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Endereço completo: Rua Álvaro Chaves, 28, ap. 504. Laranjeiras, Rio de Janeiro, RJ. CEP
22231-220
Pauxy Gentil-Nunes
Resumo
As produções teóricas e práticas em música dos últimos 50 anos têm sido intensamente
fundamentadas em modelos semânticos e sintáticos. O próprio conceito de música como
‘linguagem sonora’ leva a dicotomias e dúvidas sobre a natureza do pretenso ‘objeto’, bem
como de suas inscrições ou registros (partitura, performances, gravações, escuta, cognição,
teorias, entre outros). Uma disputa é instalada – onde reside a ‘Música’? A virada lingüístico-
pragmática, promovida principalmente pelo segundo Wittgenstein, têm oferecido algumas
contribuições ao assunto. Trabalhos recentes têm se debruçado sobre a possível aplicação da
pragmática wittgensteiniana ao entendimento dos fatos musicais. No presente artigo, algumas
sugestões neste sentido são apresentadas.
Abstract
Theoretical and practical productions of last 50 years in music have been hardly based in
semantic and syntactic models. The concept of music as ‘sound language’ leads to
3
dichotomies and issues about the nature of the supposed ‘object’, as well as its inscriptions or
registers (scores, performances, recordings, listening, cognition, theories, among others). A
controversy is installed – where do ‘Music’ inhabit? The linguistic-pragmatic turn, mainly
promoted by the second Wittgenstein, has offered some contributions to that subject. Recent
papers approached the application of wittgensteinian pragmatics to understanding of musical
facts. This article presents some suggestions following this path.
Música e linguagem
A aproximação entre linguagem e música tem sido, nos últimos 50 anos, uma tarefa
recorrente (resenhas históricas podem ser encontradas em vários trabalhos, como Sundberg
1976, Sloboda 1985, Monelle 1992, Swain 1997, Patel 2008) - justificada, em grande parte,
por semelhanças visíveis entre as duas práticas (ver Sloboda, Ibid., p. 17-20). Patel (Ibid., p.
3), por exemplo, aponta que “o papel central da música e da linguagem na existência humana
e o fato de ambas envolverem seqüências sonoras complexas e significantes naturalmente
enseja a comparação entre os dois domínios (...) os humanos são inigualáveis em sua
habilidade em construir sentido a partir do som” 1. Da mesma forma, Swain (Ibid., p. 3)
observa que “a íntima associação entre música e linguagem (...) tem sido reconhecida (...)
desde os tempos antigos” 2. Ainda que “críticos e estetas eminentes, como Hanslick e Langer,
e finalmente compositores, como Strawinsky, tenham repudiado esta analogia” 3, “a idéia da
música como linguagem tem sido revivida, revitalizada por novas fontes de conhecimento” 4.
Swain cita como exemplos destas fontes:
1
“The central role of music and language in human existence and the fact that both involve complex and
meaningful sound sequences naturally invite comparison between the two domains (…) humans are unparalleled
in their ability to make sense out of sound”.
2
“The intimate association of music and language (…) had been recognized (…) since the ancient days”.
3
“Eminent critics and aestheticians, such as Eduard Hanslick and Susanne Langer, and finally composers, such
as Strawinsky (…) have dismissed the analogy”.
4
“(...) the idea of music as language has been revived, revitalized by new sources of insight”.
5
“(...) a new generation of composers who admit ‘expression’ to be among the powers of music; the musical
semiotics of Jean-Jacques Nattiez; and, above all, the growing mountain of evidence from the cognitive
scientists that suggests fundamental affinities between the very cognition of music and language”.
4
Na última década, alguns autores (Lidov 2005, Barucha 2006, Brown 2006, Cram
2009), têm indicado um caminho novo para a questão. Não no sentido de encontrar mais
fundamentos para o estabelecimento de semelhanças ou diferenças entre as duas práticas, mas
considerando o estabelecimento de novos paradigmas dentro da própria linguagem,
decorrentes da virada lingüístico-pragmática articulada pelo ‘Segundo Wittgenstein’. Estes
paradigmas ainda estão sendo avaliados dentro da esfera da filosofia e da epistemologia e
encontram-se em fase de abordagem incipiente dentro do campo da música.
