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A imaginação em Bachelard: Kant e a literatura romântica

André Fabiano Voigt*

Resumo: A abordagem de Gaston Bachelard sobre o tema da imaginação, embora tenha sido
tradicionalmente aproximada às incursões do autor pela psicanálise e pela fenomenologia,
possui também grande vinculação ao debate acerca da imaginação inaugurado por Immanuel
Kant no final do século XVIII, seguido pelos escritores do Romantismo na virada para o
século XIX. A partir destes autores, o tema da imaginação deixa de ser acessório e se torna
central para pensar a produção artística – e, sobretudo, poética – no início do período
romântico, estabelecendo uma ruptura com o papel atribuído à imaginação em épocas
anteriores. Bachelard, por sua vez, leitor voraz de alguns dos clássicos do Romantismo,
retoma aspectos cruciais da imaginação romântica para montar seus trabalhos iniciais que
discutem a imaginação literária.

Palavras-chave: imaginação; Bachelard, Gaston; Kant, Immanuel; Romantismo.

1.

O número crescente de imagens colecionadas me dava a impressão de ser


imparcial, de dominar todas as minhas preferências, de saber tudo acolher.
[...] Os quatro elementos: o fogo, a água, o ar, a terra, se ofereciam como
cabeçalhos de capítulos, como títulos de livros para uma enciclopédia de
imagens cosmológicas.1

Estas palavras de Bachelard, próprias de quem olha para trás na velhice e confessa,
desesperadamente, ter uma vontade de reescrever todos os seus livros, 2 traz à tona uma
característica importante dos descaminhos de um autor-leitor em suas pesquisas: ele precisa,
em algum momento, reescrever a si mesmo.
Se, naquele momento de sua vida, reescrever todos os livros que tratam da imaginação
já não era mais uma tarefa possível, Bachelard conseguiu explicitar, por outro lado, que em
seus primeiros trabalhos acerca da imaginação – apesar de não ter defendido nenhuma tese
específica – havia um projeto: o de colecionar ao máximo as imagens poéticas, de modo a
fazer delas uma enciclopédia, formar um todo. A chamada “lei dos quatro elementos”,

*
Professor Adjunto do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Doutor em História
Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Agência financiadora: FAPEMIG.
1
BACHELARD, Gaston. Fragmentos de uma poética do fogo. São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 26.
2
Ibid., p. 26-27.
2

repetida nas introduções de seus primeiros livros,3 deixa entrever um desejo febril do autor em
colecionar imagens poéticas para, a partir daí, encontrar leis que norteariam a imaginação
literária. Entretanto, este impulso colecionador de fragmentos não poderia ser reduzido a um
simples arroubo de objetividade de um professor de filosofia da ciência – como ele mesmo
atestou 4 –, mas também, uma iniciativa de um leitor apaixonado pela literatura.
Neste momento, seria necessário perguntar: a partir de que literatura Bachelard
formula seu projeto inicial de coletar imagens literárias? Teria esta mesma literatura dado as
referências filosóficas para que Bachelard concluísse que a coleção de imagens literárias seria
o caminho que o levaria ao conhecimento das leis da imaginação?
Responder a estas perguntas afirmando que a “semente do seu pensamento está,
contudo, além no passado, na poética idealista da imaginação, que se estabeleceu durante o
período romântico” 5 seria, certamente, dar uma resposta que não satisfaz nossa curiosidade.
Até que ponto Bachelard, leitor do Romantismo, foi também um escritor que adotou um
projeto romântico? É possível afirmar que suas ideias a respeito da imaginação já tinham sido
estabelecidas pela literatura romântica? A partir destas indagações, seria preciso voltar ao
Romantismo ou mais além. Seria preciso voltar, talvez, às considerações de um dos autores
que se tornaria uma referência entre os românticos: Immanuel Kant.

