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Copyright © 2006 por Cevdet Mehmet Kösemen

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida,
armazenada em sistema de recuperação ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer
meio eletrônico, mecânico, fotocópia, gravação ou outro, sem permissão prévia por
escrito do titular dos direitos autorais, exceto para o uso de citações em uma análise da
obra.

Esta obra é uma tradução autorizada de "All Tomorrows: A Billion Year Chronicle of the
Myriad Species and Mixed Fortunes of Man" do autor Cevdet Mehmet Kösemen. Todos
os direitos referentes à obra original estão reservados ao autor.

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou utilizada de qualquer forma sem a
autorização do autor original. O tradutor, João Vitor Oliveira Reis, obteve permissão
expressa do autor para a tradução e publicação desta obra.

Todos os esforços foram feitos para garantir a precisão e a qualidade da tradução. No


entanto, o tradutor e os revisores não se responsabilizam por erros ou omissões.

Este livro é uma obra de ficção e qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou
mortas, é mera coincidência.

Autor: Cevdet Mehmet Kösemen

Tradução: João Vitor Oliveira Reis

Revisão: Fabiana Oliveira Pacheco, Vinicius Ribeiro da Silva e João Pedro Franco Chaves
Dedicatória de tradução:
Dedico esta tradução a minha amada Fabiana, cujo amor, apoio e compreensão foram
fundamentais em cada etapa desta jornada. Seu incentivo incansável e sua presença
constante me inspiram a perseverar e alcançar meus objetivos. A você, Fabiana, dedico este
projeto que fiz com todo o meu amor e gratidão.

Agradecimentos especiais:
Gostaria de expressar meus sinceros agradecimentos à Escola Abigail de Azevedo Grillo e
a todos os seus funcionários, que generosamente me proporcionaram um ambiente
propício para o desenvolvimento deste projeto. Agradeço por me fornecerem acesso aos
recursos e às instalações da escola, permitindo-me utilizar os computadores da sala de
informática durante o intervalo para realizar a tradução deste livro. Sua colaboração foi
inestimável e sou imensamente grato pela oportunidade. Um agradecimento especial
também é devido ao meu amigo Vinícius, cujo apoio e assistência foram de grande
importância no decorrer deste trabalho. Sua contribuição valiosa no processo de
desenvolvimento e revisão foi fundamental para o aprimoramento do conteúdo. Obrigado
por sua amizade e pela disponibilidade em me auxiliar. A todos os amigos, familiares e
colegas que me encorajaram ao longo desta jornada, meu mais profundo agradecimento.
Seus incentivos, palavras de encorajamento e apoio moral foram essenciais para manter
minha motivação e encorajamento em alcançar meus objetivos. Por fim, expresso minha
gratidão ao autor do livro "All Tomorrows" por conceder-me a permissão para realizar a
tradução dessa obra fascinante. Sou honrado por ter tido essa oportunidade e espero que
minha versão em português possa transmitir com fidelidade a essência e a riqueza dessa
narrativa. A todos que toleram direta ou indiretamente para a realização deste projeto, meu
mais profundo agradecimento. Sem o apoio de cada um de vocês, essa conquista não seria
possível.

“A emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo, e o mais


antigo e mais forte de todos os medos é o medo do desconhecido.”

-H.P. Lovecraft
Prefácio:

É com grande entusiasmo que lhe apresento o livro "All Tomorrows", uma obra singular
que nos transporta para um futuro fascinante e repleto de possibilidades. O autor, em sua
genialidade, criou um universo que desafia nossas concepções e nos convida a explorar as
narrativas mais extraordinárias. "All Tomorrows" é fruto de anos de dedicação e paixão do
autor, cujo trabalho abrangeu o período de 2003 a 2006. Inspirado pelas obras de Olaf
Stapledon, em especial "Last and First Men" (1930) e "Star Maker" (1937) , bem como pela
imponente obra de Edward Gibbon, "The History of the Decline and Fall of the Roman
Empire", o autor teceu uma trama que mescla história, ficção e uma visão ampliada da
humanidade. Neste livro, somos mergulhados por uma narrativa envolvente, na qual uma
criatura alienígena relata a história da humanidade com uma voz vibrante e cheia de
entusiasmo. O "autor" habilmente mergulhou na essência humana e nos faz refletir sobre
nossa própria existência, ao mesmo tempo em que nos presenteia com uma escrita que
"beira a devoção de um estudante colegial" ao "Decline and Fall of the Roman Empire". A
arte presente em "All Tomorrows" também merece destaque. Com uma abordagem
"arqueológica", as pinturas são enriquecidas com efeitos visuais desbotados e texturas sutis,
criando uma atmosfera única. É importante mencionar que o autor adicionou um tom
desbotado às pinturas originalmente com a intenção de evitar qualquer semelhança com
caricaturas racistas, demonstrando sua sensibilidade e cuidado artístico. Vale ressaltar que
"All Tomorrows" nunca foi publicado fisicamente, mas desde sua disponibilização online
gratuita em formato PDF, em 4 de outubro de 2006, o livro ganhou vida própria,
flutuando pela internet como um navio fantasma nos recantos mais obscuros da rede. É
inspirador testemunhar como essa obra tem sido compartilhada e debatida, encontrando
seu caminho em diferentes comunidades, inclusive em um site wiki dedicado a
speedrunning. Ao embarcar nesta jornada por "All Tomorrows", convido você a se deixar
envolver pela escrita cativante e pelas ilustrações marcantes, enquanto mergulha em um
futuro rico em criatividade e questionamentos profundos sobre a natureza humana.
Preparado para explorar os caminhos inexplorados do amanhã? Então, segure-se firme e
adentre esse universo extraordinário criado por nosso talentoso autor. A aventura está
prestes a começar! Desfrute desta leitura instigante, e que "All Tomorrows" seja uma
experiência enriquecedora e inesquecível.
Introdução:

Bem-vindos ao universo fascinante de "All Tomorrows" de CM Kosemen, uma obra


visionária que transcende as fronteiras da ficção científica e da especulação evolutiva. Neste
livro extraordinário, somos convidados a mergulhar em um mundo repleto de
possibilidades, onde a imaginação se entrelaça com a ciência para nos levar a um futuro
distante e instigante. C.M. Kosemen, autor e artista proeminente, nos leva além dos limites
conhecidos da evolução, desafiando nossa compreensão do que é ser humano e
explorando as consequências de transformações ao longo do tempo. Em "All Tomorrows",
somos levados a contemplar um futuro em que a evolução toma rumos inesperados,
moldando novas formas de vida e desafiando nossa noção de identidade. Esta obra-prima
literária ecoa trabalhos seminais como "Man after Man" de Dougal Dixon, que também
nos convida a explorar os caminhos evolutivos do Homo sapiens e suas possíveis
ramificações futuras. No entanto, considero que "All Tomorrows" vai além, mergulhando
em um cenário ainda mais vasto, onde espécies desconhecidas, ainda humanas, e formas de
vida exóticas ganham "vivacidade" diante de nossos olhos. Através de uma combinação
magistral de narrativa envolvente e arte impressionante, Kosemen nos apresenta com um
panorama fascinante de futuros possíveis. Suas ilustrações meticulosas e realistas evocativas
nos transportam para um mundo onde criaturas mutantes, híbridas e singulares habitam
paisagens exóticas e desafiam nossa compreensão do que é ser vivo e o que afinal significa
“ser um humano”. "All Tomorrows" é uma jornada intelectualmente estimulante, que nos
convida a questionar nossa própria natureza e explorar as filosofias éticas e consequências
das mudanças evolutivas radicais. À medida que avançamos pelas páginas deste livro,
somos confrontados com vislumbres de um futuro imaginado, onde as fronteiras entre
humanidade, tecnologia e natureza se tornam borradas. Prepare-se para se maravilhar e se
questionar enquanto mergulhado nas camadas de "All Tomorrows". C.M. Kosemen nos
convida a explorar um reino de possibilidades infinitas, onde a evolução especulativa e a
criatividade se encontram, levando-nos a questionar o que significa ser humano, como a
vida pode se transformar e quais caminhos podemos seguir. Portanto, caro leitor,
embarque nesta jornada extraordinária, deixe-se envolver pelas imagens e palavras que
compõem "All Tomorrows" e permita que sua mente seja aberta para horizontes infinitos
da possível evolução e adaptação humana.
TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

All  Tomorrows  

C. M.  Kosemen

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

Para Marte  

Após milênios de preliminares limitadas à Terra, as conquistas da humanidade em


um nível notável começaram com sua unificação política e a gradual colonização de
Marte. Embora a tecnologia para colonizar esse mundo já existisse há algum tempo,
brigas políticas, mudanças de agendas e a inércia pura e simples da usurpação
confortável e terrestre fizeram com que esse passo parecesse mais distante do que
realmente era.

Somente quando os riscos se tornaram evidentes, somente quando o ambiente da


Terra começou a ceder sob o peso de doze bilhões de almas industrializadas, a
humanidade finalmente assumiu a tarefa grandiosa.

Durante décadas, viajar para e, posteriormente, estabelecer-se em Marte foi


imaginado como um empreendimento rápido, relativamente fácil; complicado, mas
viável e administrável a curto prazo. Quando finalmente chegou a hora de agir, percebeu-
se que esse não era o caso.

Tudo teve que ser feito passo a passo. O bombardeio atmosférico por micróbios
geneticamente modificados gerou lentamente uma atmosfera respirável em um ciclo que
durou séculos. Mais tarde, alguns fragmentos cometários foram desviados de curso para
dar origem a mares, oceanos; água. Quando a espera finalmente acabou, remanescentes
da flora e fauna da Terra foram introduzidos como versões marcianas especialmente
modificadas.

Quando tudo estava pronto, as pessoas partiram de seu mundo lotado. Elas
chegaram em naves apenas de ida; foguetes de fusão e planadores atmosféricos, lotados
de colonos, sonhando com um novo começo.

Os primeiros passos em Marte foram dados não por astronautas, mas por crianças
descalças em uma grama exuberante e biossintética.

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

Um módulo de pouso transporta as primeiras pessoas para o Éden pré-terraformado de Marte.

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

Os Americanos Marcianos  

Por várias centenas de anos, Marte permaneceu como uma região remota,
próspera, mas ainda ofuscada pelo esplendor da Terra, que brilhava mais intensamente
do que nunca. Graças à realocação de indústrias ambientalmente exigentes para Marte, a
Terra podia usurpar tudo, sem precisar danificar sua exausta biosfera. Esse foi o auge
terrestre; o clímax do desenvolvimento econômico, cultural e social na velha Terra.

No entanto, isso não durou. Assim como a gradual separação da América de sua
mãe europeia, os governos de Marte adotaram uma nova identidade marciana. Eles se
tornaram os Americanos Marcianos.

A diferença entre a Terra e Marte não era apenas política. Algumas gerações sob a
gravidade mais fraca deram aos novos americanos uma estrutura esbelta e elegante que
parecia surreal em seu antigo lar. Isso, combinado com uma certa quantidade de
engenharia genética, elevou a separação dos marcianos a um novo nível.  

Por um tempo, o cisma silencioso entre os dois planetas foi mutuamente aceito, e
o equilíbrio de poder se manteve em uma tensa equanimidade. Mas o impasse entre
Terra e Marte não poderia durar para sempre. Com recursos ilimitados e uma população
enérgica, Marte estava destinado a assumir a liderança.

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

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TODOSO OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

Guerra Civil  

A reviravolta em Marte era esperada acontecer de duas maneiras: ou através de


ganhos econômicos a longo prazo, ou por meio de um conflito armado muito mais curto,
porém doloroso. Por quase duzentos anos, o primeiro método parecia estar surtindo
efeito, mas essa trajetória gradual acabou se rompendo de forma extremamente
destrutiva.

Quase desde o seu estabelecimento, a cultura marciana foi impregnada de um


tema explícito de rebelião contra a Terra. Canções, filmes e publicações diárias repetiam
essas noções vezes e vezes até que se internalizassem. A Terra era vista como o antigo lar
fossilizado que prendia a humanidade, enquanto Marte era considerado novo, dinâmico,
ativo e inventivo. Marte era o futuro.

Essa ideologia eventualmente atingiu seu ápice semiparanóico e revolucionário.


Aproximadamente mil anos a partir de agora, as nações de Marte proibiram todo
comércio e viagem não essenciais com a Terra.

Para a Terra, isso foi uma sentença de morte. Sem os recursos e indústrias de
Marte, a era terrestre rapidamente se transformaria em uma mera sombra de sua antiga
glória. Embora o comércio de bens essenciais continuasse para evitar a fome, para cada
cidadão da Terra, o boicote marciano significava a perda de até três quartos de sua renda
anual.

A Terra não teve escolha senão recuperar seus antigos privilégios, se necessário,
pela força. Séculos após sua unificação política, a Terra se preparou para a guerra.

A maioria dos pensadores (e fantasistas) de tempos anteriores imaginava a guerra


interplanetária como um espetáculo glorioso e acelerado, cheio de enormes naves
espaciais, caças individuais e heroísmo de última hora. Nenhuma fantasia poderia estar
mais distante da verdade. A guerra entre planetas se tornou uma série lenta e angustiante
de decisões precisamente cronometradas que resultavam em destruição em escalas
bíblicas.    

Na maioria das vezes, os combatentes nunca se viam. Na verdade, na maioria das


vezes, os combatentes nem estavam presentes. A guerra se tornou um duelo entre
máquinas complexas e autônomas programadas para maximizar os danos ao outro lado,
enquanto tentavam sobreviver um pouco mais.

Esse conflito causou uma destruição horrenda em ambos os lados. Fobos, uma das
luas de Marte, foi despedaçada e caiu como chuva de meteoros. A Terra sofreu um
impacto polar que matou um terço de sua população.

Por pouco escapando da extinção, os povos da Terra e de Marte fizeram as pazes e


forjaram um sistema solar unido novamente. Isso lhes custou mais de oito bilhões de
vidas.

