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Resumo: A abordagem de Gaston Bachelard sobre o tema da imaginação, embora tenha sido
tradicionalmente aproximada às incursões do autor pela psicanálise e pela fenomenologia,
possui também grande vinculação ao debate acerca da imaginação inaugurado por Immanuel
Kant no final do século XVIII, seguido pelos escritores do Romantismo na virada para o
século XIX. A partir destes autores, o tema da imaginação deixa de ser acessório e se torna
central para pensar a produção artística – e, sobretudo, poética – no início do período
romântico, estabelecendo uma ruptura com o papel atribuído à imaginação em épocas
anteriores. Bachelard, por sua vez, leitor voraz de alguns dos clássicos do Romantismo,
retoma aspectos cruciais da imaginação romântica para montar seus trabalhos iniciais que
discutem a imaginação literária.
1.
Estas palavras de Bachelard, próprias de quem olha para trás na velhice e confessa,
desesperadamente, ter uma vontade de reescrever todos os seus livros, 2 traz à tona uma
característica importante dos descaminhos de um autor-leitor em suas pesquisas: ele precisa,
em algum momento, reescrever a si mesmo.
Se, naquele momento de sua vida, reescrever todos os livros que tratam da imaginação
já não era mais uma tarefa possível, Bachelard conseguiu explicitar, por outro lado, que em
seus primeiros trabalhos acerca da imaginação – apesar de não ter defendido nenhuma tese
específica – havia um projeto: o de colecionar ao máximo as imagens poéticas, de modo a
fazer delas uma enciclopédia, formar um todo. A chamada “lei dos quatro elementos”,
*
Professor Adjunto do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Doutor em História
Cultural pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Agência financiadora: FAPEMIG.
1
BACHELARD, Gaston. Fragmentos de uma poética do fogo. São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 26.
2
Ibid., p. 26-27.
2
repetida nas introduções de seus primeiros livros,3 deixa entrever um desejo febril do autor em
colecionar imagens poéticas para, a partir daí, encontrar leis que norteariam a imaginação
literária. Entretanto, este impulso colecionador de fragmentos não poderia ser reduzido a um
simples arroubo de objetividade de um professor de filosofia da ciência – como ele mesmo
atestou 4 –, mas também, uma iniciativa de um leitor apaixonado pela literatura.
Neste momento, seria necessário perguntar: a partir de que literatura Bachelard
formula seu projeto inicial de coletar imagens literárias? Teria esta mesma literatura dado as
referências filosóficas para que Bachelard concluísse que a coleção de imagens literárias seria
o caminho que o levaria ao conhecimento das leis da imaginação?
Responder a estas perguntas afirmando que a “semente do seu pensamento está,
contudo, além no passado, na poética idealista da imaginação, que se estabeleceu durante o
período romântico” 5 seria, certamente, dar uma resposta que não satisfaz nossa curiosidade.
Até que ponto Bachelard, leitor do Romantismo, foi também um escritor que adotou um
projeto romântico? É possível afirmar que suas ideias a respeito da imaginação já tinham sido
estabelecidas pela literatura romântica? A partir destas indagações, seria preciso voltar ao
Romantismo ou mais além. Seria preciso voltar, talvez, às considerações de um dos autores
que se tornaria uma referência entre os românticos: Immanuel Kant.
2.
Hannah Arendt, em suas Lições sobre a filosofia de Kant, faz a feliz constatação que
“o papel da imaginação para as nossas faculdades cognitivas é talvez a maior descoberta de
Kant na Crítica da Razão Pura”.6 Com efeito, a imaginação (Einbildungskraft) nunca teria
sido tão enfatizada anteriormente em seu papel indispensável para o conhecimento. Kant
atribui à imaginação uma importância fundamental na composição de juízos sintéticos a
priori – os quais são o resultado da junção de dois conceitos distintos para a formação de uma
proposição, quase sempre a partir da atribuição de um predicado que não está contido no
sujeito. O próprio filósofo de Königsberg dá um exemplo de juízo sintético: na proposição
“todos os corpos são pesados”, está se atribuindo ao conceito de corpo a noção de peso, que
3
Id., A Água e os Sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 4; Id., O Ar e os Sonhos. São Paulo: Martins
Fontes, 2001. p. 8.