2.
Hannah Arendt, em suas Lições sobre a filosofia de Kant, faz a feliz constatação que
“o papel da imaginação para as nossas faculdades cognitivas é talvez a maior descoberta de
Kant na Crítica da Razão Pura”.6 Com efeito, a imaginação (Einbildungskraft) nunca teria
sido tão enfatizada anteriormente em seu papel indispensável para o conhecimento. Kant
atribui à imaginação uma importância fundamental na composição de juízos sintéticos a
priori – os quais são o resultado da junção de dois conceitos distintos para a formação de uma
proposição, quase sempre a partir da atribuição de um predicado que não está contido no
sujeito. O próprio filósofo de Königsberg dá um exemplo de juízo sintético: na proposição
“todos os corpos são pesados”, está se atribuindo ao conceito de corpo a noção de peso, que

3
Id., A Água e os Sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 4; Id., O Ar e os Sonhos. São Paulo: Martins
Fontes, 2001. p. 8.
4
Id., op. cit., 1990, p. 25.
5
HIGONNET, Margaret R. Bachelard and the Romantic Imagination. Comparative Literature, Durham
(EUA), Vol. 33, Nº 1, p. 18-37, 1981. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/1770415>. Acesso em: 08 abr.
2009.
6
ARENDT, Hannah. Da Imaginação. In: _____. Lições sobre a filosofia de Kant. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará, 1994. p. 80.
3

não lhe é intrínseca.7


De acordo com Kant, a imaginação é a faculdade responsável pela síntese das diversas
representações dos objetos, chegando a caracterizar a imaginação como “função cega, embora
imprescindível, da alma, sem a qual nunca teríamos conhecimento algum, mas da qual muito
raramente temos consciência”. 8 Entretanto, afirma que a síntese, isoladamente, não
proporciona conhecimento. Para tal, faz-se necessário reportar a síntese a conceitos, que lhe
conferem unidade, submetendo os dados sintetizados pela imaginação ao entendimento.9
Já neste primeiro momento, é possível perceber que a imaginação ocupa no
pensamento kantiano um papel indispensável e relevante para o conhecimento, mas não é a
principal faculdade responsável pela formação de conceitos. Esta é a função do entendimento
(Verstand), o qual deve submeter os elementos sintetizados pela imaginação, de modo a
unificá-los conceitualmente. Portanto, para o Kant da primeira crítica, a imaginação deve estar
submetida ao entendimento para formar conhecimentos.
Ainda na Crítica da Razão Pura, Kant faz uma tímida separação entre imaginação
produtiva e imaginação reprodutiva. Embora caracterize esta faculdade, no todo, como
pertencente à sensibilidade – e não ao entendimento –, sua distinção entre imaginação
produtiva e reprodutiva encontra-se na constatação que, na imaginação produtiva, a síntese
está submetida a leis empíricas, não contribuindo para o conhecimento a priori. 10 Estaria
subentendida em Kant a ideia que a imaginação reprodutiva contribuiria mais para o
conhecimento a priori que a produtiva? De qualquer maneira, o Kant da primeira crítica
analisa a imaginação somente como subsidiária para a síntese intelectual, ao mesmo tempo
em que a caracteriza como faculdade totalmente dependente da percepção.
Já na Crítica da faculdade do juízo, o filósofo alemão muda sensivelmente sua
perspectiva a respeito da imaginação, em relação à primeira crítica. Se antes Kant compreende
a imaginação como uma faculdade secundária para a formação de conhecimentos a priori a
partir de juízos sintéticos, o mesmo não poderia ser dito a respeito da formação de juízos
estéticos puros – como o juízo de gosto – os quais não estão submetidos a conceitos, por não
terem aprovação universal. 11 Seguindo este raciocínio, a imaginação não terá um papel
meramente secundário para a formação de juízos estéticos, pois para operar, a imaginação

7
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001. B 10-11. Será utilizada a
paginação da obra original, em sua segunda edição no idioma alemão, conforme disposta na tradução citada.
8
Ibid., B 103-104.
9
Ibid.
10
Ibid., B 152.
11
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 133 [145].
Os números entre colchetes referem-se à paginação da segunda edição em alemão, que baseou a tradução citada.
4

