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O piano no grupo de choro:


outras possibilidades*

LUÍSA CAMARGO MITRE DE OLIVEIRA**


RESUMO: Este artigo propõe um estudo de aspectos da prática do Choro ao piano, abordando
questões idiomáticas do instrumento e enfocando principalmente contextos coletivos de
performance dessa música, onde as principais funções de melodia e sustentação rítmico-harmônica
do grupo sejam desenvolvidas por outros instrumentos. Dessa forma, o estudo apresenta recursos
e elementos em que o pianista possa abordar numa performance junto a grupos de Choro de
formações instrumentais variadas. Como material principal, foram analisadas performances,
registradas em áudio (CDs) e vídeos, de dois pianistas importantes do cenário atual do choro:
Cristóvão Bastos e Laércio de Freitas. Como ferramenta de auxílio na visualização e interpretação
desses elementos, foi utilizado o processo de transcrição (considerado, no presente trabalho, como o
registro de sons musicais através da notação musical tradicional), apresentadas juntamente com
os áudios dos exemplos escolhidos. Foram utilizados também trechos de entrevistas feitas com
pianistas abordados no artigo.

PALAVRAS-CHAVE: Choro; Piano Popular Brasileiro; Grupos de choro; Cristóvão Bastos;


Laércio de Freitas.

The piano in the Choro group: other possibilities


ABSTRACT: This article proposes a study of aspects of the Choro practice at the piano, focusing
on idiomatic elements of the instrument, mainly in the collective performance where other
instruments develop the main functions of melody and rhythmic harmonic support of the group.
In this way, the study presents elements in which the pianist can approach in a performance with
groups of Choro. Elements of performances recorded in audio and video of Cristóvão Bastos and
Laércio de Freitas, two important Brazilian pianists of the genre, were analyzed, with a primary
focus on the piano integrated in groups of varied instrumental formations. To aid in the
visualization and interpretation of these elements, the process of descriptive transcription
(considered, in the present work, as the recording of musical sounds through traditional musical
notation) was utilized. To consider questions about the material analyzed and others raised
during the research process, pianists working in the current musical scene of choro were
interviewed, excerpts of which are included in the text.

KEYWORDS: Choro; Brazilian popular piano; Choro ensembles; Cristóvão Bastos; Laércio de
Freitas.

* Este artigo é uma adaptação do terceiro capítulo da dissertação de mestrado “Uma Roda de Choro no
piano: Práticas idiomáticas de performance a partir de gravações dos pianistas Cristóvão Bastos e
Laércio de Freitas”, de minha autoria, defendida em 2017 no Programa de Pós-Graduação em Música
da Escola de Música da Universidade Federal de Minas Gerais (OLIVEIRA, 2017).
** Luísa Camargo Mitre de Oliveira é Mestre em Performance Musical e Bacharel em Música Popular

pela Universidade Federal de Minas Gerais. Desenvolve pesquisa com enfoque nas áreas de: Piano
Brasileiro, Música Popular Brasileira e Choro. E-mail: luisamitre@gmail.com

OLIVEIRA, Luísa Camargo Mitre de. O piano no grupo de choro: outras possibilidades. Música
Popular em Revista, Campinas, ano 6, v. 1, p. 8-30, jan.-jul. 2019.
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O
uso de fonogramas como fonte de pesquisa em performance musical,
particularmente na área da música popular, apresenta-se como um
interessante recurso no estudo de aspectos interpretativos e idiomáticos
relativos às práticas de determinados instrumentistas ou gêneros musicais. A partir
desses registros sonoros, pode-se extrair elementos provenientes de uma
performance “real” gravada, que englobam aspectos diferentes de outros abordados
no registro escrito (partituras). Aliado à escuta dos fonogramas, uma ferramenta
interessante nesse tipo de estudo são as transcrições1 musicais da performance
estudada. Tais recursos podem trazer uma especificidade maior acerca de
sonoridades e modo de tocar (relativo à articulações, tipos de toques e nuances
interpretativas, por exemplo) do performer analisado. Esse tipo de estudo é essencial
aos instrumentistas que pretendem se aprofundar em determinado gênero ou estilo
musical, na busca de uma performance embasada idiomaticamente quanto ao uso do
instrumento e à prática musical estudada.
Neste sentido, o presente trabalho se propõe a abordar aspectos
relacionados à prática do Choro ao piano a partir do estudo de elementos
encontrados em performances de dois pianistas: Cristóvão Bastos e Laércio de
Freitas. Ambos se mostram grandes referências por serem profissionais experientes,
ativamente atuantes no meio chorão e detentores da linguagem do Choro em suas
performances. As performances escolhidas serão analisadas através de transcrições
de gravações ou vídeos de shows/apresentações desses pianistas, em que estes
atuam junto a formações instrumentais variadas2. O objetivo deste estudo é
reconhecer e compreender elementos utilizados por esses pianistas em contextos
coletivos, problematizando-os à luz de práticas musicais do Choro e do idiomatismo
pianístico. Acredita-se que, a partir dessa compreensão, tais elementos poderão ser
(re) elaborados, adaptados e utilizados em performances, arranjos ou composições
por quem se interessar por este estudo. Não se pretende, aqui, estudar as

1 Neste trabalho, entende-se como “transcrição” o registro em notação musical tradicional de


performances executadas em gravações de áudio ou vídeo dos performers estudados, procurando
abranger com detalhes elementos interpretativos utilizados na execução das peças musicais.
2 Em alguns casos, de acordo com o elemento ou aspecto focalizado no estudo da performance,

transcreveu-se somente parte da execução (como a linha do baixo, ou a linha melódica tocada pela
mão direita, por exemplo), omitindo-se algum elemento considerado menos importante no contexto,
logo, não contemplando a execução completa do pianista..