4
Id., op. cit., 1990, p. 25.
5
HIGONNET, Margaret R. Bachelard and the Romantic Imagination. Comparative Literature, Durham
(EUA), Vol. 33, Nº 1, p. 18-37, 1981. Disponível em: <http://www.jstor.org/stable/1770415>. Acesso em: 08 abr.
2009.
6
ARENDT, Hannah. Da Imaginação. In: _____. Lições sobre a filosofia de Kant. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará, 1994. p. 80.
3
7
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001. B 10-11. Será utilizada a
paginação da obra original, em sua segunda edição no idioma alemão, conforme disposta na tradução citada.
8
Ibid., B 103-104.
9
Ibid.
10
Ibid., B 152.
11
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 133 [145].
Os números entre colchetes referem-se à paginação da segunda edição em alemão, que baseou a tradução citada.
4
12
deve estar livre das coerções do entendimento. Estando livre de se submeter ao
entendimento, a imaginação torna-se elemento fundamental na criação artística e, portanto,
uma das faculdades fundamentais para caracterizar o gênio kantiano, isto é, “o talento que dá
regra à arte”.13
Na diferenciação que Kant estabelece entre a imaginação direcionada para o
conhecimento e a imaginação para a criação artística, inaugura-se, simultaneamente, uma
superação a respeito do papel da imaginação para as faculdades humanas, nunca tratada desta
maneira por nenhum filósofo que o antecedeu. Talvez por isso, Gilles Deleuze assevera que a
conceituação da imaginação como “dimensão suplementar autônoma”, um “poder de reflexão
livre”, é um dos elementos que faz da Crítica da faculdade de juízo a “fundação do
romantismo”.14
3.
Em que sentido Deleuze teria chamado Kant de “fundador do romantismo”? É
possível identificar a noção kantiana de imaginação com o papel desta faculdade para a
literatura romântica? Talvez não seja possível transferir exatamente o debate kantiano da
Crítica da faculdade do juízo para os românticos, mas sim, perceber como Kant abre as portas
do debate acerca da imaginação, deixando para os românticos a tarefa de desmoronar a última
barreira deixada pelo filósofo de Königsberg: a de elevar a imaginação da condição de
faculdade importante para a produção artística do gênio – ao lado do entendimento, do
espírito e do gosto – para o status de base de todas as faculdades.
Na afirmação romântica da imaginação como base de todas as faculdades humanas,
delimita-se, portanto, uma ruptura parcial com a filosofia kantiana. Entretanto, esta ruptura
torna-se o elemento crucial que, ao mesmo tempo em que separa Kant do Romantismo, faz
com que todos os literatos da geração posterior tenham se inspirado nas afirmações deste
filósofo para estabelecer a singularidade de sua produção artística.
Vejamos, a título de exemplo, como alguns escritores românticos – sobretudo aqueles
que foram lidos por Bachelard – realizam as torções necessárias da análise kantiana para
caracterizar a arte romântica.
Em primeiro lugar, podemos citar Novalis, que não apenas escreveu textos poéticos,
mas também teorizou simultaneamente as condições filosóficas de seu métier. Em duas
12
Ibid., p. 162 [198].
13
Ibid., p. 153 [181].
14
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997. p. 43.
5
15
NOVALIS Schriften. Jena: Eugen Diderich, 1907. Vol. 3, p. 375. A tradução desta citação foi extraída do livro:
BACHELARD, Gaston. A Terra e os Devaneios da Vontade. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 3.
16
NOVALIS, op. cit., p. 378. Tradução nossa.
17
DORMANN, Helga. Die Kunst des inneren Sinns. Würzburg: Königshausen & Neumann, 2004. p. 46.
18
Ibid.
19
RICHTER, Jean-Paul. Introducción a la estética. Madrid: Verbum, 1991. p. 47.
6
4.
