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“APRENDER A VER, APRENDER A PENSAR, APRENDER A FALAR E ESCREVER”: CONDIÇÕES

INTEGRANTES DO CONCEITO DE BILDUNG NO CREPÚSCULO DOS ÍDOLOS DE NIETZSCHE


Jorge Luiz Viesenteiner1
Resumo: O objetivo do texto é analisar contextualmente o capítulo “O que os alemães estão
perdendo” do Crepúsculo dos Ídolos, a fim de esclarecer em que medida as três tarefas indicadas
por Nietzsche – ‘aprender a ver, aprender a pensar, aprender a falar e escrever’ – são horizontes
teóricos integrantes do conceito de Bildung para Nietzsche. Trata-se de percorrer a trajetória teórica
do capítulo em questão – pensado originalmente para ser parte de uma primeira versão do ‘Prólogo’
ao Crepúsculo dos Ídolos –, desde o diagnóstico do crepúsculo da Bildung até as indicações finais
afirmativas das três tarefas.
Palavras-chave: Bildung – Geist – Reich – seriedade – jovialidade – nuance

Introdução
O conceito de Bildung – que analisaremos a seguir, mas que aqui optamos por
deixar no original, dada sua amplitude semântica –, perpassa integralmente o corpus
filosófico de Nietzsche. Embora o conceito ocorra com maior frequência nos textos do
início da década de 1870 – como, p.ex., no escrito póstumo Sobre o futuro de nossas
instituições de formação, do início de 1872 –, foi retomado inúmeras vezes por Nietzsche,
incluindo suas publicações tardias, tal como é o caso de Crepúsculo dos Ídolos, de 1888.
Em uma carta a Carl Fuchs de 9 de setembro de 1888, Nietzsche considerou o Crepúsculo
dos Ídolos (CI) uma “perfeita e completa introdução”2 ao seu pensamento mas,
simultaneamente, o que há de “mais substancial, mais independente”3 em seus escritos. Não
se trata, pois, apenas de uma explicação introdutória das linhas centrais do seu pensamento,
mas antes de uma retomada dos principais horizontes teóricos ao longo dos seus textos,
incluindo aí inúmeros deslocamentos conceituais em relação aos textos anteriores, bem
como introduzindo novas noções que ainda não haviam sido abordadas. Dentre esses
conceitos retomados por Nietzsche está precisamente Bildung, notadamente no capítulo “O

1
Doutor em filosofia pela UNICAMP e professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da PUCPR. É
membro do GIRN (Groupe International de Recherches sur Nietzsche) pela Universidade de
Greifswald/Alemanha.
2
Nietzsche, F. Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe in 8 Bänden. Hrg. von Giorgio Colli und Mazzino
Montinari. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1986. Doravante KSB, no do volume e no da carta. Nesta
referência KSB 8, Nr. 1104.
3
Nietzsche, F. Ecce homo (EH), “Crepúsculo dos Ídolos” 1. In: Kritische Studienausgabe in 15 Bänden. Hrg.
von Giorgio Colli und Mazzino Montinari. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1999. Doravante KSA.
Empregaremos nas referências sobre Nietzsche a consolidada abreviação das suas obras, e do número do
aforismo; em seguida, indicaremos também sua localização nas obras completas, ou seja, a abreviação KSA,
no do volume e no da página. Todas as traduções do alemão são de minha autoria, salvo indicações contrárias.
que os alemães estão perdendo”. A reflexão que se segue, portanto, está inscrita
estritamente no horizonte teórico desse capítulo do Crepúsculo dos Ídolos.
O capítulo “O que os alemães estão perdendo” fora originalmente composto para
integrar a primeira versão do “Prólogo” ao Crepúsculo dos Ídolos, escrito em Sils-Maria e
datado em 3 de setembro de 1888. A versão definitiva do “Prólogo”, porém, foi escrita em
Turin e incluída ao livro apenas no dia 30 de setembro de 1888, em uma versão bem mais
enxuta, mas não menos precisa.4 O texto da versão de 3 de setembro, no entanto, foi usado
por Nietzsche para compor tanto o “Prólogo” ao Anticristo (AC) quanto também o capítulo
“O que os alemães estão perdendo”, tal como lemos em uma carta de 18 de setembro de
1888 enviada ao editor Naumann: “Em anexo segue o prólogo válido. – O que enviei ao
senhor até agora como prólogo [...] foi ainda continuado por mim, de modo que agora deve
vir no interior do livro – e na verdade como penúltima parte. [...] Gostaria que o título desse
texto fosse: ‘O que os alemães estão perdendo’. Com mais alguns acréscimos, o texto que
envio hoje ao senhor possui 7 pequenos aforismos. [...] O prólogo está agora bem mais
curto”.5 De qualquer modo, o que nos interessa nessa contextualização do capítulo é que de
um ‘Prólogo’ originário, o texto acabou por se converter em capítulo integrante do
Crepúsculo dos Ídolos, tal como revela a carta.
O capítulo “O que os alemães estão perdendo” foi escrito em 3 horizontes teóricos
bem claros, apesar da composição em 7 aforismos: a) os aforismos 1 e 2 nos quais
Nietzsche elabora o diagnóstico do declínio da Bildung alemã, cuja formulação se
desenvolve a partir de um dos conceitos-chave desse capítulo, vale dizer, a palavra
“espírito” (Geist) que, como veremos, tem uma ampla envergadura semântica e estreita
ligação com a noção de Bildung; b) os aforismos de 3 a 5 onde se encontra a estrita crítica
nietzscheana da relação entre Bildung e política, especialmente no que se refere à mudança
no “pathos” sobre as “coisas do espírito” e a perda da imprescindível “jovialidade” à
cultura, incluindo aí também as considerações sobre “todo o sistema de educação superior
na Alemanha” e seus “educadores”; e, por fim, c) os aforismos 6 e 7 em que Nietzsche

4
A menção das duas versões do ‘Prólogo’ foi indicada pelo próprio Nietzsche, in: EH, Crepúsculo dos Ídolos
3; KSA 6, p. 355s.
5
Sobre a história completa do ‘Prólogo’ ao Crepúsculo dos Ídolos, cf. o comentário dos editores Colli e
Montinari, in: KSA 14, p. 410s. A única alteração na versão do prólogo de 18 de setembro e a definitiva de 30
de setembro foi o acréscimo da famosa nota de esclarecimento: “[...] o dia em que o primeiro livro da
Transvaloração de todos os valores foi finalizado”.
mostra novamente sua “maneira afirmativa” de ser e indica as “três tarefas em razão das
quais se precisa de educadores”, quais sejam, “tem de se aprender a ver, aprender a pensar,
aprender a falar e escrever”, de modo que a “meta em todas as três é uma cultura nobre”.
Com base nesse horizonte contextual, o objetivo desse texto é precisamente analisar
em que medida as “três tarefas” apontadas por Nietzsche se configuram como parte
integrante e necessária do conceito de Bildung, “tarefas” estas que são preparatórias à
produção de uma nobre espiritualidade capaz de novamente intensificar as forças humanas
criadoras. A escritura do nosso texto percorrerá os 3 horizontes teóricos que vislumbramos
acima, ou seja, desde o diagnóstico do declínio da espiritualidade até a explicação da nossa
hipótese sobre as ‘tarefas’ integrantes da Bildung, conforme Nietzsche registrou no capítulo
“O que os alemães estão perdendo” do Crepúsculo dos Ídolos. Do ponto de vista
metodológico, usaremos a assim denominada “interpretação contextual”6 tal como a
emprega Werner Stegmaier, e que consiste em se manter o mais próximo possível do texto
do capítulo, num exercício exegético de interpretação de cada aforismo em seu contexto,
ampliando a interpretação para o contexto do livro Crepúsculo dos Ídolos, bem como no
contexto maior dos livros aforismáticos de Nietzsche.

