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Florianópolis-SC
2017
LAURA GRASIELA OLIVEIRA
Florianópolis-SC
2017
Este trabalho é da Alice e pela Alice. Pela menina que se faz presença em cada
pedacinho de minha vida, e parece que já existia antes de nascer, com suas cores e
jeitos próprios, obrigada por existir e por me fazer existir em decorrência disso como
mãe e como educadora...
AGRADECIMENTOS
The study begins with the analysis of the Nietzschean critique of Socratic rationalism,
articulated to what will be revealed as the basis of the Enlightenment learning model,
defended here as insufficient of the perspective that reflects on the constitutive
formative development of the human. For this adage, a brief study on the Greek cult
of myth will be developed, as opposed to the modern formative model. The symbolic
figure of Dionysius, praised by Nietzsche as the forerunner of the Greek ethos, is then
paired with the child's own potency, and argumentation seeks to demonstrate that such
aspects are not calculated by the purely rationalist mode of world-building, though
constituting the being. The study is developed analyzing the concept of becoming, play
as a proper ingredient of human capacity to create rules and invokes finitude as a
modality not only of presence but of the world itself. Connecting the idea of maturity
with the development of reason and the idea of human nature to what is proper to each
one, that is, to proceed from birth to adulthood and the figure of the child as becoming,
the debate here fomented indicates that the power inventive and creativity would be
natural to the human, while rationalist thought, placed as maturity, would placing the
human as the end of his own history: unpowered of his own resources, focused on a
single facet of his being, this human, under such conditions, cannot transvaluate to
their condition - servile, unnatural - this is an anti-tragedy of modern formation,
precisely because it does not ends. The study is directed to the assertion that the
rigidity of educational institutions is not what solidifies tradition, what it does is precisely
the inventive power, its opposite. Far from wanting to prescribe a new form of
pedagogy, the present work, praising Nietzsche's work, invites the power of each one
to create his own conclusions on how to become who everyone is, but never who
everyone should be.
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 9
INTRODUÇÃO
Embora não seja o principal eixo deste trabalho, é primordial que iniciemos
tratando a ideia nietzschiana de transvaloração. A citação que preludia o texto é uma
ode ao novo, ao porvir! Novos símbolos se fazem necessários, símbolos da carne,
que ultrapassam as linhas do teorizar, que dançam. O corpo dança! Transvalorar, na
obra nietzschiana e em suas diversas nuances não é um conceito fácil, mesmo porque
não existe uma indicação precisa feita por Nietzsche em relação à onde se chegue
indo além, por mais que fique extremamente claro em sua obra o que se deva
superar1. É muito problemático querer definir como outros corpos devam se portar,
sentir, se afetar ou seguir, nivelados por uma ideia que afeta à forma como nos
entendemos no mundo. Eu, com minhas vivências, sentimentos e afetos poderia
preencher todas essas linhas cruzando diferentes saberes, ontologias e físicas,
cosmologias e conceitos, obras e relatos para dizer da fermentação que a experiência
de minha própria vida fez ao vislumbrar da ideia do transvalorar e seguir: “façam
assim! Sigam por aqui! Amarrando Nietzsche, talvez com Goethe, Freire, Foucault e
uma pitadinha dos frankfurtianos e da antroposofia (!) certamente conseguiríamos!” –
eis um novo projeto de além do homem! Mas não deixa de afetar também uma
centelha em meu interior que diz que a minha vida é minha, me diz respeito – tão cara
a mim – mulher, mãe, educadora, portadora de espírito e voz a tão pouco tempo
histórico e ainda sofrendo pelas feridas não cicatrizadas desses golpes no meu vir a
ser enquanto mulher. Sentir o que é o silenciamento na experiência de vida,
principalmente a acadêmica, e ter voz, não me empurra para o lugar daqueles que
falaram por mim, pelo contrário, me recorda que absolutamente todos têm algo a dizer,
por mais heterogêneo e contrastante que as vozes sejam. Então, escrevo essa
introdução já anunciando que aqui não estará contido uma ideia do “para onde”
1 “A Moral antinatural, ou seja, quase toda moral até hoje ensinada, venerada e pregada, volta-se, pelo
contrário, justamente contra os instintos da vida – é uma condenação, ora secreta, ora ruidosa e
insolente, desses instintos. Quando dia que “Deus vê nos corações”, ela diz Não aos mais baixos e
mais elevados desejos da vida, e toma Deus como inimigo da vida... O santo no qual Deus se compraz
é o castrado ideal... A vida acaba onde o “Reino de Deus” começa.” (NIETZSCHE, 2006, p. 36).
Transcrevo o trecho de forma ilustrativa e como um pequeno exemplo.
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transvalorar. Agir assim é como escrever uma bula. E algo que me afeta diretamente
pelo contato com as reflexões nietzschianas coloca o problema com as bulas na
constatação de que elas pretendem receitar a forma precisa de como deveríamos nos
curar. Esse problema das bulas pode ser simbiogizado com a ideia do transvalorar:
não se pode dizer qual humanidade devemos superar porque nem todos, ou mesmo
ninguém partilha dos mesmos inícios, aspirações, ideias, juízos, etc., mas mesmo
assim acreditamos que podemos criar receitas que nivelem o bem-estar geral, que
minimizem os danos do viver em sociedade, que capacite os seres humanos a se
relacionarem uns com os outros, mas de forma artificial. Deixe-me explicar melhor: o
ser humano, animal vivente nesse planeta Gaia, nasce! A obviedade da constatação
camufla, de certa forma, uma questão filosófica que fica sempre latente, numa quase
ebulição e que diz: nasce o animal humano, pequeno, frágil e, do lugar onde me
encontro enquanto “madura”, posso dizer: vazio – de símbolos, significados,
significantes, códigos, medidas, juízos, etc. e que definem exatamente o ponto onde
me encontro para dizer dele. Este pequeno ser precisará de cuidados e educação.
Cuidados, pois, incapaz de manter vivo a si mesmo, precisará de proteção e zelo de
cuidadores já “formados”. Educação para poder adentrar e compartilhar o mundo
criado e mantido por esses formados. Um mundo complexo de símbolos, significados,
códigos e caminhos específicos, de imagens que na maioria das vezes dizem mais do
que a imediatez do vislumbre do olhar, de sons que carregam inúmeros sentidos, de
palavras, metáforas, subjetividades, cultura.
Por esse pequeno ser ter nascido em um mundo construído e estabelecido
por “humanos”, tornou-se historicamente necessário que seja educado sob normas e
prescrições criadas e que sirvam a todos, em igual medida, quando se está entre
iguais. Contratos. Utilidades. Formas que definem o que é o “ser humano”, sua
maturidade, seu acabamento e principalmente até que ponto esse pequeno ser deva
crescer para ser visto como um igual. Assim, afastando-nos da necessidade ou não
do estabelecimento de um contrato para que vivamos bem e em paz socialmente, da
necessidade ou não de leis que regem a todos, atentemo-nos por um instante nesse
detalhe: a esse ser que nasce é dado um mundo já estabelecido e compactuado, do
qual ele deva aprender a compartilhar, seja pelos progenitores, pelos cuidadores ou
educadores, mas sobretudo existe um devir nesse ser que afirma: sou potência! Esse
pequeno ser, impenetrável a nós de corpos adultos, vai necessariamente, em
condições regulares da espécie humana, aprender a falar, a se relacionar, a mostrar
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o que quer e o que tem. E somente depois de ser capaz de fazer a ponte entre o
mundo circundante e seu mundo interior, irá falar sobre o como deve ser,
contratualmente, a vida em sociedade, ou a formação dos menores. Não sejamos
ingênuos de acreditar que a forma como o mundo se apresenta a ele não exerça
influência em seu construir mundo. Por mais que existam estudos sobre a
determinância genética na formação, o ambiente circundante, marcado também por
aspectos subjetivos e simbólicos, exerce influência no desenvolvimento ontogenético
da criança2.
Dito de outra forma, é necessário o formado para que se estabeleçam
contratos, estudos, investigações que vão servir como determinantes e que sejam de
comum acordo estabelecidas e passem a vigorar como regra, ou seja – nesse caso,
tratando da criança, adultos que forjam artificialmente um mundo que se estabelecerá
como natural devido ao fato de a criança ter de aprender como se deve ser humano.
E voltamos à questão: a criança, independente do meio artificial (que figura então,
como uma convenção que se estabelece como verdade de mundo) onde nasceu, já
possui a potência de transformar esse caos, chamado há algumas linhas acima de
“vazio”, em forma. Essa dissertação busca recriar o caminho de reencontro à essa
criança, afirmando que a forma não esgota o caos, muito pelo contrário, pode ser
impulso para o mergulho em um território desconhecido. Mas, além desse elogio ao
inominável, busca elucidar que a formação artificial, por mais bem intencionada e
eficaz que seja, mesmo ao pensar em escalas maiores3 e universalizantes, acaba por
despotencializar a força criativa intrínseca à cada um e, ao mirar o nivelamento, coloca
uma medida em cada humano que nasce, assim, tornando fraca outras facetas
também constituintes desse ser – o transvalorar, o devir, o apreender o novo, o
transformar e brincar, mantendo-o aplainado com uma ideia secularizada de
“Literatura maior e menor” de Deleuze e Guattari, onde tanto a Literatura quanto a Educação Maiores
são responsáveis por uma territorialização e homogeneização do que se entende usualmente quando
se invoca tais termos: “a educação maior é aquela dos planos decenais e das políticas públicas de
educação, dos parâmetros e das diretrizes...” (GALLO, 2016, p.64.). Territorializar é entendido como
um pertencer, uma circunscrição que define o que é o conceito, a coisa, o símbolo, a substância, criando
assim uma borda: o que está por dentro da borda é, o que está fora, não é. Como não se pode tornar
estático um território, este é o tempo todo subvertido e rasgado por devires, em um processo entrópico
que busca desterritorializar, agenciar (cooptar, convencer, reinventar!) a ideia de pertencimento a este
território – no caso, o da educação.
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4 No original: “Tresvaloração de todos os valores: eis a minha fórmula para um ato de suprema
autognose da humanidade, que em mim se fez gênio e carne” (NIETZSCHE, 2008, p. 102) – mudança
do original e grifo por minha conta.
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humano e assim o é em termos estruturais, sociais e culturais. Habito este lugar como
medida, seja do que sou, do que fui e do que ainda não tenho acesso, mas busco.
Posso dizer que há um mundo a se delimitar, uma borda para se definir, um território
comum que cada criança a ser educada precise desenhar e habitar. E se autoencerrar
em. Então há também uma propulsão de forças em direção à criança. Forças tão
potentes que direcionam seu devir, que é a própria potência, como veremos ao
ruminar a reflexão nietzschiana sobre potência e transvaloração e dizem diretamente
à criança enquanto metáfora criadora, pleiteando-a.
Essas forças criam bordas e essas bordas criam chão, erguem paredes,
determinam gravidades, passos, etapas e caminhos para se chegar a portas; criam
também linguagem, símbolos, separações, significados e significantes e a torneira por
onde o devir esguicha começa a se definir como palavra “torneira”, e o próprio devir
cria nome e se perde quando se acha nessa palavra.
Recordo-me de um pensador oriental, D. T. Suzuki, que narra um conto de
Chuan-tze7 em uma passagem do livro Zen Budismo e Psicanálise (1970) e que narra
a história de Konton, ou simplesmente o caos. Konton era amigo de muitos seres que
lhe gostariam de agradecer por numerosos préstimos concedidos: o acaso, o caos
sempre tomou a vida pela surpresa, sendo assim responsável por reviravoltas,
esperança e promessas. Notaram os amigos que, não sendo dotado de órgãos
sensoriais – nariz, olhos, boca – acharam por bem serem esses presentes valiosos e
ofertaram a Konton tais dádivas, transfigurando-o em uma personalidade sensível tal
qual os que ofertavam os presentes. Tomando forma, Konton morreu. Segundo
Suzuki, os amigos que presentearam com forma o caos, à Konton, são uma metáfora
para o Ocidente.
O Ocidente é uma medida que se define na forma em que usa e representa o
mundo. Konton, por sua vez, é um significante sem forma, “que nunca se mostra de
modo que se torne reconhecível aos participantes” (SUZUKI, 1970, p. 15). O
significado do caos jamais se manifesta de forma que fique reconhecível àqueles que
com ele tomam contato. É como o devir! O Ocidente, ao personificar nessa metáfora
os amigos que deram forma a Konton, toma a medida do modo como
operacionalizamos e sistematizamos nosso mundo circundante: um território.
Contudo, há aquelas intuições que rasgam territórios, o perpassam e jamais
permanecem – são movimento: são como música! Nós, ávidos por pertencer e fincar
moradia, conceitualizamos, trazemos para o campo da linguagem, pensamos sobre,
fundamentamos e compartilhamos através de uma linguagem comum aquilo
inominável e o caos, potência dionisíaca para além do que se pode traduzir por
símbolos intelectíveis, então morre e morre para dar lugar à um modus operandi novo,
marcado pelo pensar sobre, pelo corpo que pensa, pela razão. Retornarei à Konton
adiante.
Tomemos a crítica nietzschiana à modernidade como medida. Ela habita
exatamente a proporção que este direcionamento – o culto à razão – tomou no
Ocidente.
Em O Nascimento da Tragédia (1872), Nietzsche apontava, ao se referir ao
caráter do povo grego, à um entrelaçamento fundamental entre “a arte e o povo, o
mito e o costume, a tragédia e o Estado” (NIETZSCHE, 2007, p. 135). Oposições,
dualidades que, a partir da reflexão nietzschiana, não demandam um maniqueísmo
mortal, onde um polo busca a extinção de outro. Lembro-me de uma sabedoria popular
que me abriu a perspectiva de pensar que sem as sombras, não há visão da luz, nada
se ilumina: polos aqui se complementam, se impulsionam, potencializam, fazem girar
a roda do fenômeno dicotomizado, criam movimentos, contrastes, intensidades que,
dessa forma, abrem espaços, territórios novos, habitares novos, em uma dança fractal
que não se esgota! Assim, ao analisar o declínio da tragédia na Grécia e relacioná-la
à ascensão de um novo modus operandi – a razão – Nietzsche afirma que a
hipervaloração de um em detrimento de outro caracteriza, antes um engessamento
das potencialidades do ser do que um acabamento deste. A Razão e sua primazia
aqui são então colocadas como um estagnar, e por isso, como território morto, é
possível ver suas bordas, seus contornos, limitações e sobretudo, seu tamanho. Tal
trabalho genealógico é o foco da investigação do Nascimento da Tragédia juntamente
com o elogio às potências dionisíaca e apolínea, seus desconformes.