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

Povo Estelar

Os sobreviventes concordaram que mudanças maciças eram necessárias para


garantir que uma guerra como aquela nunca mais ocorresse. Essas reformas foram tão
abrangentes que envolveram não apenas mudanças políticas e econômicas, mas também
mudanças biológicas.  

Uma das maiores diferenças entre as pessoas dos dois planetas era que, ao longo
do tempo, elas quase se tornaram espécies diferentes. Acreditava-se que o sistema solar
nunca poderia se unificar completamente até que essa discrepância fosse superada.    

A resposta foi uma nova subespécie humana, igualmente e melhor adaptada não
apenas à Terra e Marte, mas também às condições da maioria dos ambientes recém-
terraformados. Além disso, esses seres foram idealizados com cérebros maiores e talentos
aprimorados, tornando-os maiores do que a soma de seus predecessores.    

Normalmente, seria difícil convencer qualquer população a escolher entre


a esterilização obrigatória e a criação de uma nova raça de seres superiores. No entanto,
as memórias da guerra ainda eram dolorosamente frescas, e foi mais fácil implementar
esses procedimentos radicais na esteira de tanta matança. Qualquer resistência ao
nascimento da nova espécie não passou de reclamações insignificantes e greves triviais.  

Em apenas algumas gerações, a nova raça começou a provar seu valor.


Organizados como um único Estado e auxiliados pelos desenvolvimentos tecnológicos da
guerra, eles rapidamente terraformaram e colonizaram Vênus, os Asteroides e as luas de
Júpiter e Saturno.  

No entanto, em breve até mesmo o domínio do Sol tornou-se pequeno demais. As


novas pessoas que o herdaram queriam ir mais longe, para novos mundos sob estrelas
distantes. Eles estavam destinados a se tornar o Povo Estelar.

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

Colonização e o Édipo Mecânico

Mesmo para o Povo Estelar, a viagem interplanetária era uma tarefa monumental.
Mentes primitivas se confundiram com o problema e fantasias como viagens mais rápidas
que a luz e o hiperespaço surgiram como as únicas "soluções".

Em resumo, era impossível levar um grande número de pessoas com suprimentos


suficientes para a estrela mais próxima, tornando a colonização inviável. As tecnologias
existentes apenas se arrastavam a porcentagens ínfimas da velocidade da luz, tornando a
jornada uma empreitada que durava éons. Enormes "naves geracionais" foram
concebidas e até construídas, mas sucumbiram a dificuldades técnicas ou anarquia a
bordo após algumas gerações.

A solução foi ir primeiro e fazer os colonos depois. Para isso, naves automatizadas
rápidas e pequenas foram enviadas às estrelas. A bordo delas, máquinas semissencientes
foram programadas para se replicar e terraformar o destino, e "construir" seus habitantes
a partir do material genético armazenado a bordo.

No entanto, um problema bizarro assolava tais tentativas. A primeira geração de


humanos fabricados às vezes desenvolvia um estranho afeto pelas máquinas que os
criaram. Eles rejeitavam sua própria espécie e pereciam após a crise de identidade
massiva que se seguia. Esse complexo de Édipo tecnológico não era incomum; quase
metade de todas as tentativas de fundação de colônias se perderam por causa disso.

Mesmo assim, a metade restante foi suficiente para preencher o próprio braço
espiral da galáxia da Humanidade.

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

O Verão do Homem  

Logo após a colonização da galáxia pela humanidade, veio a primeira verdadeira


era dourada. Criados por profetas mecânicos, os sobreviventes das pragas edipianas
construíram civilizações que igualavam e até mesmo superavam suas antecessoras
solares.  

Essa disseminação pelos céus não significou uma perda de unidade. Através dos
céus, fluxos constantes de comunicação eletromagnética ligavam os mundos da
humanidade com tanta eficiência que não havia colônia que não soubesse o que estava
acontecendo com suas distantes irmãs. O livre fluxo de informações significava, entre
outras coisas, um ritmo acelerado de crescimento tecnológico. O que não podia ser
resolvido em um mundo era auxiliado por outro, e quaisquer novos desenvolvimentos
eram rapidamente divulgados a todos em um reino que abrangia séculos de luz.  

Não surpreendentemente, os padrões de vida aumentaram para níveis


anteriormente inimagináveis. Embora isso não significasse exatamente uma utopia
galáctica, era seguro dizer que as pessoas da galáxia colonizada viviam vidas em que o
trabalho, tanto braçal quanto mental, era puramente compulsório. Graças à abundância
dos céus e ao trabalho das máquinas, cada pessoa tinha acesso a riquezas materiais e
culturais maiores do que as de algumas nações hoje.  

Durante todo esse desenvolvimento, um fenômeno curioso foi observado. Embora


a vida alienígena fosse abundante nas estrelas, ninguém havia encontrado sinais de
inteligência verdadeira. Alguns atribuíam isso a uma raridade geral, enquanto outros
chegavam a mencionar influência divina, ressuscitando a religião.    

Independentemente das teorias, uma pergunta permanecia verdadeiramente e


completamente sem resposta. O que realmente aconteceria se a humanidade encontrasse
seus iguais ou superiores no espaço?

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

Duas pessoas estelares assistem a um filme holográfico enquanto descansam sob os


restos da flora indígena de seu mundo colonizado. Para eles, é uma vida de felicidade
contínua.

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

Um Aviso Antecipado  

Durante aqueles tempos, uma pequena descoberta de imensas implicações


alertou a humanidade de que ela talvez não estivesse sozinha.  

Em um mundo recém-colonizado, engenheiros se depararam com os restos de


uma criatura intrigante, considerada assim por possuir todas as características de animais
terrestres em um planeta alienígena. Devidamente chamado de Panderavis pandora, o
colossal fóssil pertencia a uma criatura semelhante a um pássaro, com enormes garras.
Pesquisas posteriores determinaram que se tratava de um terizinossauro altamente
derivado, de uma linhagem de dinossauros herbívoros que se extinguiram há milhões de
anos na Terra.    

Enquanto todos os outros animais terrestres de grande porte naquele mundo


colonizado possuíam três membros, um sistema esquelético baseado em cobre e
músculos operados hidrostaticamente, o Panderavis era um típico vertebrado terrestre,
com ossos ricos em cálcio e quatro extremidades. Encontrá-lo ali era tão improvável
quanto encontrar uma criatura alienígena nas camadas geológicas da própria Terra.  

Para alguns, isso era uma prova irrefutável da criação divina. O ressurgimento
religioso, alimentado inicialmente pela aparente solidão da humanidade nos céus, se
intensificou ainda mais.    

Outros viam a situação de forma diferente. O Panderavis havia mostrado aos


humanos que entidades suficientemente poderosas para visitar a Terra, pegar animais de
lá e adaptá-los a um mundo alienígena estavam à solta na galáxia. Considerando a
distância temporal do próprio fóssil, esses seres misteriosos eram milênios mais antigos
que a humanidade quando eram capazes de realizar tais feitos.  

O aviso era claro. Não se sabia o que aconteceria se a humanidade de repente se


deparasse com essa civilização. Um contato benevolente era obviamente preferível e até
mesmo esperado, mas valia a pena estar preparado.    

Silenciosamente, a humanidade começou mais uma vez a construir e acumular


armas, desta vez com potência interplanetária. Havia dispositivos terríveis, capazes de
provocar supernovas e destruir sistemas solares inteiros. Infelizmente, mesmo essas
preparações se mostrariam ineficazes a tempo.  

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

Uma reconstrução de Panderavis mostra as garras semelhantes a um ancinho, com as


quais ele escavava sulcos no solo em busca de alimento. Animais locais oportunisticamente
caminham ao lado de Panderavis, procurando por restos deixados por sua alimentação.  

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

Qu  

O primeiro contato era inevitável. A galáxia, e até mesmo o Universo, era


simplesmente grande demais para que uma única espécie desenvolvesse inteligência.
Qualquer atraso no contato só significava um aumento do choque cultural inevitável. No
caso da humanidade, esse "choque cultural" significava a extinção completa da
humanidade como era conhecida.

Com quase um bilhão de anos, a espécie alienígena conhecida como Qu eram


nômades galácticos, viajando de um braço espiral a outro em migrações que abrangiam
épocas. Durante suas viagens, eles constantemente se aprimoraram e se transformaram
até se tornarem mestres da manipulação genética e nanotecnológica. Com essa
capacidade de controlar o mundo material, eles assumiram uma missão religiosa
autoimposta de "refazer o universo conforme achavam adequado". Poderosos como
deuses, os Qu se viam como os arautos divinos do futuro.

Esse dogma estava enraizado em uma tentativa benevolente de proteger a raça de


seu próprio poder. No entanto, a obediência cega e inquestionável transformou os Qu em
monstros.

Para eles, a humanidade, com todas as suas glórias relativas, não passava de um
objeto transmutável. Em menos de mil anos, todos os mundos humanos foram
destruídos, despovoados ou, pior ainda, alterados. Apesar do fervoroso rearmamento, as
colônias não puderam conquistar nada contra seus inimigos com bilhões de anos de
existência, exceto por alguns lampejos de resistência efêmera.

A humanidade, antes soberana das estrelas, agora estava extinta. No entanto, os


seres humanos não estavam.

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

O Qu triunfante na queda do Homem. À sua esquerda flutua um drone nanotecnológico,


à direita, uma criatura de rastreamento geneticamente modificada.  

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

Homem Extinto  

Os mundos da humanidade, jardins de paraíso terraformados, pareciam


estranhamente vazios para os Qu. Frequentemente, não havia materiais brutos
disponíveis além das pessoas, suas cidades e alguns nichos básicos de ecologia, povoados
por animais geneticamente modificados e plantas provenientes da Terra. Isso ocorreu
porque os humanos haviam apagado as ecologias alienígenas originais desde o princípio.

Ofendidos por outra raça tentando remodelar o universo, os Qu partiram para


punir esses "infiéis" usando-os como matéria-prima para sua visão. Embora isso tenha
levado à completa extinção da consciência humana, também salvou a espécie ao
preservar sua herança genética em uma infinidade de novas formas estranhas.  

Populados por humanos artificiais, agora em todas as formas, desde animais


selvagens até animais de estimação e ferramentas geneticamente modificadas, os Qu
reinaram supremos por quarenta milhões de anos nos mundos de nossa galáxia. Eles
ergueram monumentos de quilômetros de altura e alteraram as superfícies de mundos
inteiros, aparentemente seguindo seus caprichos.    

Um dia, eles partiram assim como haviam chegado. Pois a busca deles era interminável e
eles não parariam, não poderiam parar até varrerem todo o cosmos.  

À medida que se retiravam, os Qu deixaram para trás mil mundos, cada um deles
cheio de criaturas e ecologias bizarras que já foram humanos. A maioria deles pereceu
logo após seus cuidadores partirem, outros duraram um pouco mais antes de sucumbir a
instabilidades de longo prazo. Em algumas preciosas palavras, descendentes dos
humanos conseguiram sobreviver.  

Neles repousa o destino da espécie, agora dividida e diferenciada além do


reconhecimento.  

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

Uma pirâmide Qu com um quilômetro de altura se ergue sobre o mundo silencioso que já
abrigou quatro bilhões de almas. Essas estruturas são a marca registrada dos Qu e podem
ser vistas em todos os mundos habitáveis por onde passaram.  

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

Vermes  

Seu mundo se encontra sob um sol escaldante, cuja intensidade se tornou


monstruosa através das intervenções dos antigos Qu. A superfície está repleta de
destroços de cidades mortas, assando interminavelmente como estátuas fragmentadas
em um forno abandonado.
 
No entanto, a vida ainda persiste nesse lugar impiedoso. Florestas de "plantas"
cristalinas cobrem a superfície, reciclando oxigênio para a vida animal que
fervilhava no subsolo. Uma espécie em particular, mal mais longa que os braços de
seus ancestrais, era o único vertebrado sobrevivente. Além disso, ela é a última herdeira
do povo estelar desse planeta.  

Distorcidos além do reconhecimento por meio de modificações genéticas, eles se


assemelhavam, em tudo, a vermes pálidos e gigantescos. Pés e mãos pequenos e fracos,
adaptados para escavar, eram tudo o que traía sua nobre linhagem. Exceto por esses
órgãos, tudo neles foi simplificado para a vida no subsolo. Seus olhos eram pequenos
pontos, não tinham dentes, ouvidos externos e metade de seu sistema nervoso era
ausente.    

A vida desse povo substituto não se estendia além de escavar sem rumo. Se
encontrassem comida, a devoravam. Se encontrassem outros de sua espécie, às vezes
também os devoravam. Mas principalmente se reproduziam e se multiplicavam,
conseguindo preservar um único fragmento de sua humanidade em seus genes. Com o
tempo, isso lhes seria útil.

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

Pais vermes com seu filhote.  

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

Titãs  

Nas extensas savanas de um posto colonial há muito extinto, enormes criaturas


reinavam supremas. Com mais de quarenta metros de comprimento, de acordo com as
medidas terrestres, esses gigantes eram na verdade descendentes transmutados do povo
estelar.  

Vários traços denunciavam sua ancestralidade humana. Eles ainda possuíam


polegares atrofiados em suas patas dianteiras de elefante, agora inúteis para qualquer
tipo de manipulação precisa, exceto para arrancar árvores. Para compensar essa perda,
desenvolveram o lábio inferior em um órgão muscular semelhante a uma tromba, que
ecoava os elefantes do passado da Terra.    

Por mais bestiais que parecessem, os Titãs estavam entre os mais inteligentes dos
sub-homens reduzidos que ainda existiam na galáxia. Sua postura colossal permitia o
desenvolvimento de um cérebro e, gradualmente, a inteligência voltou a surgir. Com suas
trombas, eles esculpiam elaboradas peças de madeira, construíam habitações
semelhantes a hangares e até mesmo iniciaram uma forma de agricultura primitiva. Com
a vida estabelecida, veio a inevitável onda de linguagem e literatura; mitos e lendas do
passado meio lembrado eram contados em vozes ressonantes pelas vastas planícies.    