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particularidades estilísticas de cada pianista, nem tampouco almeja-se uma


generalização de práticas encontradas nas performances analisadas. O intuito é
prover um “vocabulário” de recursos e elementos musicais para o pianista
interessado em se desenvolver na performance do Choro ao piano, especialmente em
práticas coletivas dessa música.
O enfoque deste artigo serão performances em que o piano esteja inserido
em grupos de Choro onde as funções de solista (no sentido de melodista) e
acompanhamento rítmico-harmônico sejam desempenhadas por outros instrumentos
do grupo3. Dessa forma, serão apresentados outros recursos utilizados pelos
pianistas em suas performances coletivas, onde o instrumento assume funções
diferentes das já citadas. Como foco, serão abordadas práticas em que o piano
desempenha a função de “contrapontista”, além de exemplos onde o instrumento é
usado como um recurso timbrístico no grupo.
Considera-se importante para uma real apreensão e entendimento do
material estudado, a audição dos excertos transcritos, onde o leitor compreenderá
nuances e aspectos não contemplados na notação, por serem “não traduzíveis”
graficamente. Da mesma forma, os instrumentistas que pretenderem executar os
elementos contidos nos trechos transcritos de maneira mais fiel, terão a referência
sonora como suporte na interpretação dessas pequenas partituras, auxiliando na
compreensão estilística para, a partir daí, elaborarem ou (re) criarem tais elementos
em suas performances. Todo o material de áudio apresentado nos Exemplos
Musicais deste trabalho encontra-se disponível online no site de endereço
www.soundcloud.com/mestradoluisamitre e pode ser acessado através deste link.
Para cada exemplo de áudio, será indicado, em nota de rodapé, o número da faixa
correspondente na playlist do site, juntamente com o link direto para cada exemplo.

3Aspectos sobre o uso do piano como instrumento solista ou acompanhador rítmico-harmônico em


grupos de Choro podem ser encontrados no Capítulo 3 de minha dissertação (OLIVEIRA, 2017).

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Sobre os pianistas analisados

Laércio de Freitas (Campinas – SP, 1941- ) é pianista, compositor,


arranjador e maestro. Integrou importantes grupos como a Orquestra Tabajara (regida
por Severino Araújo) e o Sexteto de Radamés Gnattali, além de acompanhar e arranjar
para muitos artistas importantes da música popular brasileira. Dentre seus discos
lançados, três deles são dedicados ao Choro: São Paulo no Balanço do Choro – Ao nosso
amigo Esmê (1980), Terna Saudade (1988) e Laércio de Freitas Homenageia Jacob do
Bandolim (2007). Escreveu arranjos para importantes pianistas como Clara Sverner e
Arthur Moreira Lima. Atua como importante figura no meio musical do Choro e é
considerado uma grande influência para as gerações posteriores de músicos. Suas
composições já foram gravadas por artistas como os grupos Variedades
Contemporâneas, Trio Madeira Brasil e Quatro a Zero, dentre outros, além de
figurarem frequentemente nas rodas de Choro, especialmente em São Paulo.
Cristóvão Bastos (Rio de Janeiro – RJ, 1946- ) é compositor, pianista e
arranjador. Possui composições em parceria com grandes nomes da música popular
brasileira como Chico Buarque e Paulo César Pinheiro, além de trabalhar como
arranjador e instrumentista em shows e discos de artistas como Nana Caymmi, Edu
Lobo, Elza Soares, dentre muitos outros. Tem intensa participação no meio musical
do Choro e Samba, atuando frequentemente como arranjador, instrumentista e
compositor, e participou de trabalhos de diversos artistas do meio como Maurício
Carrilho, Luciana Rabello, Paulinho da Viola, Nailor Proveta, Altamiro Carrilho,
Grupo Época de Ouro, Grupo Nó em Pingo d’Água, Zé da Velha e Silvério Pontes.
Atualmente é uma das maiores referências de pianista e arranjador no âmbito do
Choro (e da música brasileira em geral), e possui alta habilidade inventiva de
explorar os recursos do piano, especialmente junto a grupos grandes. Além disso,
possui participação em uma enorme discografia voltada ao gênero musical Choro.