12
deve estar livre das coerções do entendimento. Estando livre de se submeter ao
entendimento, a imaginação torna-se elemento fundamental na criação artística e, portanto,
uma das faculdades fundamentais para caracterizar o gênio kantiano, isto é, “o talento que dá
regra à arte”.13
Na diferenciação que Kant estabelece entre a imaginação direcionada para o
conhecimento e a imaginação para a criação artística, inaugura-se, simultaneamente, uma
superação a respeito do papel da imaginação para as faculdades humanas, nunca tratada desta
maneira por nenhum filósofo que o antecedeu. Talvez por isso, Gilles Deleuze assevera que a
conceituação da imaginação como “dimensão suplementar autônoma”, um “poder de reflexão
livre”, é um dos elementos que faz da Crítica da faculdade de juízo a “fundação do
romantismo”.14

3.
Em que sentido Deleuze teria chamado Kant de “fundador do romantismo”? É
possível identificar a noção kantiana de imaginação com o papel desta faculdade para a
literatura romântica? Talvez não seja possível transferir exatamente o debate kantiano da
Crítica da faculdade do juízo para os românticos, mas sim, perceber como Kant abre as portas
do debate acerca da imaginação, deixando para os românticos a tarefa de desmoronar a última
barreira deixada pelo filósofo de Königsberg: a de elevar a imaginação da condição de
faculdade importante para a produção artística do gênio – ao lado do entendimento, do
espírito e do gosto – para o status de base de todas as faculdades.
Na afirmação romântica da imaginação como base de todas as faculdades humanas,
delimita-se, portanto, uma ruptura parcial com a filosofia kantiana. Entretanto, esta ruptura
torna-se o elemento crucial que, ao mesmo tempo em que separa Kant do Romantismo, faz
com que todos os literatos da geração posterior tenham se inspirado nas afirmações deste
filósofo para estabelecer a singularidade de sua produção artística.
Vejamos, a título de exemplo, como alguns escritores românticos – sobretudo aqueles
que foram lidos por Bachelard – realizam as torções necessárias da análise kantiana para
caracterizar a arte romântica.
Em primeiro lugar, podemos citar Novalis, que não apenas escreveu textos poéticos,
mas também teorizou simultaneamente as condições filosóficas de seu métier. Em duas

12
Ibid., p. 162 [198].
13
Ibid., p. 153 [181].
14
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997. p. 43.
5

afirmações bastante conhecidas do autor, denota-se a relevância da imaginação como base de


todas as faculdades: “A partir da imaginação produtiva devem ser deduzidas todas as
faculdades, todas as atividades do mundo interior e do mundo exterior”15 e “A imaginação
produtiva divide-se em razão, faculdade do juízo e sensibilidade. Cada representação
(expressão da imaginação produtiva) compõe-se de todas as três, todavia em proporções,
modos e em grandezas distintas”.16
A partir destas afirmações de Novalis, a imaginação deixa de ser uma faculdade
acessória da percepção ou secundária para o conhecimento. Helga Dormann assevera que,
enquanto Kant vê a produtividade da imaginação no sintético – e Fichte no seu poder de
produzir representações – Novalis a define como a base de todas as faculdades, negando as
principais diferenças, anteriormente válidas, entre entendimento e imaginação,17 admitindo,
portanto, esta última como única potência produtiva, abarcando filosofia e poesia
conjuntamente.18 Desta forma, Novalis revoga a fronteira deixada por Kant acerca do papel da
imaginação, ao mesmo tempo em que a discute a partir dos escritos kantianos.
É possível observar esta mesma característica em outros autores lidos por Bachelard.
Baudelaire, por exemplo, em seu Salão de 1859, trata da preponderância da imaginação
criadora sobre todas as outras faculdades humanas:

Todo o universo visível é apenas um depósito de imagens e de sinais aos


quais a imaginação dará um lugar e um valor relativo; é uma espécie de
alimento que a imaginação deve digerir e transformar. Todas as faculdades
da alma humana devem ser subordinadas à imaginação, que as requisita
todas ao mesmo tempo (BAUDELAIRE, 1993, p. 99).

