
Kawada, J. (1988). La Voix. Étude d’ethno-linguistique comparative (S. Jeanne, Trad.). Paris: École des hautes
études en sciences sociales; Le Breton, D. (2011). Éclats de voix. Une anthropologie des voix. Paris: Métailié.
4
Levi-Strauss, C. (1958). Anthropologie structurale. Paris: Plon.
5
Brulin, M. (1998). Le Verbe et la Voix. La Manifestation vocale dans le culte en France au XVIIe siècle. Paris:
Beauchesne; Queniart, J. (Dir.) (1999). Le Chant, acteur de l’histoire. Rennes: PUR; Jamain, C. (2004). Idée de la
voix. Études sur le lyrisme occidental. Rennes: PUR; Salazar, P.-J. (1995). Le Culte de la voix au XVIIe siècle.
Paris: Champion.
6
Farge, A. (2009). Essai pour une histoire des voix au XVIIIe siècle (pp. 14-16). Paris: Bayard.
paradoxalmente ambivalente existente entre o sujeito e as vozes que o rodeiam – necessárias e,
entretanto, invasivas –, e, assim, em propor uma compreensão renovada da relação do sujeito com
este objeto apaixonante que é a voz7.
A abordagem psicanalítica desta escapada corporal que é a voz, ao mesmo tempo íntima
e todavia direcionada ao Outro desde quase sempre – visto ser num grito, numa efusão sonora que
o pequeno humano que acaba de nascer se apresenta ao mundo – derruba a perspectiva proposta
pelas ciências humanas e permite considerar a voz como estando na origem do sujeito. A voz é
ao mesmo tempo o que chama o sujeito a advir, o que está perdido desde esta aceitação a entrar
na linguagem e o objeto de que o sujeito tenderá a se aproximar – se não reencontrar – por
intermédio dos dispositivos que a convocam. Notar-se-á que, contrariamente às pulsões orais,
anais e escópicas, que são concernidas por um único orifício – respectivamente a boca, o ânus e
a fenda do olho –, a pulsão invocante que tem por objeto a voz intervém em dois orifícios: a boca
e o ouvido. Ademais, são dois orifícios “ao quadrado”, visto que estão implicados a boca e o
ouvido do sujeito em devir, mas igualmente o ouvido e a boca daquele que recebe a produção
vocal do infans. O percurso dos diferentes tempos da pulsão invocante que se declinará em “ser
ouvido/chamar”, “ouvir/ser chamado”, “se fazer ouvir” implica a divisão entre o sujeito e o Outro.
Divisão que implica um ganho: a aparição de uma voz e, portanto, de um espaço subjetivo próprio
– e uma perda, aquela do gozo da “Coisa” que se abrirá sobre a procura pela voz.
Raramente utilizado por Freud, o termo gozo torna-se um conceito psicanalítico com
Lacan, que opera uma distinção essencial entre o prazer e o gozo. O gozo, residindo na tentativa
permanente de ultrapassar os limites do princípio do prazer, que visa manter a quantidade de
excitações em um nível nem tão alto nem tão baixo, tem sempre a transgressão por horizonte. O
termo “gozar” designa o fato de tirar proveito, agrado, prazer de alguma coisa. Mas, como desvela
habilmente o sutil Émile Littré, em seu dicionário, o termo é portador de uma ambiguidade
constatada bem antes de a psicanálise encontrá-la no seio mesmo das curas que dirigimos. De fato,
pode-se também “gozar de sua dor”8. Este termo é, assim, apropriado para significar tanto a
satisfação pulsional como o sofrimento do sintoma – Freud nos lembra a este propósito que “o
modo de satisfação que o sintoma traz tem alguma coisa de muito desconcertante em si”9.