Reitero: uma aparente oposição entre o trágico e o científico revelaria uma
oposição à própria dicotomia inerente ao ser, que, segundo Nietzsche, ao ter se
iniciado justamente no momento de decadência da cultura grega (o prólogo usado por
Eurípedes, que introduzia o expectador na cena, contextualizando-o e mais – por
detrás desse fato, o cientificismo socrático!), adquire, a partir de então, características
de uma continuidade transmutada e intensificada desse cientificismo, que se
estabeleceu no século XIX e ali se fixou enquanto parâmetro, inclusive, para a análise
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Assim, a análise puramente histórica acaba por tornar o humano que a analisa, o seu
fim último. Em Schopenhauer como educador Nietzsche coroa tal máxima:
falsa, pois a linguagem não representa em momento nenhum a coisa em si. A palavra
não é a experimentação da coisa. Tanto o viver quanto o ensinar, desta forma, dizem
respeito apenas ao entendimento daquele que fala (ou do educador) e a capacidade
de criar metáforas – a partir dos sons das palavras – daquele que ouve (ou do aluno)
e não da coisa explanada que continua à parte de ambos.
O humano faz erigir sobre fundamentos móveis, sobre água corrente, um
domo conceitual infinitamente complicado: constrói o conceito a partir dele mesmo (o
humano, a fluidez, o vazio). Isso quer dizer que o humano faz surgir densidade onde
há apenas o território plano da linguagem ou do conceito, constrói-os dentro do
intelecto e acredita nisso como sendo o seu “exterior”. Tal artifício é parte constituinte
do processo de construção de mundo, contudo, colocar no conceito o valor imperativo
de verdade é construir um ídolo e dar a ele uma vida própria, independente do próprio
humano.
A verdade do humano tem um valor limitado no tempo, não chega à coisa em
si e só cria valor enquanto toma como referência o próprio humano: vindo dele e a ele
voltando. Abstrato é aquilo o que toca a coisa em si: o humano assim metamorfoseia
o mundo em humano e busca na verdade das coisas (alheias à ele) o próprio humano.
Um momento de desvelamento de uma verdade fugidia que vale por todo o tempo,
que figura como acabamento. Um looping. Uma prisão resultante de um processo
histórico que elevou o entendimento do humano ao grau de portador dos mistérios e
da capacidade descodificante do mundo.
Reflito então no território que busco aqui ocupar. Território que diz de meu
mundo circundante e daquilo que verto de volta. Considero o educar à criança. Educar
enquanto cinzel daquilo que se direciona ao mundo da carne (portanto, já formado
para ser) humana e que em mim tomou a medida de minha experiência com esse
mesmo mundo, territorializou-se, a forma como esse fato pode determinar ganhos e
perdas e como esses ganhos e perdas podem retroalimentar-se para não se
esgotarem. Como poderia eu fugir desse círculo vicioso, se é próprio do humano criar
imagens e acreditar nelas? Ou ainda – o tempo que essas imagens têm de duração a
ponto de tornarem-se preciosas enquanto tradição. É necessário que saibamos os
passos dos que vieram antes, afim de evitar erros e seguir a partir daí sem precisar
começar sempre do zero. É necessário continuar de onde outros pararam, usar suas
costas como degrau para poder ver mais ao longe, então, como sair do paradoxo que
afirma o novo sem desprezar o que já passou?
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8 Ou Thaumaston, seria, segundo Platão, um estado que nos acomete quando nos defrontamos com
algo estranho por ser o thaumaston extraordinário, arrebatador. Tal admiração é semelhante a um
phatos, um estado interior específico de quando o contato com algo nos arrebata. O filósofo,
eminentemente humano, é feito de modo a viver no thaumazein, distinguindo-se dos deuses e animais.
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pode vivenciar ao experimentar uma bela queda no chão, ela, por exemplo, apenas
se arranhasse pelo atrito e sangrasse, a minha fala – Não corra tanto, querida, você
pode se machucar – a impede de ter o machucado, viver o machucado, sentir o
machucado e o ver formar casquinha, dia após dia melhorar um pouquinho, ir
diminuindo até ficar uma cicatriz que, para ela, teria um valor imensuravelmente maior
que o vazio autoritário de minhas palavras que não evocam nela nenhuma vivência,
só em mim. Meu medo a tira vivências, criando uma rede de possibilidades causais
absolutamente racional externas a ela, mas a faz sobreviver... Como mãe, já ouvi dizer
de muitos casos de crianças que quebraram o pescoço e morreram em quedas
bobas... Prefiro não pagar para ver. Prefiro por ela também.
Ganhar em conhecimento transmitido por alguém que o já tenha vivido e o
repassa enquanto ensinamento é perder a potência daquilo que se pode efetivamente
viver? Parece uma reflexão simples, mas traz consigo o mundo já formado do qual se
referia Hannah Arendt, o território vazio das metáforas nietzschianas e afirma:
precisamos formar e isso é uma capacitação e uma desqualificação! Capacitamos os
infantes ao mundo, mas desqualificamos sistematicamente suas próprias
possibilidades de vivências. Mais uma dicotomia que não necessariamente opõe e
aniquila um ou outro polo, mas pode potencializá-los, justamente e apenas quando
um não sobrepuja o outro. Sem as experiências passadas, tanto as minhas próprias
quanto as da Tradição, estaríamos ancorados no nada, no vazio, na não forma.
Teríamos que, a cada vez, a cada nascimento começar tudo de novo, do zero.
Estaríamos na não-forma, não seríamos mais humanos, estaríamos negando algo que
nos é próprio e já sabemos o quanto isso pode ser prejudicial, em suma, habitaríamos
o nada e humanamente precisamos de um lar, seja ele um lugar ou um nome.
Oh!, pobres daqueles que sentem isso, que também não querem falar da
determinação humana, que aos poucos também vão sendo tocados pelo
nada que nos governa, que compreendem tão profundamente que nascemos
para o nada, amamos um nada, acreditamos em nada, nos estafamos por
nada, a fim de um dia passarmos para o nada... Que culpa tenho se vocês
desmoronam quando refletem com seriedade? Também já mergulhei por
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vezes nesses pensamentos e clamei “por que põe o machado em minha raiz,
espírito cruel?”, e continuo aqui. (HÖLDERLIN, 2003, p. 49)
Que lugar é esse onde se habita o nada, invocado por Hölderlin? Como
poderíamos, carne que somos, continuar aqui e ao mesmo tempo habitar o nada?
Para sair desse nada, precisamos primeiramente desenhar uma linha que
defina onde se pisa: entre o nada e sua não forma num espaço hipotético, uma simples
linha define o chão. Ao traçar numa folha um risco, o território que vamos fincar os
pés surge: a racionalidade socrática, entendida aqui enquanto processo de construção
de um modus vivendi, que também se estabelece como parâmetro formativo e torna-
se diapasão que afina o proceder, o acreditar, o legitimar e mostrou-se não somente
insuficiente enquanto processo formativo, como também limitador e alienante àquele
a ser formado. Veremos por quê.
Primeiramente, há que se povoar esse território, portanto, há que se falar
sobre natureza.
A natureza aqui, é entendida como início, como uma possibilidade da
presença ser-no-mundo. É preciso demarcar inícios para que haja noção do quanto
de percurso atravessamos, pois, sem isso, corremos o risco de perdermo-nos no
vácuo sem forma do espaço aberto. Então, criamos inícios para definir jornadas.
Nascemos: por isso podemos dizer de crescer e maturescer.
Tal qual um fractal, tem-se o humano indivíduo e o humano enquanto
processo histórico. Ambos são definidos a partir do início que damos a eles. O ser
individual precisa ser concebido, parido, para que exista – esse é o seu início óbvio.
O início do humano enquanto processo histórico pode ser sondado por incontáveis
relatos, ontologias ou estudos que determinarão diferentes formas de se chegar onde
estamos. Existem relatos de criação humana que são interpretados hoje de forma
mítica, justamente por não entrarem em consonância com o discurso racionalista,
tentando demarcar um começo que, no final das contas, defina o quanto caminhamos
para chegar aqui. Esses começos não são interessantes para o presente estudo, visto
que são vastos e entram em confronto ideológico uns com os outros. Já com Nietzsche
há uma recusa, em determinadas ocasiões, da pesquisa da origem (ursprung),
segundo Foucault:
Por outro lado, a figura representada por Dionísio tem, como aqui referido, seu
valor enquanto formador do ethos a que Friedrich Nietzsche se refere na obra O
Nascimento da Tragédia. Nesta obra Nietzsche faz a análise da herança do
racionalismo socrático enquanto alicerce da visão racionalista e objetiva de mundo e
o situa enquanto “insuficiente” para descrever a intensidade e a caoticidade do ser. O
homem se faz na serenidade e beleza apolínea, mas também na tragédia dionisíaca
e no culto ao mito:
Sem o mito toda cultura perde sua força natural sadia e criadora: só um
horizonte cercado de mitos encerra em unidade todo um movimento cultural.
Todas as forças da fantasia e do sonho apolíneo são salvas de seu vaguear
ao léu apenas pelo mito. As imagens do mito têm que ser os onipresentes e
desapercebidos guardiões demoníacos, sob cuja custódia cresce a alma
jovem e com cujos signos o homem dá a si mesmo uma interpretação de sua
vida e de suas lutas: e nem sequer o Estado conhece uma lei não escrita
mais poderosa do que o fundamento mítico que lhe garante a conexão com
a religião, o seu crescer a partir de representações míticas. (NIETZSCHE,
2007, p. 135)
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Esse gênero teatral surgiu como um festejo, uma celebração, em que todas
as potências vitais eram exaltadas; tratava-se de uma cerimônia que
comemorava a alegria de existir. A conjunção de dor e alegria, floração e
morte, que está no âmago da festa trágica, desafia uma interpretação
unilateral da existência, pois o ritual trágico resgata a ambiguidade, a
contradição e a pluralidade do mundo. (BARRENECHEA, 2014, p.28-29)
Como soa estranho a nós que se possa tirar felicidade da perda, que
possamos nos alegrar de um infortúnio, dançar e rir às brutalidades da vida, à morte,
à finitude e à dor! Aceitar a dor da existência e a nossa incapacidade de fugir ao fim!
Deslizar pela vida por um projetar de paupabilidades, otimismos, de dicotomizações
que encerram papéis e territórios, que afirmam o novo em oposição ao velho, o bom
em oposição ao mal, o belo em oposição ao feio, o vencedor em oposição ao perdedor
e como bem exemplificou Barrenechea, “a plenitude (que) não se mistura, de forma
alguma, com qualquer mácula da falta” (2014, p. 28) é afirmar a parte em detrimento
do todo, é insistir em segurar nas mãos o imaterial, é negar nuances da existência, é
se auto encerrar em um juízo moral que parte de uma ideia humana sobre o humano,
tem essa ideia humana como medida para o humano e chega no humano pensado
pelo próprio humano.
A origem, o ponto de início de minha análise, que define o homem moderno,
inicia-se com a ideia de racionalismo socrático. Mas o que havia antes do tipo9
Sócrates ganhar força na Grécia antiga?
9 “(...) nunca ataco pessoas – sirvo-me da pessoa como uma forte lente de aumento com que se pode
tornar visível um estado de miséria geral porém dissimulado, pouco palpável.” (NIETZSCHE, 2008, p.
30). Assim, Sócrates não é aqui invocado como persona e sim como uma tendência, a saber: o
racionalismo que vinha como influxo de um transbordar de vida na Grécia. Para maiores
esclarecimentos, consultar NIETZSCHE, 2006, p. 17-29.
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10“...a importância da figura do bode, de homens que se travestiam em sátiros embriagados, vestindo
a sua pele, no ritual dionisíaco. O bode, para os gregos, era entendido como uma figura sensual,
lasciva, símbolo das forças “delicadas e amáveis, forças perigosas, rudes e alegres.”(...)”.
(BARRENECHEA, 2014, p. 29)
27
racional); aos hespéricos tal caráter “sóbrio” e terrestre, seu princípio ocidental de
limitação e diferenciação (a clareza de apresentação) já é natural, ao passo que é
necessário “criar”, no sentido heideggeriano da “techné” o que lhes é estranho:
justamente o elemento dionisíaco que Nietzsche interpreta como uma potência
descomunal, de poder destruidor e criativo.
Enquanto aos gregos era dada a possibilidade de lidar com seu elemento
estranho criando o teatro trágico, a forma, a sistematização pela arte do Dionísio
contido em Apolo, a nós não restaria muito de potência dionisíaca. Nascemos do
homem histórico para formarmo-nos culturalmente enquanto homens históricos. A
criança, que nasce plena desse inominável que é relatado enquanto potências
apolínea e dionisíaca, nasce para se ensimesmar pela construção da metanarrativa
onde a ideia de homem ocupa lugar de estabelecimento e acabamento.
Trago esse debate, pareando o pensamento hölderliniano e nietzschiano
porque acredito que ambos também se potencializam. Deixe-me explicar melhor:
ainda segundo Francoise Dastur, ao analisar a obra hölderliniana, a semelhança entre
a Grécia arcaica e o ponto máximo do Iluminismo que acontecia no período em que
Hölderlin escrevia – o Idealismo Alemão – é dado pela inversão do que seria natural
em uma e construído em outra: enquanto a natureza da Alemanha do século XIX seria
marcada por essa Clareza de Apresentação, à luz do racionalismo e cientificismo, o
natural dos gregos seria o Phatos sagrado, o “Fogo do Céu – o elemento dionisíaco.
Enquanto os gregos precisavam construir esse princípio de diferenciação, a partir do
afastamento das figuras míticas; o alemão, que já tinha como natural o racionalismo,
precisaria construir o caminho de reencontro com esse mito e isso seria possível
através da encenação da tragédia, mais precisamente, na contemplação dessa
dualidade presente na tragédia grega, principalmente na tragédia de Sófocles. Surge
aqui a noção de formação (principio de diferenciação entre natureza e cultura), na
modernidade, enquanto concepção Trágica:
11“E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão
e dissesse: “esta vida, como você está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por
incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela (...)”, (...) “você quer isso mais uma vez e por incontáveis
vezes?”, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem
consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e
chancela? (NIETZSCHE, 2012, p. 205)
31
12 Momento em que o fenômeno se torna acessível ao ente, já que em totalidade ele é inapreensível,
estando sempre uma de suas faces em uma zona de velamento à percepção do ente: “(...) na presença,
há sempre ainda algo pendente, que ainda não se tornou “real”, como um poder-ser de si mesma. Na
essência da constituição fundamental da presença reside, portanto, uma insistente inconclusão. A não
totalidade significa uma pendência no poder-ser” (HEIDEGGER, 2014, p. 309-310)
13 A verdade (deuses); a verdade do Ser (mortais), o Ser da Verdade (céu) e o Mundo (terra)
32
Um vazio que transborda da jarra das coisas. A jarra contém algo que próprio
de cada qual, se enche, recebe, acolhe. Também somos jarra. E habitamos essa
intersecção entre o insondável, representado aqui na figura dos deuses e da dádiva
enquanto algo que passa do inominável para o ser: de Dionísio, enquanto a potência
criadora a que se refere Nietzsche; a Apolo, o sonho que transfigura potência em algo
que habita a jarra, uma imagem, um sentido, um afeto; ao humano e a essas palavras
demasiado humanas. E nesse cruzamento onde o humano acontece não existe um
lugar fora dele próprio, ele é e possui tudo isso. Como disse Heidegger, “A doação da
jarra pode ser uma bebida. Então ela dá água, ela dá vinho.” (HEIDEGGER, 2012, p.