Diante das afirmações destes escritores românticos, podemos traçar um paralelo inicial
entre a concepção bachelardiana de imaginação e o debate estabelecido pelos românticos. Em
primeiro lugar, todos os três autores românticos foram citados, praticamente nestes mesmos
trechos, por Bachelard em pelo menos dois de seus livros.21 Nas três citações, é possível notar
pelo menos uma característica comum a todos: a centralidade da imaginação como base de
todas as demais faculdades. Esta qualificação da imaginação como “potência maior da
natureza humana” 22, ou “faculdade hominizante por excelência”23, ou ainda, “força mesma da
produção psíquica” 24, repetida em várias obras de Bachelard, levar-nos-ia a considerar, em
um primeiro momento, que há uma consonância entre a concepção bachelardiana de
imaginação e a acepção romântica do termo.
Se formos mais adiante nesta comparação, podemos aproximar a característica mais
marcante da afirmação de Jean-Paul – ou seja, a potência da imaginação em criar um universo
totalizante com fragmentos poéticos, com símbolos que recriam a natureza – a algumas
considerações de Bachelard acerca da imaginação. A própria ideia de submeter as imagens
poéticas coletadas à “lei dos quatro elementos”, tratada anteriormente, pode ser uma
20
Ibid.
21
Bachelard cita a primeira afirmação de Novalis e a de Baudelaire em seu livro A Terra e os Devaneios da
Vontade; a citação que faz de Jean-Paul encontra-se no livro A Poética do Espaço. BACHELARD, op. cit., p.
3;40. Id., A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008 a. p. 18.
22
Ibid.
23
Id., op.cit., 2001, p. 12.
24
Id. A Psicanálise do Fogo. São Paulo: Martins Fontes, 2008 b. p. 161.
7
5.
É o momento de voltarmos às perguntas feitas no início, mas principalmente esta: a
partir de todas estas evidências, é possível, então, afirmar que Bachelard, leitor do
Romantismo, teria adotado um projeto romântico em suas obras acerca da imaginação?
Embora seja notória a inspiração bachelardiana na literatura romântica – tanto na constatação
do papel central da imaginação para as demais faculdades humanas quanto no projeto inicial
de “colecionar” imagens poéticas relacionadas aos quatro elementos, dentro de um projeto
inspirado pela potência da Bildung –, é possível perceber, ao longo de sua obra, uma série de
fraturas em seu projeto inicial, ocorridas a partir de encontros com a obra de alguns autores,
os quais o levaram a reescrever constantemente suas conclusões.
25
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Ed. Universitária São
Francisco, 2008. p. 44.
26
HUMBOLDT, Wilhelm von. Gesammelte Schriften, Akademie-Ausgaben, vol. III, p. 30 apud GADAMER,
op. cit., p. 45-46.
27
RANCIÈRE, Jacques. La palabra muda. Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2009. p. 79.
28
Ibid., p. 80.
8
29
BACHELARD, Gaston. A intuição do instante. Campinas: Verus, 2007. p. 29.
30
Ibid., p. 28.
31
Ibid., p. 27.
32
Id., op. cit., 2001.p. 265-266.
33
Ibid., p. 127-162.
34
Ibid., p. 158.
9
Referências bibliográficas
ARENDT, Hannah. Da Imaginação. In: _____. Lições sobre a filosofia de Kant. Rio de
Janeiro: Relume-Dumará, 1994. p. 79-84.
BACHELARD, Gaston. A Água e os Sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BACHELARD, Gaston. A intuição do instante. Campinas: Verus, 2007.
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2008 a.
BACHELARD, Gaston. A Psicanálise do Fogo. São Paulo: Martins Fontes, 2008 b.
BACHELARD, Gaston. A Terra e os Devaneios da Vontade. São Paulo: Martins Fontes,
1991.
BACHELARD, Gaston. Fragmentos de uma poética do fogo. São Paulo: Brasiliense, 1990.
BACHELARD, Gaston. O Ar e os Sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.
DORMANN, Helga. Die Kunst des inneren Sinns. Würzburg: Königshausen & Neumann,
2004.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Ed.
Universitária São Francisco, 2008.
35
Id., op.cit., 2008 a, p. 1.
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