Era fácil perceber que, em algumas centenas de milhares de anos, a humanidade


poderia recomeçar com esses titãs primitivos. Infelizmente, à medida que uma catástrofe
de era glacial dominou o mundo natal dos Titãs, os gigantes gentis desapareceram, nunca
mais retornando.  

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

Predadores e Presas  

Predadores degenerados eram comuns entre os mundos selvagens da


humanidade. Na maioria das vezes, eles se assemelhavam aos vampiros, lobisomens e
goblins das lendas passadas; caçando presas igualmente sub-humanas com uma
combinação de armamentos derivados. Alguns possuíam cabeças enormes com dentes
grandes e letais. Outros rasgavam suas vítimas com pés semelhantes a garras. Mas os
mais comuns tinham dedos e polegares modificados, repletos de garras afiadas como
navalhas.  

Os predadores mais eficientes habitavam uma das primeiras colônias


extraterrestres da humanidade. Além de mãos semelhantes a patas, com polegares
retráteis como lâminas, eles também possuíam mandíbulas repletas de dentes em
cabeças desproporcionais, com grandes orelhas sensíveis. Todos esses atributos
contribuíam para torná-los os predadores dominantes em seu planeta natal.  

Eles percorriam as planícies, espreitavam as florestas e vagavam pelas montanhas


em busca de diferentes presas: saltadores herbívoros com pernas semelhantes às de aves.
Enquanto suas presas caíam em completa animosidade, os caçadores conseguiram
manter a centelha de inteligência viva em seu aprimoramento evolutivo.    

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

Mantílopes  

Nem todas as pessoas degeneradas caíram na completa bestialidade. Algumas


mantiveram suas mentes, enquanto perdiam todas as suas vantagens fisiológicas devido
à manipulação genética dos Qu.  

Uma espécie singular foi um exemplo primordial disso. Eles foram criados
como cantores e guardiões de memórias, agindo como gravadores vivos durante o
reinado dos Qu. Quando seus mestres partiram, eles mal sobreviveram, revertendo para
uma postura quadrúpede e ocupando um nicho como animais herbívoros de pastoreio.
Essa mudança foi tão abrupta que os Mantílopes recém-evoluídos sobreviveram
apenas devido à esterilidade indulgente de sua biosfera artificial.  
 
Os Mantílopes, equipados com mentes humanas completas (embora ligeiramente
amortecidas) e corpos totalmente desabilitados, viviam vidas agonizantes. Eles podiam
ver e entender o mundo ao seu redor, mas devido a seus corpos não podiam fazer nada
para mudá-lo. Por séculos, manadas melancólicas percorreram as planícies, entoando
canções de desespero e perda. Religiões inteiras e tradições orais foram tecidas em torno
dessa deficiência racial incapacitante, tão dramáticas e detalhadas quanto em qualquer
época passada na Terra.  

Felizmente, as forças seletivas da evolução tornaram sua agonia de curta duração.


Simplificando, um cérebro não era vantajoso de se desenvolver se não pudesse ser usado
de forma produtiva. Um Mantílope de inteligência limitada crescia mais rápido do
que um inteligente e pastava com a mesma eficiência. Os filhotes animais dos
Mantílopes ultrapassaram seus antecessores em menos de cem mil anos, e seu mundo
melancólico silenciou para sempre. Nada era sagrado no processo evolutivo.      

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Nadadores

Talvez porque seu ciclo de vida envolvesse uma fase larval aquática, os Qu haviam
transmutado um grande número de seus sujeitos humanos em uma desconcertante
variedade de criaturas aquáticas. Cuidados por atendentes especialmente criados, esses
bebês aquáticos pós-humanos vinham em todas as formas e tamanhos imagináveis.
Havia variedades sem membros, parecidas com fitas, de pessoas-enguias, enormes
behemotes semelhantes a baleias, pessoas decorativas que nadavam esguichando água
de suas bocas hipertróficas e uma infinidade horripilante de criaturas ininteligentes que
serviam como estoque de alimentos.  

Todos eles eram perfeitamente domesticados. Todos eles foram extintos quando
seus mestres partiram. Exceto por algumas formas levemente mutadas e generalizadas.
Esses nadadores ainda se assemelhavam em grande medida aos seus ancestrais
humanos; eles não tinham brânquias artificiais, suas mãos ainda eram visíveis através de
suas nadadeiras dianteiras, seus pés eram expansões semelhantes a caudas que
funcionavam como um par de nadadeiras caudais. Olhos reconhecivelmente humanos
espreitavam por trás de suas pálpebras adiposas e eles se comunicavam entre si, embora
não em palavras e nunca com entendimento consciente.  

Por milênios, eles nadaram pelos oceanos de seu mundo ecologicamente limitado,
alimentando-se de diversos tipos de peixes e crustáceos, sobreviventes do estoque
alimentar originalmente importado da Terra. Com a partida dos Qu, a seleção natural
recomeçou. Os nadadores se tornaram mais aerodinâmicos para capturar melhor suas
presas rápidas. As presas responderam ficando ainda mais rápidas ou evoluindo
contramedidas defensivas, como armaduras, espinhos ou veneno. Com sua evolução de
volta aos trilhos, os nadadores se afastaram cada vez mais de sua ancestralidade
consciente. Eles teriam que esperar muito tempo para provar essa bênção novamente.  

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Pastores de Lagartos  

Eles foram os sortudos. Em vez de distorcê-los de forma irreconhecível, como


fizeram com a maioria de seus sujeitos, os Qu simplesmente apagaram sua consciência e
impediram o desenvolvimento de seus cérebros.  

Se assemelhando remotamente aos seus antigos antepassados na Terra, os


primitivos levaram vidas selvagens por um tempo anormalmente longo. Eles nunca
recuperaram a consciência depois que os Qu partiram, apesar de terem todos os
incentivos para tal. Isso ocorreu em parte devido à completa ausência de predadores em
seu mundo jardim, o que não proporcionava vantagem alguma para a inteligência. Além
disso, os Qu fizeram algumas alterações pequenas, mas integrais, em seus cérebros,
mexendo com a estrutura do cerebelo para que certas características associadas à
aprendizagem heurística nunca mais pudessem surgir. Mais uma vez, as razões para
essas mudanças desconcertantes permaneceram conhecidas apenas pelos Qu.    

As pessoas sem inteligência eventualmente estabeleceram uma simbiose com


algumas das outras criaturas que habitavam seu planeta. Eles começaram a "criar"
instintivamente alguns dos grandes répteis herbívoros, cujos ancestrais foram trazidos da
Terra como animais de estimação.  

Logo, o equilíbrio desse mutualismo começou a se inclinar a favor dos répteis. O


clima tropical do planeta lhes conferia uma vantagem inerente, e eles passaram por uma
espetacular radiação de diferentes espécies. Eles não encontraram concorrência dos
únicos grandes mamíferos do planeta: os descendentes neutros em termos de cérebro dos
viajantes estelares. Diante dessa mudança para o domínio dos répteis, a única adaptação
que os sub-homens conseguiram foi deslizar silenciosamente para a obscuridade bestial  

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Um pastor de lagartos observa o mundo com olhos vazios enquanto seu rebanho se torna
mais forte e inteligente. O futuro não parece pertencer a ele.  

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Tentadores¹  

No caso dos Tentadores, a remodelação foi feita com um entusiasmo quase


artístico. Como eles conseguiram sobreviver em sua forma bizarra não estava claro;
seus ancestrais eram usados como decoração sésseis e, por algum milagre da
adaptação, eles haviam perdurado.

Nenhum humano os reconheceria como seus descendentes. As fêmeas eram


cones com bicos de carne, com cerca de dois metros de altura, enraizadas no solo como
grotescas plantas carnívoras. Os machos, por outro lado, se assemelhavam a macacos
contorcidos e bípedes. Ao contrário de suas parceiras, eles eram
perfeitamente ambulantes; dezenas deles corriam ao redor dos montes das
fêmeas como tantos duendes. Alguns recolhiam comida, outros limpavam as
fêmeas, enquanto outros ficavam de guarda contra perigos. Embora suas
ações parecessem propositais, os machos não tinham vontade própria
.  
Na sociedade dos Tentadores, as fêmeas controlavam tudo. Usando uma
combinação de sinais vocais e feromônios, elas guiavam as hordas masculinas em
qualquer número de tarefas servis, acasalando-se com os mais fortes, obedientes e
estúpidos para produzir drones ainda melhores. Em determinados períodos, também
davam à luz algumas fêmeas preciosas, que eram levadas por machos subservientes para
enraizar-se.  

Era uma hegemonia terrivelmente eficiente que certamente daria origem a uma
civilização em questão de séculos, se o destino não tivesse intervindo. Quando
um cometa desgarrado destruiu as florestas dos montes dos Tentadores, uma das
melhores chances da Humanidade para ressurgir foi cruelmente arrancada.

¹ Optei por traduzir o nome "Temptor" para "Tentador" devido ao seu significado
apropriado para descrever essa "subespécie humana". O termo "Tentador" refere-se a um
ser que exerce ação de tentar, seduzir ou persuadir outros indivíduos

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Um macho e uma fêmea Tentadores ilustram a discrepância sexual característica da


espécie. Observe a vagina alongada em forma de covil da fêmea. Durante o
acasalamento, os machos descem nela como passageiros de metrô.

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Trituradores de Ossos  

Através das modificações deliberadas dos Qu e da moldagem cega da evolução, os


céus foram povoados por criaturas que envergonhariam os mitos de seus ancestrais.    

Seus ancestrais eram animais de estimação minúsculos dos Qu, que eram criados
por suas cores deslumbrantes derivadas de seus bicos dentados. Quando seus mestres
partiram, a maioria dessas criaturas mimadas morreu, sem ninguém ou nada para cuidar
delas.    

Mas algumas, pertencentes às raças mais robustas, sobreviveram. Em menos do


que um piscar de olhos geológico de alguns milhões de anos, os descendentes dessas
criaturas se diversificaram no vácuo evolutivo de seu mundo paradisíaco. Uma linhagem
levou a uma profusão de herbívoros humanos. Esses eram predados por uma variedade
de raptores² de bicos de esmalte, cada um evoluído para lidar com uma presa específica.
Entre esses nichos generalizados, havia conjuntos inteiros de animais especializados, que
se assemelhavam a qualquer coisa, desde filtros de pântano com bicos de íbis até formas
esplendorosas com cristas bizarras que se abriam em seus bicos dentados.  

Havia até mesmo formas secundariamente inteligentes, na forma dos trituradores


de ossos, semelhantes a ogros. Para um observador dos dias de hoje, eles realmente
seriam algo saído de pesadelos; com três metros de altura e cabeludos, apresentando
garras afiadas como polegares e enormes bicos que se adequavam à sua dieta de carniça.    

Apesar de suas deficiências, esses primitivos comedores de cadáveres foram uma


das primeiras espécies a alcançar a inteligência e, embora de forma primitiva, um nível de
civilização. Tudo isso provou a falácia do preconceito humano na galáxia pós-humana.
Uma criatura poderia se alimentar de carne putrefata, exalar um odor de túmulo e
expressar seu afeto defecando nos outros, mas ainda poderia ser seu próprio neto e a
última esperança da humanidade.  

No entanto, com o tempo, nem mesmo os trituradores de ossos cumpriram essa


promessa. Sua dependência de carniça como alimento limitou severamente sua
população, e suas civilizações medievais ruíram após alguns milênios sem eventos
significativos.    

² O termo "Raptores" utilizado pelo autor faz alusão às Aves de Rapina, que são aves
carnívoras conhecidas por suas habilidades de caça e garras afiadas(Não confundir com
os "Raptores" Dinossauros).

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Coloniais

Seu mundo havia oferecido a resistência mais feroz contra o ataque dos Qu. Tão
feroz, na verdade, que eles haviam repelido duas ondas sucessivas dos invasores, apenas
para sucumbir à terceira.  

Os Qu, com seu senso distorcido de justiça, queriam fazê-los pagar. Até mesmo a
extinção seria uma punição leve demais por resistir aos deuses estelares. Os humanos do
mundo rebelde precisavam de uma sentença que os lembrasse de sua humilhação por
gerações futuras.  

Então, eles foram transformados em culturas desencarnadas de pele e músculo,


conectadas por uma rede insuficiente dos nervos mais básicos. Eles foram empregados
como dispositivos de filtragem vivos, subsistindo nos produtos residuais da civilização
dos Qu, como tapetes de células cancerosas. E apenas para testemunhar e sofrer seu
destino miserável, seus olhos, juntamente com sua consciência, foram mantidos.  

Durante quarenta milhões de anos eles sofreram; geração após geração nasceu para as
vidas mais miseráveis enquanto absorviam a dor de tudo pelo que estavam passando.  

Quando os Qu partiram, eles esperavam pela extinção rápida. Mas sua


humilhação também os tornara sobreviventes eficientes. Sem restrições dos Qu, os
coloniais se espalharam pelo planeta em campos de carne humana como um
mosaico. Após uma eternidade de vidas torturadas, os campos humanos
experimentaram algo que quase poderia ser descrito como esperança.  

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Uma seção de um campo Colonial revela a miséria que compromete suas vidas inteiras.
Note que essas criaturas desorganizadas podem se reproduzir tanto por métodos assexuais
quanto por métodos mais familiares.  

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Voadores  

Eles não eram incomuns no domínio dos Qu. Pelo menos uma dúzia de mundos
abrigava espécies voadoras derivadas dos humanos de um tipo ou de outro. A maioria se
assemelhava a morcegos ou pterossauros do passado distante, dançando pelo éter como
anjos (ou demônios, dependendo do ponto de vista). Havia também algumas espécies
bizarras que dependiam de glândulas de gás inchadas para flutuar.  

Infelizmente, a maioria dessas criaturas já era muito especializada para ser outra
coisa senão voadores. Elas haviam abandonado sua humanidade em prol da conquista do
céu; tinham pouco potencial para uma maior diversificação além de seus papéis
limitados.  