O que os alemães “abgeht”


Nietzsche se refere à cultura alemã a propósito da lenta e gradual escalada daquilo
que vai sendo perdido na sua totalidade cultural. O verbo empregado é abgehen e alude não
diretamente àquilo que efetivamente já falta à cultura, mas sim àquilo que entrou em um
processo de perda: “A nova Alemanha representa um grande quantum de capacidades
herdadas e adquiridas, de modo que é lícito ainda a ela gastar perdulariamente por algum
tempo o tesouro acumulado de forças.” (CI, O que os alemães estão perdendo 1; KSA 6, p.
103) Mas o que está começando a faltar à ‘nova Alemanha’ é precisamente Geist, o tesouro
das suas forças espirituais: “Entre os alemães não basta hoje em dia ter espírito: tem de se
tomá-lo ainda, arrogar-se espírito...” (idem) No início do aforismo 3, Nietzsche indica
expressamente sobre o que havia falado nos dois aforismos anteriores: “Falei do espírito

6
Sobre a explicação dessa metodologia de interpretação, cf. Stegmaier, W. Nach Montinari. Zur
Nietzsche-Philologie. In: Nietzsche-Studien 36 (2007), p. 80-94: “A filologia-Nietzsche, no sentido de
Nietzsche, deve ser uma filologia dos livros de aforismos, a arte de ler os aforismos, por um lado, em seus
contextos próprios e herméticos e, por outro lado, no contexto hermético dos livros onde Nietzsche os
registrou e, por fim, no contexto mais aberto que seus livros formam uns com os outros.” (p. 93s.)
alemão: que ele está se tornando grosseiro, que se superficializa.” (CI, O que os alemães
estão perdendo 3; KSA 6, p. 105)
A palavra-chave no capítulo “O que os alemães estão perdendo” é precisamente
Geist com 22 ocorrências tanto do radical diretamente, quanto em seu uso adjetivado ou
substantivado. Como se percebe, Geist não indica apenas o sentido direto de “espírito”, mas
no contexto do capítulo alude também à inteligência, gênio, atmosfera cultural de uma
época e, principalmente, à totalidade das forças criativas e criadoras do homem,
empregadas tanto no cultivo e na produção da elevação do homem, quanto na nobreza de
cultura.7 O âmbito semântico de Geist no capítulo “O que os alemães estão perdendo”,
portanto, precisa ser situado tanto no horizonte do homem com vistas às suas capacidades
espirituais, como o gênio, a reflexão, o cultivo das suas forças criadoras, enfim, habilidades
humanas que o capacitam à leveza, jovialidade ou como escreve Nietzsche, os “pés ligeiros
no que seja espiritual” (CI, O que os alemães estão perdendo 7; KSA 6, p. 109), quanto
também no horizonte da cultura que se eleva em sua totalidade e se torna nobre, na medida
em que suas estruturas sustentam a possibilidade da formação e do cultivo do homem. A
crítica de Nietzsche à cultura alemã, à ‘nova Alemanha’, vai precisamente nessa direção,
p.ex., quando lemos: “Não é uma cultura elevada que com ela [a nova Alemanha – JLV] se
tornou predominante, muito menos um gosto delicado, uma ‘beleza’ nobre dos instintos;
mas virtudes ainda mais masculinizadas, como aquelas que nenhum outro país da Europa
pode mostrar.” (CI, O que os alemães estão perdendo 1; KSA 6, p. 103)
Contextualmente, porém, a palavra Geist precisa ser estreitamente compreendida
com a noção de Bildung8 que, delimitada ao horizonte teórico do capítulo em questão,
implica tanto em formação da totalidade das forças criativas e criadoras do homem, quanto
também à nobreza cultural, fato esse que Bildung pode muito bem ser traduzida, dentre toda
sua amplitude semântica, como formação e/ou cultura. Neste caso, trata-se do cultivo das
habilidades criativas do homem, instrumentalizadas sob o mote: “formar-se a si em si
7
Sobre o amplo significado da palavra “Geist”, cf. Oeing-Hanhoff, L. et al. “Geist”. In: Ritter, J. Historisches
Wörterbuch der Philosophie, Bd. 3, Basel/Stuttgart: Schwabe & Co. Verlag, 1972. p. 154-204, mas
especialmente a passagem que alude à noção de Geist como um conceito que não pode ser conceitualizado, e
nem sequer compreendido tal como se compreende um conceito, ou seja, de modo fixo e universal:
“Precisamente porque o conceito Geist está ligado com inúmeros outros conceitos fundamentais da filosofia,
[...] não é possível reconduzir a história de Geist a um conceito; trata-se muito mais de atualizá-lo em sua
abundância, multiplicidade e em sua visível consequência do seu desdobramento ao entendimento.” (p. 157)
8
Uma referência relevante sobre Bildung, encontramos em BRITO, Fabiano L. Nietzsche, Bildung e a tradição
magisterial da filologia alemã. In: Analytica v.12, no 1 (2008), p. 149-181.
mesmo é a meta do homem no homem”, ou seja, “formação harmônica de todas as
capacidades humanas e da individualidade espiritual”: “Eu como ‘obra de mim mesmo’.
[...] Desde 1799, Pestalozzi buscou, em consideração a uma lei apriori universal do espírito
humano, o ponto formal e fundamental de Bildung, para uma autoconstrução do homem
como pessoa em harmonia com o ‘coração, espírito e habilidades práticas.”9 Como se vê,
Geist e Bildung são conceitos que estão estreitamente relacionados. No capítulo “O que os
alemães estão perdendo”, Nietzsche opera com o conceito de Geist precisamente para fazer
uma crítica ao estatuto de Bildung da sua época, isto é, o emprego de Geist como semiótica
para criticar a Bildung do seu tempo, incluindo aí uma ácida oposição às instituições de
ensino superior.
Se a cultura experimenta um processo de declínio da espiritualidade – a lenta e
gradual perda das forças criadoras humanas para cultivo de si mesmo –, o contexto geral da
Bildung também é colocado em xeque, e o principal elemento teórico que intensifica a
des-espiritualização do homem e da cultura é a prevalência, segundo Nietzsche, da política
sobre a cultura. A antiga denominação da cultura alemã como “povo de pensadores”10 foi
suplantada pelo ‘embrutecimento’ operado pelo poder, de modo a pôr em dúvida se, de fato,
escreve Nietzsche, os alemães “pensam ainda hoje” (CI, O que os alemães estão perdendo
1; KSA 6, p. 103). Historicamente, Nietzsche está situado no mesmo espírito de época que
opunha Bildung e o Reich de Bismarck: “Desde 1820 o conceito enciclopédico e
convencional de Bildung universal [...] ficou relacionado a um símbolo de status burguês, e
no movimento sócio-político de meados do século XIX, especialmente na oposição estética
contra o Reich de Bismarck, se tornou a meta principal de crítica à cultura.” (Lichtenstein,
1972, p. 927) Essa oposição crítica foi ironicamente registrada por Nietzsche, no que se
referia à sua resposta quando o perguntavam: “ ‘Há filósofos alemães? há poetas alemães?
há hoje livros alemães?’ ”, e a resposta de Nietzsche é: “ ‘Sim, Bismarck!’” (CI, O que os
alemães estão perdendo 1; KSA 6, p. 104)
9
Lichtenstein, E. “Bildung”. In: Ritter, J. Historisches Wörterbuch der Philosophie, Bd. 1, Basel/Stuttgart:
Schwabe & Co. Verlag, 1972. p. 926, 927, 925. Tal como Geist, a história do conceito Bildung é também bem
amplo. A secularização plena de Bildung, porém, ocorre a partir do século XVIII: “A secularização,
humanização e pedagogização do conceito Bildung está relacionada, no século XVIII, com a emancipação do
emocional no pietismo alemão e com a eminente influência de Schaftesbury sobre a vida espiritual alemã.” (p.
922s.)
10
Nietzsche alude à famosa expressão ‘povo de pensadores’ que era corrente no século XIX. A expressão
completa, atribuída a Karl Musäus como o primeiro a empregá-la em seu texto Voksmärchen de 1782, era:
“Alemanha, povo de pensadores e poetas”. Cf. KSA 14, p. 421.
É dessa atmosfera espiritual crítica ao Reich de Bismarck que Nietzsche elaborou
seu conceito de “filisteu da cultura” (Bildungsphilister) que, embora não ocorra
textualmente no capítulo “O que os alemães estão perdendo”, está indiretamente aludido na
medida em que relaciona a degeneração da Bildung alemã com o “inteligente” e “livre
pensador” David Strauss (CI, O que os alemães estão perdendo 2; KSA 6, p. 104), cuja
oposição rendeu a escritura da primeira de uma das suas “Considerações Extemporâneas”,
intitulada David Strauss: O confessor e o escritor (Cons. Ext. I, DS): “A palavra filisteu é
conhecidamente tomada da vida estudantil e caracteriza [...] a genuína oposição aos homens
de cultura. O filisteu da cultura, porém, [...] diferencia-se da ideia geral da espécie ‘filisteu’
por conta de uma superstição: ele arroga a si mesmo [...] ser um homem de cultura;” (Cons.
Ext. I, DS 2; KSA 1, p. 165) Assim, David Strauss – “autor de um evangelho de cervejaria
e de uma ‘nova fé’” (CI, O que os alemães estão perdendo 2) – teria sido o “typus do
filisteu da cultura alemã” (EH, As Extemporâneas 2; KSA 6, p. 317), o protótipo que
supostamente seria dotado de uma capacidade artístico-criativo-espiritual elevada, mas que,
na verdade, apenas aparentava ser um autêntico homem de cultura.11
O que está começando a faltar à cultura, portanto, é precisamente a grandeza
espiritual e, por isso, os alemães tinham de “arrogar-se espírito”. O diagnóstico de
Nietzsche nesses dois primeiros aforismos é expresso textualmente, da seguinte maneira:
“Os alemães se entediam hoje com espírito, desconfiam atualmente do espírito” (CI, O que
os alemães estão perdendo 1), de modo que o “instinto de autoconservação do espírito”
(Idem 2) deu lugar ao “maldito instinto de mediocridade” (Idem 1). A explicação da
des-espiritualização da Bildung e a alteração no pathos cultural é levada a cabo por
Nietzsche nos aforismo 3 a 5.