150), água que sacia a sede por algo que possuímos, vinho para embriagar, celebrar
e brincar. Habitar a intersecção é situar-se nessa abertura14 de modo além do
observar, entendendo-se o habitar como morada própria, lugar onde o humano se
sente em casa, como morada que ele construiu, levando-se em consideração todo
seu processo histórico. É o lugar onde o adulto se sente confortável para educar a
criança e ensiná-la a ser como ele, ter os mesmos cuidados que o levaram onde está,
sentir-se em casa. Contudo, é importante ter compreendido que um habitar é uma
construção também, visto que se chegamos em uma clareira, em uma casa já
construída, podemos facilmente tomá-la como um estabelecido imutável, natural e
podemos também tendenciar a acreditar-lhe como verdade. Assim, o sentido do
habitar cairá no esquecimento e as verdades se estabelecerão como eternas. Até que
ponto esse habitar que conhecemos não caiu no esquecimento? Existe algo de próprio
do que vaza da jarra, um sentido, um afeto, a intersecção. “A ciência faz da coisa-jarra
algo negativo, enquanto não deixar as coisas mesmas serem a medida e o parâmetro”
(HEIDEGGER, 2012, p. 148). A ciência aqui apontada é a medida do que tem e que
pode transbordar de cada jarra e pretende-se enquanto o lugar onde o humano se
abre para o vir a ser do mundo. Ensina o adulto, colocado como ser maduro, a ensinar;
cria técnicas que dissimulam a verdade própria possível de transbordar de cada um e
14 Mais uma vez, cito como definição de abertura o ensaio contido no final deste estudo.
33
abre um espaço nivelado onde todos podem sentir-se confortáveis e protegidos. Tal
faceta é própria do humano, visto que surgiu também de sua clareira, contudo, seu
sentido parece estar esquecido e o porquê de fazermos assim parece fruir por todos
de forma rasa, pública.
Como dito, o humano não é animal e não é deus. É potência própria e é aqui,
neste mundo, lugar de velamento e desvelamento do Ser, possível emergir as duas
dimensões que possibilitam a pergunta fundamental em Heidegger – a questão pelo
sentido do Ser – aparecer enquanto intuições sobre a necessidade de uma ontologia
que consiga desmistificar a natureza enquanto fenômeno (primeira dimensão), ou
seja, de dizer “o Ser sem o fazer por uma de suas características” (STEIN, 2002, p.
149) e a verdade (segunda dimensão) enquanto síntese do processo de velamento e
desvelamento do Ser: dizer o Ser, a partir de Heidegger, deixa de significar entificar o
Ser, como fazia a ontologia tradicional, carregada desse aspecto racionalizador que
Nietzsche tipologizou na figura de Sócrates e sobre o qual falei acima. Dizer o ser não
é habitar sua morada, sua interseção como se ela existisse antes dele próprio. É
pensar o sentido dessa morada porque nesse momento se pensa também o nosso
sentido. Segundo Stein, quando Heidegger diz o Ser enquanto jogo de velamento e
desvelamento temporalizado, passível do esquecimento e impenetrável em totalidade,
mostra assim, apenas o que é observável e apreensível à presença enquanto finitude.
O Ser, continua Stein, pode também ser riscado em forma de cruz tendo céu
e terra como um eixo e deuses e mortais como outro eixo, representando assim o Ser
independente, que pode então se aproximar da presença como algo que se opõe
(exclui) ao homem, mas que também se aproxima:
“Mas, diz Heidegger, ao contrário, o homem não apenas não está excluído
do ser, quer dizer compreendido nele, mas o ser é, enquanto utiliza o homem,
determinado a abandonar a aparência do para si, pelo que é também de
essência diferente da que se quisera afirmar, na representação de um
conteúdo que abarca a relação sujeito-objeto.” (STEIN, 2002, p. 150)
Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma
lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro
Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que
não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. (...) O
homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar.
“Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu.
Somos todos seus assassinos! (...).”. (NIETZSCHE, 2012, p. 137)
Por que haveria um homem louco no mercado? E por que era ele assim
considerado por buscar a um deus? Em A Gaia Ciência (1882) é narrada a história do
homem louco, citada acima. Onde há homens que necessitam da figura de um deus
criador, tal afirmação poderia causar júbilo ou redenção e ter sua resposta. Mas não
ali. Não no mercado que simboliza o próprio ocidente, com sua revolução industrial e
seu processo racional de desmonte da subserviência, do dogmatismo religioso e do
rompimento com os deuses. Ali no mercado, em resposta à pergunta do homem louco,
há somente gargalhadas. Gargalhadas que significam a não percepção, a tolice que
o homem louco procura. Tolice, pois tal busca se tornou sem sentido, pequena. Tolice,
pois o humano voltou-se a si mesmo. Tolice, pois a busca por um deus infere territórios
inalcançáveis para a razão.
No processo de ascensão do homem histórico, voltado a si mesmo e rompido
com os deuses que se retiram que segundo Nietzsche se inicia desde a hipervaloração
do elemento racional em detrimento da potência dionisíaca, há uma perda: deus! E a
morte de deus simboliza não a morte do dogmatismo que transforma o homem em
rebanho e carregador de fardos externos a ele. Há, junto com o rompimento com os
deuses, a perda do sentido de sua própria existência:
paragens a vida pode se tornar novamente mais intensa, mas também, mais
perigosa, mais grave. (WEBER, 2011, p. 229, 230)
Socratismo ou cristianismo: por mais que haja aqui material suficiente para o
trabalho de uma vida, me atenho a pontuar o Renascimento do humano, a época de
suas próprias luzes como marco da morte do deus criado pelo próprio humano e
nascimento de um novo ser: a criança que terá de crescer para alcançar a maturidade
da Razão. Volto a ela em breve.
Como dito anteriormente, nasce o humano carne e este cresce como humano
histórico: o homem histórico que tratou Nietzsche. Despotencializado por ter voltado
seu olhar a apenas uma faceta de seu ser – a racionalidade – a este humano histórico
resta a análise da história como seu fim último. Morre junto com deus o afeto que
perpassa a materialidade e a intelecção, mas que ainda assim é parte constituinte e
velada de seu ser. Não há que se olhar para a frente. O que há à frente, prospectos
até certo ponto passíveis de inferência por conta da causalidade, ainda fazem parte
de seu domínio. O acaso, o caos, a fortuna, etc. caíram numa zona delegada ao
misticismo, à crendice, à profecia e à fé, zonas não habitáveis pela racionalidade e
por isso, compatível com as gargalhadas dos homens burgueses do mercado. Há
então, para o domínio do incontestável, para a certeza racional, o que já passou, a
tradição, a reinterpretação desta tradição e sua análise tendo como parâmetro o
próprio humano:
38
Cabe dizer que, passada a fase da “paparicação”, que podia ser datada até
os cinco ou sete anos a criança já era fundida, sem transição alguma, ao universo
adulto. Foi necessário grande empenho por parte dos primeiros literatos pedagogos 16
para que se estabelecesse uma ideia de infância longa, que pode também ser
associada com o advento de uma nova organização social. Sociedade esta que
15 Muito polêmico em suas perspectivas em relação à obra nietzschiana, uso aqui o professor e filósofo
Eugen Fink com o intuito de brincar com diferentes formas de interpretação da filosofia de Nietzsche,
contudo, é importante atentar que a citação neste estudo está limitado por sua interpretação do devir e
da potência, se adequando nesse sentido como uma luva à argumentação.
16 Dentre eles os moralistas e educadores do século XVII, herdeiros de uma tradição que remontava à
Gerson, aos reformadores da Universidade de Paris do século XV, aos fundadores de colégios do fim
da Idade Média (ARIÈS, 2015, p. 123)
39
demandava, antes de qualquer coisa, um novo costume que daria as bases dessa
nova sociedade iluminada e industrial nascente: disciplina, pensada de uma maneira
que capacitasse esses alunos ao que já de antes se estabelecera à eles em sua fase
adulta, formada e madura.
A escola então consolida-se com o empenho de moralistas e eclesiásticos que
impunham a necessidade da educação como meio de preparação para uma vida
ascética e bem direcionada. Por outro lado, distanciando-me do debate já desgastado
sobre a escalada da pedagogia desde sua origem datada aqui por Ariès, o que existe
na gênese da escola moderna não é uma preocupação com o humano a ser formado
e sim com hábitos morais e leis estabelecidas, que, não mais servindo à igreja e à
vocação espiritual, já que para o homem do mercado deus estava morto, cabem como
uma luva para a consolidação e manutenção de um sistema social ideologizado,
hierárquico e profundamente arraigado no modus vivendi de cada um. Antes formar
para a tradição, formar-se-á disciplinarmente para a subserviência à um novo deus
chamado capital. E era necessário que os que nascessem fossem aptos a adentrar
esse novo paraíso fincado na Terra – paraíso humano, fundamentado nas bases
racionais do próprio humano. Ler, escrever, apreender certos signos, certas condutas,
disciplina era fundamental para tal empreitada:
A partir desse ponto, diz Elias, a palavra passou a ser empregada em vários
idiomas, com várias traduções, justamente por representar um estado de espírito novo
e ressignificado dessa antiga palavra civilitas, gravando-se na consciência do povo,
indicando a possibilidade de surgimento de uma nova significação da palavra a um
sintoma de mudança social. Existe uma ressonância da palavra a uma auto-
interpretação dela: civilitate. Era como a sociedade europeia queria ser identificada.
Era o projeto de um humano civilizado à capo.
Outra questão importante, a partir dessa inferência de Norbert Elias, é que a
rede de significação de um dado histórico tão bem marcado possui também uma
capacidade fractal: a obra de Erasmo de Rotterdam, analisada sob o viés do
surgimento da ideia moderna de civilidade, diz de como devem se comportar as
pessoas em sociedade, como educar os pequenos; mas mais que isso, ele implica
que a sociedade deve educar-se para amadurecer como um todo, que o ser humano
deve “civilizar-se”, pois até esse ponto não era madura, era infantil, e por conta disso
precisa educar-se para amadurecer. Se forma o indivíduo ao mesmo tempo que se
forma a sociedade. Indivíduo e sociedade estão imbricados.
Constatação evidente, não fosse pelas sutilezas que, através do detalhe, criam
contrastes abissais no tipo de humano ali despontando: civilidade, educação para sair
da barbárie, escolas, alunos, adultos que sabem ler e escrever e dominam operações
matemáticas básicas, conheçam o suficiente da história e de geografia para situarem-
se no mundo, filosofia em doses homeopáticas, para que todos estejam familiarizados
com os termos, contudo não compreendam a fundo seus significados, tenham
41
17In: Os intelectuais na história da infância - FREITAS, Marcos C; KUHLMANN Jr., Moysés (Orgs),
2002, p. 11-60.
42
mas pode se dar em qualquer experiência humana. Minha empreitada aqui se define
quando, pelo ruminar da reflexão nietzschiana, me toma o espírito a sensação de que
somos parte de um processo fadado à ruína. Posso explicar melhor.
Precisamos sair do território natural para fazermo-nos. É o que há de mais
natural no humano! O corpo que se transforma continuamente durante a vida nos
mostra que estamos em constante movimento. O corpo do bebê que cresce e se torna
criança, a criança que se transforma no jovem e seus novos processos fisiológicos,
sucedido pelo adulto e pelo ancião, para enfim retornar à terra, no fluxo natural dos
acontecimentos. Sendo assim, a vida é movimento constante no humano e não há
uma fase que deveria apontar um acabamento ou um estar pronto – isso é também
uma convenção social.
Minha filha, no auge de seus agora cinco anos de idade, é certa de suas
próprias verdades sobre o mundo! Afirma veementemente que a lua fica em sua fase
cheia devido a uma língua comprida e sempre escondida (e ela não tem conhecimento
de que a lua nos mostra sempre a mesma face!), que essa língua captura as
estrelinhas brilhantes do céu e que por isso ela fica cheia desse jeito: de tanto comer
as estrelinhas! Depois ela precisa aliviar-se e começa a murchar! E eu aqui, esperando
a hora de explicar que a lua reflete a luz do sol, fiquei a pensar sobre a verdade da
teoria dela – comer é também uma forma de estar em contato com, de se juntar coisas,
e que sejam elas a superfície da lua com a luz que emana sol, que diminui
gradativamente conforme nosso planeta se coloca entre eles, ou ainda a paridade
disso com nossos processos fisiológicos de assimilação e descarte de nutrientes
como reflexos possíveis ou não dos fótons na superfície lunar... Há nessa poética
certa verdade...
Não afirmo com isso que se deva desprezar a tradição, seja ela oral ou escrita.
No final das contas, é preciso conhecer os símbolos para escrever palavras, é preciso
saber da teoria musical para sessões de improviso de jazz num barzinho em algum
subúrbio, onde talvez um guitarrista entra num semi-transe dionisíaco pelo deleite
propiciado pela técnica já assimilada... É preciso saber como chegar na porta daquilo
insondável pela razão. O problema é a forma como isso se dá em nossos dias.
Esta imagem invocada pela figura do aluno que precisa crescer para
conquistar a maturidade da Razão é, na obra nietzschiana, a imagem do “último
44
Como será possível a esse homem “transcender a si”, se não consegue achar
espaço para “experimentar a si”, se todas as “verdades” já foram pensadas e estão
construídas, e a ele só resta o agrupamento e reagrupamento delas, combinações de
estilos conceituais, amarrações teóricas e a capacidade retórica de falar com outras
bocas? Como poderia se libertar se está preso num ciclo de repetições e
padronizações?