Porque ele fala – porque ele é um “parlêtre”, diz Lacan – e, portanto, mediatiza sua
relação com o mundo pela fala, o homem se diferencia dos outros animais: sua satisfação não é
somente aquela da necessidade preenchida, existe em sua busca de satisfação uma dimensão que
ultrapassa a necessidade. Esta dimensão é aquela do gozo, sempre em excesso, que a necessidade
satisfeita não estanca. A pulsão, que é o “eco no corpo do fato de que há um dizer”10 dá conta
desta torção possível que se pode compreender fundando-se na incidência da linguagem sobre o
corpo. O fato de falar nos desgarra, nos distancia de um gozo unívoco, pois nós não dominamos
a equivocidade inerente à linguagem. O que conduz Lacan a esboçar uma articulação entre voz e
gozo: “É porque o corpo tem alguns orifícios, dos quais o mais importante é o ouvido, porque ele
não pode se tapar, se cerrar, se fechar. É por esse viés que ressoa no corpo o que chamei de voz”11.
A voz ressoa no corpo. Essa ressonância que coloca o corpo em vibração é uma das manifestações
do gozo ligada à voz.
Este gozo ligado à voz é identificável em seu poder emocional, em todas as situações,
mesmo as mais surpreendentes: profusões passionais das massas nos concertos de música pop,
transes rituais orquestrados, reviramentos dos amantes de ópera, extenuação dos corpos e das
sensações nas festas rave ensurdecedoras... Cada um procura o dispositivo que lhe permitirá
aproximar-se o mais perto possível desta (re)tomada [(re)mise] em jogo da voz. Esta singularidade
do gozar da voz é tal que nosso próximo não encontrará em sua escuta as mesmas sensações que
as nossas. O gozo da voz somente se compartilha no modo comunitário: “família” dos
apreciadores de rave, dos admiradores de tal cantora, fã-
7
Vives, J.-M. (2012). La Voix sur le divan. Musique sacrée, opéra, techno. Paris: Aubier.
8
“Gozar, implicando uma satisfação, não se diz das coisas más. [...] Entretanto, quando a coisa má da qual se trata:
desgraça, pena, sofrimento, pode ser, por uma ousadia do escritor, considerada como alguma coisa da qual a alma
se satisfaz, então gozar é muito bem empregado: [...] ‘Eu te perdi; próximo de tuas cinzas/ Eu venho gozar de minha
dor’. Saint-Lambert, Épitaphe d’Helvétius” (Littré, É. Dictionnaire de la langue francaise (1877), artigo “Gozar”).
9
Freud, S. (2000/1917). Leçons d’introduction à la psychanalyse. In J. Altounian & Fr. Robert et alii. Œuvres
complètes (J. Laplanche, A. Bourguignon & P. Cotet, Trad.) (t. XIV, p. 379). Paris: PUF.
10
Lacan, J. (2005/1975-76). Le Séminaire, livre XXIII: Le sinthome (p. 17). Paris: Seuil. (Tradução cotejada com a
versão brasileira do referido seminário. N.T.).
11
Lacan, J. (2005/1975-76). Le Séminaire, livre XXIII: Le sinthome (p. 17). Paris: Seuil.
-clube de tal pop star... Pressente-se já: o investimento passional de uma voz pode constituir o
traço que permitirá a um grupo se reconhecer. Este investimento maciço, extremamente
expandido, permite aos membros de uma mesma “comunidade vocal” identificar-se uns aos
outros. A identificação dos membros da comunidade “normaliza” a dimensão extraordinária do
investimento da voz e os comportamentos, frequentemente surpreendentes, até mesmo
desconcertantes que esse investimento provoca 12.
O psicanalista inglês Darian Leader ilustra isso de uma forma totalmente divertida:

Pegue, por exemplo, os casos do pesquisador em sexologia Alfred Kinsey. Afim de bem conduzir
seu vasto projeto de pesquisa sobre a sexualidade contemporânea, ele interrogou sozinho
aproximadamente dez mil pessoas, para o espanto do resto da faculdade de Indiana University
[...] Sua satisfação sexual estava ligada ao meio mesmo da entrevista: a voz humana. Aí estava
seu verdadeiro objeto sexual13.

A dimensão “científica” do procedimento permitiria apagar e esquecer a dimensão


sexual ligada a esta “escuta” furiosa durante milhares de horas...? Assim, contrariamente aos
outros objetos pulsionais ─ os objetos oral (o seio), anal (as fezes) e escópico (o olhar) ─, a voz
é fortemente idealizada e dessexualizada: ela torna-se, então, muito rapidamente, voz maternal
envolvente ou ainda voz sublime d7a diva. Há, com muita frequência, a tendência de esquecer
que, longe de ser apenas apaziguadora, a voz é igualmente, e até mesmo essencialmente, o terreno
onde entram em jogo violentos lances [enjeux] de gozo desembocando com muita frequência em
apostas [enjeux] passionais14.
À primeira vista ─ ou, mais precisamente, à primeira escuta ─ a afirmação de um gozo
ligado à voz poderia parecer não ter nada de evidente. E para ratificar esse ponto de vista,
observemos que não existe, no seio do campo linguístico ligado ao sonoro, nenhum equivalente
ao termo voyeurismo. Não haveria, portanto, perversão, gozo extremo ligado à escuta? Sem
dúvida o objeto visado pela “espiada” [coup d’oeil] do voyeur, claramente e imediatamente
sexual, se diferencia daquele que o ouvinte procura, objeto do qual a dimensão sexual parece mais
difícil de reconhecer e mesmo de identificar. A língua e a nosografia psiquiátrica não teriam
julgado necessário, ou não quiseram identificar, uma perversão ligada à esfera sonora. Não há
“escutismo” [écoutisme] ou “ouvidismo” [entendisme] construído sobre o modelo do
exibicionismo ou do voyeurismo. Entretanto, esta bela evidência começa a vacilar assim que se
evoca que o amante de música é um melômano, um melô-mano. A língua grega possui certo
número de compostos em -manos (adjetivos) e
-mania (substantivos), que remetem a diversas formas de loucuras ou de paixões: o melômano é,
etimologicamente, louco por música [mélos]. A língua não escolheu fazer dele um apaixonado
por música, um “melófilo”15 [mélophile], mas um maníaco, um possuído... O melômano
[mélomane] é possuído16 pela voz, e procura, por todos os meios possíveis, satisfazer sua paixão.

12
Pensemos nas filas de várias horas e nos sacrifícios financeiros por vezes importantes que os admiradores de uma
cantora estão dispostos a fazer, ou no esgotamento, quase desmoronamento, que o frequentador de festas rave se
inflige...
13
Leader, D. (2003/2002). Faut-il voler la Joconde? Ce que l’art nous empêche de voir (p. 78) (S. Mendelsohn,
Trad.). Paris: Payot.
14
Pode-se ler a este respeito a notável análise de Michel Poizat concernente ao lugar da voz no funcionamento do
regime hitleriano: Poizat, M. (2001). Vox populi, vox Dei. Voix et pouvoir (pp. 154-228). Paris: Métailié.
15
Há também o amante do som, é o audiófilo [audiophile]. Aquele que dedica seu tempo e seu dinheiro a melhorar o
material de reprodução do som. Isso parece ser mais sensível às proezas da técnica que às dos intérpretes. Ele não
pode compreender que um melômano se extasie diante de uma gravação do início do século passado, audível a
duras penas, mas onde o apaixonado ouve, para além das imperfeições técnicas, uma perfeição vocal ou
instrumental que lhe fala. Esta diferença do filo [philein] (amar) e da mania (loucura [folie]) esboça uma linha de
demarcação entre o que remete ao prazer e o que remete ao seu além, o gozo.
16
O neurologista Oliver Sacks, a partir de um referencial bem diferente do nosso, uma vez que se trata de neurologia,
se dedica a localizar as manifestações desta possessão, que propõe nomear como “musicofilia [musicophilia]”
enquanto que os exemplos não cessam de colocar em primeiro plano a dimensão “assombrante” [hantante] ─ um
capítulo traz, aliás, o título Assombrado pela música [Hanté par la musique] ─ desta captura da e na música.
Esperar-se-ia encontrar aqui, de preferência, uma “musicomania” (Sacks, O. (2009/2007). Musicophilia. La
Musique, le cerveau et nous (Chr. Cler., Trad.). Paris: Seuil). Theodor Reik, um dos raros psicanalistas
contemporâneos de Freud a interessar-se pela música e pela voz, já tinha perfeitamente identificado esta dimensão
de possessão: uma de suas obras se intitula The Haunting Melody (a melodia obsedante [obsédante], ou, para ser
De fato, a voz é ativamente procurada pelo que ela permite sentir [éprouver]: deliciosos
sofrimentos, em que se encontram mesclados lágrimas e prazer intenso17.
Esta procura apaixonada pela voz pode, às vezes, rebaixar esta última ao nível de
mercadoria, como nos lembra Jules, o jovem carteiro lyrico-mane do filme de Jean-Jacques
Beineix, Diva18; ele, que arriscará sua vida para conservar o traço, numa fita cassete, dessa voz
adulada que a cantora recusava gravar. Este comportamento tão frequente entre os amantes de
ópera permite recuperar a dimensão de fantasma que o sustenta. Frequentemente, a qualidade
dessas gravações feitas “ao vivo”19 é tão insuficiente que a voz do intérprete torna-se
irreconhecível. A voz conservada em uma fita cassete é então analisada, no sentido de um
processo de retenção anal: trata-se de conservar o objeto precioso, de retê-lo. A cassete, por
polissemia, não é somente o objeto no qual o avaro conserva seu bem, mas igualmente aquele no
qual o liricômano [lyricomane] conservava o seu 20 – a voz se fazendo então tesouro a reter
preciosamente, objeto fetichizado.
Se a depreciação é um dos possíveis e frequentes destinos do objeto21, ele não é o único.
A teoria psicanalítica nos propõe, ao contrário, uma visão mais aberta a respeito. Em Pulsão e
destinos das pulsões, Freud o definiu assim:

O objeto da pulsão é aquele no qual e pelo qual a pulsão pode atingir sua meta. É o que há de
mais variável na pulsão, não está originalmente conectado, ao contrário, ele somente está
associado em razão de sua atitude particular em tornar possível a satisfação. Não é
necessariamente um objeto estranho, mas é igualmente uma parte do próprio corpo22.

O objeto voz não faz parte da lista estabelecida por Freud, que identificou
essencialmente os objetos oral (o seio), anal (as fezes) e fálico (o falo). Será necessário esperar os
anos 1960, e os trabalhos de Lacan sobre a psicose, para que sejam introduzidos, na dinâmica
pulsional, o objeto “olhar” e o objeto “voz”. Conferindo à invocação, assim como ao olhar, o
estatuto de pulsão, Lacan propõe uma nova dialética das pulsões. Ao lado do objeto oral e do
objeto anal, articulados à demanda (o objeto oral é associado à demanda ao Outro, o objeto anal
à demanda do Outro), Lacan introduz o olhar e a voz que, ambos, concernem ao desejo – o olhar
está associado ao desejo ao Outro, a voz ao desejo do Outro. Em Lacan, a abordagem da voz
encontra sua origem no estudo das alucinações psicóticas que invadem e tomam posse do sujeito,
notadamente no caso do delírio paranóico. Entretanto, Lacan extrairá muito rapidamente o objeto
voz desta particularidade psicopatológica para incluí-la na dinâmica mesma do tornar-se sujeito.
A voz adquirirá pouco a pouco no campo pulsional um estatuto particular dado o fato de sua
estreita ligação com o significante e com a fala.
Se retomamos a definição dada por Lacan do objeto da pulsão – “alguma coisa da qual
o sujeito, para se constituir, se separou como órgão”23 – não é nem o sujeito nem o órgão, enquanto
tal, que contam, tomados isoladamente um do outro; mas é o entre-dois [entre-deux] que os
mantém à distância. Este espaço marcará o objeto da pulsão com o selo [sceau] da falta e da perda.