11
Schopenhauer já havia feito também menção aos filisteus como homens “sem anseios espirituais” e que
teriam apenas um “pequeno impulso ao conhecimento [...] e também um pequeno impulso ao autêntico gozo
estético.” (Schopenhauer, A. Aphorismen zur Lebensweisheit, Bd. 1, cap. II, p. 340. In: Parerga und
Paralipomena. Sämtliche Werke Bd. 4, 1988). Nietzsche, porém, arrogava-se o criador da expressão na
linguagem corrente: “A palavra filisteu da cultura se tornou corrente na linguagem a partir do meu escrito [a
extemporânea sobre David Strauss – JLV]” (EH, As Extemporâneas 2; KSA 6, p. 317). Sobre o tema cf.
Waibel, V. Hölderlin und Nietzsche über Philistertum und wahre Bildung. In: Nietzsche-Forschung 11 (2004)
p. 45-62; Rautenberg, M. „Bildungsphilister“. In: Niemeyer, C. Nietzsche-Lexikon. Darmstadt:
Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2009.
Bildung x Política
Entre os aforismos 3 e 5 Nietzsche altera novamente o movimento do texto,
intensificando ainda mais sua crítica ao crepúsculo da Bildung alemã. Agora, não se trata
apenas de diagnosticar que o “espírito alemão” “está se tornando grosseiro, que se
superficializa”, mas antes, o que o espanta é algo diferente: “como a seriedade alemã, a
profundidade alemã a paixão alemã em coisas espirituais vai declinando cada vez mais. O
pathos se modificou, não apenas a intelectualidade.” (CI, O que os alemães estão perdendo
3; KSA 6, p. 105) Ao se referir à modificação do ‘pathos’ alemão, Nietzsche indica em que
medida a atmosfera cultural alemã altera sua relação com as questões espirituais, i.é., com
as humanidades, com a formação dos estudantes para além de sua “profissão” bem como
com a formação de seus “educadores”, com as estruturas da universidade, enfim, com o
pathos da “seriedade” “em coisas espirituais”. O uso filosófico que Nietzsche faz da
palavra “seriedade” é fundamental para compreendermos de que nobreza de Bildung ele se
refere. Antes de debatermos com esse ponto, porém, importa entender também o porquê o
pathos da seriedade alemã em coisas espirituais vai se modificando.
Há muito que Nietzsche elabora enfaticamente a oposição entre cultura e política e,
no Crepúsculo dos Ídolos, o tema, conforme escrevemos acima, é novamente retomado:
“Não me cansei desde os últimos dezessete anos de trazer à luz a influência
des-espiritualizante do nosso atual cultivo da ciência.” (Idem). Ora, se por um lado, a
predominância do Reich sobre a cultura era precisamente a atmosfera crítica que Nietzsche
respirava a propósito da oposição à época ao Reich de Bismarck – seara histórica que
lograria ali a formulação do conceito ‘filisteu da cultura’ –, por outro lado, é também a
prevalência da política sobre Bildung que esvazia o tesouro do pathos da seriedade: “Os
alemães se entediam hoje com espírito, desconfiam atualmente do espírito, a política devora
toda seriedade com as coisas efetivamente espirituais.” (CI, O que os alemães estão
perdendo 1; KSA 6, p. 103s.)
O diagnóstico direto da atrofia da Bildung por conta da supremacia política é
precisamente a “fragmentação das humanidades”, ou como Nietzsche também escreve, da
“atrofia do instinto do espírito” (CI, O que os alemães estão perdendo 3; KSA 6, p. 105).
Diga-se inicialmente que a fragmentação de algo relativamente a um todo é, segundo
Nietzsche, a expressão mesma da “décadence”12 moderna, ou seja, um processo
decadencial que é analisado por Nietzsche sobretudo do ponto de vista “fisiológico”, e que
consiste na “desagregação dos instintos” (CI, Incursões de um extemporâneo 35) que
desencadeia uma “saturação sem sentido dos detalhes, uma ênfase dos pequenos traços, do
efeito-mosaico” (Nachlass de novembro 1887/março 1888, 11[321]; KSA 13, p. 135), de tal
modo que as partes acabam por se tornar independentes relativamente ao todo. Esse
processo decadencial está presente em todos os livros de 1888 – especialmente O caso
Wagner (CW), Ecce homo, O anticristo (AC) e, obviamente, o Crepúsculo dos Ídolos –,
penetrando em todos os subterrâneos da cultura, seja na sua estrutura moral, política,
artística, etc., mas inclusive no horizonte da Bildung, de modo que, contextualmente, o
aforismo 3 tem de ser lido também à luz da décadence. Esse processo de esgotamento
fisio-psicológico – daí a expressão empregada por Nietzsche de “atrofia do instinto do
espírito” –, por um lado, expressa-se logo no início do aforismo quando Nietzsche escreve:
“Vez ou outra tenho contato com universidades alemãs: que atmosfera reina entre os
eruditos, que espiritualidade que se tornou monótona, despretensiosa e morna!”; por outro
lado, o resultado desse esgotamento decadencial no pathos alemão é precisamente a
superafetação das partes que, em se tratando do horizonte universitário, significa a
fragmentação das humanidades: “De nada mais sofre nossa cultura a não ser do excesso de
preguiçosos arrogantes e humanidades fragmentadas; nossas universidades são, a
contra-gosto, autênticas estufas para essa forma de atrofia dos instintos do espírito”, de
modo que “naturezas com interesses mais plenos, ricos e profundos já não encontram mais
educação e educadores adequados.” (CI, O que os alemães estão perdendo 3; KSA 6, p.
105)
O mais decisivo, porém, a propósito da des-espiritualização do pathos cultural é o
antagonismo entre o Reich e a cultura: “A cultura e o Estado – que não haja engano aqui
sobre isso – são antagonistas: ‘Estado-cultural’ é meramente uma ideia moderna.” (CI, O
que os alemães estão perdendo 4; KSA 6, p. 106) De fato, se só compreendemos aquilo que

