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Singularidade: pessoa, individuação e processos de

subjetivação em uma ontologia amazônica36

(...) só existe mundo para alguém


Lima, T. S., 1996: 31

Em outras construções do tapirapé também se marca o


beneficiário da ação: “é doce para mim”, “cheguei para vocês”,
“choveu para nós”. As ações são, assim, expressas tendo como
centro de referência o falante, sua inclusão ou exclusão no even-
to, e a relação entre ele, o ouvinte e o mundo circunstante. O
interessante é que a gramaticalidade tapirapé torna essencial
aquilo que para outras línguas é acessório. Em português, ale-
mão, francês, eu não preciso me contextualizar em relação aos
circunstantes, nem ao alcance do evento: eu apenas chego (não
preciso chegar para alguém); chove, talvez em algum lugar (mas
não para alguém); morre-se (mas não de alguém). Em tapirapé,
a lanterna acende para alguém, chega-se para alguém, vai-se
para alguém, morre-se de alguém.
Yonne Leite, 1998: 97

Experiência pessoal
A maior parte da reflexão antropológica contemporânea sobre os ama-
zônicos, embora enfatizando questões ligeiramente distintas, se construiu em
torno de uma crítica às etnografias anteriores que enfatizavam a “flexibilidade”
e a “individualidade”. O aspecto enfatizado da “frouxidão”, da “flexibilidade”
e, consequentemente, do caráter individualizante dos ameríndios deu, então,
lugar a uma descrição da sociedade e filosofia ameríndia apoiada nas represen-
tações sociais da pessoa, do corpo, da substância, da morte, do canibalismo,
discussões emolduradas a partir da problemática da identidade e da alteridade.
Não obstante esse esforço de constituir uma sociedade ameríndia a partir de
seus próprios interesses, a partir da positivação de temas e questões que seriam
propriamente ameríndias, a questão da experiência pessoal e da flexibilidade
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Este texto foi originalmente apresentado no Amerinidan Seminar da Universidade de St. Andrews
(2005), no Seminário da Equipe de Recherche em Etnologie Amerindiene, CNRS (2006), no Semi-
nário dirigido por Phillipe Descola na École des Hautes Etudes em Science Sociales (2006) e uma
primeira versão foi publicada na Revista Amazonia Peruana, Peru – Lima , v. 30, p. 159-184, 2007.

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insistia em aparecer em muitas etnografias, o que nos reenvia à questão de co-
mo conceituar a pessoalização, o discreto e o singular traduzido em termos de
acontecimentos e histórias particulares dos eventos que parecem estar mesmo
enraizados na forma como os ameríndios conceituam seu mundo e o tornam
apreensível. Um pensamento que para se construir enfatiza o detalhe e a espe-
cificidade e carrega nas marcas da experiência pessoal a forma de se manifestar
sobre as coisas e o mundo em que o discreto e as interpretações pessoais tor-
nam este mundo apreensível por esta forma de lhe dar conceituação.
As Mitológicas de Lévi-Strauss (1964-1970) dão o maior testemunho
dessa forma de o pensamento ameríndio se manifestar. Os mitos são inteli-
gíveis não por uma moral da história ou por sua mensagem, mas por uma
decomposição em seus detalhes, insignificantes acontecimentos pessoaliza-
dos que se apresentam no mais absoluto grau de singularidade. Lévi-Strauss
entendeu imediatamente que os mitos poderiam ser apenas compreensíveis
nesse nível dos acontecimentos e nessa multiplicidade de singularidades.
Muitos antropólogos que estudaram as sociedades amazônicas chama-
ram atenção, embora com ênfases diferentes, para a questão da importância
da pessoalidade ou singularidade nas sociedades e cosmologias ameríndias.
Viveiros de Castro (1985) chamou nossa atenção para as pessoalidades
Araweté em uma passagem de seu livro que descreve como o “difícil começo”
(“teneteamo”), ao abordar a dificuldade dos Araweté para iniciar a organi-
zação de uma atividade. Cada pessoa impõe seu ritmo e sua marca na estru-
turação da organização, gerando um alto coeficiente de pessoalidade, como
uma orquestra sem maestro tentando tocar uma sinfonia. Esse “difícil co-
meço”, para os Araweté coloca em evidência um pressuposto igualitarismo,
gerando uma “liberdade do agente” em um mundo sem hierarquia, acentua
por outro lado uma ênfase na singularização, em um universo povoado por
pessoalidades, não traduzíveis umas nas outras (como deveria pressupor o
igualitarismo), gerando uma multiplicidade de singularidades, cujos acordos
são negociações contextuais ao invés de relações sociais padronizadas.
Descola (2005: 178) aponta igualmente para o fato de os ameríndios
privilegiarem, na construção de sua socialidade, uma relação que se estabe-
lece via pessoa/pessoa: “... é possível de estabelecer com essas entidades (as
plantas e os animais) relações de pessoa a pessoa – de amizade, de hostilidade,
de sedução, de aliança ou de troca de serviços – que diferem profundamente
da relação denotativa e abstrata entre os grupos totêmicos e as entidades na-
turais qui lhes servem de epônimos”.

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Peter Rivière, chamando atenção sobre o mesmo problema, descreve a
sociedade guianense como sendo “... não mais do que um agregado de re-
lações individuais negociadas” (1984: 102). Overing (1989, 1996), ao con-
ceituar o Itsotu Piaroa como uma “pluralidade de similaridades singulares”,
redefine a própria concepção de “comunidade ameríndia” em que, justa-
mente, a multiplicidade de singularidades que a compõem tem um papel
importante na estruturação da forma como é pensada e, como são postas em
prática as relações sociais no universo amazônico. Traduzindo o conceito de
“performativo” usado por Sahlins (1987: xi-xiii) para o universo amazônico,
Overing chega ao conceito de “generative”, que acentua a importância do
que designo por “pessoalidade” para estas ontologias, uma vez que é o ato
apropriado que cria as relações. Nesse sentido, as relações são construídas por
escolhas e desejos e são sempre negociadas. Modo característico de construir
relações sociais que Overing conceitua como “autonomia pessoal”, isso é,
uma capacidade específica, sempre pessoalizada, para produzir coisas cul-
turalmente aceitáveis. A expressão Piaroa ta”kwakomenae exprime, segundo
Overing, a forma de construir o individual, ao agregar pessoalidade à percep-
ção do que é culturalmente aceitável, em outras palavras, quando o cultural
ele mesmo é expresso pelo pessoal, pelo singular.
Sobre a importância da conceituação da experiência pessoal na formula-
ção cultural, Carneiro da Cunha (1978: 113) aponta a fabulação na escato-
logia Kraho enquanto espaço privilegiado para a criação, percebendo que “a
escatologia não é apenas o reflexo da sociedade que a originou, mas também
e principalmente uma reflexão sobre ela.”
Kracke (1979) demonstra que para os Kawhib, a liderança, o recruta-
mento de membros para um grupo, a organização das ações que envolvem
cooperação, a manutenção da harmonia dentro do grupo depende mais do
que designa “relações emocionais e psicológicas” do que propriamente rela-
ções jurais. Levando ainda mais longe a proposta de construção do mundo
social Kwahib a partir de uma epistemologia baseada nas subjetividades pes-
soais, demonstra que as narrativas oníricas são ao mesmo tempo um campo
de experiência pessoal significativa e fonte de conhecimento (Kracke, 1991:
203, 1987: 71). Os sonhos, na sua manifestação enquanto narrativa, unem
experiência pessoal e informações culturais.
Ellen Basso apontou em The Last Canibal a importância da conceituação da
experiência pessoal nas histórias para os Kalapalo que não se sustentavam no fato
de representar uma nova ideologia ou um grupo de imagens coletivamente acei-