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O piano no grupo de Choro

[…] E o piano tem um problema, ainda, – eu considero um problema – que é


um instrumento muito completo. Então se você vai colocar o piano dentro
de um regional de choro que já é completo: você tem o ritmo, você tem a
harmonia, você tem o centro, né, muita harmonia inclusive, e você tem o
solista. O que você vai fazer?[...]. (GOMES, 2016).

O relato acima, retirado de uma entrevista com o pianista Hércules


Gomes4, retrata uma questão vivida por muitos pianistas na hora de tocarem junto a
grupos de Choro onde as funções de solista e acompanhamento rítmico-harmônico já
estão sendo desempenhadas por outros instrumentos. Com qual/quais elemento(s) o
piano pode contribuir? E ainda: de que maneiras esses elementos enriquecem e
contribuem para o equilíbrio sonoro do grupo e, ao mesmo tempo, soam idiomáticos
ao piano?
Ao procurar recursos para essa questão, buscando referências nas
gravações dos pianistas estudados, notamos algumas estratégias adotadas por estes
ao atuarem junto a grupos grandes, que geram resultados interessantes em relação à
sonoridade do conjunto. Serão apresentados aqui exemplos musicais em que os
pianistas atuam em duas situações: (1) como “contrapontistas” e (2) utilizando o
instrumento como um recurso para enriquecimento timbrístico do grupo.

O piano como contrapontista

Os instrumentos contrapontistas são aqueles responsáveis pela execução


de contrapontos (ou contracantos) no grupo de Choro. Importante ressaltar que esses
instrumentos, na maioria das vezes, não atuam exclusivamente como contrapontistas

4 Hércules Gomes (Vitória – ES, 1980- ) é pianista, compositor e arranjador. Vem se destacando
nacionalmente principalmente pelo seu trabalho como pianista solo dedicado ao repertório brasileiro,
apresentando alto nível técnico de execução em suas apresentações e explorando o instrumento de
forma extremamente idiomática. Em seus arranjos e composições, utiliza amplamente os elementos da
música brasileira, especialmente rítmicos, explorando muito bem o caráter percussivo do piano em
gêneros como o Samba, Choro, Frevo, Maracatu, dentre outros. Estudioso da linhagem histórica de
pianistas populares brasileiros, tem como forte influência a linguagem dos pianeiros, e contribui para o
resgate e divulgação dessa sonoridade que foi explorada por compositores/pianistas como Ernesto
Nazareth, Tia Amélia, Radamés Gnattali, dentre outros.

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e são, também, acompanhadores ou solistas que se revezam ou assumem


temporariamente esta função.
Os contrapontos são um dos principais elementos estruturais desse
gênero, tratando-se, em síntese, de melodias de acompanhamento que dialogam com
a melodia principal da música. São, frequentemente ou dependendo do contexto,
improvisadas pelo instrumentista, que precisa mostrar domínio dos aspectos
melódicos e harmônicos da peça tocada.
O contraponto brasileiro refere-se a uma forma de improvisação na qual
os instrumentos encarregados de acompanhar o solista, dialogam com ele de tal
forma que o resultado é uma performance musical em que melodias diferentes
podem ser ouvidas simultaneamente, evidenciando também, nesse contexto, a
capacidade musical e virtuosismo dos músicos e dos instrumentos antes deixados em
um segundo plano. (CLÍMACO, 2008, p. 311).
Desde os primórdios do Choro, os contrapontos eram presentes em
instrumentos como o violão (através de frases melódicas tocadas nas cordas mais
graves desse instrumento) ou instrumentos de sopro, geralmente mais graves, como
o oficleide, o bombardino e o trombone (responsáveis pelos contracantos nos
conjuntos de música popular, consolidados desde o século XIX). Porém, esses
contrapontos ainda não haviam alcançado a elaboração que conquistariam com a
atuação de Pixinguinha (CALDI, 2007, p. 86).
Pixinguinha assimilou o contraponto de seu mestre Irineu de Almeida,
compositor, trombonista, bombardinista e oficleidista. Esse músico, influenciado pela
linguagem dos instrumentos de sopro nas bandas, desenvolvia linhas melódicas no
oficleide preenchendo as lacunas da melodia principal, utilizando-se, principalmente,
de arpejos e movimento escalar. As frases eram inseridas sempre dialogando com a
melodia principal, muitas vezes em “relação de pergunta e resposta” com esta.
Pixinguinha, influenciado por essa estética, desenvolveu esses elementos “a ponto de
criar verdadeiras melodias independentes” (CALDI, 2007, p. 87). Têm-se como
principal fonte para estudo desses contrapontos de Pixinguinha suas gravações, ao
saxofone tenor, em duo com o flautista Benedito Lacerda, datadas na década de 1940.