12
Sobre o conceito de décadence em Nietzsche, cf. Kuhn, Elisabeth. Friedrich Nietzsches Philosophie des
europäischen Nihilismus. Berlin/New York: de Gruyter, 1992; Kuhn, Elisabeth. “décadence”. In: Ottmann, H.
(hrgs.), Nietzsche Handbuch: Leben-Werk-Wirkung. Stuttgart/Weimar: J.B.Metzler Verlag, 2000; Volpi, F. O
niilismo. São Paulo: Loyola, 1999; Müller-Lauter, W. Nietzsche: seine Philosophie der Gegensätze und die
Gegensätze seiner Philosophie. Berlin/New York: de Gruyter, 1971; e Viesenteiner, Jorge L. A grande política
em Nietzsche. São Paulo: Annablume, 2006 (capítulo 1.1).
estamos preparados para compreender, da mesma forma, escreve Nietzsche, “ninguém pode
gastar mais do que se tem – e isso vale para indivíduos e para povos.” (CI, O que os
alemães estão perdendo 4; KSA 6, p. 106)) A diminuição do ‘tesouro’ da cultura, portanto,
chega no seu limiar tão logo a política se torna predominante em relação à cultura. “Todas
as grandes épocas da cultura”, continua Nietzsche, “são épocas de declínio político: o que é
grande no sentido da cultura sempre foi a-político, mesmo antipolítico.”13 O pathos da
seriedade – a espiritualidade por excelência, conforme veremos – também declina quando a
política ascende à primeiro plano, e é justamente “dessa espécie de seriedade” que os
“alemães mesmo são incapazes”. (Idem)
Todo o “inteiro sistema de educação superior”, escreve Nietzsche, também fica
comprometido quando se esquece que a “educação, a Bildung mesma é a finalidade – e não
‘o Reich’ – e que para essa finalidade são precisos educadores – e não professores ginasiais
e eruditos de universidade” (CI, O que os alemães estão perdendo 5; KSA 6, p. 107). O
processo decadencial de fragmentação das humanidades é o mesmo que infantiliza as
relações – oferecendo “em ginásios e universidades eruditos malcriados que são ‘amas de
leite superiores’ da juventude” (Idem) – e, simultaneamente, intensifica o “mau gosto” da
“famosa ‘objetividade’ moderna” (CI, O que os alemães estão perdendo 6; KSA 6, p. 109).
É essa fragmentação, puerilização e ‘objetividade’ impulsionados pela supremacia política
sobre a cultura que capacita apenas para “profissão”, como escreve Nietzsche, exigindo que
já aos “23 anos” alguém já esteja “pronto”, ou seja, que já saiba responder à “‘pergunta
principal’: qual profissão?” (CI, O que os alemães estão perdendo 5; KSA 6, p. 108) Um
processo de lenta e gradual escalada operacionalizado pelas “escolas superiores”, como
escreve Nietzsche, de “brutal adestramento, a fim de que com a menor perda de tempo
possível tornem inúmeros jovens úteis e utilizáveis a serviço do estado” (Idem). Impossível
deixar de perceber o quão atual ainda é o diagnóstico do declínio da Bildung alemã feito
por Nietzsche, comparativamente a qualquer cultura, especialmente no que se refere à

13
Em um dos textos preparatórios ao aforismo 4 do capítulo “O que os alemães estão perdendo”, KSA 14, p.
421s., Nietzsche escreveu: “A cultura e o Estado são antagonistas: [atualmente, leva-se o Estado em
consideração para falar e até mesmo decidir sobre as questões da cultura, – como se o Estado não fosse apenas
um meio, e um meio bem subordinado da cultura! Quanto ‘Reich alemão’ não teria de ser dado contra apenas
um único Goethe!]” E, por fim, conclui: “Na história da cultura o ‘Reich’ é provisoriamente uma infelicidade:
a Europa ficou mais pobre desde que o espírito alemão finalmente renunciou ao ‘espírito’.” Essa oposição já
havia sido amplamente formulada por Nietzsche no texto de 1872, Sobre o futuro de nossas instituições de
formação.
primazia da formação ao mercado de trabalho. Mais um motivo para compreender o
quanto, de fato, Nietzsche foi extemporâneo.
Conforme escrevemos acima, a política decididamente suprime as possibilidades da
elevada “seriedade”, do pathos da seriedade que, no capítulo “O que os alemães estão
perdendo”, é um elemento de fundamental importância. Nietzsche se utiliza dessa palavra
em um sentido bem específico, sobretudo porque é um signo central para compreendermos
a estrutura afirmativa da sua Bildung, tal como ele abordará nos aforismos 6 e 7. Antes,
porém, é preciso lembrar novamente que esse capítulo, originalmente, comporia o primeiro
Prólogo ao Crepúsculo dos Ídolos elaborado por Nietzsche em 3 de setembro de 1888, tal
como já escrevemos na introdução do nosso texto. Essa relação contextual entre o ‘Prólogo’
ao Crepúsculo e o capítulo “O que os alemães estão perdendo” é importante a fim de
compreender o sentido que o termo ‘seriedade’ recebe nesse capítulo, pois remonta à
mesma seara semântica que ele também recebe no Prólogo definitivo do Crepúsculo dos
Ídolos. A citação-chave está no aforismo 3 e logo depois de um travessão – o signo com o
qual Nietzsche separa e organiza seus pensamentos nos aforismos –: “Ainda procuro por
um alemão com quem eu pudesse ser sério à minha maneira, – e ainda mais por alguém
com quem me fosse lícito ser jovial! Crepúsculo dos Ídolos: ah quem compreenderia hoje
que tipo de seriedade um eremita se recupera! – A jovialidade é o que há de mais
incompreensível em nós...” (CI, O que os alemães estão perdendo 3; KSA 6, p. 105s. O
grifo é nosso).
Nietzsche relaciona seriedade (Ernste) e jovialidade (Heiterkeit), ou melhor, em que
medida a jovialidade do espírito é oriunda precisamente da seriedade. O pathos da
seriedade é um privilégio e uma prerrogativa apenas daqueles que são suficientemente
capazes de se manterem joviais. Trata-se da hipótese segundo a qual algo cresce e se
intensifica a partir da sua própria oposição que, neste caso, é a ‘jovialidade’ conquistada
por aquele que padeceu um lento e doloroso processo de gravidade, mas que, ao cabo desse
padecimento, acumulou um excesso de forças regenerativas. O ‘eremita’ que se recupera da
‘seriedade’ é precisamente aquele capaz da nobreza espiritual, e que consiste na mais
absoluta leveza e jovialidade diante do caráter global da existência. Essa é a fórmula de
Nietzsche para seu conceito de ‘grandeza’: “Nietzsche denomina ‘grande’ nem tanto aquilo
que predomina, mas sim aquilo que não é negado da sua oposição, que não sucumbe nela,
mas sim que o torna ainda mais fecundo e pode crescer precisamente a partir da sua
oposição.”14 Assim é que se fala de uma ‘grande’ política oriunda da ‘pequena política’, da
‘grande razão do corpo’ originária da sua oposição ‘pequena razão’, ou até mesmo de uma
‘grande saúde’ que se torna suficientemente perdulária, na medida em que é capaz de
resistir e se fortalecer a partir da própria doença (cf. EH, Por que sou tão sábio 2; KSA 6, p.
267). Essa hipótese está bem registrada no ‘Prólogo’ ao Crepúsculo dos Ídolos, e a fórmula
de Nietzsche para isso é: “mesmo no ferimento se encontra também a força curativa”, ou
seu “lema”: „increscunt animi, virescit volnere virtus“ (crescem os espíritos, a força se
fortalece com a ferida” (CI, Prólogo; KSA 6, p. 57)15. Ao mesmo tempo, porém, nada é
mais necessário à conquista da jovialidade do que precisamente o longo e doloroso
processo no qual se respira a atmosfera da seriedade. Assim, a jovialidade é uma conquista
e não um dom. Tem de se atravessar, percorrer, padecer um processo a fim de ser
suficientemente digno de seu pertencimento. A jovialidade é o privilégio daqueles que são
suficientemente sérios, a saúde é prerrogativa dos que suportam suficientemente a doença,
assim como a boa consciência na falsidade, como escreve Nietzsche na Gaia Ciência (GC),
é a solicitude dos justos (GC 361; KSA 3, p. 608). Por isso Nietzsche se refere à
‘jovialidade’ como o que há de mais ‘incompreensível’ naqueles que são capazes da
nobreza espiritual.
Na medida em que a política se torna soberana sobre a cultura, é justamente esse
pathos da seriedade espiritual que se esvazia, perde-se a jovialidade perdulária daqueles
que são suficientemente capazes de seriedade e, por isso, arremata Nietzsche: “os alemães
14
Stegmaier, W, Schicksal Nietzsche? Zu Nietzsches Selbsteinschätzung als Schicksal der Philosophie und der
Menschheit (Ecce homo, Warum ich ein Schicksal bin 1), in: Nietzsche-Studien 37(2008), p. 62-114, aqui na
p. 112.
15
Contextualmente, o ‘Prólogo’ ao Crepúsculo dos Ídolos tem de ser lido ao lado do prólogo da sua “obra
gêmea” – O caso Wagner (WA) (cf. carta de 7-11-1888) –, que também é, indiretamente, citado no ‘Prólogo’ a
CI – “todo ‘caso’ um caso feliz” –, e cuja hipótese da abundância que cresceu da necessidade aparece no WA
sob a fórmula: “Talvez ninguém tenha crescido mais perigosamente com o wagnerismo, ninguém se defendeu
mais fortemente contra ele, ninguém se alegrou mais de ter se liberado dele. Uma longa história! [...] Minha
maior vivência foi uma convalescença. Wagner pertence a uma de minhas doenças.” (WA, Prólogo) Além
disso, o “Prólogo” a CI tem de ser lido também no contexto maior dos ‘Prefácios’ de 1886, especialmente o
aforismo 7 do volume I de Humano, demasiado humano (HH), cuja “liberação” [Loslösung] é a “tarefa” que
toma corpo e se impõe como “secreta força e necessidade” ao espírito livre, a fim de ‘poder’ enxergar, escreve
Nietzsche, “nosso problema”: “o problema da hierarquia”. Segundo a hipótese, a hierarquia é ‘nosso
problema’, porque ele “teve necessidade” de “preparações, desvios, provas, tentativas, disfarces [...], antes
que fosse lícito que ele surgisse diante de nós.” Enfatize-se, porém, que a “necessidade dessa tarefa” se impõe
“tal como uma gravidez inconsciente”. A hierarquia é uma visão geral [Überblick] que se conquista do
excesso forças plásticas regenerativas, mas que só cresceu precisamente dos “múltiplos e contraditórios
estados de necessidade e felicidade na alma e no corpo.” (HH I, Prefácio 7).
mesmos são incapazes dessa forma de seriedade” (CI, O que os alemães estão perdendo 4;
KSA 6, p. 106).16 Ser ‘sério’ à ‘sua maneira’, como escreve Nietzsche, é a fórmula
enigmática dos que são suficientemente saudáveis, pobres por abundância e joviais por
seriedade. Não à toa foi assim também que Nietzsche caracterizou a leveza e a jovialidade
dos gregos: “Esses gregos eram superficiais – por profundidade!” (GC, Prefácio 4; KSA 3,
p. 352) Se os alemães estão perdendo algo, e esse algo é Geist, uma fórmula central para a
compreensão dessa perda é precisamente o crepúsculo do pathos da seriedade. Portanto, a
Bildung, tal como Nietzsche a retoma no capítulo “O que os alemães estão perdendo”,
pressupõe a necessária leveza, a imprescindível jovialidade, em suma, o pathos da
“seriedade com as coisas efetivamente espirituais.” (CI, O que os alemães estão perdendo
1; KSA 6, p. 103) A compreensão afirmativa da Bildung nos aforismos 6 e 7, enfim, tem de
ser feita à luz da jovialidade e no horizonte do pathos da seriedade espiritual.