A única exceção revelou-se uma espécie semelhante a macacos que voava com
membranas esticadas entre os dois últimos dedos. Sua vantagem era um coração único
em forma de turbina, desenvolvido artificialmente durante o regime dos Qu. Nenhum
outro voador humano na galáxia possuía tal adaptação. O órgão em forma de estrela-do-
mar ficava no meio de seus peitos, direcionando diretamente o oxigênio dos pulmões
para a corrente sanguínea de maneira supremamente eficiente. Isso significava que os
Voadores poderiam desenvolver adaptações que consumiam energia, como cérebros
grandes, sem ter que abrir mão de seu poder de voo.  

Não que os voadores fossem recuperar sua consciência imediatamente. Em vez


disso, eles literalmente explodiram nos céus, preenchendo os céus com desde
navegadores do tamanho de bombardeiros até predadores incrivelmente rápidos que
corriam em velocidades sônicas. Seu mundo era intocado e havia muitos nichos para
explorar. A inteligência poderia esperar um pouco mais.  

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Uma ancestral Voadora em seu elemento nativo. Embora desajeitadas, essas criaturas
possuem uma vantagem metabólica artificial que lhes confere um tremendo potencial
evolutivo.

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Abanadores  

Alguns pós-humanos voadores se aproximaram da sensiência de uma maneira


completamente diferente. Sem os metabolismos aprimorados ou as vantagens
gravitacionais de seus irmãos em planetas distantes, eles não tiveram escolha senão abrir
mão de seu poder de voo para continuar seu desenvolvimento.  

Os Abanadores eram uma dessas espécies. Suas asas, antes usadas para
voos semelhantes aos de borboletas nos jardins sobrenaturais dos Qu, encolheram e
voltaram à sua condição manual. Suas pernas também foram readaptadas, mas
carregavam uma desajeitada rigidez decorrente de sua ancestralidade de pouso.  

Apenas uma singular e quase sadicamente simples falha os impediu


de desenvolver uma civilização. No curso de sua atrofia secundária, as asas dos
Abanadores se tornaram inúteis como mãos também. Seus apêndices semelhantes a
bandeiras eram muito úteis em sinais e danças de acasalamento, mas eles não
conseguiam lançar objetos, construir abrigos ou mesmo fabricar ferramentas básicas de
pedra. Tudo o que podiam fazer com suas mãos inúteis era exibir a disponibilidade
sexual uns dos outros, então os Abanadores faziam exatamente isso: exibiam-se e
dançavam seu caminho para o esquecimento.    

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Um Abanador à beira de seu território de acasalamento. Durante sua exibição sexual


quase cômica e exagerada, sua espécie começou a perder sua vantagem na adaptação. A
existência deles será vibrante, extasiante, mas em última análise efêmera  

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Os Cegos

Quando os Qu chegaram, eles se abrigaram e se esconderam profundamente.


Dentro de abrigos do tamanho de continentes em seu mundo sitiado, eles esperaram os
invasores passarem por eles. Foi uma aposta fútil. Os Qu localizaram as cavernas-abrigo e
remodelaram seus habitantes sem esforço.  

Os abrigos se tornaram lar de uma ecologia completamente diferente, um reino de


escuridão perpétua, alimentado pelo gotejamento de água e nutrientes do mundo
exterior. Uma ecologia surpreendentemente complexa se desenvolveu com esses
recursos escassos: insetos pálidos gigantes, descendentes de pragas domésticas comuns,
competiam com aves e roedores de aspecto surreal em campos de fungos supercrescidos.
Predadores não eram incomuns; peixes quase crocodilianos patrulhavam os riachos
subterrâneos e enormes morcegos cegos, com ecolocalização de precisão desconcertante,
cobravam seu tributo dos habitantes do chão da caverna. Os tetos dos abrigos, com
quilômetros de altura, brilhavam no escuro com constelações cambiantes de fungos
bioluminescentes e, em alguns casos, animais.    

Pessoas também estavam presentes, embora em formas desconhecidas. Eram


mais frequentemente ouvidas do que vistas, enquanto tentavam encontrar o caminho na
escuridão com gritos semelhantes aos de banshees. Esses trogloditas albinos viviam em
um reino onde o som e o tato, não a visão, eram a porta de percepção. Eles
desenvolveram dedos táteis longos, bigodes enormes e ouvidos móveis para viver na
escuridão. Onde seus olhos deveriam estar, não havia nada além de uma área de pele lisa
e assustadoramente perfeita. Sua adaptação perfeita ao mundo das trevas havia apagado
a característica mais básica do reconhecimento humano.  

Por mais adaptados que estivessem, estavam condenados. Antes que os Cegos
pudessem desenvolver qualquer tipo de inteligência para sair de suas sepulturas
geográficas, a compressão glacial das placas continentais de seu mundo extinguia os
abrigos um por um.  

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Um pai cego assustado com sua filha de um ano. Embora ele saiba que é melhor ficar
quieto para confundir os predadores equipados com sonar, a criança grita e se suja de
medo. Seus dedos alongados são marcas registradas de uma vida passada na escuridão.  

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Deslocados  

Os Qu foram grotescamente criativos em sua remodelação dos mundos humanos.


Um grupo de almas infelizes foi transportado para um planeta com trinta e seis vezes a
quantidade de gravidade "normal" e foram transformados para viver nesse reino bizarro e
inóspito.  

Os resultados desses experimentos assemelhavam-se a esboços de pesadelos de


Bosch, Dali ou Picasso. Pareciam aleijados esmagados entre camadas de vidro. Três dos
seus quatro membros se tornaram órgãos semelhantes a pás para rastejar; apenas um de
seus braços permaneceu como uma ferramenta esquelética de manipulação. Esse
único membro enrugado também funcionava como um sensor adicional, como as
antenas de um inseto.  

Seus rostos eram horrores completamente diferentes. Toda a pretensão


de simetria, a marca registrada dos animais terrestres desde os peixes sem mandíbula
em diante, foi completamente abolida. Um olho protuberante olhava diretamente para
cima, enquanto o outro examinava à frente, na direção das mandíbulas que se
abriam verticalmente. As orelhas também estavam distorcidas.  

Monstruosos como pareciam, esses ex-homens prosperaram em seu ambiente de


alta gravidade. Mais uma vez, houve uma explosão de espécies em todos os nichos
disponíveis, e os Deslocados consolidaram suas chances de uma consciência renovada.  

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Um Deslocado alimenta alguns animais domésticos nativos do seu mundo de alta


gravidade. A domesticação da fauna nativa é o primeiro passo dos Deslocados no longo
caminho em direção à civilização.  

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Passolongos  

Enquanto os Deslocados foram redesenhados para viver sob uma gravidade


extrema, outra espécie foi adaptada para a vida em condições exatamente opostas: em
uma lua joviana com um quinto da gravidade da Terra.

Era um mundo de maravilhas, onde até a grama crescia quase dez metros de
altura e as árvores eram inacreditáveis, erguendo-se a alturas alcançadas apenas pelos
arranha-céus da antiguidade. Nesses florestas surreais, viviam fauna igualmente
espetacular: os descendentes de animais de estimação, pragas e gado dos humanos, que
por sua vez também haviam sido reduzidos à animosidade.  

Era possível vê-los nas florestas gigantescas, quase dançando entre as árvores
enquanto se erguiam cada vez mais alto para se alimentar. Seus braços, pernas e
pescoços foram esticados de forma impossivelmente fina, grandes abas de pele
floresciam por todo o corpo para dissipar o calor residual. Às vezes, até mesmo mudavam
de cor para refletir a luz e se manterem frescos. O superaquecimento era um grande
problema para seus corpos esguios e frágeis.  
 
Apesar de imponentes, essas assombrações giacomettianas³ eram excessivamente
desenvolvidas a ponto de serem repugnantemente frágeis. Mesmo em seu mundo com
gravidade favorável, uma queda poderia quebrar seus ossos e escorregar de um
galho provaria ser fatal. Às vezes, nas planícies abertas, até mesmo um vento forte
poderia derrubá-los como mastros que tombam. Eles sobreviviam inteiramente
devido às condições benevolentes de seu mundo jardim, que estavam prestes
a mudar
drasticamente.  

Cerca de dois milhões de anos depois que os Qu deixaram suas imponentes obras
de arte humana, uma linhagem de predadores terríveis evoluiu a partir das aves terrestres
que se tornaram selvagens no planeta. Assemelhando-se a versões atenuadas de seus
ancestrais dinossauros, os predadores varreram o mundo jardim como incêndios
florestais, extinguindo qualquer espécie demasiado frágil para escapar ou resistir.
Os pacíficos e delicados passolongos foram um dos primeiros a desaparecer

³ "Giacomettiano" refere-se a algo que é semelhante ao estilo ou obra do


renomado escultor suíço Alberto Giacometti. Alberto Giacometti foi conhecido por suas
esculturas alongadas e estilizadas, que retratavam figuras humanas em formas esguias e
alongadas, muitas vezes com uma sensação de fragilidade e isolamento. Se algo é descrito
como "giacomettiano", significa que possui características estéticas semelhantes às obras
de Giacometti, como a representação de figuras delgadas, alongadas e com uma sensação
de vulnerabilidade

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Parasitas

A humanidade havia se dividido em duas linhagens separadas em seu mundo. Por


um lado, havia várias raças de seres quase australopitecinos, degradados pelos Qu por
terem conseguido reverter sua onda inicial de invasão. No entanto, um simples atavismo
era um castigo leve demais para eles. Seus parentes distorcidos, os parasitas,
compunham a segunda parte de sua sentença.    

Na verdade, existiam vários tipos de ex-humanos parasitas, que variavam desde


vampiros ambulantes do tamanho de uma tartaruga até a variedade mais comum do
tamanho de um punho, que vivia presa aos seus hospedeiros. Havia até mesmo um tipo
minúsculo, endoparasita, que infestava os úteros de suas vítimas femininas como abortos
grotescos e vivos.    

Todas essas torturas evolutivas se desenrolaram sob o olhar atento dos Qu por
quarenta milhões de anos. O castigo era tão barroco, tão elaborado, que a maioria das
relações parasita-hospedeiro artificiais se extinguiram quando os Qu partiram. Alguns
sub-homens aprenderam a limpar seus parentes semelhantes a carrapatos, afogando-os,
queimando-os ou até mesmo comendo-os. Outros, como os parasitas vaginais,
desapareceram, pois seu método agressivo de parasitismo esterilizava efetivamente seus
hospedeiros.  

No entanto, uma ou duas variedades conseguiram se agarrar aos seus hospedeiros


com ventosas abdominais, membros musculosos e aderentes, e saliva estéril e calmante.
Mas o sucesso deles não se baseava apenas na força de suas vantagens parasitárias. Eles
também aprenderam a regular seus hospedeiros passivos, evitando matá-los por
superinfestação e, assim, garantindo sua própria sobrevivência a longo prazo.    

De qualquer forma, relações totalmente unilaterais eram raras em qualquer


ecologia, natural ou artificial. Em ciclos milenares, o parasitismo cruel da espécie parente
começou a se transformar em algo mais benéfico para ambos os lados.  

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Uma pessoa parasítica, mostrada em tamanho real. Embora o destino delas pareça
desumano em todos os aspectos para um observador atual, sua mera sobrevivência
mostra que tais valores subjetivos são ineficazes quando se trata de sobrevivência a longo
prazo.  
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Pescadores  

Seus antepassados estavam presos em um mundo de arquipélago; um planeta


salpicado por pequenos continentes e incontáveis ilhas interconectadas por redes de
mares calmos e rasos. Como um Egeu ampliado, este lugar era um paraíso terrestre em
muitos aspectos. Exceto que, após os Qu, nenhuma mente restou para apreciá-lo  

Nesta biosfera vazia, a evolução rapidamente iniciou sua dança cega e


imprevisível. Os descendentes dos humanos degenerados se adaptaram a cada nicho
disponível, não importando o quão exótico ou estranho fosse. Um grupo aprendeu a
pescar peixes nas praias rasas. Milênios se passaram e eles se estabeleceram cada vez
mais em seu estilo de vida piscatório. Dedos alongados se tornaram anzóis ambulantes,
dentes modificados para uma dieta generalizada se tornaram estruturas semelhantes a
agulhas, alinhadas em um focinho longo e fino. Em menos de alguns milhões de anos, os
Pescadores se estabeleceram como uma linhagem proeminente. Mal havia uma praia,
uma ilha ou um estuário desprovido de suas formas pálidas e esguias.  

Apesar de sua proliferação, os Pescadores ainda não eram melhores do que


animais. Sua "humanidade" só surgiria após um espasmo de adaptações estranhas.        

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Hedonistas  

Até mesmo a existência feliz dos Caçadores de Peixes com os Dedos pareceria
incômoda para os Hedonistas; pois seu tipo não evoluiu, mas foi projetado para uma vida
de prazer. Os Qu os mantiveram como animais de estimação mimados; soltos em um
mundo insular tropical de frutas suculentas, árvores abundantes e lagos calmos e serenos
cheios de doce maná bacteriano⁴. Além disso, os Hedonistas foram deixados como a
única vida animal neste lugar. Eles não tiveram escolha senão desfrutá-lo ao máximo.  

Em condições normais, qualquer espécie dada rapidamente ocuparia esse


ambiente utópico. Mas condições normais nunca foram o objetivo do redesign dos Qu.
Eles alteraram seus sujeitos para que eles só pudessem conceber depois de acasalar com
um número enorme de pretendentes em potencial, continuamente ao longo de décadas.
Embora isso resolvesse o problema populacional, também tornava a espécie menos
adaptável. Sem competição sexual, a seleção natural avançaria apenas a um ritmo glacial.
Felizmente, seu microcosmo estável permaneceu livre de catástrofes ambientais mesmo
depois que os Qu partiram.  