Esta afirmação de Baudelaire reafirma a centralidade romântica da imaginação, a


partir da qual todas as demais faculdades derivariam.
Além de Baudelaire, Jean-Paul Richter também é um autor romântico que trata da
relevância da imaginação. Em suas Preleções de estética [Vorschule der Ästhetik], encontra-
se uma classificação que o autor realiza das faculdades humanas. Em primeiro lugar, Jean-
Paul coloca a imaginação reprodutora (Einbildungkraft), ressaltando que “a imaginação
reprodutora é a prosa da produtora”.19 Em segundo, a imaginação produtora (Bildungkraft), a
qual tece maiores comentários:

15
NOVALIS Schriften. Jena: Eugen Diderich, 1907. Vol. 3, p. 375. A tradução desta citação foi extraída do livro:
BACHELARD, Gaston. A Terra e os Devaneios da Vontade. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 3.
16
NOVALIS, op. cit., p. 378. Tradução nossa.
17
DORMANN, Helga. Die Kunst des inneren Sinns. Würzburg: Königshausen & Neumann, 2004. p. 46.
18
Ibid.
19
RICHTER, Jean-Paul. Introducción a la estética. Madrid: Verbum, 1991. p. 47.
6

Mas a imaginação produtora ou fantasia é algo mais elevado; é a alma do


mundo de nossa alma, o espírito elementar de todas as demais faculdades
[...]. Se a sagacidade (Witz) é o anagrama da Natureza posta em exercício, a
imaginação produtora é o alfabeto hieroglífico que o expressa com um
número reduzido de imagens. Enquanto a experiência e as outras faculdades
não fazem mais que arrancar páginas do livro da natureza, a imaginação faz
de cada uma destas partes um todo: faz mundos completos com uma só parte
do mundo, e tudo o universaliza até o Universo infinito.20

A partir das palavras de Jean-Paul acerca da relevância da imaginação produtora, e


possível fazer duas considerações complementares: a primeira, que o autor reafirma a
centralidade da imaginação produtora como base de todas as demais faculdades; a segunda,
que se encontra na sua concepção de imaginação produtora uma capacidade de construir um
universo, uma totalidade, a partir de fragmentos, símbolos e imagens produzidas a partir da
natureza, recriando-a.

4.
Diante das afirmações destes escritores românticos, podemos traçar um paralelo inicial
entre a concepção bachelardiana de imaginação e o debate estabelecido pelos românticos. Em
primeiro lugar, todos os três autores românticos foram citados, praticamente nestes mesmos
trechos, por Bachelard em pelo menos dois de seus livros.21 Nas três citações, é possível notar
pelo menos uma característica comum a todos: a centralidade da imaginação como base de
todas as demais faculdades. Esta qualificação da imaginação como “potência maior da
natureza humana” 22, ou “faculdade hominizante por excelência”23, ou ainda, “força mesma da
produção psíquica” 24, repetida em várias obras de Bachelard, levar-nos-ia a considerar, em
um primeiro momento, que há uma consonância entre a concepção bachelardiana de
imaginação e a acepção romântica do termo.
Se formos mais adiante nesta comparação, podemos aproximar a característica mais
marcante da afirmação de Jean-Paul – ou seja, a potência da imaginação em criar um universo
totalizante com fragmentos poéticos, com símbolos que recriam a natureza – a algumas
considerações de Bachelard acerca da imaginação. A própria ideia de submeter as imagens
poéticas coletadas à “lei dos quatro elementos”, tratada anteriormente, pode ser uma