Ao ouvir a versão de minha filha sobre a existência mutante das fases da lua,
especialmente a fase cheia, acredito que meu leitor poderá sentir ternura e sorrir mas
jamais irá questionar a sua certeza do encadeamento linguístico formal que o faz
chegar na verdade – a lua reflete luz do sol; língua é presente em seres biológicos,
não minerais; o planeta terra se coloca entre os dois astros; outras estrelas estão há
milhões e milhões de quilômetros de distância – sem nunca terem constatado tais
fatos por si mesmos. Essa é ilusão das verdades que se esquecem que são ilusões e
se fixam deterministicamente no mundo. A minha filha não está em nada errada ao
afirmar a lua comedora de estrelas, pois ambas versões dizem exatamente a mesma
coisa – os fótons viajam por milhões de quilômetros, vindos dos confins do universo e
se projetam na lua, em nosso planeta, em nossa retina e, quando em nós, os
assimilamos. Mas porque só o idioma falado pela ciência é aceite? Porque preciso
chegar a um afeto por ele? Por que meu texto dissertativo precisa enquadrar-se nos
padrões ABNT, com minha presença estando regularmente matriculada em um curso
de pós-graduação para que eu seja lida? No início deste trabalho, acenei que o que
aqui me toma é um afeto, um território onde encontro-me submersa, mas conheço
bem as técnicas que me possibilitam falar sobre esse afeto, então, como apontado no
capítulo anterior, pertence também à mim a possibilidade técnica, fui formada para
isso...
A essas questões, soma-se a problemática da formação, enquanto tragédia
de nosso tempo. Como esperar emancipação, ou até mesmo o livre-pensar, se ao
educando, em seus diversos níveis de estudos, é dada a tarefa de organização e
reorganização de metáforas já pensadas e, quando este é instigado à sua própria
experimentação, esta é considerada insuficiente, não didática, não metodológica, não
formal. Porém está neste ponto a própria catarse da tragédia moderna – dar lugar
àqueles que não seguem suas regras. Nesta morte está contida também a própria
vida:
Por que vivo? Que lição devo tomar da vida? Como me tornei assim como
sou e porque sofro então com esse ser-assim? Ele se atormenta: e vê como
ninguém se atormenta assim, como em vez disso, as mãos de seus
semelhantes estão apaixonadamente estendidas para os fantásticos eventos
ostentados pelo teatro político ou como eles próprios se pavoneiam com cem
máscaras, desfilando como jovens, homens, velhos, pais, cidadãos, padres,
funcionários, comerciantes, assiduamente atentos à sua comédia comum e a
si mesmos. (...) Quem entende sua vida apenas como um ponto no
desenvolvimento de uma espécie ou de um Estado ou de uma ciência e assim
quer ser unicamente parte integrante da história do vir-a-ser, da História, não
entendeu a lição que lhe propõe a existência e tem de aprende-la mais uma
vez. (NIETZSCHE, 1999b, p. 293)
que a sustenta – o próprio Estado e mais, irá reproduzir essa mesma lógica, a fim de
que os interesses também sejam reproduzidos e assim, como num ciclo vicioso,
jamais haverá lugar para uma transvaloração e superação desse Estado de coisas.
Jamais haverá espaço para o processo criativo, processo este, vital para uma
contemplação integral do ser, podendo surgir, de tempos em tempos, apenas um ou
outro gênio que conseguiria se desprender e, solitário, erigir um trabalho autêntico que
fuja a tais convenções.
Nietzsche abandona a ideia do gênio schopenhaueriano, que aparece sob a
forma do pensador solitário, consciente da transitoriedade e que tanto influenciou seus
primeiros escritos. O aforismo cinquenta e seis da obra Além do bem e o Mal (1886)
demonstra de forma genial não somente o seu distanciamento de Schopenhauer, mas
também o seu elogio à vida, e serve como prelúdio ao que irá ser tratado a seguir:
Quem, como eu, se ocupou por muito tempo por um desejo enigmático a
penetrar profundamente o pessimismo e a liberá-lo da estreiteza, da
ingenuidade meio cristã, meio germânica, que neste século se apresentou
pela última vez, isto é, com a filosofia de Schopenhauer, que com olhos
asiáticos e hiperasiáticos guardou realmente em seu interior e até o fundo
aquela filosofia que é a mais completa negação do mundo que se possa
imaginar — além dos confins do bem e do mal e não mais, como Buda e
Schopenhauer dentro da absurda cerca da moral, então abriu, sem
propriamente desejá-lo, os olhos para o ideal contrário, para o ideal do
homem mais orgulhoso, mais exuberante de vitalidade e afirmador do mundo,
o qual não apenas conseguiu satisfazer-se, resignar-se com aquilo que era e
que é, mas deseja ter tudo isso de novo, como era e como é, interiormente,
gritando sem cessar "da capo" não apenas relativamente a si mesmo, mas
todo o espetáculo e não tanto ao espetáculo, mas, no fundo, àquele que é
necessário ao espetáculo e o torna necessário, porque sempre é necessário
a si mesmo. Como? E isso não seria: "Circulus vitiosus deus"? (NIETZSCHE,
2001. p. 66)
Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos
consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e mais sagrado
que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais –
48
quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que
ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse
ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos
tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve um ato
maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma
história mais elevada que toda história até então! (NIETZSCHE, 2012, p. 138)
Zaratustra é aquele que anuncia ao humano o seu limite, que o denuncia como
“espírito que suporta cargas; e então se ajoelha como um camelo esperando ser
carregado” (NIETZSCHE, 2014, p. 37), e este é o homem histórico, o último homem,
que carrega o conhecimento histórico. Então, o que restaria ao homem histórico,
rodeado por conhecimentos, conceitos, metáforas e racionalizações, por levantes
externos a ele? E ainda sem a potência que Nietzsche chamou dionisíaca! Carregar
esses conhecimentos e reproduzi-los ad infinitum! Seria por ventura o vazio e niilismo
de quem desceu do céu (ou do olimpo) e agora se encontra fincado com os dois pés
na terra, sem dela poder sair? Seria essa a sua tragédia?
Nietzsche afastou-se do niilismo negativo. Isso pode ser interpretado também
como afastamento da interpretação do trágico da vida enquanto renúncia ao mundo,
resignação ou expiação, apontadas por Schopenhauer e Aristóteles em suas
reflexões:
Contudo, trago uma breve elucidação sobre o que seria a tragédia para
Aristóteles e Schopenhauer com o intuito de dizer que Nietzsche se afasta delas e,
segundo ele, tais visões acerca da tragédia se afirmam de forma negativa e negadora
de algo que efetivamente acontece no humano – sentir dor, sofrer, findar é próprio do
existir e negar essas perspectivas da vida é também negar a vida. Niilismo.
Como indicado no subcapítulo precedente, é parte constituinte do moderno a
possibilidade de devir o que se é e o devir, como apontado por Marcia Sá Cavalcante,
pode apenas realizar-se no modo do perecer, do deixar de ser, do perder-se, seja na
individualidade, seja no tempo.
A tragédia de Hölderlin não pode efetivar-se porque ele se deu conta de que
seu herói trágico – Empédocles – se sacrificaria de dentro do tempo porque era
humano e a humanidade, abandonada pela eternidade inalcançável dos deuses, é
finda. O homem moderno se deu conta também que é um desabrigado e por isso,
50
dos titãs enviados por Hera, transmutando-se em diferentes animais, por ser o deus
das potências naturais e transformações da natureza, tornando-se bode (aí a alusão
do Ditirambo à Dionísio – o ditirambo significa literalmente o canto do bode e vem daí
a representação do ditirambo como celebração dionisíaca sendo realizada pelos
personagens usando a pele deste animal), touro, cavalo, etc. e sucumbindo enfim, à
sua tragédia: esquartejado pelos titãs, retorna a terra espalhando-se por toda a
natureza e ressurgindo enquanto potência de vida na primavera:
Aquilo que dá a impressão de ser uma coisa, de ser uma coisa isolada, não
passa de uma onda do fluxo de vida, de um quantum e de um centro de
domínio temporários, mas que representa apenas uma fase do movimento do
jogo do mundo. (FINK, 1983, p. 177-178)
52
Trago essa citação de Fink pois, apesar da aparente contradição com a coisa
pensada por Heidegger, o autor atenta para a questão da finitude. Seja a coisa dotada
de sua coisidade, em uma perspectiva, seja uma uma onda no fluxo de vida em outra,
ambas são finitas e a forma como os autores se dirigem a esse outro, que é diferente,
não precisa representar necessariamente o esgotamento ou encerramento de suas
argumentações, visto que elas convergem nesse ponto fundamental: finitude.
O que foi para Schopenhauer a chancela que atestava a abdicação da vida,
que conduzia ao niilismo, transformou-se e potencializou-se na leitura nietzschiana na
própria afirmação da vida, no retorno do herói trágico à natureza e seu renascimento
em cada potência que irrompe como nova na primavera de qualquer presença que
desponta, na continuidade do um pela afirmação do todo da potência humana.
Longe de travar um debate sobre a visão do niilismo schopenhaueriano e a
abdicação da vida, este enxerto cumpre uma missão deveras mais simples e elegante:
afirmar o um que se faz pelo todo, sendo este todo o caminho trilhado para chegarmos
no ponto onde estamos. Isso quer dizer que construímos a ideia de humano, ideia que
surge pela construção de mundo que chancelamos, que se inicia precisamente onde
podemos datar, onde nos encontramos e entendemos e ainda, onde bordeamos
nosso território de existência. O que há para além desse território é domínio do
inalcançável. O que há dentro desse território é construção. A ideia de indivíduo, por
mais que esteja entranhada na construção de mundo de todos e cada um, ainda assim
faz parte deste constructo.
Tragédia aqui, não se delimita simplesmente pela aceitação da efemeridade
e incapacidade de manter inalterada uma ideia ao longo do tempo. Tragédia aqui é a
aceitação e a alegria de ver essa ideia, esse conceito se transformar e ganhar potência
nova em cada vida que se inicia.
Sendo assim, afirmo: o que há de insondável para além do território que nos
fundamos enquanto humanos é, em Nietzsche, a própria vontade de vida,
desprendida da necessidade de significar o mundo pelo que já passou, pelo último
homem:
Como poderíamos nós nos privar de entender que há algo para além dos muros
institucionais, para além de nosso território, que nos atravessa e impulsiona para algo
estranho, mas ainda assim parte de nosso afeto? Mesmo dentro deles... Como
afirmaríamos que essa potência nada tem a ver com aquela força presente na criança,
que se faz tradição pelo novo? Como negaríamos assim tal potência em nós, visto
que todos e cada um já fomos crianças e ainda que maduros e capazes, ainda há algo
que afeta, que não se define por palavras, conceitos ou imagens, que simplesmente
pulsa? Como olhar para esta centelha descorporificada, se o mundo inteiro já está
formado e consolidado, e o que há porvir neste território, deve ser dito de modo que
se encaixe em seu próprio sistema de funcionamento?
A tragédia acontece, independente nós a afirmarmos ou não.
54
3.1 QUANTO ÉS CAPAZ DE SUBIR AO DEIXAR PARA TRÁS TODO ESSE PESO?
humana? Então somos sempre humanos porque construímos um mundo para nele
vivermos. Essa é uma questão na qual tenho me demorado, pois, se somos
convidados a nos lembrarmos, é porque sabemos e se sabemos, iremos nos deparar!
O humano se depara com o mundo, um mundo que já não é mais o mesmo, mas
ainda assim permanece. Não vejo meios de refutar a reflexão de Heráclito ao constatar
que iremos nos molhar ao entrar no rio, contudo, em outras águas19. Estamos fadados
então a, ao entrar no rio, sermos molhados pelo úmido, mas esse úmido já é outro.
Como humanos, essa reflexão se estende para nossas realizações: se a somatória
de nossa produção enquanto humanos pode ser tomada enquanto a água a que se
refere Heráclito, então ao banharmos os que chegam nessas “águas”, elas já serão
outras. Nenhum conhecimento permanece o mesmo assim como nenhum humano
vive para sempre, é através do novo que ele se mantém, através do educar, contudo,
esse novo é um diferente: mesmo usando os mesmos signos para tratar de um objeto,
“aguas” correram.
Lembrar o mundo é então criar o mundo!
A criança cria o mundo! Um mundo inteiramente novo com as bases do já
corrido – essa é uma potência do humano, um algo que pode também ser chamado
de sua natureza: sua determinação é a não fixação, a capacidade de criar e recriar o
mundo, de imaginar o novo como sendo uma continuação do velho. Nietzsche, na
obra Genealogia da Moral (1887), pondera sobre o homem enquanto animal não
fixado, sendo ele o animal:
19 Aforismo 12 Heráclito
57
estabelecido, uma potência plena se circunscreve num território com bordas muito
bem determinadas. Explicarei mais adiante.
Em seu livro “Nietzsche: o humano como memória e como promessa” (2013b),
Oswaldo Giacóia Júnior discorre acerca dessa passagem específica da obra
nietzschiana, trazendo uma reflexão sobre a natureza humana que muito se adequa
a esse trabalho: diz Giacóia Júnior que esse excedente de potência de não fixação
que caracteriza o humano pode ser interpretada também como um “excedente de
força pulsional, que ultrapassa toda fixação instintiva” (GIACÓIA Jr., 2013b, p. 24).
Nesse momento, o humano não é só instinto animal, não é só potência própria de sua
determinação enquanto ser (essa mesma que o determina enquanto indeterminação),
ele é impermanência de sua condição, que abriga em seu poder-ser toda essa
volubilidade pulsional excedente, que ultrapassa os limites antropológicos da simples
reprodução e autopreservação. Quero dizer com isso que existe no humano que
nasce um excedente pulsional, um algo que ultrapassa a razão, que ultrapassa o
instinto e que é potência.
Na obra “Infantis – Charles Fourier e a infância para além das crianças”
(2009), René Scherér, ao refletir sobre a invenção da infância, lança mão da ideia de
que a criança, à época de seu “aparecimento20”, pode ser considerada enquanto um
algo que preenche de sentido lugares humanos não alcançados pela razão:
20 Questão já trabalhada e que diz respeito ao surgimento da noção de criança enquanto um ser próprio
e diferente do adulto. Tal noção faz referência à construção do conceito de infância separado daquela
onde a criança é apenas um devir do adulto ou um mini adulto. Para maiores elucubrações, vide a obra
de Philippe Áries “História Social da Criança e da Família”. René Schérer, por sua vez, inicia sua obra
com a seguinte assertiva: “Convém não esquecer que o século XVIII foi também o século que inventou
a criança” (SCHÉRER, 2009, p. 17). Tal discussão acerca da genealogia do surgimento do conceito de
criança, embora extremamente importante, não se configura como objeto de análise do presente
trabalho.
58
Qual altura serei capaz de alcançar pela constatação de que a criança que fui
ainda habita um não-lugar, uma zona de velamento constituinte de meu existir!
Mas o que pode significar isso?