Todas essas mudanças também fizeram o dia dos Hedonistas. Suas vidas eram
rotinas justapostas de comer, dormir e ter relações sexuais alucinantes; sem se preocupar
com doenças ou gravidez. Distantes e despreocupados, eles desfrutavam os momentos
mais prazerosos de toda a humanidade, embora com capacidades intelectuais de uma
criança de três anos

Na verdade, isso não importava muito. Afinal, quem precisava pensar quando se
está se divertindo tanto?

⁴ O termo "maná bacteriano" usado nesta descrição refere-se a uma substância


nutritiva produzida por bactérias em um ambiente específico. Neste contexto, representa
uma fonte de alimento doce e abundante encontrada nos lagos habitados pelos
Hedonistas, proporcionando-lhes prazer e satisfação. A expressão "maná" simboliza uma
provisão divina ou miraculosa, enquanto o adjetivo "bacteriano" indica que a substância
é produzida por bactérias

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Os favoritos dos Qu. Uma Hedonista feminina deita-se sozinha em uma praia,
contemplando absolutamente nada. Sem qualquer pressão do mundo, seus dias se
desdobram conforme vão acontecendo, sem qualquer planejamento prévio.  

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Insetófagos  

Espécies humanas insignificantes e pitorescas proliferavam na galáxia pós-Qu.


Centenas delas levavam vidas simples e despercebidas, nunca desenvolvendo a
capacidade de se tornarem conscientes, nunca descobrindo sua verdadeira herança
como seres humanos nascidos das estrelas. A maioria delas entrou em extinção, sem
serem lamentadas ou sequer lembradas. Aquelas que persistiram conseguiram
sobreviver em nichos sombrios e tranquilos, nunca mais causando qualquer impacto no
esquema celestial das coisas.  

Uma dessas espécies era a dos Insetófagos. Eles silenciosamente se adaptaram a


uma dieta de insetos coloniais e pequenos animais; tinham rostos cobertos por placas de
couro, mãos em forma de garras para escavar suas presas e línguas parecidas com vermes
para engoli-las..  

Em geral, eles não eram especiais de nenhuma maneira em particular. Mas uma
combinação de invasões galácticas, coincidência e pura sorte os tornaria os mais
duradouros de todos os seres das estrelas.  

Os dóceis herdariam o cosmos, embora não seja agora. Por enquanto, os


Insetófagos estavam preocupados apenas com a localização de colônias de insetos e o
início da temporada de acasalamento.  

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Espaciais

Deve-se lembrar que o Povo Estelar não sucumbiu totalmente às invasões dos Qu.
Enquanto seus mundos caíam um após o outro, algumas pessoas estelares encontraram
refúgio no vazio do espaço. Comunidades inteiras se lançaram em naves
geracionais, uma após a outra, lançando-se na escuridão na esperança de passar
despercebidos pelas
criaturas que haviam conquistado sua galáxia.    

Tempos desesperados exigiam medidas desesperadas. Como o Povo Estelar havia


observado durante a colonização inicial da galáxia, a vida em naves geracionais
inevitavelmente levava à insanidade em massa e à anarquia. Desta vez, no entanto, os
humanos tiveram que se adaptar - ou enfrentar a extinção.  

Campos de asteroides inteiros foram confiscados e escavados para construir naves


espaciais de tamanho nunca antes visto. Essas cascas vazias abrigavam bolhas de ar e
água preciosas, mas não possuíam gravidade artificial de qualquer tipo. Descobriu-se que
uma existência puramente etérea aliviaria o estresse do exílio interestelar, desde que seus
habitantes fossem adaptados para a vida dentro desse ambiente.  

Além disso, as pessoas foram forçadas a mudar a si mesmas. Em um ambiente


hermeticamente selado e livre de gravidade, seus ossos se tornaram mais longos, mais
finos e mais esguios. Os sistemas circulatório e digestivo foram pressurizados para evitar
problemas cardíacos e congestão. Essa última mudança teve um efeito colateral
vantajoso; os humanos poderiam se deslocar pelo vácuo com jatos de ar expelidos de
ânus modificados.  

Tais experimentos foram numerosos e geralmente atormentados por falhas. No


entanto, eles conseguiram criar um futuro. Selados em suas habitações do tamanho da
lua, cheias de ar e sem peso, os descendentes do Povo Estelar conseguiram escapar do
flagelo dos Qu.    

Foi uma diáspora interminável. Mesmo depois que os Qu partiram, eles se


encontrariam tão divergentes que não teriam mais nada a ver com seus estilos de vida
ancestrais. Os sobreviventes do obstáculo inicial nunca mais pisariam em um planeta
novamente.    

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Quarenta milhões de anos a partir de hoje, Espaciais como esse indivíduo são os únicos seres humanos verdadeiramente conscientes que
sobrevivem. Eles estão tão confortáveis em seus refúgios sem gravidade que o destino de seus primos bestiais em outros lugares não os
preocupa. Além disso, eles são dolorosamente raros; sua população em toda a Galáxia da Via Láctea não ultrapassa algumas dezenas
de arcas e cem bilhões de almas.  

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Caçadores de Ruínas

Uma espécie humana em particular, destacada por seu acesso privilegiado à


herança de seus ancestrais estelares, acabaria desempenhando um papel de liderança na
configuração do futuro.  

Eles conseguiram passar pela invasão dos Qu com relativamente pouca


degradação; sim, eles foram reduzidos ao nível dos macacos, mas sua recuperação foi
rápida. Aparentemente, os Qu não se esforçaram tanto para suprimir sua inteligência.
Eles também não fizeram um esforço comparável para apagar os vestígios materiais do
Povo Estelar. Mesmo depois de milhões de anos, enormes ruínas dos espaços urbanos
globais espalhavam-se pelos continentes de seu mundo. Assim, os Caçadores de Ruínas
ganharam seus nomes.

Com mentes desenvolvidas e acesso irrestrito à sabedoria das antigas cidades, o


ritmo exponencial de seu desenvolvimento era natural. Um por um, eles decifraram e
construíram sobre os segredos do antigo Povo Estelar, até quase igualarem seus
ancestrais galácticos em sabedoria e habilidade.  

Todo esse desenvolvimento ocorreu em um período de tempo anormalmente


curto e, às vezes, as antigas tecnologias nem eram compreendidas enquanto eram
cegamente replicadas. Desnecessário dizer que um ritmo de desenvolvimento tão
acelerado colocou estresses prematuros nas estruturas sociais e políticas dos Caçadores
de Ruínas. Eles mal sobreviveram às cinco guerras mundiais consecutivas que assolaram
seu planeta, sendo duas delas trocas termonucleares.  

Eles conseguiram sobreviver; seu batismo de fogo os endureceu e despertou. As


guerras os uniram politicamente e impulsionaram suas capacidades tecnológicas além do
nível do Povo Estelar. Coincidentemente, eles também desenvolveram uma forma
perigosa de loucura autóctone⁵. Os Assombradores de Ruínas passaram a acreditar que
eram os únicos descendentes e os verdadeiros herdeiros do Povo Estelar. Eles estavam
prontos e dispostos a fazer qualquer coisa para reivindicar sua fictícia Era Dourada, há
muito tempo passada.

⁵ Autóctone é um termo utilizado para descrever algo que é natural ou nativo de


determinada região, ou seja, que se originou no local em questão. Pode referir-se a
espécies de plantas ou animais que são endêmicas de uma área geográfica específica,
bem como a pessoas ou culturas que são nativas de uma determinada região. Ser
autóctone significa ser nativo ou originário do local em que se encontra, em oposição a
ser introduzido ou importado de outras áreas.

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Apenas mil anos após a partida dos Qu, um Caçador de Ruínas vagueia entre os destroços
de uma cidade do Povo Estelar. Ao fundo, pode-se avistar a imponente estrutura de uma
pirâmide Qu ainda maior.  
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Consciência Renascida  

Se algum tipo de arranjo periódico puder ser traçado na história da humanidade, a


era pós-Qu, com o surgimento de animais humanos, pode ser comparada a uma série de
eras das trevas milenares. No entanto, como em qualquer situação de "era das trevas",
esses períodos de silêncio tinham uma duração finita. Um por um, como estrelas
emergindo da neblina, novas civilizações nasceram a partir dos fragmentos
despedaçados da humanidade.    

Em alguns casos raros, a recuperação foi rápida e direta. Na maioria das vezes, no
entanto, ela veio apenas após uma longa série de radiações adaptativas, extinções e
diversificações secundárias. Dentro dessas linhas de descendência, havia tanta distância
entre os primeiros pós-humanos e seus descendentes inteligentes quanto entre os
primeiros mamíferos da Era Cretácea e o Homo sapiens.  

Mais cedo ou mais tarde, a inteligência humana retornou ao cosmos. Mas, exceto
pela ancestralidade compartilhada, essas novas pessoas não tinham nada em comum
com as "pessoas" de hoje, ou até mesmo entre si.  

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Extinção  

Nem todos os seres humanos conseguiram sobreviver. Na verdade, a maioria dos


seres humanos pós-Qu foi extinta durante as eras de transição. A extinção, a morte
completa e absoluta de uma família inteira, comunidade inteira, espécie inteira, era
desenfreada na galáxia.

Não havia crueldade ou drama nisso. A extinção era tão comum e natural quanto a
especiação. Às vezes, uma espécie simplesmente não conseguia se adaptar à competição
ou à mudança abrupta das condições. Em outras ocasiões, seus números diminuíam ao
longo de abismos imperceptíveis de tempo. De uma forma ou de outra, os seres humanos
foram desaparecendo.

Em meio a todas essas mortes, no entanto, havia nova vida. À medida que uma
espécie deixava um certo nicho, outras logo surgiam para ocupar seu lugar. Radiações
adaptativas se seguiam, preenchendo as lacunas com uma infinidade de formas diversas
e variadas. Apesar dos caídos, o fluxo da vida prosseguia, ardendo em constante
renovação.

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O fóssil de um ser humano aquático extinto de um mundo colonizado esquecido.


Desconhecido pelo universo, sua espécie se adaptou, floresceu e desapareceu logo após a
retirada dos Qu. Sua história serve para nos lembrar que tudo o que está vivo
inevitavelmente perecerá, e é a jornada, não a conclusão, que importa.  
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Povo Cobra  (Descendentes dos Vermes)

Emergiram da fortaleza subterrânea à medida que o sol escaldante eventualmente


esfriava, e a vida retornava à superfície. Assim como animais de todos os tipos explodiram
nos nichos terrestres que haviam sido deixados vazios por milênios, o mesmo aconteceu
com os descendentes dos Vermes. Na superfície, encontraram novas oportunidades
como conjuntos completos de serpentes pastadoras, nadadoras, predadoras...  

...e pessoas. Uma forma, descendente de serpentes mamíferas trepadoras de


árvores, reevoluiu a inteligência humana que havia permanecido adormecida por tanto
tempo. Observavam, contemplavam e filosofavam com cérebros em espiral, lidando com
o mundo com uma singular "mão" pélvica, derivada dos remanescentes dos pés de seus
ancestrais.  

Não se pareciam em nada com seus distantes ancestrais humanos, mas seu
desenvolvimento social seguiu um caminho semelhante: diversos impérios agrícolas,
seguidos por revoluções industriais, experimentos sociais, guerras mundiais, guerras civis
e globalização. No entanto, o paralelismo sociopolítico na história não necessariamente
implicava um mundo semelhante, ou mesmo reconhecível como humano.

As cidades modernas do mundo Cobra eram emaranhados de "estradas" em


forma de tubos, ferrovias tridimensionais ramificadas e edifícios sem janelas, parecidos
com buracos. Embora a arquitetura emaranhada variasse de região para região, esses
assentamentos geralmente se assemelhavam a bolas quilométricas de vidro, metal,
plástico e tecido, envoltas tão firmemente que um humano dos dias de hoje acharia
impossível se mover dentro delas. Praças e áreas abertas eram totalmente ausentes, pois
representavam obstáculos de navegação e áreas de insegurança. Sua ancestralidade
evolutiva nas árvores havia transformado o Povo Cobra em agorafóbicos em potencial.    

Nada disso era incomum para o Povo Cobra de qualquer forma. Seu estilo de vida
relativamente "alienígena" era tão particular para eles quanto o nosso é para nós. Por
todo o seu mundo, as cidades arteriais pulsavam com pessoas, cada uma com suas
próprias alegrias, tristezas e tarefas, vivendo vidas tão humanas quanto as de qualquer
outro ser inteligente.  

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Uma pessoa Cobra em casa, desfrutando de um livro enquanto fuma e "ouve" a música
vibracional do solo. Através da porta aberta, pode-se ver o emaranhado caótico da cidade.

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Povo Assassino  (Descendentes dos Predadores)  

Os carnívoros também se recuperaram e entraram na civilização. Sua jornada


envolveu uma série de mudanças nas quais eles perderam as adaptações que lhes
permitiam ser os predadores principais de seu mundo. Os dentes de sabre, antes usados
para cortar tendões e traqueias, tornaram-se frágeis e finos, úteis apenas como órgãos de
exibição social. As garras em forma de gancho também foram reduzidas, mas não
eliminadas. Em seu lugar, os dois últimos dedos giraram perpendicularmente para se
tornarem agarradores modernos. Toda essa graça, no entanto, não significava fraqueza.
Embora não fossem mais especializados em caça, o Povo Assassino ainda podia matar
com as próprias mãos, mas apenas se realmente quisessem. O que enormes garras e
dentes não conseguiam fazer, eles podiam facilmente realizar com arco, flecha,
espingarda de pederneira ou rifle a gás.    

Sua descendência de predadores deu ao Povo Assassino um perfil social único.


Quase todas as suas religiões tinham rituais que permitiam períodos de caças e duelos
completamente naturais e animalescos. Essa necessidade de liberar esses impulsos
atávicos também levou à formação de "nobreza caçadora" religiosa; guerreiros
privilegiados que eram habilidosos nas artes da caça, guerra e assassinato. Comunidades
inteiras se reuniam sob essas classes dominantes, comunidades ordenadas que, uma vez
por ano, explodiam em uma orgia de morte, sexo e oração. Por milhares de anos,
guerreiros nômades, junto com seus vastos rebanhos de animais que antes eram
humanos, perseguiram e lutaram uns contra os outros em um tabuleiro de continentes.  