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tas que animam a vida social, mas, pelo contrário, que pelo fato de descreverem
experiências de pessoas que procuram caminhos e exploram alternativas para
suas vidas é que justamente são interessantes para os Kalapalo (1995: 149).
Mesmo em narrativas que parecem fixas, como os mitos e os cantos,
observa-se um importante processo de subjetivação pessoal, refletido, muitas
vezes, na evocação da narrativa em primeira pessoa. Oakdale (2002: 165-6)
observou que embora os cantos para os kayabi sejam construídos por metá-
foras fixas, seu sentido é captado apenas a partir de um recurso interpretativo
de quem está traduzindo ou mesmo de quem está encunciando o canto.
Nesse sentido, vê-se que os cantos dependem de uma interpretação das me-
táforas para serem compreendidos, além de referências contextuais. O cantor
narra sua própria história de vida, uma viagem que fez para São Paulo, e
relata sua experiência com os brancos através das metáforas da árvore e dos
oropendulas. O mesmo se passa nos cantos Kaxinauá descritos por Lagrou
(2007) em que a interpretação das metáforas é chave na forma como os can-
tos são apreendidos, demonstrando que para serem entendidos, dependem
de uma conceituação pessoal. Urban (1989: 40; 1996: 49) observa que entre
os xavante a narração do mito em primeira pessoa produz um quase estado
de transe, quando o narrador passa a experimentar a narrativa e vivê-la de
um modo acentuadamente pessoalizado.
Partindo da constatação da importância da conceituação do pessoal na
forma como os amazônicos constroem seu conhecimento, sua percepção e
a forma como têm acesso ao mundo, procuro pensar como essa singulariza-
ção revestida de interpretações pessoais, de agências discretas, especificidades,
idiossincrasias podem ser conceitualizadas. Nesse sentido, a partir da formu-
lação Pirahã, e de outros contextos etnográficos, procuro conceituar positiva-
mente e produtivamente o pessoal, o singular e o discreto como formas cons-
titutivas de produzir um sentido possível sobre o que chamamos de sociedade
e cultura ameríndia. Os Pirahã apresentam uma forma peculiar de marcar o
discreto, o singular, o pessoal, a qual permite perceber a importância dessa
forma de conceituação na construção do sistema social. A experiência pessoal
é uma forma privilegiada de se ter acesso ao que poderia ser descrito como
representações modelares da sociedade ou do cosmos. Ao acentuar a impor-
tância do pessoal, posso dizer que a sociedade ou a cultura, para os Pirahã, é
conceituada nas histórias narradas, imersas na pessoalidade do narrador.
Esse tipo de concepção conduz a uma conceitualização de sociedade ou
cultura que se apoia mais sobre o pessoal e sua autonomia na construção do
mundo do que em um paradigma saussuriano-durkheimiano que concebe a

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parole subordinada a langue, o indivíduo à sociedade, percebendo o pessoal
como apenas uma manifestação do que seria o coletivo, o representacional,
a sociedade. A configuração etnográfica amazônica e os Pirahã em particular
permitem propor uma reflexão sobre o aspecto conceitual do pessoal e seu
rendimento na construção de uma percepção sobre o socius, isso é, como a
conceituação do pessoal é importante para a produção dos significados.
A ideia central aqui é a de justamente enfatizar o aspecto pessoal da cria-
ção, o aspecto discreto da individuação que é encontrado em muitos campos
da cultura Pirahã: a produção corporal que se inicia com o ato da concepção
em que um evento único produz um novo corpo e um nome singular reme-
tido àquela pessoa; nos sonhos que são elaborações de experiências vividas
partilhadas socialmente através de sua evocação narrativa; no xamanismo, ou
seja, como pessoas produzem a partir de seus discursos e atos a cosmologia. O
xamanismo Pirahã (e talvez de outros povos amazônicos) parece ser uma exa-
cerbação da experiência pessoal, desafiando uma interpretação mais represen-
tacional e coerente da sociedade através de categoriais analíticas dicotômicas e
estáveis. Assim, o xamanismo é uma conceituação pessoal ao juntar, de uma só
vez, linguagem, estética, ética, política, relações sociais acionadas de um ponto
de vista singular, o do xamã. Ser xamã nesse contexto seria algo literalmente
experiênciado, pessoalizado. Isto significa dizer que para os Pirahã as expe-
riências no mundo modelam os conceitos sobre o mundo (Meloe, 1983,
1989). Os xamãs entram em contradição entre si sobre as modulações repre-
sentacionais que o mundo pode assumir. Produzem uma Antropologia radi-
calmente pessoal construída por indivíduos nativos. Nesse sentido, o detalhe,
a narrativa, as palavras proferidas e o contexto passam a ser pré-requisitos para
se ter um ponto de vista sobre o mundo que não tem como objetivo precípuo
a modelização de uma sociedade ou de uma cultura, mas se apóia, sobretudo,
em experiências individuais e eventos únicos vividos pelos narradores.
A experiência através da subjetivação da pessoalização tem lugar privile-
giado no esquema conceitual Pirahã, pois, deixando de representar (mediar
o pensamento e o ato), presentifica o Cosmos. A experiência pessoal descreve
o Cosmos, vincula palavras e objetos, observações e sua explicação, o pensa-
mento e o ato, criando e recriando um mundo que se apresenta sempre ina-
cabado, em eterno processo de construção. O Cosmos é, assim, dependente
de alguém que o vivencie, que o experimente, para que possa ganhar estatuto
de discurso organizado.

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O pessoal e o social
É necessário, pois, reconhecer que pensar a experiência pessoal, a pessoa-
lidade ou a individuação sempre foi um desafio para a teoria antropológica.
A construção do conceito de representação produziu a própria ideia de que
o pessoal e a individuação estavam estruturalmente ausentes do que seria
a conceituação sobre sociedade ou cultura. Foi com Durkheim que veio a
ser reconhecida a irredutibilidade do “social” em relação ao psicológico, ao
biológico e ao pessoal. Durkheim afirmava em 1898 que “il est trop clair que
toute vie commune est impossible s’il n’existe pas d’intérêts supérieurs aux intérêts
individuels”(1898: 4).
O “social” passa a ser considerado um domínio que ultrapassa os indiví-
duos e seus atributos psicológicos. A representação sendo produto do social
seria a prova de que uma sociedade não é uma coleção de indivíduos e que
qualquer ideia ou prática social não deve ser explicada em termos dos desejos
e interesses pessoais. Procurando acentuar a irredutibilidade do social e a fuga
da experiência pessoal, Durkheim elabora uma série de dicotomias que mar-
cam estruturalmente o seu pensamento e a forma como deve ser interpretada
uma sociedade. Segundo Steven Lukes (1985), a obra de Durkheim pode ser
pensada como uma reação às tendências individualistas, pessoalizantes das
sociedades modernas. Segundo Lukes, Durkheim procura responder em sua
obra justamente o que possibilita às sociedades modernas, divididas por con-
flitos de classes, de grupos, de indivíduos, isto é, sociedades engendradas pelo
individualismo, permanecer enquanto sociedades? Como pode haver socieda-
de com contradições, incoerências e fragmentações representacionais?
Para Durkheim, a resposta a essas questões deverá ser articulada em tor-
no de uma série de noções dicotômicas sustentadas pela noção de “consciên-
cia coletiva” que seria “o conjunto de crenças e sentimentos comuns à média
dos membros de uma única sociedade e que constitui um sistema com uma
vida própria” e que posteriormente é substituído pela noção de “representa-
ção coletiva”, que seria a essência da vida social. As representações coletivas
são socialmente geradas, têm origem social. O que é importante de ser assi-
nalado é que as representações coletivas têm uma realidade autônoma, elas
não se confundem com as características individuais advindas da experiência
pessoal. Segundo Durkheim, se um fenômeno tem características distinti-
vas ou sui generis, ele não pode ser explicado em termos de seus elementos
constitutivos. Assim, diz ele, “fatos sociais são sui-generis no sentido de que
não podem ser explicados em termos de fatos sobre indivíduos”. Essa é uma

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outra importante noção no pensamento de Durkheim: a de “fato social”. A
qual deve ser estudada “como coisa”, isso é, deve ser vista como realidade ex-
terna ao indivíduo e independente do observador. A crítica de Caille (1998)
é capital para se entender a dimensão cultural da definição de fatos sociais
enquanto coisas e as implicações para a conceituação do individual e do pes-
soal na obra de Durkheim:
os fatos sociais não podem mais ser realmente considerados como coisas, uma vez
que (...) a oposição entre coisas e pessoas só tem sentido e alcance aos olhos do nosso
Direito moderno, e que em toda parte, fora dele, é a mescla das dimensões reais e
pessoais que predomina.