20
Ibid.
21
Bachelard cita a primeira afirmação de Novalis e a de Baudelaire em seu livro A Terra e os Devaneios da
Vontade; a citação que faz de Jean-Paul encontra-se no livro A Poética do Espaço. BACHELARD, op. cit., p.
3;40. Id., A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008 a. p. 18.
22
Ibid.
23
Id., op.cit., 2001, p. 12.
24
Id. A Psicanálise do Fogo. São Paulo: Martins Fontes, 2008 b. p. 161.
7

comparação que tornaria evidente a proximidade entre as convicções da literatura romântica e


a sua concepção de imaginação.
O próprio termo utilizado por Jean-Paul para a imaginação produtora (Bildungkraft),
embora seja diferente daquela empregada por Kant para defini-la (Enbildungskraft), possui o
mesmo radical, do qual ambas as palavras derivam: Bildung (formação). O conceito de
Bildung é, nas palavras de Hans-Georg Gadamer, um dos “conceitos básicos do humanismo”
25
, pois ele expressa, sobretudo entre autores como Wilhelm von Humboldt, um “modo de
perceber que vem do conhecimento e do sentimento do conjunto do empenho espiritual e
26
moral, e que se expande harmoniosamente na sensibilidade e no caráter.” A concepção
unificadora do ser humano na noção de Bildung é também largamente utilizada pelo
Romantismo. Jacques Rancière, em A palavra muda, sustenta que o conceito de imaginação
(Einbildungskraft) não é, para os românticos, a faculdade de criar ficções, mas a potência da
Bildung que produz “imagens” que são formas de vida, momentos de um processo de
educação da humanidade artista. 27 Além disso, Rancière assevera que esta potência da
Bildung seria capaz de “recriar o equivalente de um mundo perdido” com a poesia e inscrevê-
lo em uma teleologia histórica, a partir do conceito de fragmento. 28 Ora, a coleção de
fragmentos e imagens poéticas seria o mecanismo que tornaria possível conceber um universo
a partir da poesia. Seria a realização máxima da Bildung, unificando todas as faculdades
humanas, visando ao aperfeiçoamento do ser humano.

5.
É o momento de voltarmos às perguntas feitas no início, mas principalmente esta: a
partir de todas estas evidências, é possível, então, afirmar que Bachelard, leitor do
Romantismo, teria adotado um projeto romântico em suas obras acerca da imaginação?
Embora seja notória a inspiração bachelardiana na literatura romântica – tanto na constatação
do papel central da imaginação para as demais faculdades humanas quanto no projeto inicial
de “colecionar” imagens poéticas relacionadas aos quatro elementos, dentro de um projeto
inspirado pela potência da Bildung –, é possível perceber, ao longo de sua obra, uma série de
fraturas em seu projeto inicial, ocorridas a partir de encontros com a obra de alguns autores,
os quais o levaram a reescrever constantemente suas conclusões.

25
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Ed. Universitária São
Francisco, 2008. p. 44.
26
HUMBOLDT, Wilhelm von. Gesammelte Schriften, Akademie-Ausgaben, vol. III, p. 30 apud GADAMER,
op. cit., p. 45-46.
27
RANCIÈRE, Jacques. La palabra muda. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2009. p. 79.
28
Ibid., p. 80.
8

Apesar da importância do pensamento de Jung e Breton, entre outros, na obra


bachelardiana, há autores que causaram uma ruptura maior com seu projeto inicial. Citaremos
três.
Em primeiro lugar, o historiador Gaston Roupnel, que em seu livro Siloë, trata do
instante como verdadeira realidade do tempo, ao passo que caracteriza a duração apenas como
uma construção, desprovida de realidade.29 Dentro da ótica roupneliana, é preciso instaurar a
doutrina do acidente como princípio, 30 situando a vida no âmbito do descontínuo. 31 Estas
afirmações, extraídas da leitura de Roupnel realizada por Bachelard, em seu livro A intuição
do instante, denotam a inspiração que este obteve para, em seus trabalhos futuros acerca da
imaginação, estabelecer o instante e a descontinuidade como elementos fundamentais para a
criação de imagens poéticas. Um exemplo claro deste encontro com a obra de Roupnel já se
encontra na argumentação de Bachelard a partir de seu livro O Ar e os Sonhos, em que o autor
pontua sua crítica à duração bergsoniana de uma maneira muito semelhante a que faz em A
intuição do instante, quando sustenta que