Todo esse caos seria varrido com o advento da modernidade. Em um


desenvolvimento comparável a uma revolução industrial, uma nação-povo Assassino
desenvolveu métodos de agricultura intensiva e estabelecida. Estruturas estatais
organizadas, secularismo e saltos tecnológicos foram rápidos em seguir.    

Desnecessário dizer que tais desenvolvimentos polarizaram o mundo em grupos


de "pastores de fábrica" progressistas e desenvolvidos, e "estados caçadores" cada vez
mais fanáticos. Enquanto um lado condenava seus velhos modos animais, o outro os
abraçava com fanatismo cego. Esse era o seu momento de crise da modernidade; a
fragmentação das facções progressistas e conservadoras rumo à unidade global.
Felizmente, os Povos Assassinos conseguiram superar essa situação, mesmo após terem
chegado perigosamente perto de um conflito global em certos momentos.

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Um jovem macho Assassino passeia por uma das inúmeras fortalezas em ruínas em seu
país, testemunho da história sangrenta e mutável de sua espécie. O planeta do Povo
Assassino é um paraíso para os arqueólogos. Possui mais eras das trevas enterradas,
culturas arruinadas e reinos caídos do que qualquer outro mundo.  
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Criadores de Ferramentas  (Descendentes dos Nadadores)  

Costumavam ser criaturas simples, descendentes de um povo castigado que se


refugiou no mar. Seus ancestrais sapiens distantes não teriam dado a essas criaturas
nenhuma chance de um retorno consciente, pois acreditavam que avanços tecnológicos
eram impossíveis no meio fluido dos oceanos. No entanto, os Nadadores refutaram tais
previsões ao fundar uma das culturas mais avançadas e surpreendentemente alienígenas
de toda a linhagem humana.

O fogo, a pedra fundamental da engenharia industrial, era quase impossível de ser


sustentado e utilizado debaixo d'água. Mas os Criadores de Ferramentas simplesmente
escolheram outro caminho quando a fabricação de ferramentas complexas se mostrou
impraticável. Eles começaram a criar suas próprias ferramentas e máquinas.  

Isso começou muito antes da espécie se tornar inteligente. Na infinita variedade


de vida nos mares, os Nadadores sempre adotavam e controlavam os organismos que
eram úteis de alguma forma. Uma vez domesticadas, essas criaturas eram modificadas
voluntária ou involuntariamente por meio de seleção artificial e condicionamento. O
processo era lento, mas uma vez iniciado, seus efeitos eram formidáveis.

Uma cidade moderna dos Criadores de Ferramentas era um espetáculo para ser
admirado. Enormes criaturas em forma de coração bombeavam fluidos nutritivos para
uma rede de condutos vivos e autorreparadores. Isso equivalia a uma rede de energia
elétrica e alcançava todas as imensas habitações exoesqueléticas dos Criadores de
Ferramentas, "alimentando" luzes bioluminescentes, televisões de pele de polvo
tremulantes, ascídias marinhas medicinais e incontáveis outros dispositivos criados a
partir de organismos vivos. Os avanços na biologia haviam crescido exponencialmente,
até que a engenharia genética fosse completamente dominada. Os Criadores de
Ferramentas modernos nem precisavam mais usar animais; uma simples manipulação de
tecidos cultivados e células-tronco poderia oferecer soluções para qualquer problema em
questão.

O domínio da genética havia superado muitos obstáculos. As profundezas


oceânicas imensas, bem como os poucos e minúsculos pedaços de terra do planeta, agora
estavam firmemente nas mãos dos Criadores de Ferramentas. No entanto, eles não se
contentavam apenas com sonhos planetários. Novas formas e criaturas bizarras ainda
estavam sendo desenvolvidas, em tentativas audaciosas de conquistar o único reino mais
hostil à vida.
Selados em suas naves vivas, os Criadores de Ferramentas desejavam
retornar às estrelas.

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Uma caçadora Criadora em um recife de jardim. Ferramentas vivas são uma parte indispensável da vida diária desses seres; ela consegue
respirar debaixo d'água através de um crustáceo que filtra o oxigênio e está ajustado sobre seu orifício de sopro. Ela segura um rifle
derivado de moluscos que dispara dentes de peixe especialmente modificados, e seu companheiro é um peixe com o cérebro aumentado,
conectado para trazer as presas. Edifícios feitos de conchas calcificadas cintilam ao fundo, iluminados pela bioluminescência.

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Saurosapientes  (Criação dos Pastores de Lagartos)  

Um dos herdeiros eventuais da humanidade nem mesmo era humano. Eles


surgiram do estoque reptiliano que se proliferou durante o declínio dos Pastores de
Lagartos.

O deles era um verdadeiro caso de um mundo virado de cabeça para baixo.


Enquanto os humanos degeneravam em animais sem inteligência, os répteis de sangue
frio prosperavam no clima tropical de seu planeta. Milênios se passaram e eles
começaram a produzir formas cada vez mais inteligentes, uma das quais, distante
lembrança de versões sem penas dos dinossauros predatórios do passado, efetivamente
cruzou o limiar da consciência e construiu uma série de civilizações.  

Essas culturas incipientes foram rápidas em compreender a verdadeira origem das


ruínas monstruosas que poluíam seu planeta, ruínas que até então eram consideradas
aberrações naturais ou relíquias intemporais de deuses. Agora, no entanto, eles viram as
ruínas entrelaçadas dos Qu e do Povo Estelar pelo que realmente eram. Foi através desse
entendimento que os Sauros, biologicamente não relacionados, adotaram a identidade
cultural da humanidade.

Em seus esforços arqueológicos, os Sauros começaram a compreender que os


animais que usavam para alimentação e trabalho eram descendentes dos fundadores de
sua própria existência. E em algum lugar das estrelas espreitavam as forças que os
deformaram, forças maiores do que os Star People, forças sombrias que poderiam um dia
retornar. Os animais humanos serviam como um lembrete, assim como Panderavis, de
que se os Saurosapientes quisessem garantir sua existência contínua no cosmos, eles
tinham que estar vigilantes.      

A pressão dessa realidade colocava suas culturas sob um estresse enorme.


Algumas facções recorreram a religiões inventadas e permaneceram ignorantes sob um
guarda-chuva de fantasias reconfortantes. Outras reconheceram as ameaças da galáxia,
mas retrocederam para uma retórica paranóica de conservacionismo. A galáxia os
assustava enormemente. Por fim, havia aqueles que viam o reduto galáctico e agiam para
enfrentar as probabilidades, por maiores que fossem. Conflitos e até mesmo guerras não
eram incomuns entre essas três facções.

No final, a disputa que durou séculos começou a se resolver a favor das facções
progressistas. Conforme expandiam suas esferas de conhecimento, influência e atividade,
os Saurosapientes se tornaram tão "humanos" quanto qualquer outra civilização que se
abria para a galáxia.  

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Pessoas Modulares  (Descendentes dos Coloniais)  

Os cegos mecanismos da evolução seguiram os caminhos mais improváveis,


aproveitando as oportunidades mais fugazes. A própria existência das Pessoas Modulares
era testemunho desse fato. Seus ancestrais, os Coloniais, teriam sido vistos como
inválidos sem esperança por quase qualquer observador; eles careciam de órgãos
coerentes e sua existência se limitava a cobrir as margens da água como tapetes de algas.
Mas por mais degenerados que fossem, os Coloniais eram sobreviventes resilientes,
capazes de se agarrar à vida nas condições mais adversas.

Com o passar do tempo, eles começaram a se organizar em colônias diferenciadas,


em vez de mats homogêneos. Nas colônias, cada "célula" humana poderia desempenhar
uma função singular e se beneficiar da união com outras. Assim começou a grande era da
organização, durante a qual diferentes colônias competiram entre si ao desenvolver
células humanas especializadas que lhes dariam vantagem na luta pela vida. Algumas
colônias cultivaram enormes raízes sugadoras capazes de extrair recursos de longe.
Outras abandonaram as raízes por completo e começaram a se mover em segmentos
semelhantes a estrelas-do-mar. Algumas colônias desenvolveram unidades equipadas
com garras e venenos, elevando a competição a um novo e mortal nível. Outras
responderam à ameaça com placas de armadura ou células observadoras equipadas com
olhos enormes.

O vencedor final dessa corrida armamentista colonial foi uma colônia consciente,
organizada em torno de unidades hiperepecializadas cujo único propósito era direcionar
as outras. Essas colônias se espalharam pelo planeta, adaptando as partes de seus rivais
para funcionar dentro de si mesmas. Assim nasceram as Pessoas Modulares.  

Vivendo em megalópoles totalmente industrializadas, eles surgiram em uma


variação indescritível de formas e tamanhos. Desde florestas guardiãs em forma de
castelos até mensageiros diminutos e apressados, todos eram membros de um todo
modular. Eles podiam se combinar uns com os outros, se separar ou trocar partes
conforme as necessidades se apresentavam. A única coisa constante em toda a sua
existência proteica era sua unidade mental e cultural.  

Devido à sua estrutura biológica, essas pessoas haviam alcançado o impossível.


Elas realmente viviam em um mundo de paz e igualdade utópica, onde todos estavam
felizes por serem partes de entidades maiores e unidas.

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Uma colônia modular trata uma unidade digestora especializada com sprays de
medicamentos antiúlcera produzidos pelo drone médico segurado em suas "mãos". Observe
os segmentos diferentes, cada um deles representando seres humanos mutados em si
mesmos.
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Pterosapiens  (Descendentes dos Voadores)  

Os corações superpotentes dos voadores lhes deram uma vantagem evolutiva e


eles se diversificaram para dominar os céus. No entanto, chegou um momento em que a
competição nos céus ficou intensa demais, mesmo para seus metabolismo aprimorado.

Algumas linhagens abandonaram suas asas e retornaram ao solo, vivendo como


diferentes tipos de predadores, herbívoros e até mesmo nadadores. Suas adaptações
aéreas lhes deram uma vantagem no solo e eles produziram formas de tamanho e
agilidade impressionantes. Eram seres maravilhosos, mas nenhuma sentiência surgiu das
bestas terrestres do céu. Em vez disso, a civilização floresceu nos céus. Uma espécie,
proveniente de uma linhagem de predadores semelhantes a cegonhas, evoluiu um
cérebro grande o suficiente para imaginar e agir no mundo. Seus pés, que já eram
versáteis para capturar presas escorregadias em pântanos, se tornaram ainda mais
articulados e assumiram o papel de mãos. Como compensação, perderam parte de sua
aerodinâmica, mas o que não conseguiam fazer com seus corpos, eram mais do que
capazes de suprir com suas mentes.

Seu poder de voo tornou os Pterosapiens um povo global, antes mesmo de


inventarem nações e fronteiras. Com essa facilidade inerente de locomoção, ideias e
indivíduos se difundiam rápido demais para que as diferenças sociais se solidificassem.
Agindo com uma consciência planetária, eles cultivavam seus parentes terrestres
gigantes, erguiam cidades com poleiros e torres, dominavam o átomo e começaram a
contemplar as estrelas, sem precisar compensar (muito) o bem-estar social médio do
indivíduo e sem se dividir em facções beligerantes.

Por mais igualitária que fosse a vida deles, eles pagaram um preço inevitável e
limitante. Seus corações, mesmo em seu estado aprimorado, tinham dificuldade em
sustentar seu poder de voo e cérebros grotescamente grandes ao mesmo tempo. Como
consequência, sua espécie tinha uma vida efêmera. Um Pterosapien atingia a maturidade
sexual aos dois anos, estava na meia-idade aos dezesseis e geralmente morria por volta
dos vinte e três anos de nossa contagem de tempo. Esse ciclo sombrio fazia com que eles
valorizassem cada momento de sua existência, ponderando sobre ela com intensidade
febril. Uma estante de pergaminhos escritos por filósofos Pterosapiens seria a inveja de
todas as bibliotecas humanas. Em suas cidades, a vida se desenrolava em uma velocidade
irreal, correndo para cumprir prazos fugazes.

Como espécie, os voadores angelicais eram vítimas de doenças cardíacas.  

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Um Pterosapien posa junto aos edifícios bizarros de um resort à beira-mar. Com uma
duração de apenas dez dias, estas serão as únicas férias em sua vida efêmera.

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Pessoas Assimétricas  (Descendentes dos Deslocados)  

Apesar de contorcidos pela gravidade, os Deslocados conseguiram recuperar sua


consciência e desenvolver uma civilização em apenas alguns milhões de anos.
Construções baixas e achatadas, parecidas com abrigos esmagados, espalhavam-se por
todo o planeta deles. Essas estruturas eram entradas para casas subterrâneas, escolas,
hospitais, templos, universidades, mas também embaixadas, prisões, asilos, centros de
comando e arsenais. Eles levavam vidas estranhas, mas os Deslocados eram humanos em
todas as suas virtudes e maldades. Portanto, era natural para eles se expandirem para
além e procurar novas fronteiras para colonizar. Felizmente, o sistema solar deles
abrigava outros planetas, semelhantes ao mundo natal dos Deslocados em quase todos os
aspectos, exceto pela gravidade. Mas eles não estavam dispostos a deixar esses detalhes
triviais impedi-los.

Ao longo de sua história, os humanos sempre arriscaram mudar a si mesmos para


preservar seu futuro. Era um jogo arriscado, mas que havia valido a pena desde os dias
dos Marcianos-Americanos. Mas reengenheirar o corpo achatado dos Deslocados para
uma gravidade benigna era uma tarefa monumental. É suficiente dizer que os
experimentos levaram milênios para alcançar sucesso limitado. Depois de inúmeras
tentativas, nasceram, ou melhor, foram criados as Pessoas Assimétricas. Seus corpos
foram significativamente alterados; o que antes eram pés parecidos com pás para se
moverem na gravidade alta agora se tornaram pernas centopeicas, e a única mão
agarradora foi alongada a um grau extremo. Seus rostos grotescos foram invertidos e
virados de cabeça para baixo após saírem de uma existência semelhante a um linguado.
Torcidos como eram, os membros dessa nova raça desfrutavam de enormes vantagens
sobre seus antecessores achatados.