Marcel Mauss (2004), reconhecendo que o indivíduo era uma percep-


ção do individual pelo ocidente, prefere estabelecer que embora o indivíduo
seja uma entidade universal, ele é por definição constuído culturalmente.
A noção de pessoa maussiana deriva dessa percepção sobre o individual ou
como forma de ultrapassar o individual no sentido de que até mesmo o indi-
vidual é constituído cultural e socialmente. Assim, na acepção maussinana, o
individual ou o indivíduo se opõe à pessoa, no sentido de que o conceito de
pessoa parece ser a fórmula encontrada por Mauss para elevar o individual a
uma categoria universal e, consequentemente, a uma formulação represen-
tacional. Essa percepção crê no indivíduo enquanto uma entidade que pode
ser conceituada culturalmente dando origem a noção de pessoa que é mais
uma percepção do indivíduo “cross-culturall” do que uma conceituação sobre
o pessoal ou a pessoalidade.
Vemos assim que o conceito clássico de sociedade (Strathern, 1996)
era definido como anti-individual na forma como representava o social. Nes-
sa formulação, o individual era algo a ser superado, ultrapassado, quando se
buscava uma representação modelar dos valores sociais. Parafrasendo Stra-
thern no que se refere à sua conceituação sobre relação social e socialidade
(1996), o individual pode ser considerado um dos a priori kantianos, uma
vez que sua conceituação era construída a partir do bias cultural ocidental
que associava a ideia de individual à de indivíduo, derivando uma percepção
própria do pessoal na construção dos sistemas culturais. Dumont (1978) foi,
sem dúvida, um dos primeiros a denunciar esse viés ocidental na percepção
do individual, mas sua conceituação sobre a sociedade moderna contribuiu
também para pôr em segundo plano a preocupação sobre a conceituação
do pessoal. Para Dumont, o individualismo seria a expressão máxima de
distintividade, da incessante criação de diferenças conceitualizável apenas

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na sociedade moderna, pois se apoia justamente na ideia, também moderna,
de que existe um substrato comum de não-distintividade, quer dizer, uma
ideologia igualitária que produz um sentido de partilha de mesma essência,
embora as aparências sejam por necessidade e por definição transformáveis.
Essa percepção da ideologia moderna do individualismo foi construída qua-
se como em negativo da hierarquia das castas na Índia, transformando-se em
hipérbole do que seria a sociedade tradicional, o holismo ou o que muitas
vezes foi compreendido como um mundo sem espaço para a conceituação
do pessoal e do discreto ou em que o singular e a experiência pessoal eram
apenas considerados como fatos da “parole” e não da “langue”; eram apenas
acontecimentos, e não estrutura. Dumont (1978), seguindo os passos de
Mauss (2004), trata do indivíduo ou da individuação enquanto uma entida-
de universal restringida a concepções culturais, e por consequência o indivi-
dualismo seria a concepção cultural do pessoal no ocidente. Circunscrito à
concepção cultural do que seria o pessoal, sua reflexão se situa mais no plano
das categoriais do espírito humano, suprimindo ou reduzindo o pessoal e o
processo de singularização a um papel secundário na significação social.
Ainda hoje, na conceituação sociológica contemporânea, percebe-se o a
priori do indivíduo moderno rondando essas reflexões. O conceito de “theory
of structuration”, de Giddens (1979), ou o de “habitus” formulado por Bour-
dieu (1977: 78) refletem sobre a importância da conceituação do pessoal na
cultura, sociedade ou numa estrutura social. A própria procura para provar a
existência da vida social para além dos assim chamados “random individual
acts”, buscando-se determinações de forças sociais que estariam em primeiro
plano de interesse, revela, por si só, o lugar do pessoal nesses esquemas con-
ceituais. Mesmo que se reconheça, como fazem Giddens (1979) e Bourdieu
(1977), a agência humana (human agency) interagindo e transformando a
estrutura social, os atos e a experiência pessoal são pensados a partir de um
bias da própria cultura do individualismo moderno, refletidos como “randon
acts” ou como “individual agents” reproduzindo uma estrutura ou mesmo
transformando-a. Os atos e os pensamentos advindos da experiência pessoal
estariam sempre orientados para a formação de “valores sociais”. As ações do
dia-a-dia reforçariam e reproduziriam as expectativas do que os sociólogos
designam por forças sociais ou estrutura social.
Portanto, vemos, nessa rápida digressão a algumas passagens da teoria
social, que o pessoal tomado como sinônimo do indivíduo foi de certo modo
negligenciado enquanto podendo ter um rendimento conceitual positivo na
formulação das teorias, uma vez que a orientação da teoria sociológica bus-

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cava muito mais a ideia de coletividade como sinônimo de sociedade, cons-
truída enquanto tribos, castas, grupos corporados que excluíam experiência
pessoal ou a subsumiam enquanto uma determinação sociocultural (Rap-
port & Overing, 2000). A crítica ao conceito de sociedade (Stra-
thern, 1996) e à representação (Rabinow, 1999; Rapport, 1994)
produz, por sua vez, a crítica à ideia do indivíduo enquanto entidade discreta
(aqui, no duplo sentido da palavra de discrição e comedimento em relação
às regras sociais). Assim, iluminam-se outras áreas sensíveis de significação,
como o pessoal, o singular, as emoções e as subjetividades daí derivantes
(Rapport, 1994). Nesse contexto, a experiência pessoal pode suportar um
discurso possível sobre a cultura e a sociedade. Pode-se pensar a pessoalidade
enquanto uma construção de subjetivação singular de experiências, de mo-
mentos que não se repetem e cuja interação e pensamento sobre o social se
realizam por e através da forma de subjetivar essa pessoalidade.

A individuação como valor


Os Pirahã são 250 pessoas, falantes da língua Mura, que habitam várias
aldeias espalhadas nas margens do rios Maici e Marmelos, na amazônia me-
ridional brasileira.
Essa caracterização etnográfica enfocará apenas o que considero crucial
para se pensar a produtividade da conceituação sobre o pessoal (Gonçal-
ves 1993, 2001), como a singularidade corporal associada à concepção, os
nomes próprios, as transformações do corpo e a emergência de seres singu-
lares no cosmos, como os abaisi, os kaoaiboge e toipe, os sonhos, o xamanis-
mo e as narrativas do xamã, as relações de predação e contra-predação dos
animais, vegetais e humanos. Aparentemente díspares, esses temas apare-
cem inter-relacionados, demonstrando a importância do acontecimento, do
evento e da experiência na cosmologia Pirahã.
Iniciemos pela ideia de singularidade corporal associada à concepção.
O simbolismo do corpo entre os Pirahã segue de perto a concepção en-
contrada em muitas sociedades ameríndias: o corpo é pensado enquanto um
“envelope”, aquilo que envolve princípios vitais, no caso Pirahã, o sangue e
o sêmen. O significado da palavra ibiisi (“invólucro do sangue”) parece asso-
ciar o sangue a uma determinada forma corporal. Embora os animais portem
sangue (bii), não são classificados como ibiisi. Ibiisi são seres que têm uma
forma corporal específica (referida como completa ou perfeita).