mais preciso em relação ao processo descrito por Theodor Reik, a melodia assombrante [hantante]). A tradução
francesa muito estranhamente modificou totalmente este título, fazendo desaparecer a dimensão de possessão.
(Reik, Th. (1972/1953). Variations psychanalytiques sur un thème de G. Mahler (Ph. Rousseau, Trad.). Paris:
Denoël).
17
Michel Poizat notavelmente evidenciou e analisou esta busca, por vezes louca, do liricômano [lyricomane] que
corre de sala em sala de ópera (Poizat, M. (1986). L’Opéra ou le Cri de l’ange. Essai sur la jouissance de
l’amateur d’opéra. Paris: Métailié).
18
Diva, filme francês de Jean-Jacques Beinex, 1981.
19
Este “vivo” de que o amante tenta se apropriar sob o risco ─ como nós podemos identificá-lo com a paixão devoradora
desenvolvida pelo barão de Gortz em relação à voz de Stilla, em Le Château des Carpathes, romance de Jules Verne
─ de transformá-lo em “morte”. (Verne, J. (1997/1892). Le Château des Carpathes. Arles: Actes Sud).
20
As “cassetes”, hoje em dia, desapareceram, deixando lugar para os gravadores miniaturas, mas o processo de
“retenção” continua idêntico.
21
Freud, S. (1998/1912). Du rabaissement généralisé de la vie amoureuse. In J. Laplanche, A. Bourguignon & P.
Cotet (Eds.). Contribution à la psychologie de la vie amoureuse II, Œuvres complètes (t. XI, pp. 127-141) (J.
Altounian, Fr. Robert et alii, Trad.). Paris: PUF.
22
Freud, S. (1994/1915). Pulsions et destin des pulsions. In J. Laplanche, A. Bourguignon & P. Cotet (Eds.). Œuvres
complètes (t. XIII, p. 170) (J. Altounian, Fr. Robert et alii, Trad.). Paris: PUF.
23
Lacan, J. (1973/1964). Le Séminaire, livre XI: Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse (p. 95). Paris:
Seuil.
A voz nela mesma, sua materialidade, funcionou como apito [...] que chama e impõe um dito,
uma interpretação da mãe. Esta telescopagem, onde a significação desvia o grito, produz um
trabalho de fissão em que o som toma um estatuto de significante. Ele deixa atrás de si, inútil ao
olhar da significação, o esqueleto de sua materialidade sonora. Este resto não quer dizer nada,
trata-se do objeto perdido, do objeto freudiano que Lacan designou com a letra pequeno a,
levando em conta [eu égard] sua falta de significação24.

A voz é, desde então, apreendida como o suporte corporal e, portanto, pulsional, de um