O lugar que ocupo enquanto humana formada é meu território, justamente
aquele que invoco no início deste trabalho dissertativo.
60
Definir esse território é, como já dito, definir também o lugar onde planto meus
pés no mundo, em uma gama de complexidades ininteligíveis e que são
configuradoras do real enquanto tal, uma parte desvelada do mundo circundante que
está próximo a mim, uma fração absurdamente pequena do mundo e ao mesmo tempo
imensurável a meu ver.
Entretanto, há de se pontuar que “isso” que rasga tal determinação de meu
existir (meu território configurado por tantas complexidades) e que tenta se fazer real
nas palavras que aqui transformam afeto em escrita, essa coisa que vem enquanto
força e me mostra tanto e ao mesmo tempo nada, não pode ser confundida com o
espectro de minhas lembranças: apontei, no início deste capítulo, a importância de
minhas lembranças – a magnitude que elas têm enquanto formadoras e sustentadoras
do que identifico enquanto o que o meu próprio ser-no-mundo é e isso é, sem sombra
de dúvidas, colossal, entretanto, inapreensível à meus interlocutores. Por conta dessa
assertiva, lembranças são uma ótima forma de se iniciar um relato, mas não dão conta
do afeto passado e perdido; estão, de certa forma, colonizadas pela presença que
escreve essas linhas e por ela (eu!) dominadas e subjugadas.
Lembrar-me é trazer uma potência (que causou rebuliço enquanto era em
meu existir do passado) para o agora, para uma determinação intelectual maior – num
sentido deleuziano que remete àquilo já molarizado21, carregado de matéria e
existência, territorializado e tradicional – ou seja, já não é o que foi. É a metáfora de
um afeto que insiste, que se posiciona enquanto uma verdade. Sigo com Nietzsche e
a afirmação, em Sobre Verdade e Mentira num Sentido Extra-moral, de que as
verdades são ilusões que se esqueceram de sua origem, se estabeleceram enquanto
matéria, densidade e exercem sua força criando o que chamaria de mundo maior: um
mundo distante e público, ocupado por territórios também maiores e já estabelecidos,
como por exemplo o próprio campo educacional do qual faço parte, com sua educação
maior, maquinado por Silvio Gallo:
21Molaridade, em Deleuze, remete à densidade, matéria, peso. Aquilo que, por ser estabelecido, já
tomou uma forma própria e se faz com peso de determinações.
61
22A saber – o conceito de literatura Maior, como uma tendência, estilo e determinação dominante dentro
do território da escrita. Para maiores elucidações, vide “Kafka: por uma literatura menor”, ano de
publicação no francês: 1977.
62
23 “O plano de imanência é a condição sob a qual o sentido tem lugar, o próprio caos sendo esse não-
sentido que habita o fundo mesmo de nossa vida. O plano é coisa bem diversa, porém, de uma grade
de interpretação, que se assemelha às formas prontas de pensamento, aos clichês com que recobrimos
o caos em lugar de enfrenta-lo: o plano não é subjacente ao dado, como uma estrutura que o tornaria
inteligível a partir de uma “dimensão suplementar” àquelas por ele comportadas. (...) Ele apresenta
obrigatoriamente duas faces, cada uma sendo o espelho de outra: plano e pensamento, plano de
natureza, pois “ o movimento não é imagem do pensamento sem ser também matéria do ser”.” (
ZOURABICHVILI, 2004, p. 41) Ou ainda: “O plano de imanência é essencialmente um campo onde se
produzem, circulam e se entrechocam os conceitos. Ele é sucessivamente definido como uma
atmosfera (quase como o englobante de Jaspers, que mais tarde Deleuze vai recusar), como informe
e fractal, como horizonte e reservatório, como um meio indivisível ou impartilhável. Todos esses traços
do plano de imanência, somados, parecem fazer da filosofia de Deleuze uma ‘filosofia de campo’ – num
sentido parecido àquele em que se fala das ‘psicologias de campo’, como a propósito da
“Gestaltpsycologie”. Mas um campo infinito (ou um horizonte infinito e virtual” (PRADO JÚNIOR, B. A
Ideia de Plano de Imanência. Folha de S. Paulo, Caderno Mais.! 08/06/97, p. 5-6 a 5-8 IN. GALLO,
2016, p. 44). Sobre Devir, a definição do conceito será feita no desenrolar do texto.
64
24Aión designa “a intensidade do tempo da vida humana, um destino, uma duração, uma temporalidade
não numerável nem sucessiva, intensiva” (LIDDELL e SCOTT, 1996, p.859 apud KOHAN, 2004, p. 54)
65
tempo denso, marcado por períodos bem delimitados, que leva da infância à velhice.
Um tempo maior, o tempo de onde me é possível acessar minhas lembranças.
Contudo, em segundo lugar e contrastando com esse período cronológico
surge a ideia do tempo enquanto intensidade – Aión, justamente esse que invoco ao
entrar nessa reflexão, ao falar de Heráclito e de seu aforismo sobre brincadeiras de
criança – a brincadeira de minha filha colocando os objetos na caixa por brincar, não
por saber que a utilidade e o valor deles acontece enquanto são colocados na caixa,
justamente porque foram feitos com esse intuito: desenvolver a rede cognoscível e a
coordenação motora, saber juntar iguais, saber identificar cores. Esse é o reinado de
uma criança: pegar as peças que foram criadas por outros mais velhos e carregadas
de intencionalidade e sentido e, por horas enfiar na boca, por horas admirar
encantada, por horas fincar na caixa pelo orifício certo, por horas tentar com tudo no
orifício errado, por horas ignorar a caixa e o objeto, contudo, em nenhuma dessas
interpretações ter feito o que eu falei, nem em relação à minha intenção e nem em
relação ao ato dela em brincar, pois ela ainda não sabe o que é um ato, um brincar,
uma razão. A criança nessa fase brinca sem saber o que é brincar!
Essa relação, segue Kohan, está para além do que se pode relacionar
cronologicamente com uma etapa de desenvolvimento que leva a um estágio
seguinte, que leva a criança ao adulto. Esse tempo impera, não posso retornar à
criança que um dia fui tanto quanto não posso me desvincular de dimensões da carne
que são partes constitutivas de meu existir, como a sexualidade25 por exemplo.
25Uma questão que me tomou de assalto enquanto refletia sobre o reencontro do adulto com a infância
diz respeito justamente ao fato de a criança ser inacessível ao adulto porque não possui a dimensão
sexual desenvolvida. O corpo, a carne que habitamos determina também uma borda que a criança
cruza quando se torna adulta, dentro da temporalidade cronológica (o desenvolvimento do corpo na
puberdade e sua relação com a sexualização desse corpo, independentemente do valor ou significado
que se dê a esse fato), mas define de tal forma o que é o adulto que é impossível desvincular essa
dimensão (que ele efetivamente é e tem) ao tentar retornar por essa mesma borda do adulto
sexualizado, pós-puberdade à infância. A sexualidade após se fazer carne, está enraizada no
constitutivo do adulto. Por mais que tal questão mereça ser objeto de uma investigação detalhada,
relacionando aspectos da psicanálise com a construção de uma ideia de adulto que pensa a infância,
66
Mas se o “isto” que procuro e me afeto não é nem uma lembrança e nem um
tempo de vida, o que poderia ser? Retorno a linhas traçadas a pouco para
potencializar um afeto: “ (...) Perdi a criança que fui, mas não perdi a mim, não findei,
algo desse ser ainda existe, mas não é corpo, não é alcançável, é perda e reencontro,
não é possível trazer para o real. É devir? Devir-criança! (p. 59).
Tantas linhas explicando de várias formas o que a criança em mim não pode
ser e que não posso alcançar a criança em minha filha. Tantas linhas para dizer que
o “isto” que me toma, esse sentimento que me permite inventar a partir de um outro
de certa forma inalcançável é uma força, uma potência que não pode ser trazida para
o território plano das palavras. Esse “isto” tem uma forma, por mais disforme que
pareça quando se tenta explicá-lo e essa forma tem um nome: Devir-criança.
Na filosofia nietzschiana, como já apontado, não existem categorias prévias
com a mesma potência na qual se situa o devir.
sairia muito do tema a ser tratado justamente por levar a outra zona investigativa muito diferente do
campo ontológico aqui apresentado, o que tornaria tal trabalho por demais extenso. Gostaria de
salientar que tenho em horizonte tal perspectiva e pretendo trabalha-la em um momento futuro.
26 Vide subcapítulo 1.3, §29.
67
(...) Mas quem sabe, enfim, se eu também desejo ser lido hoje? – Criar coisas
em que o tempo crave suas garras em vão; buscar uma pequena imortalidade
na forma, na substância – jamais fui modesto o bastante para exigir menos
de mim. O aforismo, a sentença, nos quais sou o primeiro a ser mestre entre
os alemães, são as formas da “eternidade”; minha ambição é dizer em dez
frases o que qualquer outro diz em um livro – o que qualquer outro não diz
em um livro. (NIETZSCHE, 2006, p. 110)
Não escrever muito por ter lúcido que as palavras jamais terão no outro o afeto
que toma o eu quando escreve, porém, ser capaz de escrever o suficiente para
aproximar um devir e despertar uma potência! Uma relação com o movimento que o
devir trás, a relação que falava Kohan, a ideia de movimento de Deleuze. Nesse
movimento está contido uma parte da tradição que se faz nas palavras e no momento
da escrita e muito do acreditar ser possível despertar no outro o afeto: “isto” é brincar
com o retorno de algo já passado, potencializando-o para o novo. Não haveria como
ser diferente com nada! Reaproximar um devir, que seja aquele que se fez como
potência um dia na varanda da casa de minha vó e aceita-lo como a potência que é
agora enquanto escrevo essas linhas: aqui, dançamos juntos, somos crianças juntos,
a criança das três metamorfoses do espírito de Zaratustra; aqui, a reaproximação se
dá pela velocidade em que esse devir carrega os afetos e ao mantê-los lado a lado –
afeto passado vivido e trazido ao presente enquanto memória editada e afeto que
toma enquanto potência que brinca com essas determinações – rasga o tempo
cronológico com seu território estabelecido e é então uma verdade que posso trazer
ao mundo pelas palavras, é criação, é transvaloração, não apenas inferindo que
precisamos de janelas para poder pular para fora e sim quebrando as paredes e as
janelas para construí-las novamente... Aprender é, nesse sentido, o momento de
passagem, o momento em que somos tomados por essa potência afetiva da vida que
se faz na vida e deixa uma marca onde um não saber se traduz em saber: eu já senti
isso e isso me retorna, eu sei – ali havia uma janela, eu a derrubei, sei como construí-
la novamente: saber de seu habitar. Quando me sinto inclinada a empreender tal
jornada de construção, sou tomada por um afeto, uma potência que não é uma
lembrança e sim uma vontade que se projeta no futuro: quero essas paredes aqui de
novo e enquanto construo, sou mais que a lembrança do que tinha e sou mais do que
o propósito em ter as paredes para que eu possa pular as janelas – sou ação,
movimento, devir. Por isso, talvez, a angustia sentida na varanda da casa de minha
68
avó tenha se firmado em mim de forma tão aguda – as paredes ainda estavam lá, as
janelas, a varada... Eu não. Eu ali significava outra coisa.
Deleuze traz potência à essa conceituação de devir que se faz como a própria
carne de Nietzsche em seus aforismos e que de certa forma também potencializa os
meus escritos. Contudo, para Deleuze, o devir é uma antimemória. Não pode se situar
como início, porque o início é um ponto. O início de minha jornada de busca – o retorno
à infância – é um ponto específico do meu ser-no-mundo, irretornável. O lugar de onde
essa potência criança me afeta é outro ponto específico de meu ser no mundo – meu
agora, sentada escrevendo essas linhas –, que Chronos acabou de fazer passar.
Esses pontos são territorializações,
Mas uma linha de devir não tem nem começo nem fim, nem saída nem
chegada, nem origem nem destino; e falar de ausência de origem, erigir a
ausência de origem em origem é um mal jogo de palavras. Uma linha de devir
só tem um meio. O meio não é uma média, é um acelerado, é a velocidade
absoluta do movimento. Um devir está sempre no meio, só se pode pegá-lo
no meio. Um devir não é nem um nem dois, nem relação de dois, mas entre-
dois, fronteira ou linha de fuga, de queda, perpendicular aos dois. Se o devir
é um bloco (bloco-linha), é porque ele constitui uma zona de vizinhança e de
indiscernibilidade, um no man’s land, uma relação não localizável arrastando
os dois pontos distantes ou contíguos, levando um para a vizinhança do outro,
– e a vizinhança-fronteira é tão indiferente à contiguidade quanto à distância.
(DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 96)
Assim sendo, o devir criança é algo que não minha própria infância com suas
características e afetações próprias, nem mesmo uma forma de expressar esses
afetos no agora. O devir é como um buraco de minhoca no tecido do espaço-tempo
que une esses pontos territorializados (lembrança e escrita) numa efervescência para
além de minha zona cognoscível e os faz operar num canto uníssono: Ditirambos de
Criança! Devir-criança em plena potência, pronto para se acabar na finitude própria
de meu afeto, até retornar de novo, sempre e nunca o mesmo!
69
Brincar sem saber que se brinca, haver um resultado e esse resultado ser uma
criação nova, um afeto no mundo, já que afetos são também ausências, são buscas
de totalidades já desveladas e situadas no mundo enquanto verdades contingentes,
finitas e que procuram se reencontrar. Verdades compreendidas como no jogo de faz-
de-conta infantil: “agora eu era o rei, era o bedel e era também juiz, e pela minha lei a
gente era obrigado a ser feliz” (Chico Buarque, idem)... As palavras rei, bedel e juiz
são mais que o que representam conceitualmente, para a criança são parte do jogo
encenado na brincadeira e configuram uma esfera nova no desenvolvimento infantil:
a criança que brinca de faz-de-conta agora possui uma dimensão mais complexa e
desenvolve com as cargas conceituais das palavras que usa uma atmosfera imagética
própria e viva – este é o objetivo final desse capítulo – trazer à tona o deslocamento
específico do qual o devir-criança é capaz de operar quando está carregado com
essas cargas históricas, densas, mortas a que Nietzsche se refere e transformá-las,
transvalorá-las, fazê-las novas.
Tragam-me as cargas, vamos fazer uma brincadeira!
Contudo é necessário tornar claras as regras de tal jogo: primeiramente,
gostaria de manifestar que à época que minha filha brincava com o brinquedo de
encaixes, ela não tinha mais de dois anos de idade. Mas, se foi já estabelecido que o
tempo cronológico não será trabalhado na presente investigação, porque essa
informação se torna importante? Justamente pela gravidade que as regras têm para
o jogo. Vigotski, ao analisar o papel do brinquedo no desenvolvimento da criança,
atenta para a constatação de que toda e qualquer brincadeira implica a criação de
regras de comportamento. Esse argumento ficará mais claro na medida em que o jogo
se desenvolver e suas regras se desvelarem...