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O ato da concepção, aquilo que possibilita a geração de um novo ibii-
si, está dissociado da relação sexual. Quando uma mulher percebe que está
grávida, e o sinal mais evidente é a interrupção da menstruação, ela procura,
juntamente com o marido e parentes próximos, recapitular os episódios re-
centes que poderiam ter ocasionado a concepção. O momento da concepção
é descrito como um “susto”; a expressão maiaga (medo) corresponde à situ-
ação em que ela se surpreende com algo, provocando, assim, a concepção.
Os “sustos” são suscitados por situações bastante diversas: ora um peixe que
pula da água numa viagem de canoa, ora uma fruta que cai de uma árvore,
por vezes um animal que correu subitamente em sua direção, uma picada
de marimbondo, um alimento quente que lhe queima a mão, um galho de
árvore que despenca, um tiro de espingarda, um prato que se quebra ao cair.
Depois da concepção, da instauração da possibilidade de surgimento de um
novo ibiisi no mundo, inicia-se o processo de fabricação do corpo, quando o
intercurso sexual colaborará para a sua produção.
Todos os ibiisi tiveram um momento inicial, aquilo que possibilitou sua
existência, o que “assustou” uma mulher, fazendo-a conceber. Dessa forma,
qualquer pessoa sabe o que permitiu a constituição de seu corpo e pode des-
crever o evento e a coisa que o produziu. O evento inicial será associado a um
nome que a pessoa portará e que irá descrever aquilo que desencadeou sua
concepção: Iahau (boto) é produto do “susto” que o boto deu em sua mãe;
Toiapa (sucuriju) é o nome de um rapaz cuja mãe teve medo de uma sucuriju;
Pa”ai (jatuarana) é o nome de um corpo resultante da relação maiaga (susto)
que uma mulher estabeleceu com um peixe jatuarana. Os nomes ibiisi (kasi
ibiisi – “nome de corpo”) demarcam o momento da concepção de um corpo;
nomes que as pessoas carregam por toda a vida, até a extinção de seus corpos.
Os ibiisi, por serem produtos de uma singularidade, de um evento único
que envolveu não uma espécie animal ou vegetal, mas indivíduos específicos
de uma espécie, numa situação própria vivida por uma mulher, são, assim,
seres particulares dotados de uma singularidade característica inscrita nos
seus corpos. O conceito ibiisi não simplifica ou homogeiniza uma classe de
elementos (corpos) que se assemelhem; aponta mais para as diferenças do
que para as semelhanças. Cada ibiisi é um ser particular, produto e resultado
de um acontecimento, sempre diferente. Uma forma de conceituação de um
“totemismo individual”, que combina um indivíduo animal ou vegetal com
uma pessoa (Lévi-Strauss, 1975: 26).
Cada pessoa pode ser considerada um ícone de uma relação específica.
Além de o feto marcar uma relação específica através de sua fabricação pelos

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genitores, o feto é produto direto, um ícone da relação da mulher com os
elementos que produzem o susto, no sentido de que o evento enquanto par-
ticularidade funda a possibilidade do corpo.
É nesse sentido que se explica o horror à gemeleidade, pois um mesmo
acontecimento resultando em corpos idênticos implicaria nomes idênticos,
abolindo, assim, qualquer possibilidade de diferenciação. Ser ibiisi é acima de
tudo ser produzido por um acaso, por um conjunto de diferenças, por situações
que não se repetirão da mesma maneira no tempo e no espaço. Ser ibiisi é ser
um acidente, um ser único que, portanto, só existe enquanto singularidade.
Não basta que haja o susto, o estado de medo (maiaagá – mai, medo;
aagá, ter) para que a mulher conceba; é necessário uma condição prévia. A
primeira menstruação é o sinal de que a mulher já pode conceber. Os Pirahã
dizem que a mulher só produz ibiisi porque sai sangue de sua vagina. Essa
condição feminina indicada pelo sangramento parece ser o que assegura a
produção e reprodução dos corpos. É particularmente significativo o fato de
o momento mais propício ao ato da concepção, do acidente na interação da
mulher com o mundo, ser aquele em que ela está menstruada.
Na fabricação do corpo, o sangue da mulher participa na produção de
outros elementos: placenta (apaohoe) e cordão umbilical (pacu). A placenta
é concebida como o companheiro do ibiisi, aquilo que morre para que ele
possa existir. Após o nascimento do ibiisi, a placenta e o cordão umbilical
são postos para secar ao sol; são, então, enterrados no mesmo local em que o
ibiisi nasceu. A placenta e o cordão umbilical se transformam em kaoaiboge
e toipe, isso é, tem o mesmo destino dos ibiisi, dos corpos. A placenta é con-
cebida como um produto da mulher, do seu sangue, um excesso que quase
chegou a se tornar corpo, como enfatizam os Pirahã. Por isso todos os ibiisi
estão irremediavelmente associados à sua placenta. O enterro da placenta é o
evento que marca o nascimento do ibiisi e aquele que liga uma pessoa ao lo-
cal de enterramento de sua placenta, ao mesmo tempo que produz uma ou-
tra singularidade no ibiisi. A maneira como os Pirahã constroem a pergunta
“Onde você nasceu?” revela a importância da placenta e o modo como a
percebem: “Higoo apaohoe hoikaiipa” (“Onde foi enterrada sua placenta?”).
Ainda no contexto dos nomes de corpo, temos uma maior singulariza-
ção quando um nome é atribuído a uma parte específica do corpo: ao pênis
e à vagina. Os cônjuges efetuam essa particularização atribuindo um nome
para o sexo do parceiro. Assim, antes do casamento, apenas nome de corpo,
depois, nomes de sexo: nomes de vulva e nomes de pênis. Esses nomes se
modificam a cada casamento; singularizam não somente o ibiisi, mas as re-