enunciado de linguagem, qualquer que seja a modalidade sensorial pela qual ele é expresso25. A
voz se manifesta em toda parte e cada vez de forma diferente: no curso de cada enunciado oral,
na música – mesmo quando esta não é vocal –, mas igualmente na dança ou na escrita. A voz é
esta parte do corpo em que é necessário colocar em jogo – sacrificar, poder-se-ia dizer – para
produzir um enunciado de linguagem.
Suporte da enunciação discursiva, a voz desaparece atrás do sentido. Este fenômeno que
tende a apagar a voz atrás do que se diz é facilmente revelado quando alguém fala [prend la
parole]. De início, podemos ser captados pelas características da voz (seu sotaque, por exemplo),
mas muito rapidamente este processo desaparece logo que prestamos atenção naquilo que é dito.
A fala vela a voz. Ao inverso, se algum fenômeno vem modificar o enunciado significante (pela
introdução de uma temporalidade particular, ou perturbando a enunciação por um registro
incompatível com a articulação de certos fonemas, como se passa frequentemente na ópera), a
voz cessa de ser transparente sob o sentido. A música faz parte dessas “parasitações” [parasitages]
da enunciação e tem por efeito tornar a voz perceptível. É justamente esta a questão: gozar da voz
enquanto objeto. O dispositivo musical, revelando a voz, funciona então como um “extrator”
[extracteur] desta.
A satisfação da pulsão invocante também pode então ser realizada tanto pelos vocalises
exaltados da diva ou os baixos rugidores da música rave, pondo em vibração o conjunto do corpo,
como pelo murmúrio dos milhares de indivíduos interrogados por Kinsey, e até mesmo por uma
“voz de completo silêncio”26.
As modalidades de satisfação, pressentimos facilmente, são quase infinitas, mas a busca
de satisfação é, quanto a ela, imperiosa. Para precisar nossa proposta, colocaremos uma questão que
poderia, a priori, parecer bem ingênua: O que leva o homem a cantar? O que impulsiona uma
sociedade a consumir somas e meios frequentemente consideráveis para satisfazer esta demanda 27
de satisfação da busca pela voz? Em outras palavras, quais são as questões [enjeux] que estão em
jogo na voz, no canto, na música – atividades, apesar de tudo, inúteis e que, no entanto,
desencadeiam as paixões? Lembrar a inutilidade dessas atividades é reencontrar um aforismo de
Lacan: “O gozo é aquilo que não serve para nada”28.
A atividade musical não é nada natural, e os importantes meios de funcionamento para
responder à espera tensa e imperiosa de melômanos de todo tipo [de tout poil] mostram que esta
prática frequentemente complexa e elaborada visa, além do princípio do prazer ligado ao objeto
sonoro, o gozo da Coisa vocal.
De fato, a voz tem uma dupla vocação. Enquanto suporte da enunciação, ela está
articulada com a questão da linguagem e de seus efeitos potencialmente pacificadores. De outra
24
Pommier, G. (1983). D’une logique de la psychose (p. 40). Toulouse: Érès.
25
Lacan teve esta intuição muito cedo, a partir de 1956: “O que acontece se você se prende unicamente à articulação
daquilo que você escuta, ao sotaque, até mesmo às expressões dialetais, ao que quer que seja literal na gravação do
discurso do seu interlocutor? É necessário acrescentar um pouco de imaginação, pois talvez isso jamais possa ser
levado ao extremo, mas é muito claro quando se trata de uma língua estrangeira ─ o que você compreende em um
discurso é algo diferente do que é registrado acusticamente. É ainda mais simples se nós pensarmos no surdo-mudo,
que é suscetível de receber um discurso por sinais visuais dados por meio dos dedos, segundo o alfabeto surdo-
mudo. Se o surdo-mudo é fascinado pelas encantadoras mãos de seu interlocutor, ele não gravará o discurso
veiculado por essas mãos” (Lacan, J. (1981/1955-56). Le Séminaire, livre III: Les psychoses (p. 154). Paris: Seuil).
Este exemplo indica bem a tensão entre voz e efeito de significação. Por consequência, torna-se de fato coerente
falar da voz do surdo-mudo. Voz que tornaria surdo à significação da mensagem aquele que estaria muito atento
ao balé das mãos...
26
La Bible, I Rois, XIX, 9-13.
27
Os violentos confrontos ideológicos, atualmente um pouco esquecidos, concernentes ao abismo financeiro que a
criação e a conservação da Ópera Bastille constituem testemunham este espanto. É justificado, para o gozo de
alguns, colocar em jogo tais somas? Conhece-se a resposta que foi dada neste caso: o projeto foi concretizado.
28
Lacan, J. (1975/1972-73). Le Séminaire, livre XX: Encore (p. 10). Paris: Seuil.
parte, objeto de gozo, ela é fonte de prazeres intensos. Não se trata mais aqui de efeitos
pacificadores, mas de desencadeamentos, podendo conduzir aos transbordamentos passionais mais
estranhos e mais surpreendentes para o observador. Por exemplo, a rejeição violenta ou o
entusiasmo maciço pelo timbre de uma cantora. Fonotropismo positivo ou negativo que orienta e
sustenta a procura do amante e não deixa de surpreender aquele que não participa desse movimento.
Idealização passional de um timbre que “soa” no amante e o deixa com a esperança de que esta voz
poderia ser aquela que o completará.
Sustentamos que esta dimensão idealizada, essencialmente imaginária, regularmente
associada à voz, nada mais é do que o véu pudico lançado sobre esses violentos lances [enjeux]
de gozo. Ela seria apenas a última muralha [rempart] levantada contra o horror que aparece
quando, atrás da divina vocalidade da diva se desvela o desencadeamento [déchaînement] do
grito. Grito que se revela a manifestação, a mais acabada de toda jaculação vocal: a performance
artística da voz “jogando” constantemente com este horizonte, visando e evitando a maior parte
do tempo este ponto onde, tornada grito, a voz testemunha que ela não poderia estar situada, em
seu conjunto, do lado do sublime. Quando a “face obscura” da voz está presentificada, o ouvinte
é atingido por um sentimento de horror que vem assinalar a proximidade do gozo, que Freud situa
“além do princípio do prazer”29.
Esta idealização é claramente perceptível em Jean-Jacques Rousseau 30. Para ele, o
aparecimento da fala encontraria sua origem na manifestação das paixões. O filósofo das Luzes
expõe um mito da origem pelo qual um “antes” da fala teria tomado a forma de um sistema de
gestos vocais. As primeiras línguas teriam tido um caráter apaixonado e cantante. Existiria, por
isso, uma relação de consubstancialidade entre música e linguagem. A música seria primária e
constituiria a linguagem das origens. Ela teria de início aparecido sob a forma do canto, e o canto
teria ele mesmo precedido a fala. Nós nos situamos aqui no nível do “princípio de prazer” musical.
A música é a língua ideal: imediata, ela opera e se produz sem intermediário, evitando por isso
mesmo todo mal-entendido.
Claude Lévi-Strauss interroga de forma totalmente diferente essa articulação
música/linguagem, avançando um além do princípio de prazer musical:

Sem dúvida a música também fala; mas isso não pode ser senão em razão de sua relação negativa
com a língua e porque, se separando dela, a música conservou a impressão profunda de sua
estrutura formal e de sua função semiótica: não haveria música sem linguagem que lhe preexista
e da qual continua a depender [...] A música é a linguagem menos o sentido; a partir de então se
compreende que o ouvinte [...] se sente irresistivelmente levado a suprir este sentido ausente,
como o amputado atribuindo ao membro perdido as sensações que experimenta e que tem sua
sede no coto [moignon]31.

Esta breve passagem refere com precisão a posição da música em sua relação com a
linguagem, um lugar que Lévi-Strauss estabelece como sendo o negativo da linguagem. A voz e
sua instrumentalização musical visariam um além ou um aquém da linguagem, permanecendo
ligada a esta última. Vê-se aqui que Lévi-Strauss sustenta uma hipótese bem diferente, e mesmo
inversa, daquela de Jean-Jacques Rousseau sobre “a origem das línguas”. Em Lévi-Strauss, a
música não é fantasiada [fantasmée] como uma protolinguagem, ela é aquela que não poderia
existir sem a linguagem. A partir disso, a voz é o que se inscreve em negativo, como o buraco,
que não existe senão pelo que o circunda, e que ao mesmo tempo esvazia, até mesmo destrói, o
que o envolve. Aqui se desvela uma das modalidades do gozo ligado à voz: jogo de tensões entre
voz e fala, entre velamento da voz pela fala e desvelamento no grito. A idealização da voz, de que
Rousseau, como tantos outros, participa, permitiria sonhar com um lugar finalmente pacificado
como não pertencente [hors] à linguagem, uma comunicação “harmoniosa” imediata e, portanto,
fora [hors] do mal-entendido: um lugar onde a falta em ser [manque à être] não seria sentida e
onde o mais perfeito gozo poderia ser vivido. Nisso, é fácil compreender que esta idealização,
ligada a um perfeito e feliz gozo vocal, tenha uma vida dura: o programa que ela propõe tem tudo
para seduzir e permite manter o véu pudico que dissimula a violenta dimensão sexual que
acompanha a voz. Pois esta se situa ao menos tanto – se não até mais – do lado da tensão, da

29
Freud, S. (2006/1920). Au-delà du principe de plaisir. In J. Laplanche, A. Bourguignon & P. Cotet (Eds.). Œuvres
complètes (t. XV, pp. 273-338). (J. Altounian, Fr. Robert et alii, Trad.). Paris: PUF.
30
Rousseau, J-J. (1781). Essai sur l’origine des langues.
31
Levi-Strauss, C. (1971). Mythologiques, L’Homme nu (t. IV, pp. 578-579). Paris: Plon.
angústia e da busca desenfreada como daquele da beleza e do apaziguamento, como nos lembram
os melô-manos apaixonados pela Coisa vocal, verdadeiros errantes da voz.

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