Aprender a ver, aprender a pensar, aprender a falar e escrever


Os últimos dois aforismos de “O que os alemães estão perdendo” revela, como o
próprio Nietzsche escreve sobre si mesmo, sua “natureza” “afirmativa”, pois sua criticidade
e força de oposição são, continua ele, apenas “de modo indireto e involuntário” integrantes
de sua natureza (CI, O que os alemães estão perdendo 6; KSA 6, p. 108). É importante
ressaltar novamente, e a escritura do nosso texto tentou também exprimir isso, o
ordenamento bem sistemático e didático com o qual Nietzsche redige esse capítulo, assim
como é bem visível também, precisamente por seu didatismo na sequência da
argumentação, que ele originalmente compunha um ‘Prólogo’. Assim, os aforismos 6 e 7
concluem – mas sempre provisoriamente como é típico de Nietzsche – a sequência do texto
que havia iniciado com o diagnóstico da des-espiritualização, a explicação do crepúsculo da
Bildung e, agora, as estruturas fundamentais e afirmativas que integram o sentido da sua
retomada do conceito de Bildung, além de abrir a ocasião apropriada para explicarmos
melhor a nossa hipótese.
Por conta da já mencionada carta a Carl Fuchs de 9 de setembro de 1888,
Crepúsculo dos Ídolos foi considerado por Nietzsche como a “perfeita e completa

16
Nietzsche contrapõe a Alemanha à França para exemplificar para onde essa seriedade espiritual dos que são
joviais está se deslocando: “Já atualmente muito dessa nova seriedade, muito da nova paixão do espírito se
transfere para Paris” (CI, O que os alemães estão perdendo 4; KSA 6, p. 106).
introdução” à sua heterodoxia filosófica. O que queremos chamar atenção, porém, é a um
detalhe talvez desapercebido no geral pela pesquisa Nietzsche, a propósito do caráter
‘introdutório’ de CI, vale dizer, se se trata de uma introdução ao seu pensamento no geral,
ou antes, uma introdução à sua obra magna que ele estaria redigindo, mas que se sabe que
foi abandonada posteriormente por ele, ou melhor, de que O Anticristo teria se tornado sua
‘transvaloração’ in totum, que é precisamente a “Transvaloração de todos os valores”
(Umwerthung aller Werthe). Em todas as cartas que Nietzsche envia a amigos e ao editor
mencionando o caráter introdutório do Crepúsculo dos Ídolos, imediatamente em seguida
vem a alusão à obra magna “Transvaloração de todos os valores”. Em uma carta de 12 de
setembro de 1888, enviada a seu corretor de provas e amigo Peter Gast, Nietzsche anuncia
o nascimento de seu novo livro, o Crepúsculo dos Ídolos, referindo-se ao caráter
introdutório, mas decididamente fazendo menção não ao contexto global da sua filosofia,
mas sim se referindo à sua obra capital: “Sob esse título inofensivo se esconde um resumo
sagazmente esboçado e preciso das minhas principais heterodoxias filosóficas: de tal modo
que pode servir como iniciação, a fim de que se abra o apetite do leitor para minha
Transvaloração de todos os valores”.17 Na verdade, o que queremos dizer é que, a nosso
ver, Crepúsculo dos Ídolos guarda uma complexidade muito maior do que a mera
consideração de introdução genérica ao seu pensamento, mas sim que é, obviamente, uma
retomada de suas principais linhas teóricas elaboradas anteriormente, porém, todas elas à
luz do novo horizonte da ‘Transvaloração de todos os valores’, carregando consigo,
portanto, radicais alterações conceituais em relação ao que fora anteriormente escrito. Tal é
o caso, p.ex., do conceito de arte, filosofia, o par apolíneo/dionisíaco, ação e atividade,
gênio, etc. e, a nosso ver, também do conceito de Bildung.
Voltando agora à nossa hipótese, mas com esse horizonte teórico de alteração
conceitual que ocorre no CI, o aforismo 6 apresenta “três tarefas” essenciais “para as quais
se precisam de educadores”, a fim de construir uma espiritualidade elevada e uma “cultura
nobre”: “aprender a ver, aprender a pensar, aprender a falar e escrever” (CI, O que os
alemães estão perdendo 6; KSA 6, p. 108). A explícita e didática apresentação por
Nietzsche dessas três tarefas são estritamente singulares e um mérito exclusivo do