O presente artigo pretende usar o paradoxo de Mênon, enunciado por Platão (2001), e
de grande importância para a abordagem lingüístico-pragmática, para ilustrar a importância da
proposta de Wittgenstein e apontar caminhos para eventuais abordagens musicais.
Paradoxo de Mênon
Em Mênon, Platão relata o diálogo entre o discípulo e seu mestre, Sócrates, acerca da
natureza da virtude. Ao indicar várias respostas à questão, surge a dúvida a respeito do
reconhecimento e definição do conceito de virtude. Sócrates admite não saber o que ela é;
mas está disposto a procurar o que ela possa ser. É neste momento que Mênon emite a sua
famosa aporia:
E de que modo procurarás, Sócrates, aquilo que não sabes absolutamente o que é?
Pois procurarás propondo-te que tipo de coisas, entre as coisas que não conheces?
Ou ainda, que no melhor dos casos, a encontres, como saberá que isso é aquilo que
não conhecias? (Platão 2001, p. 49).
6
“music organizes pitch and rhythm in ways that speech does not, and lacks the specificity of language in terms
of semantic meaning”
5
(...) pelo visto, não é possível ao homem procurar nem o que conhece nem o que não
conhece? Pois nem procuraria aquilo precisamente que conhece – pois conhece, e
não é de modo algum preciso para tal homem a procura – nem o que não conhece –
pois nem sequer sabe o que deve procurar (Id. Ibid., p. 49)
Sendo então a alma imortal e tendo nascido muitas vezes, (...) não há o que não
tenha aprendido; de modo que não é nada de admirar, tanto com respeito à virtude
quanto ao demais, ser possível a ela rememorar aquelas coisas justamente que já
antes conhecia. (Id. Ibid., p. 53)
Acerca de tudo o que compreendemos, consultamos não ao que fala fora em alta
voz, mas à verdade que rege interiormente o espírito humano. Mas aquele que é
consultado e ensina é Cristo, de quem já se falou que habita no homem interior
7
(apud Piacenza 1992, p. 36-37).
7
“Acerca de todo lo que comprendemos, consultamos, no al que habla afuera en alta voz, sino a la verdad que
rige interiormente al espíritu humano. Pero aquél que es consultado y enseña es Cristo, de quién se há dicho
que habita en el hombre interior”
6
(...) idéias formadas a partir das verdades eternas que o sujeito é capaz de identificar
como princípios que subjazem às regras do seu próprio intelecto e que são
identificadas através de uma faculdade de percepção que Descartes denomina luz
natural da razão ou intuição intelectual.
Assim como Descartes, Leibniz irá agregar ao seu modelo ontológico a idéia de auto-
suficiência, ainda mais acentuada pelo conceito de mônada:
Sell também aponta Chomsky como um autor estruturalista que defende o inatismo,
herdeiro assumido de Descartes, mas fundamentado em novas bases. A hipótese de Chomsky,
segundo Sell, é a de que “o conjunto das capacidades cognitivas humanas possui uma
estrutura fundamental determinada biologicamente” (Ibid., p. 24). Chomsky (1977) acredita
em um “sistema de princípios, condições e regras que constituem elementos ou
características de todas as linguagens humanas não apenas por acaso, mas por necessidade
(...) invariável para todos os seres humanos”
que, por sua vez, seriam construídas a partir de ‘objetos simples’, que na prática nunca se
mostram, uma vez que os objetos do cotidiano sempre são complexos – necessitam de
sentenças atômicas para serem descritos. A definição do que seriam os ‘objetos simples’
nunca ficou clara, dentro da filosofia analítica. Soluções iniciais foram levantadas por colegas
e filósofos, a maior parte delas considerando os ‘dados sensíveis’ como possíveis candidatos a
‘objetos simples’. Mas no final da seqüência de significações, haveria um conceito primevo,
essencial, a partir do qual todos os outros elementos seriam derivados, possuídos por um
sujeito transcendental. Este conceito nunca foi encontrado.
A virada lingüístico-pragmática
Bem menos conhecida na área da filosofia da educação, mas nem por isso menos
impactante e prenhe de conseqüências, é a crítica que Wittgenstein faz ao
essencialismo de Platão, sugerindo a partir dela uma nova atitude filosófica, que vai
permitir a elucidação completa (embora não definitiva) dos enigmas filosóficos e,
em particular, proporá uma saída inusitada para o paradoxo do conhecimento dos
sofistas: “não pense, mas olhe!” (Wittgenstein, [1945], #6). Em outras palavras, não
necessitamos de teorias metafísicas para justificar a possibilidade do conhecimento.