Passado e futuro são mal solidarizados na duração bergsoniana precisamente


porque nela se subestimou o desígnio do presente [...] O ser que dura tem
portanto, no instante presente em que se decide a realização de um desígnio,
o benefício de uma verdadeira presença.32
Esta concepção de instante é uma quebra com a noção de imaginação romântica, na
qual a coleção de fragmentos implicaria na realização do todo, com a potência da Bildung. A
descontinuidade do tempo – que não prevê a totalidade universal no conjunto dos instantes –
é, portanto, uma primeira fratura na concepção romântica da imaginação como
Einbildungskraft.
Em segundo lugar, o encontro de Bachelard com Nietzsche o faz perceber a
importância do movimento na imaginação literária. Novamente, em O Ar e os Sonhos, o
filósofo francês dedica um capítulo de seu livro às imagens nietzschianas do ar como
inscrição da mobilidade própria da imaginação33, a qual proporcionou elementos para que o
autor formulasse o conceito de imaginação dinâmica, 34 noção fundamental para a concepção
bachelardiana de imaginação. A imaginação dinâmica, que subentende a presença da
mobilidade do instante poético nos processos imaginativos, pode ser compreendida como

29
BACHELARD, Gaston. A intuição do instante. Campinas: Verus, 2007. p. 29.
30
Ibid., p. 28.
31
Ibid., p. 27.
32
Id., op. cit., 2001.p. 265-266.
33
Ibid., p. 127-162.
34
Ibid., p. 158.
9

mais um elemento que diferencia a imaginação bachelardiana da concepção romântica, pois a


mobilidade não é um aspecto sequer comentado nas obras românticas a respeito da
imaginação.
Por último, há o encontro entre Bachelard e a fenomenologia, que instaura a última
fratura na noção totalizante da proposta romântica de coleção das imagens poéticas dos quatro
elementos. Embora não se possa afirmar que a fenomenologia bachelardiana seja fiel aos
autores “clássicos” da fenomenologia – como Husserl, por exemplo – os conceitos de
ressonância e repercussão, empregados, sobretudo, em seu livro A Poética do Espaço,
tornam-se elementos relevantes para a asserção bachelardiana de que “o ato poético não tem
passado”, 35 quebrando com seu projeto inicial de submeter as imagens poéticas a uma
pretensa “lei dos quatro elementos”.
Estas fraturas ocorridas no projeto bachelardiano inicial, contudo, precisam ser
esmiuçadas em estudos posteriores, de modo a esclarecer maiores detalhes acerca das
diferenças que os estudos de Bachelard sobre a imaginação estabelecem em relação ao
conceito defendido pelo Romantismo.

Referências bibliográficas

ARENDT, Hannah. Da Imaginação. In: _____. Lições sobre a filosofia de Kant. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 79-84.
BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BACHELARD, Gaston. A intuição do instante. Campinas: Verus, 2007.
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008 a.
BACHELARD, Gaston. A Psicanálise do Fogo. São Paulo: Martins Fontes, 2008 b.
BACHELARD, Gaston. A Terra e os Devaneios da Vontade. São Paulo: Martins Fontes,
1991.
BACHELARD, Gaston. Fragmentos de uma poética do fogo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
BACHELARD, Gaston. O Ar e os Sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.
DORMANN, Helga. Die Kunst des inneren Sinns. Würzburg: Königshausen & Neumann,
2004.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Ed.
Universitária São Francisco, 2008.

35
Id., op.cit., 2008 a, p. 1.
10

HIGONNET, Margaret R. Bachelard and the Romantic Imagination. Comparative


Literature, Durham (EUA), Vol. 33, Nº 1, p. 18-37, 1981. Disponível em:
<http://www.jstor.org/stable/1770415>. Acesso em: 08 abr. 2009.
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2008.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001.
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