17
Mesmo a carta de 9 de setembro a Carl Fuchs também menciona em seguida a Transvaloração. Cf. também
a carta a G. Brandes de 13 de setembro e a Paul Deussen de 14 de setembro.
Crepúsculo dos Ídolos e, de acordo com nossa hipótese, componentes integrantes essenciais
da retomada do conceito de Bildung.
Aprender a ver. Nietzsche havia dito de si mesmo em sua autogenealogia, o Ecce
homo: “Descontado o fato de que sou um décadent, sou também o contrário disso.” (EH,
Por que sou tão sábio 2; KSA 6, p. 266) E de modo muito semelhante escreveu também em
O caso Wagner – a obra gêmea ao Crepúsculo dos Ídolos –: “O que um filósofo exige de si
mesmo em primeiro e último lugar? Superar em si seu tempo [...] Com o que portanto ele
tem de combater mais fortemente? Com aquilo em que ele é filho do seu tempo. Pois bem!
Tão bem quanto Wagner, sou também filho desse tempo, quero dizer, um décadent: porém
eu compreendi e me defendi disso. O filósofo em mim se defendeu disso.” (CW, Prólogo;
KSA 6, p. 11) Ambas as passagens aludem àquele pathos da seriedade, ao fato de que o
próprio Nietzsche teria percorrido o padecimento da décadence, mas que, ao cabo desse
processo, é capaz de ganhar uma visão geral para olhar à distância e sempre com dedos
mais nuançados. Assim ele também é capaz de jovialidade, mesmo em meio às atmosferas
mais sufocantes. ‘Aprender a ver’ significa então a conquista de uma hierarquia, a
capacidade de se manter jovial e olhar à distância, sem imediatamente ter que reagir a um
estímulo. Trata-se de um novo modo de ser no mundo, e que consiste muito mais em deixar
que as coisas, o mundo e as pessoas se imponham, surjam e se revelem diante de si, e
menos uma reação imediata na qual alguém vai ao mundo para reagir a ele. Hierarquia
significa aqui a conquista de alguém que agora pode olhar à distância, sabe da ocasião
apropriada e tem dedos para nuances. A hierarquia no interior da própria alma que agora
aprendeu a selecionar, a hierarquia oriunda da própria jovialidade. Ainda em sua
autogenealogia, Nietzsche escreveu sobre alguém com tal jovialidade: “Ele reage
lentamente a toda forma de estímulo, com aquela lentidão cultivadas nele através de uma
demorada cautela e orgulho alcançado – examina todo estímulo que se lhe acerca, e está
longe de ir ao seu encontro.” (EH, Por que sou tão sábio 2; KSA 6, p. 267)
A hierarquia conquistada por aquele que é capaz de ser jovial, por seriedade, o
treinado na paciência, é precisamente a mesma hipótese que Nietzsche apresenta sobre o
‘aprender a ver’. ‘Ver’ aqui é ver à distância, um distanciamento da situação na situação,
deixando que o mundo se apresente ao homem e não que este tenha que imediatamente
reagir a ele: “Aprender a ver – acostumar o olho à calma, à paciência, a permitir que as
coisas se nos aproximem [...]. Essa é a primeira propedêutica à espiritualidade: não reagir
imediatamente a um estímulo, mas sim tomar gosto pelos instintos inibidores, pelos
instintos que sabem separar.” (CI, O que os alemães estão perdendo 6; KSA 6, p. 108) É
preciso destacar que a hipótese de ‘não reagir imediatamente a um estímulo’ foi
recepcionada por Nietzsche a partir do texto do psiquiatra francês Charles Féré, Sensation
et Mouvement de 188718, para quem a reação imediata e não inibida a um estímulo externo,
não apenas conduz diretamente ao esgotamento nervoso, mas também se configura como
um fenômeno patológico, particularmente dos neuróticos.19
Além do fenômeno patológico, o que mais impressiona Nietzsche no texto de C.
Féré, porém, é precisamente a ideia de que a reação imediata conduz sempre a um
esgotamento nervoso, expressão muito mais de uma fraqueza e debilidade decadenciais, do
que efetivamente da plenitude fisiológica de forças: “A excitação põe em jogo uma
atividade que se esgota” («l'excitation met en jeu une activité qui s'épuise») (Féré, 1887, p.
142). Curiosamente, em um apontamento póstumo da primavera de 1888 Nietzsche
praticamente parafraseia essa passagem de Féré, logicamente sem a devida referência,
aludindo ao esgotamento nervoso diante da imediata reação a um estímulo: “O estímulo
põe em jogo uma força que se esgota...” (Nachlass primavera de 1888, 14[3]; KSA 13, p.
218) Como não é o caso de analisar aqui tal influência, mas é imprescindível deixá-la
registrada, o que nos importa é que no aforismo 6 de “O que os alemães estão perdendo” a
noção de “não-espiritualidade” (Ungeistigkeit) é também expressão de um “vício” ou uma
incapacidade de não reagir, nos mesmos moldes da patologia mencionada pelo psiquiatra
francês: “Toda não-espiritualidade, toda vulgaridade assenta-se na incapacidade de produzir
uma resistência a um estímulo – tem de agir, deixa-se levar por cada impulso. Em muitos
casos um tal ‘tem de’ já é algo doentio, um declínio, sintoma de esgotamento – quase tudo
o que o jeito não-filosófico de falar caracteriza por ‘vício’ é meramente a incapacidade
fisiológica de não reagir.” (CI, O que os alemães estão perdendo 6; KSA 6, p. 109)20
18
Outro texto fundamental de C. Féré também foi lido por Nietzsche é: Dégénérescence et Criminalité: essai
physiologique. Paris: F. Alcan, de 1888. Ambos os textos são decisivos a Nietzsche, sobretudo no tocante à
retomada da análise fisiológica do fenômeno moral, da arte, filosofia, etc. A nosso ver, Crepúsculo dos Ídolos
é um texto que em hipótese alguma pode ser lido sem o horizonte teórico da influência desses dois textos do
psiquiatra Charles Féré.
19
Cf. Féré, Charles. Sensation et Mouvement : etudes experimentales de psychomecanique. Paris : F. Alcan,
1887, p. 55 : «Les réactions sont plus marquées chez les névropathes »
20
Sobre o aspecto doentio da incapacidade de não reagir a um estímulo, cf. também CI, Moral como
antinatureza 2 e CI, Incursões de um extemporâneo 10.
É preciso lembrar que a reação imediata a um estímulo feita de um só golpe era, em
Para genealogia da moral (GM), expressão da ação do “homem nobre” especialmente
daqueles capazes de agir sem ressentimentos.21 Deslocados os horizontes conceituais do
Crepúsculo dos Ídolos, a expressão de força fisiológica agora é precisamente o contrário.
‘Aprender a ver’ pressupõe forças fisiológicas suficientemente fortes para não reagir
imediatamente a um estímulo, um sintoma da hierarquia daqueles que podem ser joviais e
olhar à distância. A nosso ver, é nesse horizonte que se compreende aquela ‘propedêutica à
espiritualidade’ mencionada por Nietzsche, e que consiste em “não reagir imediatamente a
um estímulo”.22 Como dissemos, essa espiritualidade baseia-se de um modo de ser no
mundo em que permitimos que o mundo, as coisas e as pessoas se imponham e se revelem
diante de nós. Não se trata mais, ao contrário, do sujeito que vai ao mundo através da
compreensibilidade racional ou do planejamento compulsivo, expressão do histérico, como
escreve Nietzsche, que é incapaz de ‘não reagir’. Deixar que o mundo se revele diante de
nós é permitir-se, situar-se ali onde é possível olhar à distância, com a jovialidade daquele
que efetivamente aprendeu a ver. Nietzsche nos relega um exemplo prático do ‘aprender a
ver’: “Como discente (Lernender), terá se tornado lento, desconfiado, resistente. No início,
deixará que o estranho, o novo se lhe acerque com calma hostil, – não retirará dali suas
mãos. O deixar aberto todas as portas, o ajoelhar-se serenamente diante de cada pequeno
fato, o estar disposto a lançar-se a todo instante, o expor-se a tudo e a todos [...]” (CI, O que
os alemães estão perdendo 6; KSA 6, p. 108) Essa é a hierarquia do ver à distância, daquele
que aprendeu a ver. Obviamente não significa ‘ver’ fisicamente, mas a visão do
suficientemente curtido que não precisa mais precipitar-se na impulsividade juvenil, que
reage imediatamente a um estímulo externo; a ‘propedêutica à espiritualidade’ numa
espécie de jovialidade serena e leve implica em ‘permitir-se’, implica na conquista de uma
certa “arte de nuances” (ABM 31; KSA 5, p. 49): ao invés de reagir imediatamente, permite