Seu desenvolvimento social também seguia paralelo ao dos antigos Marcianos-


Americanos. Mais uma vez, houve uma era dourada, seguida por tensões crescentes e
guerra interplanetária. Mas, ao contrário dos marcianos, os Assimétricos exterminaram
impiedosamente sua raça ancestral e passaram a governar o sistema solar sozinhos. No
caminho, eles encontraram os restos dos Qu e do Povo Estelar e avançaram
imensamente. Triunfantes em seu próprio domínio, eles voltaram seus olhos para os céus
em busca de mais empreendimentos.  

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Um nobre Assimétrico posa nu para revelar sua anatomia bizarra. Normalmente, essas
criaturas se vestem com elaboradas vestimentas que se assemelham a montes de meias
interconectadas e aumentadas.

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Simbiontes  (Descendentes dos Parasitas)  

À medida que o tempo passava, as relações entre os parasitas e seus hospedeiros


se conectavam de tal forma que começou a envolver uma cooperação mútua. Essas não
eram mais relações unilaterais; em troca do sangue nutritivo dos hospedeiros, os
parasitas ofereciam seus sentidos aguçados como um alerta antecipado contra
predadores e outros perigos.

Assim começou uma grande "corrida armamentista" de relações simbióticas.


Certos 'parasitas' ofereciam aos seus hospedeiros olhos maiores, outros sentidos mais
apurados de cheiro, audição ou até mesmo armas defensivas adicionais na forma de
saliva venenosa, sprays malodorantes ou uma mordida extra. Os hospedeiros retribuíam
com pernas mais longas para correr, corpos mais fortes e locais de nidificação
especializados, ergonômicos, ricos em vasos sanguíneos e cobertos de pelos isolantes.
Diferentes complexos de espécies de parasitas e hospedeiros evoluíram, compatíveis
apenas entre si.

O desenvolvimento de tais criaturas era, de certa forma, reminiscente das grandes


colônias modulares que prosperavam em seu próprio mundo a anos-luz de distância.
Mas, ao contrário das Pessoas Modulares, os componentes dos Simbiontes pertenciam a
diferentes espécies, em vez de variações modificadas do mesmo organismo básico.
Eventualmente, ambas as relações levaram ao mesmo ponto: a Consciência.

Nas florestas isoladas de um determinado continente, uma nova espécie parasítica


se desenvolveu. Eles não possuíam os jatos de veneno balísticos, ferroadas infecciosas ou
garras enormemente hipertrofiadas de seus parentes. Em vez disso, esses parasitas
ofereciam um acordo mais simples: a capacidade de pensar em troca de total submissão.
Inicialmente, essa relação era mais como a de um cavalo e seu cavaleiro, mas depois de
alguns milhares de anos, os Simbiontes conseguiam manipular seus hospedeiros como
marionetes através de sinais táteis e olfativos combinados.

Mais alguns milênios se passaram e esses seres combinados desenvolveram uma


ordem semelhante à nossa, completa com países, política e até mesmo guerra, embora
reduzida na recém-globalizada cultura mundial. Nessa era, a tecnologia preenchia a
maioria das funções dos hospedeiros, mas uma próspera criação dessas criaturas ainda
existia devido à tradição e à eficiência simples. Um Simbionte médio começaria o dia em
seu hospedeiro de negócios e passaria para um hospedeiro doméstico mais confortável
ao retornar para casa após o trabalho.

E talvez, pela televisão olfativa, ele cheirasse notícias das escavações das ruínas de
um milhão de anos dos Qu, das descobertas maravilhosas recuperadas dos destroços do
Povo Estelar ou das enormes matrizes de rádio que surgiam em todos os lugares para
ouvir as estrelas.

Era um padrão que estava se repetindo por toda parte.

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

Um Simbionte posa em um de seus vários hospedeiros. Ao fundo, podem ser vistos


algumas de suas habitações rurais, com portas do tamanho de um humano para os
hospedeiros sem consciência e fendas menores para seus patronos inteligentes.

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Navegadores  (Descendentes dos Pescadores)  

Os Pescadores já estavam entre as raças pós-humanas mais divergentes.


Com dedos em forma de arpão e focinhos quase crocodilianos, eles não se pareciam em
nada com seus antecessores. No entanto, até essa forma seria considerada
conservadora em comparação com seus descendentes conscientes. Com várias ilhas
pequenas e dispersas, subcontinentes isolados e nichos diferenciados, seu mundo
natal era um caldeirão evolutivo onde membros isolados de certas espécies
poderiam, sob as circunstâncias corretas, evoluir para formas drasticamente diferentes.
Essa condição era semelhante aos reinos insulares de Madagascar, Galápagos ou Havaí
na antiga Terra, exceto que, desta
vez, ocorria em escala global.

Alguns descendentes dos Pescadores, presos em ilhas solitárias, tornaram-


se menores e desenvolveram suas garras de pesca em asas graciosas. Outros se
lançaram diretamente ao mar e se tornaram análogos a baleias, golfinhos e
mosassauros. Dentro dessa fervilhante evolução, uma linhagem em particular deu
origem aos ancestrais dos
Navegadores.    

Eles também alongaram seus dedos em asas, mas essas não eram usadas para
voar. Em vez disso, tornaram-se velas que os impulsionavam sem esforço pelos oceanos.
Com os dedos transformados em velas, eles usavam suas bocas e línguas alongadas para
capturar suas presas pelágicas. Esses órgãos eventualmente assumiram o papel das mãos
há muito atrofiadas e hábeis dos Pescadores. A necessidade de navegar melhor pelos
mares infinitos exerceu uma pressão inevitável em suas memórias, e os cérebros dos
Navegadores cresceram proporcionalmente. Era apenas uma questão de tempo até que
um desses navegadores se tornasse inteligente o suficiente para pensar.  

Mesmo quando se tornaram conscientes, os Navegadores ainda precisaram de


muito tempo para alcançar qualquer tipo de estabilidade social. Seu mundo disperso
resultou em uma tremenda diversidade de culturas, que competiam e lutavam com a
mesma tenacidade. Ao longo das gerações, inúmeras frotas de guerreiros tribais
batalharam em conflitos sem sentido que se estendiam por épocas inteiras. Guerreiros
nômades e sociedades piratas inevitavelmente surgiram, prolongando o ciclo
incontrolável de violência.

Somente quando uma determinada tribo guerreira desenvolveu uma guerra em


escala industrial, e a sociedade estatal precisou apoiá-la, e então, somente quando
essa noção de modernidade deu origem a uma ideia de paz, os Navegadores
finalmente conseguiram se unificar. Gerações de sangue mancharam os oceanos por
tempo demais.

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Um Navegador sai para caçar com seu companheiro armado com arpão ao fundo.
Extremamente violentos por natureza, essas pessoas frequentemente recorrem a
campanhas de caça selvagem para aplacar sua sede de sangue na vida moderna. Observe
suas "mãos" derivadas da língua e a criatura voadora acompanhante, na verdade, um dos
primos distantes dos Navegadores

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Satíricos  (Descendentes dos Hedonistas)  

A existência deles, presos entre seu mundo paradisíaco estático e seu ritmo
intrinsecamente lento de evolução, era imersa em prazer e parecia imune à mudança.
Talvez isso fosse verdade por cerca de um milhão de anos ou mais. No entanto, em uma
escala maior, a estase completa era apenas uma fábula.

Durante uma era específica, convulsões geológicas causaram o surgimento de


vastas massas de terra nos oceanos rasos de seu mundo. Os Hedonistas, anteriormente
confinados a uma pequena ilha não maior que a Islândia atual, não perderam tempo em
colonizar esses novos territórios. Foi mais um êxodo necessário, já que os eventos que
elevaram as novas terras também resultaram em enormes nuvens de cinzas que
sufocaram a atmosfera e bloquearam o sol. Sua inocência finalmente foi corrompida, e a
maioria dos Hedonistas morreu, incapaz de se adaptar. Os únicos sobreviventes foram
indivíduos de reprodução rápida, que abandonaram as peculiaridades reprodutivas de
seus ancestrais. Foram essas formas que colonizaram o continente recém-nascido e
deram origem a uma infinidade de espécies, incluindo os Satíricos, herdeiros conscientes
dos Hedonistas.

Esses seres se assemelhavam bastante aos seus ancestrais, exceto pelo fato de
agora possuírem "caudas" enormes; órgãos flexíveis de equilíbrio compostos por
músculos pélvicos e gordura estendidos. Ao longo dessa extensão, seus corpos inteiros se
reorientaram em posturas horizontais, quase dinossaurianas. Embora tenham
abandonado as estratégias reprodutivas frenéticas de seus ancestrais, suas vidas sociais
ainda mantinham um delicioso toque de promiscuidade casual.

A civilização Satírica estabeleceu-se rapidamente em escala global, pois


mesmo com as novas massas de terra, o domínio terrestre de seu mundo continuava
não sendo maior do que a Austrália. Por um tempo, três e depois dois
impérios terrestres competiram entre si, antes de se dissolverem em uma infinidade
de nações menores e finalmente se reunificarem em uma ordem mundial coerente. A
partir desse ponto, o mundo Satírico mais uma vez se tornou um paraíso do prazer, com
festivais, concertos e orgias ritualizadas pontuando cada semana de trabalho. Desta vez,
porém, tudo poderia ser apreciado com verdadeira inteligência.

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A plateia satírica enlouquece quando o artista atinge o clímax de sua música. Tais eventos
são parte do cotidiano da vida satírica.

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Insetóides  (Descendentes dos Insetófagos)  

Com o tempo, seus ancestrais insetívoros começaram a se assemelhar às suas


presas. Placas faciais endurecidas e curtidas, antes usadas para se proteger contra picadas
e mordidas, ossificaram e se integraram à estrutura da mandíbula. Suas mãos e pés, com
um número reduzido de dedos, desenvolveram-se em garras semelhantes a pinças. Até
mesmo seu metabolismo reverteu parcialmente para a ectotermia no clima quente e
preguiçoso de seu planeta.

No entanto, não foram essas adaptações que lhes deram vantagem na


sobrevivência. Simplesmente, um defeito congênito permitiu que eles recuperassem sua
inteligência. Mesmo depois do sufocamento pelos Qu, os genes do Povo Estelar
permaneceram adormecidos em suas células. Por pura coincidência, uma linhagem dos
Insetófagos desenvolveu um atavismo retroativo, resultando em cérebros maiores. O que
acabou sendo útil para abrir ninhos de insetos com ferramentas de pedra rudimentares.

A partir daí, foi uma descida contínua. Embora tenha levado milênios, o
desenvolvimento desde o machado de pedra até a espaçonave foi um piscar de olhos em
termos geológicos. Assim como muitas outras espécies, os Insetóides passaram por ciclos
consecutivos como impérios agrários (no caso deles, apicultura), empreendimentos
coloniais, industrialização, guerras mundiais massivas e, finalmente, estados mundiais
globalizados. Mas havia uma coisa que diferenciava seu desenvolvimento de todas as
outras espécies pós-humanas.

Eles enfrentaram outra invasão alienígena.

A história não registra muitos detalhes sobre os invasores, exceto que, ao contrário
dos Qu, foi um esforço singular e foi repelido em um ciclo intenso de guerras orbitais e
terrestres. Embora vencidos, os invasores conseguiram deixar suas marcas. Eles
introduziram sua própria flora e fauna, que prosperaram no planeta natal dos Insetóides
muito depois de terem partido. Mais importante ainda, eles incutiram nos pobres
Insetóides uma xenofobia patológica entre espécies, a ponto de temerem até mesmo seus
primos pós-humanos em outras estrelas.

Por uma reviravolta irônica do destino, seus medos seriam mais do que justificados,
embora não ainda. Os Insetóides ainda tinham tempo.

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Uma celebridade Insetóide, indiscutivelmente a garota mais bonita de seu planeta, posa
diante de uma vila costeira. Ao longe, podem ser vistos seres semelhantes a sacos de gás,
criaturas arbóreas deixadas como relíquias pelos misteriosos invasores alienígenas.

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Asteromorfos  (Descendentes dos Espaciais)  

Inicialmente refugiados, os Espaciais foram rápidos em dominar a vastidão do


espaço interestelar. Suas arcas espaciais isoladas se uniram e se multiplicaram para
formar um gigantesco artefato interligado, grande o suficiente para conter mundos
inteiros. Porém, nenhum planeta se encontrava dentro da capital dos Asteromorfos;
apenas bolhas cavernosas e livres de gravidade, onde os habitantes puderam finalmente
se desenvolver ao máximo.

Liberados das restrições do peso, seus corpos se tornaram delgados e insectoides,


com dedos individuais se estendendo em inúmeras extremidades finas e versáteis. Além
dessas, os únicos órgãos desenvolvidos foram seus ânus a jato derivados, que se tornaram
o principal meio de locomoção. Mas acima de tudo estavam seus cérebros, cérebros
abaulados e inchados.

Sem impedimentos da gravidade, o cérebro humano pôde crescer a tamanhos sem


precedentes. Cada geração criou experimentos que produziram descendentes com uma
capacidade craniana maior, dando origem a seres que levavam suas vidas cotidianas
pensando em conceitos e estruturas escassamente compreensíveis para as pessoas de
hoje. As limitações fisiológicas da mente humana eram debatidas há muito tempo. Agora,
estava estabelecido que esses limites eram de fato reais, e indivíduos que pudessem
superá-los também conquistariam novos territórios na filosofia, arte e ciência. Tudo
mudou.

No entanto, alguns aspectos da humanidade, como o desejo básico de expandir-


se, permaneceram. Para esse fim, os Asteromorfos construíram grandes frotas de arcas
globulares e espalharam sua influência pelos céus, em cada aglomerado estelar e em cada
sistema estelar. Em menos de mil anos, a galáxia foi envolvida por um novo e muito mais
alienígena Império Humano.