Basta que observemos o uso efetivo que fazemos de nossos enunciados lingüísticos
em diferentes contextos. Veremos, então, que eles cumprem funções e papéis os
mais diversos, levando-nos a organizar nossas experiências empíricas e mentais
pragmaticamente, ou seja, de modo bem distante do ideal de exatidão e de precisão
a ser alcançado através do uso de nossos conceitos como preconizado pelas idéias de
Platão e de seus herdeiros neo-platônicos.
O que Wittgenstein propõe é muito mais do que uma nova teorização a respeito da
constituição do conhecimento. O próprio estilo do filósofo reflete sua posição crítica com
8
O argumento central contra linguagens privadas é que, a menos que uma linguagem
seja compartilhada, não existe maneira de distinguir entre usar a linguagem
corretamente e usá-la incorretamente; apenas a comunicação com um outro pode
fornecer uma verificação objetiva. (Rodrigues 2010, p. 25)
O que denominamos ‘seguir uma regra’ é algo que um homem pudesse fazer apenas
uma vez na vida? – E isto é naturalmente uma anotação sobre a gramática da
expressão ‘seguir a regra’. É impossível que um homem, uma única vez, tenha
seguido uma regra. Não pode ser que uma comunicação tenha sido feita, que uma
ordem tenha sido dada e compreendida uma só vez, etc. – Seguir uma regra, fazer
uma comunicação, dar uma ordem, jogar uma partida de xadrez são costumes (usos,
instituições). Compreender uma frase significa compreender uma linguagem.
Compreender uma linguagem significa dominar uma técnica. (Wittgenstein 1945,
#199)
Pragmática musical
A principal crítica que pode ser feita aos modelos reminiscentes é que neles,
considera-se que as ações musicais se justificam e ganham sentido através do conteúdo que
compartilham, conteúdo que constitui a ‘mensagem musical’. Desta forma, um modelo
conexionista se estabelece: a mensagem ‘surge’ na ‘mente’ do compositor, é transferida para
o papel em forma de sinais, que são ‘decodificados’ pelo instrumentista com o ‘auxílio’ do
teórico (aqui, uma das funções mais valorizadas da análise musical). Ao levar a performance
para o palco, o instrumentista transmite, através de sua emissão sonora, a mensagem para o
ouvinte, que reconstrói o sentido imaginado pelo compositor, fechando assim o ciclo
8
“The specific contextual message conveyed by a pragmatic gesture is not coded into the gesture but ‘triggered’
by it”.
10
Todo este caminho tem um símile com o modelo taylorista de produção (ver Marochi
2002), no sentido da construção de um produto em etapas especializadas. Ao mesmo tempo,
pressupõe a homogeneidade entre registros de ordens completamente diversas (falas sobre si,
marcas no papel, ar vibrante, indícios emotivos, CD), conseqüência de sua afiliação com a
lógica reminiscente.
Referências Bibliográficas
CHOMSKY, Noam. A lingüística como uma ciência natural. Mana, v. 3, no. 2. Rio de
Janeiro: UFRJ, 1977.
CRAM, David. Language and music: the pragmatic turn. In McLelland, N. and Cram, D.
(Eds.) Language & History, Vol. 52, no. 1, p. 41-58. Leeds: Maney Publishing (May
2009)
DOWNES, Bill. Pragmatics of music and emotion. Language Forum, v. 2, p. I-27. Michigan:
Bahri, 1994.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 2001.
PATEL, Aniruddh D. Music, Language and the Brain. New York: Oxford, 2008.
PLATÃO. Mênon. Burnet, John (Ed.). Tradução de Maura Iglésias. Rio de Janeiro: PUC,
2001.
SLOBODA, John. The musical mind – the cognitive psychology of music. Oxford: Clarendon,
1985.
SOUZA, José Cavalcante de. A reminiscência em Platão. Discurso, v. 2, pp. 51-67. São
Paulo: FFLCH-USP, 1971.
WILLIAMS, Meredith. Wittgenstein, mind and meaning: toward a social conception of mind.
London: Routledge, 1999.