21
“Mesmo o ressentimento do homem nobre quando nele surge, consome-se e se esgota em uma reação
imediata e, por isso, não envenena: por outro lado, nem sequer surge em inúmeros casos, ali onde para os
fracos e impotentes é inevitável.” (GM I 10; KSA 5, p. 273) Agora, porém, no Crepúsculo dos Ídolos e por
conta da influência da leitura do psiquiatra C. Féré, sua concepção de atividade se altera radicalmente,
mudando também aquilo mesmo que ele denominará de ‘aprender a ver’. Esse é um bom exemplo das
alterações conceituais que ocorrem em CI, justificando-se nossa insistência em ler o Crepúsculo dos Ídolos à
luz desse deslocamento conceitual direcionado à sua obra capital ‘Transvaloração de todos os valores’, e não
meramente uma parca introdução aos seus escritos anteriores.
22
Sobre isso, cf. também EH, Por que sou tão inteligente 8; e CI, Incursões de um extemporâneo 47.
que as coisas se acerquem a fim de poder olhar distanciado da situação, mas na situação.
Isso é nobre!
Aprender a pensar. Cada tarefa elencada por Nietzsche ganha um significado bem
particularizado no interior da sua filosofia. Se a primeira ‘propedêutica à espiritualidade’
era não reagir imediatamente a um estímulo, de modo que alguém aprenda a ‘ver’ no
sentido da leveza que observa à distância e permite que o mundo se o acerque, ‘pensar’ tem
também uma propedêutica curiosa em Nietzsche: a “dança”: “[...] o pensar tem de ser
aprendido tal como o dançar tem de ser aprendido – como uma forma de dança...” (CI, O
que os alemães estão perdendo 7; KSA 6, p. 109) Nenhum outro conceito poderia estar
mais apropriado ao contexto teórico do capítulo do que a ‘dança’, pois contextualmente está
ligada à leveza, à jovialidade, àquele pathos da seriedade espiritual ou, como Nietzsche
escreve, aos “pés ligeiros”.23 O bom dançarino não é aquele que precisa calcular a todo
instante cada movimento, ou sistematizar cada passo a ser dado numa espécie de rigorosa
métrica desdobrada como se fosse um silogismo lógico: há aí uma excessiva gravidade
destilada sob a forma de compreensibilidade conceitual. Toda vez que se queira
“bem-pensar” dessa forma, com a gravidade metódica do mau-dançarino, o “intelecto”,
escreve Nietzsche na Gaia Ciência, se torna uma “máquina enfadonha, tenebrosa e
rangente, cuja dificuldade é fazê-la se movimentar”, e chegam até mesmo a denominar esse
“bem-pensar” como “levar a coisa a sério” (GC 327; KSA 3, p. 555). Aprender a dançar
requer leveza, a mesma exigência para aprender a ‘pensar’ e, para isso, é preciso ter Geist
nos pés a fim de que se tornem ligeiros: “Entre os alemães, quem ainda conhece por
experiência aquele sutil arrepio que os pés ligeiros nas coisas espirituais derrama nos
músculos!” (CI, O que os alemães estão perdendo 7; KSA 6, p. 109)24 Os pés ligeiros
conduzem o bom dançarino com a delicadeza necessária para que precisamente o cálculo
no dançar desapareça, de modo que nem sequer percebamos o dançarino tocar o chão. O
movimento é de tal maneira leve que simplesmente surge, se revela e se acerca do
dançarino. Assim, dançar também é uma ‘propedêutica à espiritualidade’, na medida em

23
Sobre a dança, cf. Schüle, C. “Tanz, Tänzer”. In: Ottmann, H. op.cit., p. 335s.
24
Na sua obra gêmea, O caso Wagner, Nietzsche se refere duas vezes à importância da leveza nos pés: “ ‘O
bem é leve, tudo o que é divino anda com pés delicados’: primeira proposição da minha estética.” (CW 1;
KSA 6, p. 13). Cf. também CW 10. Contextualmente, no Crepúsculo dos Ídolos esse aforismo 7 de “O que os
alemães estão perdendo” remonta também ao capítulo “Os quatro grandes erros”, especialmente ali onde
Nietzsche escreve: “(na minha linguagem: os pés ligeiros como o primeiro atributo da divindade).” (CI, Os
quatro grandes erros 2; KSA 6, p. 90)
que, escreve Nietzsche, exige-se ter “esprit nos pés” para poder pensar, algo que os alemães
nem sequer pode compreender, pois nem mesmo “pés” chegam a possuir. (EH, O caso
Wagner 4; KSA 6, p. 362)25
Essa jovialidade da dança como semiótica para o ‘aprender a pensar’ ocorre no
aforismo 7 através de uma fórmula que, a nosso ver, é caríssima à filosofia de Nietzsche,
vale dizer, possuir “dedos para nuances” (CI, O que os alemães estão perdendo 7; KSA 6,
p. 110). ‘Nuance’ é a habilidade de perceber que o sentido de algo pode sempre ser
deslocado, sem se subsumir a um conceito homogeneizado ou válido sob quaisquer
situações. A ‘nuance’ é o desvio em relação ao conceito, uma vez que este último opera
sempre com a vulgarização na medida em que fixa algo, retirando-o das condições do
tempo. O próprio Nietzsche escreve sobre si mesmo: “eu sou uma nuance” (EH, O caso
Wagner 4; KSA 6, p. 362)26, ou seja, alguém que tão logo pensemos que o compreendemos,
já nos equivocamos, pois sempre se desvia da fixação em um conceito.
Uma outra expressão de Nietzsche para ‘nuance’ é “pathos da distância” (ABM
257; KSA 5, p. 205), conforme Nietzsche escreve no primeiro aforismo do capítulo “O que
é nobre” de Para além de bem e mal.27 Trata-se da característica daquele que justamente
consegue ver à distância, na mais genuína jovialidade diante de cada situação, sem se
precipitar em ligar o apressado torvelinho moral do juízo condenatório. “Pathos da
distância” é uma “reverência” que a “alma nobre” tem ou deve ter “diante de si mesmo”
(ABM 287; KSA 5, p. 233), aquele mesmo senso de hierarquia alcançado capaz de ver
diferenças, enquanto outros veem apenas a si próprios estampados nas coisas. Essa é a
diferença entre nobreza e vulgaridade: enquanto o homem de espírito conquistou ‘dedos
para nuances’ e vê diferenças, o vulgar vê sempre o mesmo em tudo, precisando, inclusive,