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lações estabelecidas por ele. Os nomes de sexo que um ibiisi porta contam
a história de suas relações sexuais e, consequentemente, de seus casamentos,
dos vários parceiros que teve durante a vida.
Uma outra forma de marcar a singularidade do ibiisi é o modo como
descrevem as prescrições alimentares. Ao invés de demarcarem fronteiras en-
tre o comestível e o incomestível, entre classes de pessoas que podem ou não
comer determinados alimentos, relacionam individualmente cada pessoa à
determinadas prescrições, construídas a partir da experiência em comer ani-
mais e vegetais específicos.
Os Pirahã admitem que são uma coletividade de corpos (ibiisi) denomi-
nados Hiaitsíihi, um tipo específico de corpo que habita o patamar interme-
diário do cosmos. Nos demais patamares do cosmos existem outros corpos,
ibiisi, com outras designações. Não obstante a singularização dos ibiisi hait-
siihi como um tipo de corpo que habita o cosmos, os Pirahã concebem eles
próprios, os Hiatsíihi, como uma soma e mistura de singularidades, resultan-
tes da mistura de vários outros corpos (ibiisi) que vivem no seu patamar: os
índios Torá, Tenharim, Diarrói, Kwahib, Mura e os brancos. Por conseguinte,
se ser Hiaitsíihi evoca a ideia de semelhança, de fazer as coisas de um determi-
nado modo, evoca também uma mistura de singularidades.
Vejamos agora a singularidade do abaisi, ser que habita os outros pata-
mares do cosmos. Há uma vinculação entre os ibiisi e os abaisi: estes são, na
verdade, produzidos a partir de alguma interferência nos corpos dos ibiisi.
Quando o ibiisi sofre um dano, algo que altera sua forma corporal, surge,
então, o abaisi um ser que guardará para sempre as características corporais
alteradas naquele corpo. Essa alteração da forma corporal do ibiisi gerando o
abaisi pode ser descrita enquanto um processo de transformação, entendido
aqui como transgressão, desordem e, ao mesmo tempo, criação. O abaisi é,
portanto, o resultado de uma alteração acidental na forma do ibiisi, do corpo.
Nesse sentido, os abaisi resultam de uma transformação do corpo, corres-
pondem a uma alteração física produzida por um acontecimento que lhes
deu origem. Todas as vezes em que as pessoas se defrontam com um abaisi,
indagam: “hi goo kaisigiai hi” (“Qual é o seu nome?”). Querem saber o nome
para identificar sua origem e o evento responsável por sua produção. Assim,
o abaisi Iabuhua tem o pé curto; Ooge tem a mão grande. A maioria dos no-
mes de abaisi descrevem seus defeitos físicos. Evidencia-se a mesma lógica do
acontecimento como necessária para a conceituação dos seres ibiisi e abaisi.
Os abaisi encarnam ao mesmo tempo a fórmula da extrema singularidade
e da multiplicidade, uma fusão entre o indivíduo e a classe. Todos os indiví-

146
duos que pertencem à mesma classe abaisi são, por definição, iguais, têm uma
mesma marca que os particulariza. Todos os indivíduos da classe Pahaibiihi
são altos e têm o cabelo preto. Os Tahoe são altos e têm o cabelo vermelho,
e cada um se apresenta a partir de suas singularidades corporais. Além de os
abaisi serem descritos através de suas marcas corporais e pelo lugar que habi-
tam no cosmos, são também particularizados pelo tipo de bebida e comida
que consomem, pelos seus adornos corporais e pelas canções que entoam.
A primeira vez que uma pessoa recebe um nome de abaisi é sinal, tam-
bém, de que está ganhando a possibilidade de não ser apenas corpo (ibiisi).
Com o nome de abaisi, o ibiisi adquire, ainda em latência, a capacidade de
se transformar em kaoaiboge e toipe. Os nomes de abaisi são achados pelos
xamãs em seus contatos com os abaisi e, posteriormente, fixados pelo cônju-
ge. Cada casamento produz novos nomes de abaisi.
Os seres Kaoaiboge e Toipe são as transformações póstumas, destino dos
Pirahã. Os Pirahã descrevem o processo de transformação em kaoaiboge e toipe
da seguinte forma: cada nome de abaisi que um corpo (ibiisi) porta dá origem
a um kaoaiboge e um toipe. Os ibiisi ganham muitos nomes de abaisi durante
sua existência (a cada casamento, por exemplo) e, em função de cada um,
podem se transformar. Assim, um ibiisi se prolonga em múltiplos kaoaiboge e
toipe. Desde o momento em que um ibiisi tem um nome de abaisi, os xamãs
passam a acompanhar as transformações e as andanças pelo cosmos de seus
kaoaiboge e toipe. Os kaoaiboge e toipe, em estado de latência, liberam-se nos
momentos em que o ibiisi está no estado de não-consciência, ou seja, enquan-
to está dormindo ou quando está acometido por uma grave doença.
É o sono, e não o sonho, que se torna responsável pela liberação dos kaoaibo-
ge e toipe. Enquanto as pessoas estão dormindo, seus kaoaiboge e toipe vagam pelo
patamar Pirahã, interagindo com os demais kaoaiboge e toipe dos outros ibiisi.
Nessas ocasiões, estão sujeitas a sofrer ações capazes de apressar suas transforma-
ções, até chegarem ao último estágio: assumir a forma de uma onça imortal.
Quando o ibiisi morre, os kaoaiboge e toipe, que ainda não se transfor-
maram completamente, que não viveram, até o fim, as suas próprias vidas
e que, portanto, estão em latência no ibiisi, são liberados definitivamente,
passando a habitar não mais o patamar dos Pirahã, mas o primeiro patamar
subterrâneo. A partir desse instante, passam a viver suas próprias transfor-
mações, seus destinos, que serão acompanhados pelo xamã. Quando o xamã
viaja para o patamar subterrâneo, entra em contato com esses seres, e muitos
deles comparecem ao patamar Pirahã.

147
O processo de transformação em kaoaiboge e toipe se dá a partir dos
nomes de abaisi que uma pessoa porta. Assim, as transformações se multi-
plicam, tornando ainda mais complexo esse sistema de transformações que
engloba a vida e a morte do ibiisi. O modo como são conduzidas as transfor-
mações desses seres acentua a importância da singularização do corpo (ibii-
si), pois na verdade um ibiisi dá origem a uma multiplicidade de singulari-
dades, os kaoaiboge e toipe se ramificam e se transformam em outros tantos
que marcam mais uma vez a história singular daquele ibiisi. Na verdade, as
transformações de um corpo, desde o ato de sua concepção e depois, dando
origem aos seres abaisi, kaoaoboge e toipe, produzem a história particular de
um corpo, o que lhe originou, seus casamentos, suas relações com animais e
vegetais e com os demais seres do cosmos.
Se é durante o sono que se dá a liberação dos kaoaiboge e toipe, quando
estes passam a construir suas histórias singulares vinculadas ao corpo que lhe
deu origem, é durante o sonho que a pessoa pode ter uma experiência que seria
como uma síntese da conceituação do pessoal. Os Pirahã não costumam con-
tar os sonhos de outras pessoas, mesmo que sejam capazes de reproduzi-los em
detalhes. O sonho é, portanto, uma experiência pessoal, a narrativa construída
fala de um ser específico que viveu aquela experiência, e a pronominalização
do “eu”, enquanto agente de uma experiência, se impõe na forma da narrativa.
Os Pirahã produzem uma narrativa na qual a experiência pessoal é central,
uma narrativa onírica pessoal que descreve relações particulares com os seres
abaisi, kaoaiboge e toipe, com os animais, com as demais pessoas, marcando
assim um momento no processo da existência do sonhador e de suas relações
com os seres do mundo conceitualizados a partir da experiência onírica.
O experimento e a experimentação fazem parte de uma epistemologia
Pirahã que valoriza o evento, o acontecimento, o estar (mais do que o ser) no
mundo. O experimento permite a criação de novas coisas: as pessoas experi-
mentam construir casas diferentes, confeccionar novos colares, pescar de uma
determinada maneira, comer alimentos que antes não consumiam. É necessá-
rio experimentar, produzir uma primeira vez, para que sejam instituídos uma
forma e um modo de se fazer as coisas. O “experimento” permite a permanente
criação e a invenção do cosmos a partir de pontos de vistas particulares. A for-
ma como os Pirahã engendram e constroem relações com os animais e vegetais
a partir de relações recíprocas de predação e contra-predação pode, também,
ajudar na conceituação do pessoal, uma vez que as relações dos Pirahã com
esses seres não podem ser simplesmente descritas como sendo entre humanos
e os mundos animal e vegetal, mas sim entre pessoas e seres particulares que