Por mais que a investigação da idade cronológica não seja o foco do presente
estudo, uma criança de dois anos, seguindo o pensamento vigotskiano, está imbricada
numa restrição situacional onde seu comportamento é determinado “pelas condições
27 Trecho da canção “João e Maria”, escrita em 1976 por Chico Buarque, para melodia de Sivuca,
composta quase trinta anos antes, em 1947, à época da infância do próprio Chico. Fonte:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_e_Maria_(can%C3%A7%C3%A3o)
70
em que a atividade ocorre” (VIGOTSKI, 2007, p. 113). Isso quer dizer, em linhas
gerais, que para crianças muito pequenas, sem uma capacidade imaginativa
desenvolvida, os objetos em seu entorno se impõem como verdades, ou seja, os
objetos ditam a ação da criança: porta abre e fecha, botão é para apertar, chapéu é
para a cabeça. Essa ideia parece um tanto determinista, mas é necessário considerar
que uma criança pequena não teve tempo para internalizar o mundo e sua gama de
significados e variações, por isso, para Vigotski, os objetos do mundo possuem uma
força motivadora e de abertura para a criança, é como um primeiro traço se formando
para iniciar imagens multifacetadas, é um ponto, uma origem também. Poderia dizer
que a abertura para o afeto imediato causado pelo mundo é absoluta, na medida em
que não existe nenhuma carga trazida por lembranças e nem a possibilidade de
deslocar a “imediatez” desse “mundo imediato” para uma zona de criação:
Considerando então que a criança em uma determinada idade não está apta
para o uso da imaginação, poderia ser inferido que a argumentação anterior se torna
inválida. Contudo, não! O fato de não ter consciência estruturada não tira da criança
a potência que a toma de forma bruta: devir! Não há um nome, não há um sentido,
não há o jogo – há vida vivendo, se fazendo enquanto possibilidade latente, enquanto
vir-a-ser próprio da abertura ao mundo da criança!
Continuando, gostaria que meu interlocutor entendesse o movimento fractal
desse trabalho: está implicitamente considerado que, primeiramente, é necessário
criar um ponto que funcione como início tanto da análise, quanto das bordas do
território que é desenhado – o cientificismo socrático enquanto parâmetro de
construção de mundo, com checkpoint no surgimento da ideia moderna de criança.
Em segundo lugar, é necessário se movimentar de um ponto ao outro, tendo sempre
em consideração esses pontos, incluso o afeto presente que é a motivação maior da
reflexão: Alice interagia com o meio de forma imediata e espontânea, hoje, aos seis
71
anos de idade, brinca que é um gato, anda sobre quatro patas e mia, só mia. Quando
fala, é para explicitar uma regra do jogo: “mamãe, agora eu era um gato e eu tomava
água no potinho, então preciso que você encha um e coloque aqui para eu lamber”...
Algo aflorou que a distinguiu da menininha que brincava com a caixa de encaixes.
Em terceiro lugar, é necessário se movimentar de um ponto ao outro levado
pelo devir próprio da criança e tendo sempre em consideração esses pontos, mesmo
eles “sendo” em esferas diferentes, incluso o afeto presente que é a motivação maior
da reflexão. Essas são as regras do jogo. Tendo isso claro, não importa se o ponto é
o início da ideia moderna de criança ou a própria criança enquanto carne nascida
nesse mundo – ambos precisaram e precisam se movimentar para fora desse marco
inicial em um território estabelecido: a produção humana – e mudam. Tanto os
conceitos ou afetos surgidos com essas novas formas de se pensar o mundo quanto
a criança, precisou se desenvolver; a criança se afastou de uma situação de não
compreensão para uma de imaginação; os conceitos e entendimentos que possuímos
do mundo são reproduções de ideias advindas em momentos de transformação social
e se estabeleceram a fim de que o mundo idealizado pudesse continuar, contudo, o
momento de desvelamento dessas verdades que se estabelecem como máximas no
agora é tão inalcançável quanto a sensação de experienciar a primeira infância.
Assim sendo, desenvolver-se não implica necessariamente amadurecer, num
sentido relacionado à maturidade da razão. No primeiro capítulo disse da necessidade
da técnica para que seja possível dominar o instrumento musical e improvisar, fazer o
que chamam jam session. Nesse jogo o que movimenta ambos os pontos é o devir, a
potência transvalorativa e a capacidade imaginativa, como bem acentua Nietzsche:
do primeiro para o segundo, não segue uma ordem, é puro rizoma28 se desenvolvendo
não pela determinação do tipo específico da planta ou do ser e sim pelo desenvolver-
se: implica a janela, contudo, é o momento de impulso onde se cruza a janela e resta
após a vivência o remanescente desse impulso à ação. Quero dizer com isso que o
efeito nem sempre vai ser como o esperado, ou seja, desenvolver-se a partir do ponto
inicial nem sempre levará aos mesmos lugares, mas havendo movimento, há
possibilidade. Não tanto pelo que se espera, mas pelo próprio movimentar-se. Volto a
essa discussão em breve.
Então a brincadeira seria jogar com esses pontos, conseguir acha-los num
exercício lúdico e se divertir em jogá-los de lá para cá, daqui para lá. Existem vários
estudos e pensadores que fazem o elogio à escola, então conduzem a argumentação
histórica enviesando para salientar suas características positivas. O jogo aqui faz o
mesmo movimento, contudo, buscando outras perspectivas. Não seria tudo uma
brincadeira? Aión se transvalora: se antes ele se mostrava como a brincadeira
dissociada de seu sentido, do tempo próprio de um brincar que simplesmente brinca,
em analogia à vida que vive, agora ele possui instrumentos densos, pontos
conceituais que são na verdade coordenadas cartesianas temporais num território de
mundo, que pode também ser pensado como um tabuleiro bem complexo, e o devir
que quer brincar por brincar joga esses pontos ou bolas e não se importando com
Chronos e sua rigidez, aproxima o que estava longe do que está perto, assim como
transporta o perto para o distante: nesse momento, dizer das determinações
conceituais não é como simplesmente afirmá-las, descrevê-las, determina-las ou
catalogá-las, é sentir que a mesma potência que havia na infância toma na maturidade
e nesse momento não sou nem criança e nem adulta e sim potência própria,
inominável e indescritível e assim, num movimento fractal, posso pegar os pontos que
iniciam minha empreitada, que chamo de início do racionalismo socrático, ou
surgimento da ideia moderna de criança, transformá-los em brinquedos semelhantes
às bolas saltitantes e quicar essas bolas de um lugar para o outro... Continuo a brincar
28 “diferentemente das árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto
qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços de mesma natureza; ele põe
em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos. O rizoma não se deixa
reconduzir nem ao Uno nem ao múltiplo. Ele não é o Uno que se torna dois, nem mesmo que se tornaria
diretamente três, quatro ou cinco etc. Ele não é um múltiplo que deriva do Uno, nem ao qual o Uno se
acrescentaria (n+1). Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou antes de direções movediças.
Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio pelo qual ele cresce e transborda. Ele constitui
multiplicidades lineares a n dimensões, sem sujeito nem objeto, exibíveis num plano de consistência e
do qual o Uno é sempre subtraído (n-1).” (DELEUZE, 1995, p. 31)
73
arremessando esse afeto que vivo para o passado onde viveu Sócrates, Rousseau,
ou mesmo Nietzsche, traduzindo-os de acordo com o que esse devir é capaz de
arrastar quando me traz de volta, num movimento do devir, deixando como resíduo
essas palavras. O tempo está perdido? Não! O devir o rasga também! Sou o tempo
brincando, e quem reina, como bem disse Heráclito, é a criança. O devir-criança é o
tempo destemporalizado e é a proximidade entre os distantes, bem como a própria
distância.
Então brincar é também aproximar. Brincar com os pontos é também tornar-
se intimo deles, é ter com o que se quer que seja bola uma relação de proximidade.
Uma proximidade não é simplesmente a possibilidade de encontrar-se perto de algo.
Podemos nos aproximar de algo, ter nossa carne colada a esse algo e nunca ver esse
algo de verdade. Entenda aqui verdade como um mostrar-se, num sentido
heideggeriano: aquilo que é possível que vejamos do fenômeno naquele tempo, o
pedacinho dele que é iluminado pelo desvelamento enquanto todo o resto permanece
na penumbra do velar-se. E essa verdade pode chegar de um ponto talvez fora de
nós e por vezes nos encontrar fechados29:
29 Mais uma vez aparece um ponto onde o ensaio anexado se faz relevante.
74
Criar regras próprias! Qual seria a relação dessa possibilidade do criar regras
na brincadeira infantil com as nossas instituições adultas? Temos que seguir preceitos
específicos para cada território que adentramos. Na escola, em casa, na necessidade
de uma igreja, na política, no laser. Há sempre um protocolo, uma tradição, uma
conduta. Mesmo para esse estudo, que se pretende um tanto quanto diferente das
normas tradicionais da academia, quanto o que se segue! Não poderia escrever um
poema justamente porque a dimensão subjetiva faria com que a potência de cada qual
que o lesse o recebesse de uma maneira. É um estipulado: acreditamos que
determinadas formas de escrever, como a dissertativa ou a jornalística, são mais
efetivas no se fazer entender. Absolutamente. Para adultos, sim! Adultos
interiorizaram a ideia de regra e nós precisamos disso para que possamos ser mais
efetivos e incisivos nos territórios onde estamos sendo. Mas a regra é algo próprio do
adulto, no sentido de que vem junto com esse rastro de tradição e história que
carregamos conosco ou a regra pode surgir como potência inata em todos e em cada
um?
Muitos campos de estudo trabalham a questão da regra e do jogo, aqui
acredito ser interessante continuar com o pensamento vigotskiano, dado que o debate
deste ponto específico de sua obra – a brincadeira e a regra – é bastante frutífero se
colocado nessa especificidade.
A regra, para Vigotski, ancorado em uma gama de estudos empíricos
precedentes, é uma parte constituinte do próprio brinquedo: “a situação imaginária de
qualquer forma de brinquedo contém regras de comportamento” (Vigotski, 2007, p.
110). Como já dito, realizamos no ato da brincadeira uma possibilidade autêntica de
existir, dado que é preciso conceber como será a brincadeira, estipular bordas de ação
enquanto a mãe representa o papel de mãe, ou seja, brincar do que é realmente verdadeiro. A diferença
fundamental, (...), é que, ao brincar, a criança tenta ser o que ela pensa que uma irmã deveria ser. Na
vida a criança comporta-se sem pensar que ela é a irmã de sua irmã. Entretanto, no jogo em que as
irmãs brincam de ‘irmãs’, ambas estão preocupadas em exibir seu comportamento de irmã; o fato de
as duas irmãs terem decidido brincar de irmãs induziu-as a adquirir regras de comportamento.”
(VIGOTSKY, 2007, p.111). O modo como esse cuidado aparece relacionado àquilo que a criança faz
ao criar regras para o brinquedo é interpretado aqui como uma forma de abertura da presença (ser-o-
aí) como modalidade autêntica de ser-no mundo pois, ao imaginar situações específicas relacionadas
a sua existência, mas que não fazem parte do mundo, a criança também compreende essa
diferenciação teórica da esfera imaginativa colocada aqui como constituinte ontológico separada da
existência mundana e impessoal, relacionada em Heidegger à esfera pública. Pensar sobre o que é
uma irmã é também compreender o papel de irmã sem estar tomado pelo falatório que diz sem nada
dizer. Ao brincar, a criança compreende aspectos que a fazem sair da automaticidade da vida que vive
e a coloca numa zona de interpretação simbólica dos signos do mundo. Brincar é cuidado-de-si. Brincar
é criar regras que a tornam autenticamente o que é.
77
metáforas. Falei disso no primeiro capítulo. De forma alguma venho por meio deste
estudo desqualificar a importância de tais instituições, a ideia principal é tirá-las da
condição de carga e alça-las para a posição imaginada (no sentido mais potente
possível) por Nietzsche quando pronunciou as três metamorfoses do espírito: se ao
animal cabe o carregar de cargas e essas cargas são o peso daquilo morto de
despotencializado, caberia à criança e a toda sua força a possibilidade de transformar
essa carga em criação, brincadeira.
Junto com o instituído institucionalmente, temos também toda uma forma de
se pensar a criança, não como potência e inventividade e sim como aluno circunscrito
nesse jogo demasiado sério. O aluno precisa jogar esse jogo.
O aluno sendo criança, vai jogar o jogo, justamente por ser algo próprio de
seu universo imaginativo. Contudo, esse jogo vai determinar a ele regras que se
espalham para fora desse território de brincadeira, vai começar a criar densidade em
sua vida, o sol vai ser um astro girando no céu, a gravidade vai se tornar cada vez
mais o nome responsável por aquilo que prende ele ao chão e quando deixar de ser
criança, terá aprendido quase todas as verdades sobre o mundo que habita, restando
a esse aluno muito pouco para criar, sendo também convencido de que um gênio é
coisa rara, coisa que não ele, coisa de escolhidos e abençoados.
Trago de volta essa temática, pois, ao brincar com esses pontos, preciso fazer
entender que, deste ponto de vista, qualquer tentativa de retorno só pode acontecer
por meio deste transporte – devir. Não pela razão, não pela história. Devir. A própria
história, nesta perspectiva, é uma tradução possibilitada por essa potência, visto que
é necessário infringir força para se retornar para trás, independente da motivação, e
quando se retorna ao tempo vivente, já não é história, não é aquele ponto, é um
achadouro, como chamou o poeta Manoel de Barros, é uma tradução, como fez o
poeta Hölderlin, é uma brincadeira de pega-pega de fora do tempo, onde o adulto,
crente de sua seriedade e maturidade, brinca com o passado, sem saber que brinca:
a potência com a cintilação de devir-criança irrompe de seu ser, contudo, ele acredita
que está retornando a uma verdade independente dele, que ele não cria, que ele só
reproduz, um habitar já construído e não por ele.
Voltamos assim a uma ideia transvalorada do por que, no segundo capítulo,
provoquei meu interlocutor acerca do papel da escola e da universidade: a instituição
adestra no momento em que traz uma verdade pronta, fazendo com que o aluno
acredite ser essa a opção certa a ser marcada no gabarito da vida. Assim,
79
sua condição ilusória e finita. É preciso ver a escola como um desses ídolos, não para
derrubá-la, mas para não idolatrá-la cegamente.