25
Essa jovialidade dos pés ligeiros caracteriza também Zaratustra, tanto no livro mesmo Assim falou
Zaratustra (Za) quanto nos comentários que Nietzsche faz ao seu personagem em sua autogenealogia, o Ecce
homo. Zaratustra se refere aos supostos ‘homens superiores’ como aqueles que não aprenderam a dançar, ou
seja, a superarem-se para além de si próprios: “Eis o que há de pior em vocês, homens superiores: nenhum de
vós aprendeu a dançar, tal como se tem de aprender a dançar – dançar para além de si mesmos! O que importa
se não sejam bem-sucedidos!” (Za, Do homem superior 20; KSA 4, p. 367). Cf. também Za, Do ler e
escrever; KSA 4, p. 50. Os pés ligeiros da jovialidade é também o modo que Nietzsche se refere ao
personagem mesmo Zaratustra. Cf. EH, Assim falou Zaratustra 6; KSA 6, p. 344.
26
Cf. Wotling, P. Nietzsche et le problème de la civilasation, Paris: PUF, 1995, especialmente o capítulo “Eu
sou uma nuance“; e Stegmaier, W. Nietzsches Kritik der Vernunft seines Lebens: zur Deutung von „Der
Antichrist“ und „Ecce homo“. In: Nietzsche-Studien 21(1992), p. 163-183.
27
Para uma sistemática análise da noção de ‘nobre’, cf. Tongeren, Paul v. Die Moral von Nietzsches
Moralkritik. Bonn: Bouvier Verlag, 1989, no capítulo IV intitulado “Die Vornehmheit”.
ter “as mesmas palavras para a mesma espécie de vivências interiores” e, sobretudo, o
vulgar carece ter “sua experiência em comum com os outros” (ABM 268; KSA 5, p. 221).
Enquanto o homem de espírito deixa ‘as portas abertas’ ao novo, o vulgar anseia encontrar
a si mesmo nas coisas. Este último, aliás, é o apaixonado que jamais “posterga uma
decisão” e que é incapaz de resistir a um estímulo: “Toda não-espiritualidade, toda
vulgaridade assenta-se na incapacidade de produzir uma resistência a um estímulo – tem de
agir, deixa-se levar por cada impulso.” (CI, O que os alemães estão perdendo 6; KSA 6, p.
109) Por isso, “os alemães”, escreve Nietzsche, “não têm dedos para nuances...” (CI, O que
os alemães estão perdendo 7; KSA 6, p. 109s.), de modo que a própria Alemanha, na
medida em assiste ao crepúsculo da sua espiritualidade e ao declínio da Bildung, vai
gradativamente também se tornando o “país achatado da Europa.” (CI, O que os alemães
estão perdendo 3; KSA 6, p. 105). A expressão ‘país achatado’ (Flachland) é empregada
ironicamente por Nietzsche, pois significa precisamente o processo de achatamento e
homogeneização de tudo e todos, ou seja, a exemplar incapacidade para ‘nuances’ em
proveito da fixação dura e calculada de tudo. Ao se servir da ironia novamente, Nietzsche
chega a se perguntar como “os alemães suportaram seus filósofos”, numa explícita alusão a
Kant – o filósofo do achatamento, fixação e universalização de tudo por excelência.28
‘Aprender a pensar’ acontece tal como se aprende a dançar, ou seja, com a leveza
necessária que não achata o espírito ansiando apenas estar ‘pronto’ à profissão. Dançar,
portanto, é uma semiótica usada por Nietzsche para exprimir seu pensamento sobre
‘nuances’ e, por isso, escreve Nietzsche, “não se pode retirar de uma educação nobre
precisamente o dançar em todas as suas formas, poder dançar com os pés, com os
conceitos, com as palavras” (CI, O que os alemães estão perdendo 7; KSA 6, p. 110).
É no horizonte do emprego filosófico da ‘dança’ que Nietzsche relaciona ‘pensar’
com ‘falar e escrever’. Sobre essa última tarefa “aprender a falar e escrever”, Nietzsche
nos deixou apenas parcas 4 linhas no último aforismo do capítulo “O que os alemães estão
perdendo”. Em todo caso, trata-se também da dança como semiótica para essa tarefa:
“ainda teria que dizer, que também temos de poder dançar com a pena – que se tem de
aprender a escrever? – Mas nesse momento me tornaria um completo enigma aos leitores

28
Cf. Stegmaier, W. Zur Frage der Verständlichkeit: Nietzsches Beitrag zum interkulturellen Kommunizieren
und Philosophieren. In BORSCHE, Tilman. (Hg.) Allgemeine Zeitschrift der Philosophie. 32.2 (2007) p.
107-119.
alemães...” (Idem) Como sempre, Nietzsche permanece o mais oculto dentre todos os
escondidos. Mas talvez aqui também valha sua enigmática sentença: “Não se quer apenas
ser compreendido quando se escreve, mas de certa forma também igualmente não ser
compreendido” (GC 381; KSA 3, p. 633), sentença esta que também não deixa de ser um
‘pathos da distância’. Se isso é verdade, por um lado, por outro lado, ousaríamos arriscar
uma hipótese de interpretação sobre o tema, mas deixaríamos apenas no âmbito da hipótese
sem posteriores explicações, por conta da economia do texto. ‘Aprender a falar e escrever’
é registrada por Nietzsche como uma única e mesma tarefa. Trata-se do aspecto
performativo da linguagem29 em Nietzsche, de modo que também a escrita, o estilo, tem de
ser de tal modo vivaz, gestual, atento aos períodos e ao tempo, que a escrita exprima a
potencialidade da fala mesma. Escrever, neste caso, precisa também ser um exercício de
sedução. (Cf. Nachlass sobre as anotações de Tautenburg, 1[109]; KSA 10, p. 38ss.) Falar e
escrever em Nietzsche, portanto, seriam uma única e mesma coisa na medida em que a
linguagem precisa exercer o caráter performativo. Por isso que ‘aprender a falar e escrever’
é registrado por Nietzsche como uma mesma ‘tarefa’. Não à toa, como Nietzsche escreve,
ele se tornaria nesse ponto um ‘completo enigma’ aos leitores alemães.30
Como é possível perceber, as ‘três tarefas’ de ‘aprender a ver, aprender a pensar,
aprender a falar e escrever’ são sumariamente afirmativas, e é a elas que mais se necessita
de ‘educadores’. Cada uma dessas tarefas significa um contra-movimento à
des-espiritualização, pois o objetivo, “nas três tarefas”, escreve Nietzsche, “é uma cultura
nobre” (CI, O que os alemães estão perdendo 6; KSA 6, p. 108). Diante do horizonte de
deslocamento conceitual operado no interior do Crepúsculo dos Ídolos, ao conceito de
Bildung precisam ser acrescentadas também essas três tarefas que tentamos elucidar acima.

29
Sobre o tema cf. Simonis, Linda. Der Stil als Verführer: Nietzsche und die Sprache des Performativen. In:
Nietzsche-Studien 31 (2002) p. 57-74. A hipótese da autora é precisamente ressaltar a dimensão performativa
do estilo de Nietzsche, ou seja, “a dimensão da retoricidade linguística que se deixa descrever como força de
efeito estética-sensual do discurso. [...] Nietzsche esboça, assim se mostrará, um defensor de um estilo
representativo e estético-sensual que se reflete, simultaneamente, como comportamento estético e como uma
arte de procedimento e encenação teatral. Toda estrutura de encenação e em forma de ação no que se refere à
expressão lingüístico-comunicativa, tal como é a que tem a ver com Nietzsche, deve aqui ser compreendida
sob o conceito de ‘performativo’, em ligação à teoria dos atos de fala de Austin e Searle. [...] Bom estilo no
sentido de Nietzsche se revela sobretudo através da vivaz imediatez, multiplicidade de expressão e
intensidade” (p. 58; 60).
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Sobre o caráter performativo da linguagem, cf. nosso texto Experimento e Vivência: a dimensão da vida
como pathos. Campinas: Unicamp, 2009, sobretudo o capítulo 3.1.5 intitulado “A ‘arte do estilo’: a
comunicação de um pathos”.
Bildung carece, digamos assim, de uma re-espiritualização do homem, no rigoroso sentido
que as três tarefas aludem. Cada uma delas precisa potencializar o horizonte da Bildung,
integrantes do novo pathos da seriedade espiritual, seja no aprendizado do ‘ver’ – como
força fisiológica treinada na paciência e capaz de ver à distância, sem reagir imediatamente
a um estímulo, mas deixando que o mundo se apresente e se acerque –, seja no aprendizado
do ‘pensar’ – cuja semiótica é a noção de dança e todo o cortejo de jovialidade que a
acompanha, operacionalizada como capacidade de perceber ‘nuances’ –, ou ainda no
aprendizado de ‘falar e escrever’ – sentença enigmática que, a nosso ver, traz os indicativos
do caráter performativo da linguagem. As três tarefas são um contra-movimento ao Reich, à
des-espiritualização, ao anseio juvenil do estar ‘pronto’. E se quisermos finalizar de modo
também enigmático e desafiador, digamos que às três tarefas carecem de “educadores’ que,
como escreve Nietzsche, “sejam eles mesmos educados, espíritos superiores, nobres,
provados a todo instante, experimentados na palavra e no silêncio, de culturas que tenham
se tornado maduras, doces...” (CI, O que os alemães estão perdendo 5; KSA 6, p. 107)

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