148
tiveram uma interação específica. É durante a sessão de xamanismo que a in-
teração ganha concretude. O xamanismo ocorre na época da seca, sobretudo
quando os Pirahã ocupam as praias que despontam ao longo dos rios Maici e
Marmelos. É realizado durante a noite, quando um dos xamãs entra na mata
e “troca de lugar” com os mortos, com os seres que habitam os demais pata-
mares do cosmos e/ou com as transformações de animais mortos pelos Pirahã.
O resultado dessa “troca de lugar” engendra uma série de acontecimentos, que
estruturam um discurso singular referido àquele momento particular e único
de sua execução; discurso esse que narra a história de um episódio.
O xamanismo Pirahã dá pouca ênfase à cura e se ocupa mais em descre-
ver, de um ponto de vista particular, encontros específicos. Deu-se, assim,
no caso de uma taquara que foi arrancada para servir de ponta de flecha e
para a fabricação de colares. Passados alguns dias, a taquara transformada
compareceu à sessão de xamanismo:
– Algum Pirahã me arrancou e me cortou. Eu vim atrás dele agora. Disse
para não mexer comigo; não fazer flecha, não fazer colar. Eu vou furar aquele
que me cortou. Quem me trouxe, quem me arrancou? – Perguntava a trans-
formação do ser da taquara.
O mesmo se passou em outra sessão ritual, quando um tracajá e uma
anta compareceram transformados, querendo se vingar daqueles que haviam
iniciado uma ação contra eles. Vejamos:
– Eu sou aquele tracajá que Hiabi matou e comeu; virei kaoaiboge: sou baixo
e ando sobre dois pés. Cuidado comigo porque sou forte, sei brigar. A anta vem
atrás de mim, vocês a mataram também. Agora ela é kaoaiboge.
Chegou a anta kaoaiboge e disse:
– Meu nome é Aiaitaube. Este é o meu nome. Chega de me comer, eu
sou corajoso, eu quero brigar. Aquele que me matar vai defecar igual a mim
e, por isso, vai morrer. Agora eu vou dormir.
É importante salientar que o próprio discurso produzido na sessão de
xamanismo põe em evidência o encontro de diferentes percepções sobre o
cosmos e, por isso, é um momento de interação criativa, por excelência. As-
sim, o xamanismo é o espaço de criação e de fabulação não menos conceitual
porque individualizado. As sessões descrevem acontecimentos particulares,
elaborações específicas de determinadas situações vividas pelas pessoas e de
suas ações no mundo que produzem os seres que comparecem às sessões.
O xamã é aquele que “fala” e também aquele que “conta”, e o verbo
“ahoa empregado para sua atuação tem este duplo significado, o de falar e
contar. O xamã é quem enuncia um discurso sobre a cosmologia. Porém,

149
discursos distintos que assumem diferentes percepções. Enquanto os seres
do cosmos estão no patamar Pirahã durante a sessão do xamanismo, o xamã
“troca de lugar” com eles e passeia por “outras terras”. Nesse contexto, o
xamã presentifica literalmente a percepção dos demais seres e, é dessa pers-
pectiva, dos abaisi, dos kaoaiboge, dos toipe, dos animais que o cosmos é
recriado na sessão de xamanismo. Destaco aqui que a noção de perspectiva e
de ponto de vista (Viveiros de Castro, 1996; Lima, 1996), mais do
que a de perspectivismo, parece ser fundamental na forma como os Pirahã
conceituam o mundo, uma vez que se trata, de pontos de vista particulares,
ou melhor, ponto de vista literalmente “encorporados”.
Se o xamã Pirahã é de fato um tradutor, no sentido de que totaliza os
pontos de vistas dos seres do mundo a partir de seu próprio ponto de vista
sobre o mundo, torna explícitos, na forma que apresenta o mundo, os pro-
blemas da tradução. Assim, a tradução que faz é sua própria conceituação
pessoal, baseada em sua experiência; uma pessoalidade que implica tornar
essa traduação radicalmente singular (Carneiro da Cunha, 1998).
Depois da sessão, o xamã assume sua própria percepção do cosmos, a
do ibiisi, do ser humano, quando então enuncia o discurso sobre o que pre-
senciou nos demais patamares do cosmos. Conta o que viu nas outras terras.
Assim é que se constrói o conhecimento e são difundidas as informações. O
discurso após a sessão se constrói a partir de comparações, do “parecer”, cons-
truindo ligações entre o seu patamar e os demais, entre os distintos seres que
os habitam. O xamã conta o que viu, narra sua experiência, descreve o que
presenciou, as paisagens e os seres. A descrição dos patamares nunca se com-
pleta, está sempre à espera de outras informações para detalhar um ponto ou
aprofundar um tema. Assim, não há descrições prontas sobre cada um dos pa-
tamares; ao contrário, elas variam conforme o narrador. O discurso do xamã
após a sessão nada mais é que a conceituação do pessoal, engendra um ponto
de vista particular sore o mundo. O “experimento” e a ideia de “parecer” ex-
pressam uma determinada forma de criar pessoalidade na descrição dos pata-
mares. O parecer opera por comparação entre as coisas e por isso depende de
quem estabelece a comparação. O “parecer” põe em relação todos os elemen-
tos presentes no cosmos, evidenciando um modo singular de o pensamento
apresentar o mundo em que tudo se “parece” porém nada é exatamente igual:
a areia da praia é grossa e “parece” farinha; a areia da praia é preta e “parece”
café; a nuvem “parece” papel; a água de cima é grossa e “parece” mel.
Forma privilegiada de expressar as ideias, o “parecer” permite assim uma
apresentação discreta do cosmos, em que palavras como comprido (pi”i),

150
curto (tseioíhii), estreito ou pequeno (“oíhi/kóíhihi), fino (“aaíbi), grande
(“ogií), grosso (ibigái) abundam, destacando a multiplicidade de suas formas
e a singularidade de seus personagens e de suas paisagens. Assim, os animais,
a vegetação e os seres dos demais patamares do cosmos são distorcidos, redu-
zidos, aumentados, prolongados, estendidos e transformados.
Em suma, nessa acepção, a cosmologia surge conceituada a partir de
pontos de vistas particulares, o dos xamãs, que produzem significados basea-
dos em suas experiências, criando valores novos e interpretações sem, neces-
sariamente, excluir incoerência e contradições de seus discursos. Penso que o
que chamamos de cosmologia é somente possível de ser apreendida a partir
dessa conceituação sobre o mundo em que o pessoal e o singular têm um
papel preponderante.

Conceituando o pessoal e a pessoalidade


Penso que essa forma de apreender e apresentar os valores, as noções e os
conceitos a partir do singular, conceituando o pessoal, ultrapassa o material
Pirahã e vai ao encontro a outras formas amazônicas de construir e pensar a
experiência, o acontecimento, o evento e a individuação.
No caso Piaroa, por exemplo, o ruwang, ao construir narrativas parti-
culares, como a que explica que a doença de um homem foi produzida pelo
contato com a urina do queixada enquanto ele tomava banho, acentua a
relevância de um ponto de vista particular, do qual provém seu poder e seu
efeito (Overing, 1995). Do mesmo modo, os Piaroa declaram essa inten-
ção de conceituar a partir do pessoal e do singular quando atribuem que as
coisas feitas por uma pessoa são seu “thought”(a”kwa), e por essa razão as coi-
sas funcionam: um pote pode cozinhar, uma arma pode matar e até mesmo
a criança é um “thought” dos seus pais (Overing, 1996). Assim, é no coti-
diano, através desses “atos pessoais”, que se produz um sentido para as coisas,
na forma como são referidas a um ato particular que envolve um criador e a
própria criação, isso é, o momento constitutivo de sua pessoalização.
A recorrência da evocação das “estruturas performativas” de Sahlins
(1987) para a paisagem amazônica chama a atenção, mais uma vez, para a
importância de os atos criarem relações, no sentido de que os atos (predação
ou produção) fazem com que surjam sujeitos, pessoalizados, singularizados
pelos próprios atos que lhes deu origem. As coisas e os seres são criados não
simplesmente por relações, mas por atos apropriados. (Overing, 1996).
Por isso a importância do cotidiano e das relações íntimas, carregadas de