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Embora haja indícios de que os contrapontos de Pixinguinha não fossem


totalmente improvisados (como apontado também por CALDI, 2007, p. 87), é
recorrente o caráter improvisatório na prática desse elemento pelos instrumentistas
do Choro. O estudo prévio de frases melódicas presentes em contrapontos feitos, por
exemplo, por Pixinguinha, permite ao instrumentista contrapontista um
“vocabulário” de frases musicais adequado à linguagem chorona. Interessante notar
que algumas dessas frases melódicas – originadas a partir da atuação de um
instrumentista, uma vez gravadas e incorporadas por vários músicos estudiosos
dessa prática – entram no “vocabulário comum” utilizado por diversos músicos do
Choro.
Nas formações dos regionais da década de 1930 (onde há a presença,
geralmente, de um instrumento melódico-solista), o violão de 07 cordas acabou
substituindo os instrumentos de sopro nessa função dos contracantos, e teve sua
linguagem desenvolvida a partir da forte influência desse elemento. É comum que as
frases contrapontísticas nas cordas graves tocadas por este instrumento dialoguem
com o solista, preenchendo momentos de pausa, notas longas ou menor movimento
na melodia, além de conduzirem finais e início de frases ou seções, modulações,
introduções ou finalizações.
Mesmo com a presença de um violão de 07 cordas no grupo, é comum,
quando há mais de um instrumento solista, que aquele que não estiver tocando a
melodia crie outras linhas melódicas contrapontísticas, dialogando com o melodista e
enriquecendo a textura do conjunto.
Encontramos exemplos do piano atuando como instrumento
contrapontista em muitas gravações dos pianistas Laércio de Freitas e Cristóvão
Bastos.
Além das características melódicas, comuns entre os instrumentos que
exercem essa função de contrapontista, as possibilidades harmônicas do piano
enriquecem as maneiras como esses contrapontos podem ser construídos no
instrumento. Em alguns momentos, estes contrapontos se aproximam dos

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contrapontos rítmicos5, como os desenvolvidos pelo cavaquinho, na maneira de


interferências rítmico-harmônicas do piano, na forma de acordes, em diálogo com a
melodia.
No primeiro exemplo, temos um contraponto criado pelo pianista
Cristóvão Bastos na gravação da música Mistura e Manda (Nelson Alves) presente em
seu disco Avenida Brasil. O contraponto é criado na forma de uma linha melódica,
que é dobrada entre as duas mãos com uma distância de uma oitava, recurso que dá
mais força e destaque a esta melodia tocada pelo piano. No Exemplo 16, temos a
melodia tocada pelo violão 06 cordas na primeira pauta, a linha de contraponto
tocada pelo violão 07 cordas na pauta central e abaixo o contraponto tocado pelo
piano. Este conduz uma linha contrapontística menos movimentada, com o
predomínio de figuras rítmicas de maior duração (como mínimas e semínimas). As
notas de apoio dos tempos fortes (semínimas nos primeiros tempos) geralmente são
notas do acorde, pensamento que conduz a construção deste contraponto.
Interessante notar como as duas linhas melódicas contrapontísticas (do
violão 07 cordas e do piano) não se chocam, mas se complementam, devido à escolha
das figuras rítmicas e notas usadas por cada instrumento. Além da rítmica, a
ausência de blocos de acordes, numa textura mais rarefeita no piano, contribuiu para
a “limpeza” do trecho. Interessante também notar como a articulação usada pelo
pianista ao tocar este contraponto (principalmente as notas em staccato) dialoga
diretamente com os outros instrumentos acompanhadores do grupo (pandeiro e
cavaquinho), como pode ser ouvido na gravação.

5 Contrapontos rítmicos são interferências rítmico-harmônicas realizadas pelo cavaquinhista em


contraponto à melodia ou a algum outro elemento da música, onde se inserem células rítmicas
distintas e deslocadas da levada padrão em execução, causando destaque para esse elemento. Essas
intervenções acontecem geralmente em momentos de nota longa ou pausas na melodia, finais de
cadências e seções ou outro momento propício contrapontisticamente à melodia.
6 Correspondente ao “Exemplo Musical 26” do site, disponível em: goo.gl/Ue1vjC

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Ex. 1: Contraponto do piano em Mistura e Manda (Nelson Alves).

Outro exemplo é encontrado na música Fandangoso (Laércio de Freitas),


numa performance ao vivo de Laércio de Freitas junto a seu grupo em um programa

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de TV7. No Exemplo 28, estão representados: a melodia tocada pela flauta e as linhas
melódicas contrapontísticas tocadas pelo piano (não foram transcritas as partes em
que o piano toca a harmonia, esta foi apenas indicada através de cifra). Neste
contraponto tocado pelo pianista, é possível perceber que as frases mais
movimentadas são inseridas nos momentos de notas longas da melodia,
preenchendo os espaços. Assim como no exemplo anterior, as notas das cabeças dos
tempo são notas pertencentes ao acorde, e as frases são construídas de maneira a
alcançar essas notas. É possível perceber uma linha escalar ascendente composta por
essas “notas alvo”, como nos compassos 26 a 29, onde as primeiras notas de cada
compasso são Fá#, Sol#, Lá e Si. Essa pode ter sido tomada como uma “linha
melódica guia” na construção das frases. O pianista varia a forma de tocar as frases
contrapontísticas: ora elas são apresentadas como melodias dobradas entre as duas
mãos (quatro primeiros compassos do exemplo), ora essas frase são tocadas pela mão
direita com acompanhamento harmônico na mão esquerda (segundo sistema do
exemplo), ou ainda apresentadas com um intervalo de terça na mão direita com
dobramento de uma das vozes na mão esquerda (compassos finais do exemplo).