A escola está vinculada estreitamente aos ideais modernos que prenunciam
o projeto de humano racional e que para Nietzsche são o anúncio de seu próprio
declínio, a borda do que é possível esclarecer: “O que no título se chama ídolo é
simplesmente o que até agora se denominou verdade. Crepúsculo dos ídolos – leia-
se: adeus à velha verdade...” (NIETZSCHE, 2008, p.94).
É preciso atentar que, ao situar e conceitualizar sua ideia do que seria um
ídolo, Nietzsche também faz uso de uma categorização, contudo, como seria possível
transvalorar um valor sem usá-lo como medida e trampolim para ganhar altura? É
necessário, neste ponto, recordar que a transvaloração de todos os valores, projeto
filosófico nietzschiano, é a vontade de poder31 e a vontade de poder enquanto
possibilidade de potência, mas também é uma inversão dos valores32 e diz justamente
da capacidade de pegar essa categoria, dura, imóvel, de bordas definidas e fazer com
ela exatamente o que minha filha Alice faz com o brinquedo que possui um significado
apriorístico, mas que para ela tem um sentido diverso: brincar como uma criança com
as determinações. O personagem ídolo enquanto categoria é um recorte temporal que
se transforma, nas mãos de Nietzsche, num “soldadinho de chumbo” possível de ser
investigado, colocado no tabuleiro, avaliado e talvez deixado no cesto com os outros
brinquedos que a criança cansou de brincar. Os ídolos são criações humanas e por
assim ser, estão à disposição do humano para que este possa fazer com eles o que
bem entender.
valores implica também invertê-los. Denunciando toda espécie de idealismo, o filósofo pretende realizar
um trabalho análogo ao dos alquimistas, ou seja, pretende transformar em ouro tudo o que até agora
foi odiado, temido e depreciado pelos homens.” (Marton, 2014, p. 212)
81
O problema é não ver no ídolo sua qualidade de ídolo. É acreditar que, por
suas densidades, eles são intocáveis, inalcançáveis ao humano. Para Nietzsche o
humano mata deus justamente porque o criou. É apenas depois da morte de deus que
ele se torna apto a olhar a si mesmo. Nietzsche transvalora o sentido dado por
Hölderlin quando diz que os deuses se retiraram. Não existe, em Nietzsche, a retirada
de um elemento metafífico, nem o abandono deste. Existe a viva vivendo, sua finitude
e sua potência própria de devir, de ressignificação e de redescoberta. E como disse
Heráclito, o tempo é como uma criança jogando, o reinado próprio da criança – disso,
desse ressignificar, desse brincar e desse eterno retornar, o humano é servo.
Então a escola é como uma bola quicando pelos séculos, passada de geração
a geração. Essa é a tragédia própria de uma bola condenada a sempre quicar da
mesma forma, contudo, sempre recebendo força para continuar seu movimento de
quicar de outras mãos: crescemos acreditando que precisamos da escola para nos
educarmos, ao tornarmo-nos adultos, a bola já não é mais o ato de brincar de bola e
sim uma carga, um peso, uma verdade. O problema está na bola? A meu ver não – o
problema está no momento em que transformamos a bola em carga compulsória. O
problema está no adulto e na sua fé em verdades absolutas, linearizadas, com peso
de lei, com valor de pedagogias:
“Pois vê, ó Zaratustra! Para tuas novas canções necessitas novas liras”
(NIETZSCHE, 2011, p. 211)
4.1 HÁ SEMPRE UM LADO QUE PESA E OUTRO LADO QUE FLUTUA, A TUA PELE
É CRUA!
O peso e a leveza.
Este breve estudo é uma práxis do tipo de conhecimento que defendo. Uma
dança ao som do ditirambo trágico, onde aquilo incisivo e já sentenciado baila com a
possibilidade da leveza e do criar, a meu modo. Compreender ser possível a dança
entre dicotomias é uma forma de transvalorar obrigações e estabelecidos, fazendo
com que saiam de onde estão fincados, não a fim de dissolvê-los, mas sim de cravá-
los em novos territórios, fazê-los, pelo ato de criar, mesmo partindo de suas
determinações, transformarem-se em novos sentidos, carregá-los com novas
histórias, outros afetos, vivências diversas. Trabalhar temas que são tão tradicionais,
tão carregados de obrigação de trato e técnica pode resultar, nas mãos de quem com
eles irá trabalhar, ou na repetição exaustiva dos detalhes já falados, do cruzamento
também já executado de palavras sendo repetidas e da demonstração da capacidade
de internalizar e reagrupar cargas ou da aproximação desta mesma tradição com a
vida daquele que agora fala, demostrando que o conhecimento não está só nos livros
e na história e sim se faz como potência própria em cada um; em mim, inclusive. Mas
para tal, é necessário conhecer as pedras e viragens do caminho. Como já dito
anteriormente, não se é possível improvisar em um instrumento musical sem antes
não dominar a técnica. Aqui, para brincar com os afetos que dizem sobre territórios
tão específicos, se faz necessário penetrá-los, investigando o que temos sobre eles.
É nesse ponto que a tradição se faz imperativa.
No primeiro capítulo, situei um território enquanto um início. Esse território
funciona como quando temos toda uma paisagem quase que infinita em complexidade
e escolhemos focar nosso olhar para uma florzinha nascendo na beirada de um canto
qualquer. Essa florzinha que nasceu, esse ponto específico foi fixado enquanto o
pensamento racionalista socrático. Mas esse trabalho procura também se
83
sob seu jugo. O afeto se posicionou de forma figurativa e Dionísio, que acontecia no
humano enquanto a vida que vive, passou a ser anunciado no prólogo. Explicar o afeto
do humano, conceitualizar e pensar sobre aspectos impensáveis, tecnicizar o mundo,
vê-lo a partir de seu sentido e significação é como dar mãos e braços para Konton,
citado no primeiro capítulo, é dar características humanas para deus, é matar deus.
Mas quem morre nessa tragédia é o próprio homem, visto que tais características, tais
potências são suas, e jamais teriam como existir para fora desse humano, de nós.
Matamos o deus que vivia em nós para conquistarmos o humano que também somos.
Tire de Konton sua onticidade, corte seus braços e pernas, arranque a sua cabeça e
o permita existir para além do mundo. Konton se vela, ao mesmo tempo que abandona
o humano. Tire do humano as palavras que adjetivam o firmamento em toda sua
subjetividade e a força dos pés que se plantam na terra e criam raízes que se
ramificam em direção aos filhos e aos filhos dos filhos. Que resta? Nem mesmo a
corda estendida entre o animal e o além-do-homem. Somos forma, mas também
somos sonho. Somos cálculo e razão, mas também somos potência e caos.
Essa problemática assume uma força diferente quando adentramos em um
território dentro desse território: o surgimento da ideia de criança, na Idade Média.
Criar a ideia de um ser diferente dentro do constructo iluminista de humano já foi um
marco extremamente importante. Separar a idade infantil da idade madura tinha uma
potência fractal: a criança crescia para se tornar madura, assim como a fruta, assim
como toda a sociedade que sairia da idade das trevas, da ignorância, para se tornar
racional. Sairíamos do simples para o complexo, iriamos nos desenvolver linearmente,
tal qual o tempo da natureza nas plantas e animais, conosco enquanto espécie
inclusos, sairíamos da infância para a maturidade.
Que podia dar errado? Não que tenha dado, mas nós ficamos estagnados.
Conquistamos a maturidade e a razão, o Estado Nação e de Direito, as instituições e
a burocracia, a técnica e o mercado global, internet, economia, política, indústria
cultural, saneamento básico, mercados, medicina, bombas atômicas, educação e tudo
mais que ficaria demasiado extenso citar. Mas, perderíamos tudo isso sem a primazia
da Razão? Foi ela quem possibilitou a nossos antepassados que criassem e que seus
ascendentes continuassem até chegarmos aqui? A resposta a tal indagação não é
simples, mas se retornamos ao passado, seja por meio dos livros, seja pelo
reconhecimento do mundo em que vivemos e que pode também ser interpretado como
parte de um processo, temos a sensação de que esta etapa foi necessária, senão
86
seríamos outra coisa. Mas ser necessária para estarmos onde estamos não implica
que será necessária para os que virão.
Estamos todos num mundo transitório. Atesto assim o pensamento de meu
mestre Nietzsche de que a concepção de humano surgida primeiramente com o
cientificismo socrático e que desembocou na ideia iluminista de humano é
despotencializada porque inferioriza aspectos próprios do humano. Se o humano é
esta faceta racionalista, contudo, não apenas ela e sim tantas outras, como por
exemplo a tragédia e a subjetividade e mesmo com a pouca solicitude que a estes
aspectos damos, mesmo assim conseguimos chegar onde estamos, qual seria a
realização do constructo da ideia de humano com essas potências a todo o vapor?
Um além-do-humano? Seria a ideia de humano racional e trágico o além-do-humano?
Sabemos que criamos uma ideia de humano para permanecer e essa ideia está
intimamente relacionada ao significado do que entendemos por criança e infância.
Junto do surgimento da ideia de criança e do projeto social e politico iluminista,
surge também a necessidade de criar humanos que sirvam tal projeto. Esse foi o tema
do segundo capítulo do presente estudo. O aluno surge como ideal específico para o
tipo humano necessário a esse novo modo de produção ebulindo e, como forma de
introjetar na criança um modus-operandi idealizado para a nova sociedade, todo um
projeto pedagógico é estruturado em torno desse ideário. Não estou aqui julgando se
isso é bom ou ruim, muito menos tive a intenção de descrever tais projetos
pedagógicos. O ponto que se tornou um afeto que não pude virar as costas é que
esse projeto se perpetuou. Surgiu como uma ideia nova, como potência para algo
ainda não realizado, como criação e assim realizou a escola e democratizou o ensino,
estabeleceu diretrizes de ensino, popularizou a escrita e a leitura para diferentes
camadas sociais, capacitou professores, criou uma instituição própria com regras
próprias e tem sido isso há pelo menos dois séculos. Continuamos aprendendo da
mesma forma há pelo menos dois séculos. Nos sentamos na carteira desde tenra
idade, passamos boa parte do dia ouvindo as explanações dos nossos docentes há
pelo menos dois séculos. Mudam alguns conteúdos, pois a história e o tempo não
param, contudo, a forma de transmitir esse conteúdo foi praticamente inalterada nesse
meio tempo. E isso repercute no tipo de humano que temos na idade adulta,
justamente porque é desenhada de forma com que seus contornos sejam sempre os
mesmos e se continue o mundo da mesma forma, com a mesma pedagogia que
estabelece e determina como é correto aprender, se portar e amadurecer. Isso pesa
87
e pesa de uma forma determinista, cinzelando cada um que nasce para algo já
estabelecido, não para seu vir a ser. É certo, precisamos de regras, precisamos de
pontos de apoio para não nos perdemos, precisamos da tradição para não
retornarmos de uma forma ignorante, mas essas regras são apenas criadas do modo
como temos feito ao longo desses séculos?
Esse é o tema do terceiro capítulo: situar o que é mundo para que fosse
possível distinguir concepções de crianças. O mundo pode ser só a vida vivendo, sem
preocupações, sem sentido. Podemos passar nossa existência assim e acredito que
aqueles que o fazem podem também ser felizes. Mas o mundo concebido dessa
maneira não satisfaz a todos. Então é preciso força para ir além da cotidianidade, da
esfera pública, é preciso se debruçar sobre si mesmo para vislumbrar o mundo
acontecendo para além da imediatez e quando tal possibilidade se abre, uma
profundidade abissal surge. Devir, potência, desterritorialização, destemporalização,
criação! Estabelecendo o que é mundo e marcando sua diferenciação da ideia de
território, cria-se um mapa de coordenadas cartesianas subjetivas, onde é possível
estabelecer similitudes entre diferentes territórios existentes num mesmo mundo,
onde é possível observar fractalmente o desenvolvimento das determinações
humanas à imagem do desenvolvimento do humano, sobrepondo territórios micro e
macro, onde é possível fazer diferente a isso, inclusive. Assim, pensar um ponto é sim
imaginar um início que traçará uma linha até onde me situo, seja o nascimento da
presença que identifico como eu, seja o início delimitado como surgimento do
cientificismo socrático, seja o ditirambo, todos convergem e por isso podem se ajustar.
E isso é possível por conta do devir. O devir é tomado aqui como uma onda do fluxo
de vida, não podendo tomar forma, não podendo situar-se.
O mundo que habito, a pele que habito se faz também enquanto tempo e, ao
tentar encontrar a criança que fui, para tentar explanar o que poderia ser o devir
criança com minhas próprias palavras, não obtive sucesso. A memória é uma
territorialização e onde há território não há mais devir. O devir é o momento em que
uma potência toma e transporta exatamente nesse momento. A potência, de infinitas
que podem ser, dançam com o devir: uma sonata tem a potência de quebrar o tempo
em sua condição cronológica e transportar para um momento passado, para um
desejo ainda não realizado, fazer dançar lugares distantes, fazer aproximar presenças
perdidas ou nunca encontradas.
88
É nesse momento que encontro a criança que fui, quando me deparo com o
meu afeto próprio de criar e me dou conta que a menina que imaginava um mundo na
varanda da casa da avó, que nunca mais encontrarei é e, nas linhas escritas desse
trabalho, está criando a seu modo. Realizei desta forma que não haveria um falar mais
franco que o momento em que fui afetada por tal potência criativa e me vi, a partir de
minha própria experiência, a criar uma forma de trazer ao mundo essa potência
apolíneo-dionisíaca que se transforma em humanidade e toma forma em palavras.
Esse criar não pode ser separado da brincadeira da criança que fui. Brinco hoje com
os livros que li, com as conversas que tive, com as aulas e as pessoas que
permanecem em mim enquanto afeto, por mais que o cruzar com elas tenha sido
curto, as palavras poucas ou inexistentes ou que se tenha falado a linguagem do
corpo. Era devir! Devir-criança! Criança brincando, tempo de criança e como disse
Heráclito, reinado de criança.
Não há tempo quando a criança brinca, não há passado, não há memória. Há
algo próprio desse nome que chamamos e atende por “brincar”, contudo esse algo
não é só fantasia, não é só criação, não é só afeto; é também regra.