151
pessoalidade, que são capazes de engendrar relações derivadas de atos que
produzem singularidades e pessoalidade, criando a vida social através da ex-
periência. Por isso mesmo o parentesco amazônico pode ser percebido lite-
ralmente como um sistema de subjetividades (Gow, 1997), uma vez que o
parentesco é ao mesmo tempo produto e produtor da história.
Essa mesma percepção talvez possa ser estendida para a conceituação dos
objetos na Amazônia. As pessoas empregnam as coisas de pessoalidade (“exis-
tencialidade”) no momento mesmo de sua fabricação. Para os Pirahã, a palavra
kaisai (kai,fazer; sai,nominalizador: kaisai = fabricador) é usada no contexto
de fazer uma criança ou fazer objetos. Desse modo, Kaisai, o fabricar, implica
na ideia de impregnar o que é produzido, uma consubstancialização que pro-
duz corpos ou objetos. E não seria por outro motivo que os Piaroa dizem que
os “thoughts” produzem também crianças (Overing, 1997).
Desse modo, os objetos acumulam, via seu criador/possuidor, um quan-
tum de pessoalidade, já que está referido a um sujeito que lhe deu “vida”,
“existência” e, talvez, seja por este motivo que são destruídos quando da mor-
te de seu criador/possuidor. Deixam de ter existência quando não se referem
mais àquele que lhe empresta pessoalidade. Se na Melanésia as coisas são o que
“embody the relational capacity of persons” (Weiner, 2001: 4), isso é, sendo
parte das pessoas podem ser destacadas (detachable) e quando vão em direção
a outras pessoas, via troca, guardam sua condição de parte da pessoa que a
possuía, o que faz do próprio ato da troca nada mais do que bens que conec-
tam pessoas e fazem relações. É nesse sentido que Wagner (1991: 165) atribui
aos bens fabricados/possuídos o valor de serem “relacinais e implicados na
congruência que sublinha o refazer da forma humana, sentimento e relações”.
Strathern acentua que para os Melanésios o importante é a “capacidade de
relações e não os atributos das coisas”(Strathern, 1988: 179). A pessoa é
constituída por um compósito de relações, ultrapassa as fronteiras do corpo,
constituído enquanto uma ideia de unidade e, assim, elas e os objetos seriam a
objetificação das relações que uma pessoa engendra. Por isso, a pessoa, “sendo
múltipla, é, também, partível, uma entidade que pode ser disposta de parte na
relação com o outro”(Strathern, 1988: 185). A caracterização da socia-
lidade Melanésia, fundada numa determinada concepção do que seja relação,
produz uma pessoa partível, um “divíduo” relacional.
Da mesma forma que a ideia do “dividual” na Melanésia, a subjetivação da
pessoalidade na Amazônia acentua, também, a essência relacional de se cons-
truir a socialidade. Porém, na Amazônia a relação é o produto direto da possi-
bilidade de pessoalização, ou seja, de se empregnar algo (pessoas ou objetos) de

152
subjetividade, de torná-los não apenas sujeitos genéricos, mas pessoas singula-
res subjetivadas, o que seria a garantia e a possibilidade de uma relação.
Se a máxima amazônica é tornar os mortos em outros (Carneiro
da Cunha, 1978), essa transformação exprime a importância da dessub-
jetivação de uma pessoalidade. A forma de canibalismo funerário, a ideia de
comer por compaixão, analisada por Conklin entre os Wari, acentua o cará-
ter pessoalizado daquele ser morto, enfatizando que não se está comendo um
corpo humano genérico mas um ser singular, que o ato da ingestão retira sua
subjetividade pessoalizada, uma forma de “d-existencialização”, cujo proces-
so engendra o processo de esquecimento baseado na destruição de sua subje-
tividade pessoal no mundo. Destruída sua pessoalidade, retirada sua subjeti-
vidade, esse morto deixa de ser lembrado, pois sua memória personificaria a
todo momento aquela singularidade. O processo de “d-existencializar” uma
singularidade subjetiva pode ser percebido na forma como se expressa um
informante de Conklin quando associa o enterramento à tristeza. O enterra-
mento em oposição ao canibalismo funerário seria o ícone sempre presente
do morto, o que lhe permitiria ser lembrado, enquanto a destruição do corpo
pela devoração é o que permite o esquecimento (Conklin, 1995: 88).
Taylor (1993: 654-5) aponta para o paradoxo proposto entre o lembrar
e o esquecer o morto na Amazônia e sua vinculação com processos de pes-
soalização: ao mesmo tempo que o morto permanece pessoalizado, o morto
é “des-lembrado”(disremebering) pelos vivos, que suprimem seu nome, sua
imagem e sua história. O morto deve deixar de ser familiar para ocupar um
outro lugar, o de parceiro social.
A noção de esquecimento é central para que o morto possa ser lembrado
como um parceiro social e não uma pessoa singular vivente. O que parece
ser crucial na argumentação de Taylor é que tanto o esquecimento quan-
to a lembrança apontam para conceituações de pessoalidade, uma vez que
o morto, por seu esquecimento, não é posto numa categoria anônima de
“membros do clã” por exemplo e sua lembrança não produz um “herói histó-
rico” ou um exemplo. A pessoalização está presente em ambas as formas de se
proceder, apenas o processo de des-lembrar ou esquecer d-existencializa uma
imagem e, por conseguinte, uma presentificação de sua pessoalidade através
do seu nome, de sua experiência pessoal, de sua história. Neste novo registro,
o morto pode se transformar, passa a ser um outro, porém, não menos pesso-
alizado por isso, que atua em um outro registro de relações.
O problema do esquecimento do morto para os Pirahã foi formulado a
partir da morte de três pessoas numa família: primeiro a mãe, depois o filho

153
pequeno e posteriormente o pai. Uma cadeia de mortes produzidas pelo
não esquecimento. Depois da morte da mãe, o bebê não conseguia esquecer
dela e morreu de tristeza, e seu pai, mais tarde, morre também, porque não
conseguia esquecer de ambos, filho e esposa mortos. A lembrança presentifi-
cava o morto, tornando-o perigoso, atentando contra a vida daqueles que se
lembravam dele. Nessa acepção, a lembrança dos mortos pelos vivos é peri-
gosa, como se anunciasse sua presença entre os vivos e não permitisse que se
transformasse em outras formas que poderiam manter contato com os vivos
em outra base de vínculo em que a transformação kaoaiboge e toipe aponta
para transformações corporais e estados de ser distintos dos viventes, embora
ainda pessoalizados e referidos àquele corpo vivo que lhe deu origem.
A subjetivação na Amazônia, construída conceitualmente a partir das
noções de perspectivismo (Viveiros de Castro, 1996) e de animismo
(Descola, 2005), acentua que os animais são concebidos ou tornados su-
jeitos, o que qualifica uma possibilidade de relação com os humanos. No caso
Pirahã, a pessoalidade é gerada a partir de processos que produzem existencia-
lidade, através da experiência, das coisas e dos seres. Nesse sentido, não se tra-
ta de apenas uma espécie (animal ou vegetal), humanos ou objetos enquanto
sujeitos genéricos, mas sim processos de criação e destruição (transformação)
que produzem subjetividades pessoais (Descola, 2005: 178). Assim, não é
o tapir em geral que produz malefícios mas um tapir específico que fez parte
de uma narrativa particular, que fez parte de uma experiência, foi caçado ou
morto por alguém em particular. Do mesmo modo, uma flecha ou um arco
está impregnado de existencialidade, no sentido de que é produto de uma in-
terferência pessoal que lhe dá um sentido próprio, retirando-o de uma noção
de espécie genérica, ou sujeito genérico, atribuindo-lhe um sentido de subje-
tividade pessoal relacionável. Um ponto importante é que se o que é ingerido
deve ser de-subjetivado (Fausto, 2002), a retirada de seu aspecto subjetivo,
de agente, enfatiza por outro lado um ato particular, a predação, um encontro
específico que produziu uma pessoalidade em que uma singularidade predada
ganha existencialidade. Dessa forma a predação não é um ato genérico contra
animais, mas um ato pessoal que singulariza aquele ser particular que ganha,
por sua vez, uma força reativa. A ética alimentar Pirahã, quando privilegia
os peixes em geral e outros animais com pouco sangue, está de algum modo
conceituando genericamente a virtualidade da subjetivação desses seres e o
seu perigo, mas ao mesmo tempo conceitua o ato pessoal do predador como
aquele que produz a contrução da pessoalidade ao instaurar regimes de subje-