7 Programa Metrópoles, exibido na TV Cultura de São Paulo e disponível no YouTube através do link
https://www.youtube.com/watch?v=5NoX4m_jOK8 (Acesso em 19 de abr. 2017).
8 Correspondente ao “Exemplo Musical 27” do site, disponível em: goo.gl/KjsvQB

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Ex. 2: Contraponto do piano em Fandangoso (Laércio de Freitas).

Na próxima figura, Exemplo 39, retirado da gravação da música Um Choro


pro Waldir (Cristóvão Bastos e Paulinho da Viola), também do disco Avenida Brasil, o
pianista Cristóvão Bastos executa, ao mesmo tempo, a melodia (com a mão direita) e
o contraponto (com a mão esquerda). O pianista aproveita os momentos de pausa ou
notas mais longas da melodia para inserir elementos contrapontísticos, sob a forma
de pequenas linhas melódicas ou acordes. Interessante notar que algumas linhas são
construídas pensando em destacar alguma condução de vozes dos acordes da
harmonia, em movimentos em graus conjuntos, como é o caso dos compassos 02, 03 e

9 Correspondente ao “Exemplo Musical 28” do site, disponível em: goo.gl/idnecb

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04. No compasso 02, a nota Si bemol, enarmônica de Lá sustenido, soa como a sétima
maior do acorde de Bm(7M), que conduz para a sétima menor do próximo (Bm7) na
forma de uma antecipação. Em seguida, a sexta do acorde Bm6 (nota Lá bemol,
enarmônica de Sol sustenido) conduz para a 3a do próximo acorde (nota Sol), Em7.
Esse pensamento de destacar uma linha melódica “interna” às vozes da harmonia é
frequentemente explorada por este pianista nesta e em outras gravações.Interessante
também notar como o pianista utiliza as possibilidades harmônicas do instrumento,
enriquecendo a textura do contraponto alternando entre linhas monofônicas e outros
trechos em acordes, buscando sonoridades mais “cheias”. Alguns recursos
interpretativos de melodias são também usadas nos contrapontos, como as
apojaturas (compassos 04 e 08) e a flexibilização métrica em relação ao pulso
(compasso 24).

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Ex. 3: Contraponto do piano em Um choro pro Waldir (Cristóvão Bastos e Paulinho da


Viola).

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O piano como recurso timbrístico no grupo

O piano, além das funções tradicionais de solista ou acompanhador, pode


se tornar uma ferramenta para o enriquecimento timbrístico dos grupos de Choro.
Devido à sua tessitura, que engloba as regiões de todos os instrumentos da
orquestra e do instrumental popular (desde o contrabaixo ao flautim), o piano pode
ser usado para realçar, misturar ou criar novos timbres, além de destacar elementos
feitos por outros instrumentos.
Piston (1969, p. 341) afirma que o principal uso do piano junto à orquestra
é através dos dobramentos, e pode ser aplicado junto a qualquer instrumento
(cordas, madeiras, metais ou percussão), em qualquer registro. Aponta, ainda, que
esse tipo de uso não funciona bem em passagens com notas longas, de caráter
sostenuto ou legato. Obtém-se melhores resultados em dobramentos de passagens
mais movidas, ou com notas não muito longas. Um exemplo que funciona bem são as
dobras de passagens em staccato ou pizziccato. Esse tipo de articulação, porém se
usada no grave, em dinâmica forte, pode não funcionar bem por gerar um som
metálico e distorcer a sonoridade por conta dos harmônicos (idem, p. 342). Outro
apontamento são os acordes dissonantes, na parte grave do piano, que podem ser
usados como efeitos rítmicos e percussivos. Há ainda os trêmulos, que podem ser
associados aos rulos da percussão, como nos tímpanos ou bumbos. Mancini (1986,
p.154) também aponta esse tipo de emprego do piano, que “pode ser usado em
qualquer região para adicionar cor ao resto da orquestra”.
Em relação a essa abordagem, Itaborahy (2002) aponta alguns usos do
piano junto a orquestras, encontrados em obras de compositores como Stravinsky,
Prokofieff, Villa-Lobos e Bartók. Dentre as diversas abordagens e estilos de
orquestração de cada compositor, alguns usos do piano foram apontados: (1)
Dobramento melódico: ao reproduzir linhas melódicas de outros instrumentos, o
piano gera efeitos sonoros a esta junção através do seu timbre. Ao dobrar
instrumentos graves (de cordas friccionadas) como violoncelos e contrabaixos, o
piano traz clareza para suas sonoridades, conferindo maior precisão ao ataque das
notas; se associado a instrumentos agudos, pode conferir-lhes brilho, deixando-os