Quando afetados por uma potência, podemos devir; o tempo Crhonos, esse
que determina corpos e cargas, se transfigura em um brinquedo nas mãos de Aión,
seja essa carga a minha memória de infância, seja uma ideia secular de humano; para
esse tempo enquanto potência, a lembrança (assim como a história) e o presente são
dois pontos, e o devir está no meio deles, ligando, estreitando um ao outro. O “tempo
enquanto memória ou história” pode assim ser transvalorado em seu valor de verdade
estabelecida e figura enquanto uma clareira aberta do ser no que diz respeito a um
determinado afeto ou um momento de desvelamento próprio dessa verdade e que
muda, que é contingente, finito, contudo, ainda é próprio dela. Eis a tragédia
transvalorada: saber que as criações serão sempre outras, contudo, encontrar as que
já foram (e por isso nunca mais retornam), mas, contrariamente às determinações de
Chronos, fazê-las retornar, num jogo de redescoberta, espanto e afeto, eternamente:
Sim, reconheço Zaratustra. Puro é seu olhar, e sua boca não esconde
nenhum nojo. Não caminha ele como um dançarino?
Mudado está Zaratustra; tornou-se uma criança Zaratustra, um despertado é
Zaratustra: o que quer agora entre os que dormem? (NIETZSCHE, 2001, p.
12)
Afirmar algo com esse peso pode parecer estabelecer uma bula, tão densa
quanto as outras, mas não! Novas vidas despontam nesse mundo a cada segundo,
plenas de possibilidades de ser o que são, de se tornarem o que são e de criarem
outros sentidos para algo bobo como uma folha de papel, que foi citada acima como
exemplo, seja isso algo já antes pensado, estabelecido e definido, seja isso algo novo.
Contigentemente essas vidas vão, a seu jeito, se descobrir, aprender a amar ou odiar,
aprender a tolerar ou não, aprender que devem, querem...
Então porque temos tanto medo de perder o mundo já construído? E
decorrente dessa questão, tantas outras: por que acreditando que findando isso que
construímos em nosso tempo de vida, não poderia reencontrá-lo as próximas
gerações? Por que tememos tanto que nosso mundo humano suma, nossas
construções, nossas instituições e leis? Por que acreditamos que o já estabelecido é
melhor? Por ser confortável? Mas o afeto que esse mundo antigo com suas
instituições nos trouxe já não é o mesmo. Águas correram. Continuamos sendo água
que corre. Crianças que estão nascendo neste exato momento em breve criarão suas
próprias regras ao brincar, e também aprenderão muito com o mundo apresentado
por seus educadores. Em condições propícias, sempre aprenderão. São como água
que corre, continua igual, contudo, nunca a mesma. São atravessadas por essas
potências, cada qual se fazendo jorrar pelos corpos em uma intensidade própria e
única. São como veículo que rasga o tempo, pois se lembram e retornam, são potência
de se destemporalizar e devir o que já foi e o que será.
Minha filha me faz aprender a profundidade que tal assertiva pode ter, sempre
ela: estava sentada no sofá, lendo um livro, com uma caneta na mão, marcando as
partes que considerava importantes de serem lembradas depois. Alice chegou.
Sentou-se na minha frente e passou um tempo me observando. Levantou-se. Foi até
a estante de livros, sacou um. Pegou uma caneta e se deitou de bruços no chão.
Começou a riscar o livro. Eu, de minha ignorância e apego às obras, questionei o que
ela estava fazendo, irritada e já a acusando de estar estragando um livro muito
precioso. Ela olhou para mim sem entender... Vi em seus olhos a decepção com minha
atitude e a sua fala em seguida que me levou ao chão:
_ Mas mamãe, quando você faz isso os livros ficam tão mais bonitos!
Era a beleza... A beleza que ela via em minha ação. A beleza que ela via em
mim a ficar no livro. Não era uma obra da literatura clássica, não eram as letras que
formavam histórias, não era a narrativa, não era eu a ler essas palavras e marcar as
92
que considerava mais veementes, não era saber o que ali estava escrito e entender...
Mas ao mesmo tempo não haveria como lhes narrar essa outra historinha de Alice
sem esses livros, sem a tradição e sem o meu processo de aprender. Alice não
entendia o que eu estava fazendo, mas isso não a impediu de aprender o que a ela
era possível naquele momento. Alice imaginava para além, criava. Meu livro continuou
ali, denso e duro em seu valor e significado, contudo, eu me abri e aprendi com ela e
ela comigo. O livro que Alice pegou, seja isso coisa do destino ou não, era sobre
pedagogia. As palavras passavam por ela sem fazer nenhum sentido, só lhe
interessava os traços debaixo delas e algumas letras escritas aleatoriamente nos
cantos das folhas. Isso me fez ver sua vida acontecendo e as palavras ali, mortas. Tal
fato para mim teve um valor visceral, afetou minha relação com a menina e com o
livro. Hoje fazemos esse exercício juntas, todas as vezes que sento para ler a tenho
do meu lado, com um de seus livros e uma caneta, e ela “embeleza” o livro enquanto
eu estudo. Esse é o meu mais sincero Ditirambo de criança, a dança que danço
comigo e com ela, meu relato mais verdadeiro de uma práxis educativa que se faz na
vida. Infelizmente, a quem me lê agora, é imperceptível a potência e o absurdo
colossal de sentido e afeto que tal acontecimento pequenininho em nossas vidas pôde
ter. Foi como pegar o mundo todo de possibilidades e focalizar em um matinho que
nascia à beira do caminho. Um matinho que passa desapercebido quando nos
mantemos tão presos na imagem do horizonte, da estrada que devemos trilhar e da
imensidão. Um detalhe do matinho que foi vivência minha e que talvez não afete
outras pessoas como a mim.
E foi nesse momento que o não sacrifício de Empédocles retornou em minha
vida: como poderia eu escrever sobre esse fato, que poderia encher páginas e
páginas, sendo que este momento foi único? Curto, demasiado, único! A vivência e
intensidade que experimentei faria sentido para outros educadores, caso eu
sistematizasse, escrevesse, pormenorizasse? Estava a minha vivência perdida no
tempo que tudo leva? Ah, Empédocles! Para toda a tragédia que não foi escrita, por
essa potência que brinca unindo o meu afeto ao narrado por Hölderlin, afirmo: tudo
retorna a seu tempo, eternamente, como pode ser percebido a cada um, da forma
como a potência de vir a ser flui em cada um, conforme somos capazes de perceber.
Não temos porque temer a tragédia! A vida se faz e refaz. A vida vive!
E a tragédia não é um deus que entra em cena e resolve todos os problemas!
Como poderíamos manter assim a fé em um educar externo às nossas próprias
93
potências? Nietzsche não definiu suas mais intensas intuições, como a Vontade de
Potência e o Eterno Retorno e isso indica mais do que confunde! Indica que
prescrições são bulas que curam doenças definidas e que definir é característica
salutar da razão, contudo, há mais e é a esse mais, a esse impulso dionisíaco que
dedico este breve estudo. Significa que existe em cada um a potência de afeto e que
é característico do humano a capacidade inventiva. Significa que recomendações,
guias e contratos nivelam não só a carne, mas a percepção. Significa que temos um
receituário de como devemos nos sentir. Nietzsche escreve conceitualmente, mas
deixa sua obra suficientemente aberta para que possamos intuir seus afetos mais
intensos: se você compreende o que eu quero dizer, é porque esse afeto é tão meu
quanto seu, por isso, nem deus, nem o humano, nem Dionísio – quem desce em cena
ex-machina nesta tragédia é o silêncio e um reticenciar...
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
_____. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. Tradução de Suely Rolnik. São
Paulo: Editora 34, 1997.
____. Assim Falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Traduzido por
Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
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César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
____. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Traduzido por Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
____. Genealogia da moral: uma polêmica. Traduzido por Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009.
____. Humano, demasiado Humano: um livro para espíritos livres. São Paulo: Editora
Cia das Letras, 2005.
____. Sobre verdade e mentira num sentido extra moral. In Os Pensadores. São
Paulo: Editora Nova Cultural, 1999c. p. 51 – 60.
SCHÉRER, René. Infantis: Charles Fourier e a infância para além das crianças.
Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2009.
2014, p. 87)34 e esse modo de existir, que tem a possibilidade de pensar o seu sentido,
é um privilégio!
“Ontem”, tu eras presença comigo. Mais que um pensar, um modo de
desvelamento da verdade de teu ser que não aquele marcado pelo logos enquanto
fala apofânica, ou enquanto capacidade de compartilhar linguagem, entender e ser
inteligível, de acessar com os sentidos suas coisas mesmas, te olhar ou tocar e sim
um modo de desvelar-se o ser enquanto um sentir, um afetar; mas falaremos sobre
isso em breve... Cabe citar que algumas presenças são marcantes, intensas; porém,
agora, encontro-me aqui na companhia apenas de minhas próprias palavras. E sua
presença direcionou-se para uma zona de velamento onde, por uma escolha inocente,
diz que não mais pode estar presente como corpo físico que espacialmente fica,
negando desta forma também a latência mesma da presença sua enquanto “o
fenômeno que insiste em mim”: não mais somos um ao outro a verdade dos olhos que
enxergam, ou da pele que toca, ou dos ouvidos que ouvem pois não estamos próximos
e velar-se-ia em mim assim a observação de teu corpo e teu existir. É essa a afirmativa
quando diz o imperativo: há distância.
Este pequeno ensaio busca dizer da impossibilidade de tal ato.
No seu livro “Ontologia – Hermenêutica da Facticidade”, Heidegger afirma que
o ser não pode ser algo totalmente determinado, então, a pergunta sobre o que afinal
de contas é o ser deve ser respondida no plano categorial e coisal – tal plano é e
sempre será um momento de desvelamento, pois a “verdade” aqui encontrada passa
a existir no plano dos entes, inteligível em palavras que são sons, sentidos e
significados – coisas; ou afetos, sentimentos, sensações – coisas também.
Mas e o ser? O Ser? Não coisa? Que é aquilo que fica com sua face velada a
nós, simples humanos, mortais? Que se esconde atrás da zona do existir e continua
sendo para além de nossa própria compreensão? O caminho de minha casa que não
trilho agora, mas sei que continua lá e que carrega junto com uma lembrança espacial,
uma certeza de aconchego e segurança? A vista tão marcante da praia e das ondas
batendo nas pedras, com a lembrança da textura da areia em meus pés, mesmo aqui,
numa salinha quente dentro da Universidade, enquanto escrevo isso? Ernildo Stein,
ao comentar sobre a face ambivalente do ser da presença, diria que não apenas:
35 STEIN, Ernildo. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger. Porto Alegre: Edipucrs, 2002.
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O ser da presença, que infere um não ser, silencia, não ao mundo e às suas
possibilidades, mas à sua perda: ignora essa perda, e a ignora justamente porque a
conhece. Ter um braço fantasma é ter uma abertura às ações que somente o braço é
capaz e por conta disto conserva o campo prático de ação possuído antes da
amputação. É uma negação, mas também uma afirmação – algo próprio do fenômeno
mesmo da presença se desvela (a possibilidade de troca do corpo com o mundo,
mesmo que não efetiva), mas também algo se vela (a ausência, seja ela real ou
subjetiva) e não há um sentido único para tal manifestação. O corpo então pode ser
pensado em termos de duas camadas distintas: um corpo habitual, onde existem
gestos e experiências que remetem ao manuseio do mundo circundante e um corpo
atual, onde a presença se situa no presente. Deixar de ser o que o corpo foi, deixar
sua maneabilidade (corpo habitual) é deixar de ser para mim – em primeira pessoa,
para ser aquilo que pode ser manejável para mim, o que torna a relação do corpo com
o mundo manejável em si, e ser em si é ser em terceira pessoa! O corpo agora, para
Merleau-Ponty, não mais é apreendido como uma experiência instantânea, mas
Tal paisagem natural acontece sem mim, ao mesmo que tempo que acontece por
minha presença estar ali, observando... E essa presença observadora traz de sua
experiência com o mundo circundante suas vivências próprias, que servem de certa
forma como mediatriz para doação ou recuo, para a consciência do verdadeiro ou
falso no observar dessa paisagem. Seguindo essa linha de pensar, as experiências
com um mundo circundante e independente de mim se retroalimentam de minhas
experiências próprias, num movimento de recriação, de um lembrar que possibilita um
experimentar, de um corpo habitual que potencializa um corpo atual, mas também
coloca esse experimentar como processo de aquisição: “ser no mundo” doa seu
sentido a todos os reflexos da presença em primeira pessoa e mais – os funda. Meus
fantasmas – assim como o amputado e seu membro fantasma – ou ainda minhas
recordações influenciam na percepção do espetáculo que atento, porém, o espetáculo
também se coloca diante de mim e não está ele condicionado à minha vivência, então,
traz um elemento novo, ao passo que é jogado para o passado, já que sou observador,
contudo, sou ente, sou ser que não acesso e sou tempo. Há uma proximidade e uma
distância entre os corpos, e há uma distorção dessa relação pela bagagem de
fantasmas que carrego em mim. Mas tal afirmativa não condensa a experiência do
corpo enquanto afeto e diz de uma experimentação que, por sua vez, determina não
somente a experiência com o outro, mas a capacidade de transcendência e mergulho
da presença frente a esse outro. Primeiro porque o afastamento entre o ser próprio
das coisas e o ser percipiente determina que há cisão entre o absoluto e não há: se
estou eu a observar o mar e a tirar tais conclusões, há um entrelaçar entre esse eu e
a paisagem: se houvesse um terceiro observador, a passar com uma aeronave, me
veria contida na paisagem mesma e essa sua percepção me colocaria como a própria
paisagem e assim, infinitamente. Segundo, porque posso eu correr em direção ao
mar, me molhar em suas águas, sentir a entropia que forma a espuma, a textura da
areia, o calor que vem de cima e o frio que vem da água e em um momento seguinte,
não haverá mais areia, nem água, nem espuma, nem cor. Serei eu a própria paisagem
mesma, num momento de doação. Meu corpo é o espetáculo, não um observar desse
espetáculo. E quando a experiência tiver sido jogada para o fundo de meu passado,
para figurar enquanto corpo habitual, haverá uma diferença entre (1) olhar a gradação
das cores no horizonte céu-mar e a formação das espumas na praia norteada pelo
espectro mesmo desses meus fantasmas que, de certa forma, determinam tanto a
possibilidade presente e condicionam meu deleite a um observar passivo e preso à
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minha própria presença, quanto o fenômeno que se manifesta a uma mera aparição
que me invade fisiologicamente e (2) a experiência de viver o mar enquanto fenômeno
e corpo próprio que se permite aproximar, me jogar na água e me abrir para o que me
é desvelado enquanto verdade dessa paisagem. Enquanto a primeira figurará
enquanto descrição, a segunda fundará um afeto. E o afeto possibilita que eu leve
comigo algo próprio da paisagem: seu desvelamento enquanto verdade de Ser e
existir fora de minha interpretação interpelada por fantasmas de minhas recordações.
Falávamos do fluxo de experimentação que se funda em uma recordação, uma
experiência recalcada, no sentido dado por Merleau-Ponty do empenho em uma via,
que fecha as demais possibilidades:
41 Op. Cit.
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