154
tivação, o que resulta, por sua vez, em regimes de relações construidas a partir
de atos singulares derivados da experiência pessoal.
Parece que a relação entre sujeito-objeto não é evidente nesse contexto,
uma vez que a virtualidade conceitual, o a priori, é sempre a relação entre
sujeitos. Nesse sentido, pode-se afirmar com Weiner que “subject-object re-
lationships do note exhaust our ways of beig-in-the-world” (200: 78) e que este
valor do ser no mundo deriva da experiência e da forma de subjetivação e
conceituação do mundo.
Retomo aqui um problema proposto por Thorstein Veblen (1914: 58-9)
revisto por Diggins (1977: 129) quando discute o animismo e a origem da
alienação. Veblen aponta para duas formas diferentes de se construir a rela-
ção quando se parte de duas concepções distintas de formular a questão em
relação às coisas (animais, vegetais, objetos), ou seja: “What can I do with it?”
ou “What can it do on its own?”. Duas formas de se construir uma relação
social: as coisas como apenas efeito de uma ação humana ou as coisas como
sujeitos na interação com os humanos. A segunda alternativa, considerada
por Veblen como a forma animística de construir relação social, enfatiza o
aspecto de relatedeness do animismo já apontado também por Bird-David
(1999). Em um universo povoado virtualmente por pessoas (humanos, ani-
mais e coisas), o que existe é um mundo relacional que somente pode entrar
em operação no nível da experiência. Se a indistinção é generalizada, a dis-
tintividade e a singularidade são garantidas pela experiência que subjetiva
uma pessoalidade apontando não para a possibilidade da relação social entre
pessoas e coisas, mas para a qualidade dessa relação social, qualidade que é
conceitualizada a partir de uma experiência, do ser no mundo, que pessoali-
za e qualifica os sujeitos que interagem nesse mundo. Nesse sentido não é a
condição propriamente de sujeito estendido a todos os seres que seria o sui-
generis ou a raison d”etre dos amazônicos, mas sim a qualidade dessa relação
de sujeito acionada de um ponto de vista da experiência que constitui sin-
gularidades subjetivadas e, portanto, relacionáveis. Em suma, o processo de
othering (alteração), tornar-se outro, não é uma des-subjetivação do sujeito
(Kelly, 2001) tomado enquanto categoria genérica e virtual, mas sim uma
desubjetivação de uma singularidade, de uma pessoalidade.
Taylor (1995: 206) nos adverte, a partir do material Jivaro, que a questão
da pessoalidade estaria ancorada no senso de singularidade da forma. Entre-
tanto, isto não significa que os Shuar “experienciam eles mesmos como uma
genérica singularidade”. Se a singularidade é reconhecida na forma corporal,

155
ela não dá aos Shuar subjetividade. Chegamos aqui ao problema central de
como associar pessoalidade à subjetividade. Para os Pirahã, como para mui-
tos amazônicos, a questão se apresenta a partir de lógicas complementares; se
o universo ganha sentido de semelhança e consequente subjetivação genérica
via uma substância vital (etoibii), comum a todos os elementos e seres do
cosmos, por outro lado há um acentuado esforço de se criar pessoalidade,
especiação através das formas corporais distintas no mundo (segue-se aqui o
mesmo princípio do perspectivismo [VIVEIROS DE CASTRO, 1996], que
extrai sua maior implicação de que a diferença está no corpo). No entanto,
os Pirahã acentuam que se existem seres e elementos homólogos ou análogos
(instituídos pela noção do “parecer”[igiabisai]), não existem seres exatamente
iguais. Assim, semelhança não seria o equivalente de indiferença, pelo contrá-
rio, o semelhante ou o parecido institui em nível infraestrutural a singulariza-
ção dos seres e elementos do cosmos, seguindo a máxima Pirahã de que “nada
é igual mas tudo se parece”; um sistema classificatório orientado em produzir
não apenas diferenças mas singularidades, pessoalidades. As singularidades
são produtos diretos de uma relação (os corpos e suas criações, destruições e
transformações) entre outras tantas singularidades. Nesse sentido, para se ins-
tituir uma pessoalidade é necessário um evento, uma experiência, uma atua-
ção no mundo que implica inserir a criação e destruição dos seres e elementos
em regimes de subjetividade. Portanto, subjetividade, para os Pirahã só pode
ser pensada através de sujeitos encorporados, pessoalizados. Tornar-se sujeito
não é apenas uma forma de o pensamento proceder a uma classificação, mas
uma forma de produzir uma pessoalidade a partir de uma experiência. Por-
tanto, pessoalização produz subjetivação.
Assim, o processo de pessoalização, de existencialização criando subjeti-
vação, faz com que objetos, animais, inimigos, humanos e não-humanos, se
tornem sujeitos (tomados aqui como pessoas, singularidades) relacionáveis.
Mais do que estender humanidade para as fronteiras do que seria conside-
rado não-humano, os amazônicos estariam empregnando o mundo de sub-
jetividades a partir de uma lógica da pessoalização, o que Gow (1991: 151)
precisamente denominou de “a importância das relações pessoais e da expe-
riência em uma epistemologia”. Por este motivo, é praticamente impossível
na Amazônia definir conceitos puros e inequívocos de um ponto de vista
abstrato como a conceituação de inimigo, animal, afim, parente, sujeito,
objeto, humano. É necessário, sempre, recorrer a uma forma de pessoali-
zação, particularização, para que essas entidades ganhem sentido através da
experiência. Assim, é possível perceber que para os amazônicos a questão de

156
fundo que ocupa seu pensamento e que povoa sua apresentação do mundo
é o modo como se empregna (e se retira) existencialidade às coisas e aos
seres, formas de se construir ou não relações, isso é, o modo como tornam
coisas e pessoas singulares, portanto subjetivas, através de um processo de
pessoalização que transforma afins em parentes (Overing,1975); mortos
em “outros” (Carneiro da Cunha, 1978); pássaros femininos e pás-
saros masculinos em homens e mulheres (Bealunde, 2001); parentes em
humanos (Gow, 1997); inimigos em familiares (Fausto, 2001); animais
e vegetais em sujeitos (Descola, 1986); objetos (com sua agência) em su-
jeitos (Lagrou, 2007); humanos em deuses (Viveiros de Castro,
1986). Nesse contexto, relação e subjetivação significam gerar processos de
pessoalização, de construir singularidades que dependem da experiência. As
relações sociais não prefiguram, mas são configuradas a partir dos processos
de existencialização das coisas e das pessoas ao se construirem as marcas da
pessoalidade na Amazônia.

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