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mais em evidencia e/ou soando mais claro que o normal. (2) Dobramento rítmico: ao
reproduzir a rítmica igual a de outros instrumentos da orquestra, mesmo tendo notas
diferentes, a propriedade percussiva do piano auxilia na sonoridade precisa nos
ataques. Pode-se, ainda, produzir efeitos percussivos com clusters no piano,
aproximando-o do naipe de percussão da orquestra. Esse uso de diversos tipos de
dobramentos pelo piano pode conferir volume ou profundidade sonora aos
elementos, pontuar a melodia, realçar desenhos melódicos ou rítmicos, além de
mesclar seu timbre a outro, podendo criar novas sonoridades. Mesmo que os
exemplos dados pelos autores acima citados tratem do piano no contexto da
orquestra, há evidências do uso dessa abordagem por alguns pianistas junto aos
grupos de Choro. Esses instrumentistas trazem para a performance alguns
conhecimentos que têm na área de arranjo e orquestração, já que muitos trabalham
também como arranjadores e compositores.
O pianista Cristóvão Bastos, em entrevista, ao falar do papel do piano no
grupo completo de Choro, usa uma metáfora associada à atividade de um pintor:
“[...] Você não pode entrar num quadro e sujar a cor do pintor... Você tem que chegar
lá para ajudar no colorido...” (BASTOS, 2016). Cristóvão Bastos ressalta aqui a
importância do cuidado ao se inserir elementos, de forma a não “sujar" a sonoridade
resultante do grupo. É reconhecível, na prática desse pianista, a capacidade de
utilizar o piano para realçar elementos rítmicos ou melódicos e timbres de outros
instrumentos presentes. Portanto, o ato de “ajudar no colorido” pode se referir, em
muitos momentos, ao enriquecimento timbrístico através do uso do piano dobrando
outros instrumentos do grupo, de diversas maneiras.
Em entrevista, Laércio de Freitas também se refere a esse recurso, ao falar
das possibilidades do piano junto ao grupo: “[...] Algumas vezes se dobra. Não com a
flauta, oitava abaixo... Timbrística, né?” (FREITAS, 2016). Também é possível
identificar, em performances e gravações deste pianista, o uso do piano sob esse
aspecto de recurso timbrístico junto ao grupo de Choro.
Abaixo, alguns exemplos de como esses pianistas utilizaram o piano sob
essa ótica.

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Melodias no piano dobradas em oitavas distintas

Observou-se o amplo uso de dobramentos em oitavas diferentes, em


melodias, contracantos/contrapontos (como nos exemplos das figuras 1 e 2) ou
outros elementos feitos pelo próprio piano. Algumas vezes, os pianistas utilizam
oitavas subsequentes. Outras, dobram a melodia em intervalos maiores, “saltando”
uma ou duas oitavas (gerando intervalos de 15ª ou 22ª entre as notas). Em cada uma
dessas combinações, a sonoridade resultante é diferente, gerando uma série de
possibilidades timbrísticas fornecidas pelo próprio instrumento.
Além dessa abordagem, onde o desenho melódico é dobrado a partir da
mesma nota, em registros distintos, Cristóvão Bastos aponta mais uma possibilidade
de enriquecimento tímbrico do piano. No trecho da entrevista, Bastos mostra ao
piano um exemplo musical, tocando uma frase com a mão esquerda e dobrando-a
com a mão direita, com um intervalo de 12ª exata entre todas as notas da frase:

[…] Eu estou criando um harmônico artificial, estou fazendo uma 12ª. Essa
nota faz o instrumento ter um outro timbre e você não escuta a 5ª que eu
estou fazendo…. Buscando timbres. Você pode usar o piano pra fazer isso. E
o piano não só aparece, como você tem a impressão de que botaram um
instrumento novo, porque isso aqui não é um piano mais, né?[…]. (BASTOS,
2016)

Nesse depoimento, Bastos cita duas funções (ou consequências) desse tipo
de recurso: a primeira seria o destaque do elemento tocado, fazendo-o ser ouvido
mesmo em meio a grupos grandes (com muitos instrumentos tocando), o que pode
ser interessante para o pianista numa performance junto a um grupo de Choro no
formato do regional, por exemplo. A segunda função seria a criação de um timbre
distinto do tradicionalmente utilizado na execução de melodias pianísticas, fazendo
com que o piano soe como “um instrumento novo”, recurso que pode ser utilizado
como um elemento de variação na interpretação melódica pelo piano.
Ainda sobre o uso dos dobramentos no piano como forma de realçar o
instrumento em meio ao grupo, Bastos acrescenta:

[...] Mas mesmo que estejam tocando o flautim e o contra-fagote no grupo,


você tem espaço pra colocar o piano, e tem uma coisa que eles não podem
fazer que é isso aqui [toca uma frase em uníssono nos extremos agudo e grave do

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instrumento]. Isso aqui aparece dentro da orquestra sinfônica, todo mundo


faz um acorde e você faz... [toca a mesma frase novamente] e o piano aparece,
porque essa região soma com essa, faz uma junção de harmônicos que faz
com que o piano seja escutado. (BASTOS, 2016).

Dobramentos de outros instrumentos

O dobramento de melodias ou contracantos feitos por outros instrumentos


é frequentemente utilizado pelos pianistas. Nesse tipo de dobramento, é comum o
pianista reproduzir (ou imitar) a articulação, acentuação ou fraseamento do
instrumento dobrado. Na maioria dos casos, os pianistas dobram somente trechos ou
pequenas frases tocadas pelos outros instrumentos. Dessa forma, traz-se mais
variedade de timbres e sonoridades ao arranjo do grupo.
Encontramos abaixo alguns Exemplos Musicais de dobramentos
encontrados em gravações com a participação do pianista Cristóvão Bastos junto a
grupos de Choro, em arranjos do próprio pianista ou de outros músicos. (Nos
exemplos em áudio, pode-se ouvir pequenos trechos em que cada tipo de
dobramento é utilizado. Em cada áudio pode haver mais de um trecho, de diferentes
músicas. A ordem das faixas em cada áudio é a descrita em seus respectivos itens):

 Piano e violão de 07 cordas10: encontramos o dobramento de frases dos baixos


melódicos em gravações como: Quem é Você (Pixinguinha), do disco Brasileiro
Saxofone, de Nailor Proveta, e Acreditei nos Beijos Dela (Cristóvão Bastos e
Paulinho da Viola), no disco Dino 50 anos, do conjunto Época de Ouro;

 Piano e bandolim11: encontramos esse tipo de dobramento em gravações


como: Meu Sonho (Cristóvão Bastos/Jorginho do Pandeiro), e Acreditei nos
Beijos dela (Paulinho da Viola/Cristóvão Bastos), ambas do disco Dino 50 anos,
do pianista Cristóvão Bastos com o conjunto Época de Ouro;

10 Correspondente ao “Exemplo Musical 29” do site, disponível em: goo.gl/m8sPe2


11 Correspondente ao “Exemplo Musical 30” do site, disponível em: goo.gl/tFcoM2

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 Piano e cavaquinho12: encontramos esse tipo de dobramento na faixa


Pitangueira (Luciana Rabello/Cristóvão Bastos) do disco da cavaquinista
Luciana Rabello, e Um Choro pro Valdir (Cristóvão Bastos e Paulinho da Viola),
no disco Avenida Brasil, do próprio pianista;

 Piano e flauta13: encontramos esse tipo de dobramento na faixa Quem é Você


(Pixinguinha), no disco Brasileiro Saxofone, de Nailor Proveta, e na faixa
Gostosinho (Jacob do Bandolim), no disco Choros Amorosos, da flautista Andrea
Ernest Dias.

 Piano e saxofone14: encontramos esse tipo de dobramento na faixa Não Me


Digas Não (Cristóvão Bastos/Paulinho da Viola), no disco Brasileiro Saxofone,
de Nailor Proveta;

 Piano, bandolim e flauta15: encontramos esse tipo de dobramento na faixa


Travessuras de Maíra (Papito), do disco Domingo na Geral, do grupo Nó em Pingo
D`água com o pianista Cristóvão Bastos;

As possibilidades são inúmeras, e cabe ao pianista usá-las de acordo com o


efeito desejado no arranjo e seu gosto pessoal. Assim como no uso do piano junto à
orquestra, o resultado da combinação do piano com outros instrumentos depende
das características de cada um deles, quanto à emissão de som e registro. Ao dobrar
frases graves junto ao violão 07 cordas, por exemplo, o piano traz clareza para sua
sonoridade, conferindo maior definição para as notas, principalmente nos casos do
violão de aço onde se tem a presença do ruído da dedeira nas cordas mais graves. Ao
dobrar instrumentos agudos como a flauta ou o cavaquinho, o piano traz mais brilho
à sonoridade destes.

12 Correspondente ao “Exemplo Musical 31” do site, disponível em: goo.gl/TXgp4y


13 Correspondente ao “Exemplo Musical 32” do site, disponível em: goo.gl/3EenSw
14 Correspondente ao “Exemplo Musical 33” do site, disponível em: goo.gl/AdcC31
15 Correspondente ao “Exemplo Musical 34” do site, disponível em: goo.gl/117zUa

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Um recurso comum é o uso do intervalo de 3as, 6as ou 10as entre a


melodia dobrada e a tocada pelo piano, onde este exerce uma “segunda voz”. Este
recurso também realça a melodia principal, mais aguda. Temos um exemplo de
Laércio de Freitas, na música Camondongas (Laércio de Freitas), onde este dobra, num
intervalo de 3a inferior, a melodia tocada pelo bandolim (Exemplo 416):

Ex. 4: Trecho de Camondongas (Laércio de Freitas), onde piano e bandolim dobram a


melodia.

Um outro recurso utilizado por Cristóvão Bastos, ao dobrar especialmente


melodias no registro agudo, é o uso do acréscimo de terças abaixo da voz principal
que está sendo dobrada. Um exemplo (Ex. 517), retirado da gravação de Um Choro pro
Valdir (Cristóvão Bastos e Paulinho da Viola), o piano dobra a melodia feita pelo
cavaquinho:

Ex. 5: Trecho de Um choro pro Valdir (Cristóvão Bastos e Paulinho da Viola), onde piano e
cavaquinho dobram a melodia.

16 Correspondente ao “Exemplo Musical 35” do site, disponível em: goo.gl/zSDwgV


17 Correspondente ao “Exemplo Musical 36” do site, disponível em: goo.gl/BLsfvA

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Dobramentos de outros instrumentos, realçando desenhos da


melodia

Em algumas gravações, Cristóvão Bastos utiliza-se do dobramento no


piano de notas específicas da melodia, quando esta é tocada por outro instrumento.
Em alguns casos, as notas são tocadas em uníssono (na mesma oitava da melodia), e
em outros casos são tocadas em oitavas distintas. Essa prática, ao destacar essas notas
– por causa da mudança de timbre e intensidade – realça também desenhos
intrínsecos à melodia. Importante ressaltar que nesses dobramentos, geralmente, o
pianista reproduz também a articulação do instrumento dobrado, de forma que os
sons “se fundam” mais.
Abaixo, um exemplo retirado da música Seu Cristóvão (Maurício Carrilho),
gravado no disco Choro Ímpar (2007), de Maurício Carrilho. Nele, Cristóvão Bastos
dobra ao piano determinadas notas da melodia tocada pela flauta (Ex. 618). Dessa
forma, o piano realça um desenho escalar descendente, interno à melodia, que
começa na nota Ré e termina na nota Fá:

Ex. 6: Trecho de Seu Cristóvão (Maurício Carrilho) – dobramento de notas específicas da


melodia.

Essas foram algumas das diversas formas de se explorar a sonoridade do


piano em conjunto com outros instrumentos do grupo de Choro, em relação a alguns
efeitos timbrísticos que este instrumento pode gerar.
Há uma observação em relação a esse tipo de recurso: ele geralmente é
usado em situações onde se há um arranjo previamente estabelecido, onde os

18 Correspondente ao “Exemplo Musical 37” do site, disponível em: goo.gl/LExBvN

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instrumentistas podem combinar – ou ler de uma partitura previamente elaborada –


as articulações e a rítmica das melodias tocadas. Isso porque esses aspectos rítmicos e
interpretativos variam muito nas interpretações melódicas, de acordo com o músico e
do momento da performance. Numa situação de uma roda de Choro, por exemplo,
onde não há ensaios prévios nem arranjos escritos, dificilmente esses dobramentos de
melodia soariam com a mesma articulação e rítmica exata entre todos os executantes.
Porém, dependendo da capacidade de percepção, do contexto e do objetivo dos
músicos envolvidos na prática musical, é possível aplicar esse conhecimento numa
roda de Choro ou outra situação similar.

Conclusões

Neste trabalho, procurou-se estudar elementos utilizados pelos pianistas


em performances de piano em conjunto, de maneira a abranger diferentes
abordagens que estes utilizaram ao se inserirem em grupos onde as principais
funções de sustentação rítmico-harmônica e melodia já estavam sendo cumpridas
por outros instrumentos. Para isso, foram escolhidos alguns trechos de fonogramas
considerados representativos, que foram expostos na forma de pequenas transcrições
com seus respectivos áudios.
As análises feitas a partir desse material possibilitaram a identificação de
elementos característicos da linguagem pianística utilizada pelos intérpretes
selecionados, evidenciando tanto traços individuais quanto padrões estilísticos que
caracterizam a performance do piano no Choro de forma um pouco mais abrangente.
Esses elementos podem se manifestar na forma de motivos melódicos e rítmicos,
construções harmônicas, padrões de acompanhamentos, articulações, acentuações,
recursos característicos do piano (como o uso do pedal), e a exploração da tessitura
do instrumento, dentre outros. Dessa maneira, através do reconhecimento e da
compreensão de tais elementos e recursos encontrados nas performances, pode-se
apontá-los como ferramentas possíveis de serem apropriadas, reinventadas e
incorporadas por outros pianistas (ou instrumentistas em geral) em suas próprias
performances.

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Além das gravações, as contribuições dos pianistas a partir das entrevistas


também foram importantes para a compreensão de práticas e pensamentos dos
artistas estudados, auxiliando na compreensão de suas práticas.
Acredita-se que o processo de pesquisa, escuta, análise e estudo,
exemplificado neste artigo, funcione como um suporte para o desenvolvimento de
processos semelhantes por outros pesquisadores na área de performance, seja sobre o
Choro ou qualquer outro gênero musical de interesse.

Bibliografia

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GOMES, Hércules. Entrevista (concedida em 09 janeiro de 2016). Entrevistador (a):


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Bosmans. 2002. Dissertação (Mestrado em Música) – Programa de Pós-Graduação em
Música - UFMG. Belo Horizonte, 2002.

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PROVETA, Nailor. Brasileiro Saxofone. Acari Records, 2009.

RABELLO, Luciana. Luciana Rabello. Acari Records, 1999. CD.

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