Curiosamente, seu domínio não incluía nenhuma das novas espécies pós-
humanas emergentes, pois seus mestres haviam perdido completamente o interesse por
planetas; aquelas esferas de sujeira e gelo acorrentadas pela gravidade que impediam o
crescimento. As novas arcas se estabeleceram confortavelmente nas bordas externas dos
sistemas estelares, observando silenciosamente as vidas de seus parentes em
dificuldades.

Pela primeira vez na história, havia verdadeiros deuses nos inúmeros céus
humanos. Eles eram silenciosos e passavam despercebidos na maior parte do tempo, mas
sua vigilância acabaria compensando.

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O Segundo Império Galático

Ao longo do tempo, os pós-humanos conscientes começaram a explorar a galáxia.


Inevitavelmente, eles se depararam com as ruínas do Povo Estelar e descobriram sua
ancestralidade interestelar. Essas descobertas foram seguidas por uma ideia: poderia
haver outros como eles, a distâncias inimagináveis. Assim, as civilizações em
desenvolvimento começaram a sondar os céus.

Os contatos, todos estabelecidos por meio de comunicação por rádio, não foram
distribuídos de maneira uniforme. O Império começou pouco mais de alguns milhões de
anos depois que os Qu partiram, com o primeiro diálogo entre os primeiros Povos
Assassinos e os Satíricos. Alguns milhares de anos depois, eles foram acompanhados
pelos Criadores de Ferramentas, emergindo das profundezas do oceano por meio de
matrizes de rádio vivas.

A segunda onda de espécies conscientes se juntou nos dez milhões de anos


seguintes, à medida que as Pessoas Modulares, os Pterosapiens e os Assimétricos em
desenvolvimento entraram em contato com seus primos celestiais. Finalmente, nos
próximos vinte milhões de anos, civilizações recém-evoluídas, como os Saurosapientes, o
Povo Cobra, os Parasitas/Simbiontes e os Navegadores, sucessivamente contataram o
florescente Império Galático. Os Insetóides estavam cientes de todo o processo, mas,
devido à sua experiência xenofóbica, só se abriram depois de impressionantes quarenta
milhões de anos de silêncio.

Essa união era um império da conversa, pois a viagem real entre as estrelas era
muito difícil para ser prática. Assim como as colônias esquecidas do Povo Estelar, os pós-
humanos cooperavam por meio da troca irrestrita de informações e experiências. Embora
abrangesse todos os aspectos de uma variedade surpreendente de culturas, os esforços do
Império se concentravam em dois principais problemas: unificação política (embora não
homogeneização) e consciência galática; prontidão constante para possíveis invasões
alienígenas. Todos haviam se deparado com os restos dos misteriosos Qu. Ninguém
queria repetir o mesmo cenário.

Quando o Segundo Império se deparou com os Asteromorfos (que


silenciosamente saturaram a galáxia com seu próprio Império do Homem), eles temeram
o pior. Mas, felizmente para eles, esses seres divinos não estavam interessados no
Segundo Império nem em nenhum de seus mundos. Os Asteromorfos receberam um
amplo espaço e foram aceitos como eram: forças incompreensíveis e onipotentes da
natureza.

Esse esforço coordenado durou quase oitenta milhões de anos, durante os quais as
espécies membros alcançaram níveis de cultura, bem-estar e tecnologia anteriormente
inimagináveis. Cada espécie colonizou algumas dezenas de mundos próprios, onde
nações, culturas e indivíduos viveram ao máximo seu potencial existencial.

Desnecessário dizer que tudo isso foi possível apenas por meio de comunicação
constante e total abertura para a Galáxia. A maioria das comunidades considerava isso
como garantido e participava diligentemente dos diálogos galáticos. No entanto, havia
outros seres silenciosos e ocultos que se recusaram a se juntar. Através deles, viria a ruína
do Império.

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Gravitais  (Descendentes dos Caçadores de Ruínas)  

Depois da lição dos Qu, o Segundo Império Galático manteve uma vigilância
constante contra invasões alienígenas. Irônicamente, eles negligenciaram olhar entre si
mesmos. A segunda grande invasão da galáxia não veio de fora, mas de dentro.

Os Caçadores de Ruínas, que tiveram a sorte de herdar os segredos do Povo Estelar


e dos Qu quando outras espécies eram meros animais, experimentaram um tremendo
avanço em habilidades tecnológicas. Em geral, eles eram tão sofisticados quanto, se não
mais, os Asteromorfos do vazio. No entanto, sua ascensão não era sã. Lembre-se de que a
maioria dos Caçadores de Ruínas já estava perturbada com a distorcida suposição de
serem os únicos herdeiros do Povo Estelar. Eles se recusaram a se comunicar com seus
parentes em outros planetas e cuidaram apenas de seus próprios assuntos. Essa
arrogância neurótica assumiu proporções verdadeiramente perigosas após os Caçadores
de Ruínas se modificarem.

A origem dessa modificação reside em uma catástrofe anterior. O sol dos


Caçadores de Ruínas estava passando por uma fase rápida de expansão, e a espécie, por
mais avançada que fosse, não podia fazer nada para deter o processo. Então, os
Caçadores fizeram a próxima melhor coisa e mudaram seus corpos.  

As condições infernais da expansão solar tornaram a reconstrução biológica


totalmente fora de questão. Assim, os Caçadores substituíram seus corpos por máquinas:
esferas flutuantes de metal que se moviam e moldavam seu ambiente por meio de sutis
manipulações de campos gravitacionais. Nas primeiras versões, as esferas ainda
abrigavam os cérebros orgânicos dos últimos Caçadores. Mas, em gerações sucessivas,
foram desenvolvidas maneiras de conter a mente em computadores quânticos, e a
transformação tornou-se absoluta. Os Caçadores de Ruínas foram substituídos pelos
totalmente mecânicos Gravitais.

Embora não sejam mais orgânicos, os Gravitais ainda mantiveram os sonhos


humanos, ambições humanas e delírios humanos de grandeza. Isso, combinado com
corpos mecânicos que lhes permitiam atravessar o espaço com facilidade, tornou a
guerra interestelar uma possibilidade assustadora.

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Invasão das Máquinas  

Levou um longo tempo para os Gravitais se prepararem. Os sistemas de propulsão


foram aperfeiçoados e novos corpos capazes de suportar os saltos interestelares foram
concebidos. No entanto, quando finalmente decidiram que o momento era iminente,
nada sobreviveu ao seu massacre.

As invasões seguiram um plano brutalmente simples. Os sóis dos mundos-alvo


foram bloqueados e sua luz foi aprisionada atrás de velas especialmente construídas, com
milhões de milhas de extensão. Se os mundos agonizantes conseguissem resistir, um ou
dois asteroides os eliminariam.

As grandes aniquilações, ocorridas em um período relativamente rápido de dez


mil anos, estenderam os limites do genocídio e do horror. Quase todas as novas espécies
humanas, seres únicos que suportaram extinções em massa, navegaram pelas facas
evolucionárias e sobreviveram para construir seus próprios mundos, desapareceram sem
deixar vestígios.

Até os Qu haviam sido leais à vida, eles distorceram e subjugaram suas vítimas,
mas no final permitiram que elas sobrevivessem. Para as máquinas, no entanto, a vida era
um luxo.  

Tal crueldade meticulosa não era, ironicamente, fruto de qualquer tipo de ódio
real. Os Gravitais, há muito acostumados aos seus corpos mecânicos, simplesmente não
reconheciam a vida de seus parentes orgânicos. Quando essa apatia se misturava às suas
alegações insanas como os únicos herdeiros do Povo Estelar, as extinções eram realizadas
com a banalidade de um engenheiro demolindo um prédio abandonado. Sob o reinado
das Máquinas, a Galáxia entrou em uma nova era sombria.

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Uma rara instância de uma invasão direta pelas Máquinas ocorreu em uma das cidades
costeiras do Povo Assassino. Na maioria das vezes, os habitantes do Segundo Império eram
eliminados globalmente, sem a necessidade de tais confrontos.

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Considerando a Invasão  

A Invasão das Máquinas trouxe a maior onda de extinções que a galáxia já havia
presenciado; pois não se tratava apenas de um simples ato de guerra entre espécies, mas
sim de uma destruição sistematizada da própria vida.

Ao considerar um evento tão vasto, é fácil se perder em ilusões românticas. É


quase tão fácil rotular os Gravitais como "malévolos" quanto considerar todo o episódio
como um cenário niilista, o "fim de tudo". Ambas abordagens são, como seriam em
qualquer situação histórica, falácias monumentais.

Para começar, os Gravitais não eram malévolos, pelo menos não em sua própria
percepção. Esses seres, embora mecânicos, ainda viviam suas vidas como indivíduos e
operavam dentro de sociedades coerentes. Eles haviam renunciado à sua herança
orgânica, mas suas mentes não eram os mecanismos frios e calculistas das verdadeiras
máquinas. Mesmo depois de dar ordens que destruiriam bilhões de almas, um Gravital
teria um lar para voltar e, incrivelmente, uma família e um círculo de amigos pelos quais
sentia um afeto genuíno. Apesar de serem dotados de compaixão, seu tratamento severo
dos orgânicos era resultado, como mencionado antes, de uma simples incapacidade de
entender o direito deles à vida.

Além disso, os Gravitais não constituíam um todo singular e indivisível cujo


propósito era arruinar o universo. É verdade que seu avanço tecnológico lhes permitiu
formar uma entidade intergalática, mas dentro dela o Império das Máquinas estava
dividido em facções políticas e até mesmo religiosas. Superpostas a essas linhas divisórias
estavam as vidas cotidianas e os assuntos pessoais de famílias e indivíduos. Como
qualquer ser consciente, eles tinham um senso de identidade e, portanto, diferentes
agendas.

A invasão das Máquinas também não significou o fim de tudo. Certamente houve
uma destruição generalizada da vida, mas o que foi perdido foi "apenas" a vida orgânica.
Consumindo energia, direcionando-a para reprodução, pensamento e até mesmo
evolução, as máquinas estavam tão vivas quanto qualquer organismo baseado em
carbono. Apesar das perdas, uma forma de Vida sobreviveu e, como seria visto, até
mesmo preservou alguns de seus predecessores orgânicos.

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Súditos  (Vários descendentes dos Insetóides)  

Os Insetóides; tímidos e xenofóbicos devido ao histórico de invasões alienígenas


repetidas, tornaram-se a primeira espécie a enfrentar o ataque dos Gravitais. Por mais
irônico que parecesse, os Insetóides foram os mais sortudos dos pós-humanos. Em vez de
serem exterminados como o restante de seus parentes, eles sobreviveram como os únicos
seres orgânicos no Império das Máquinas.

As razões precisas para sua preservação ainda são desconhecidas até hoje. Talvez
as Máquinas não tenham aperfeiçoado sua apatia impiedosa naquela época. Ou talvez
elas tenham tido pena dos pobres orgânicos e permitiram que eles mantivessem uma
paródia truncada de existência.

Seja qual for o motivo, os Insetóides perduraram. Mas eles dificilmente se


assemelhavam a seus ancestrais originais. A engenharia genética, a arte perdida dos Qu
que percorriam a galáxia (e mais tarde, dos Criadores de Ferramentas também), foi
dominada quase tão abrangente pelas Máquinas. Sem hesitar em distorcer os seres que
não consideravam verdadeiramente vivos, eles entrelaçaram seu caminho no DNA dos
Insetóides, produzindo gerações de abominações literais. Uma mulher ou homem de
hoje teria alguma apreensão em relação à montagem de um computador, ou mesmo
reciclar lixo? Essa era a atitude dos triunfantes Gravitais.  

Assim, multidões de Súditos foram produzidos, distorcidos a tal ponto que até a
intromissão dos Qu parecia comparativamente tímida. A maioria deles foi usada como
servos, cuidadores e trabalhadores manuais. Essas eram as formas afortunadas. Alguns
sub-homens foram reduzidos ao nível de culturas celulares, úteis apenas para troca de
gases e filtragem de resíduos. Outros foram moldados em ecologias completamente
artificiais; simulações barrocas que serviam apenas como entretenimento. Algumas
máquinas, com suas ambições ainda humanas, levaram essa prática a um novo patamar e
produziram obras de arte vivas; criaturas condenadas e únicas que existiam puramente
como anacronismos biológicos.

Seja como ferramenta, escravo ou entretenimento, a Humanidade agarrava-se


estreitamente à sua herança biológica, enquanto seus primos Máquinas reinavam
supremos por inacreditáveis cinquenta milhões de anos.

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O arquétipo Insetóide, ladeado por dois de seus descendentes distorcidos. À sua esquerda,
um polidáctilo portador de um falo, criado como uma oferta sacrificial em uma das
muitas religiões das Máquinas. À direita, uma obra de arte única; projetada para tocar
seus dedos modificados como um conjunto de tambores enquanto entoa as melodias de
uma certa canção pop. 95
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As Outras Máquinas  

É importante lembrar que, apesar de seu imenso poder que abrangia a Galáxia, o
Império das Máquinas não era homogêneo. Ele era composto por dezenas de facções
distintas que nem sempre concordavam em tudo, incluindo o tratamento de seus
oprimidos, os Súditos.  

Algumas Máquinas, por meio de um processo que envolvia várias doutrinas


religiosas, sociais e filosóficas, começaram a compreender a universalidade da vida e a
origem comum das humanidades orgânica e mecânica. Inicialmente, esses indivíduos
viviam reclusos ou ocultavam suas crenças do mundo. Secretamente, eles criaram
linhagens de Súditos que podiam viver, mover-se e pensar livremente, assim como eles
próprios. Em alguns casos memoráveis, os engenheiros se apaixonaram por suas
criações, e seu martírio inspirou outras Máquinas a pensarem um pouco diferente.

Eventualmente, essa ideologia ganhou impulso suficiente para ser praticada


abertamente na vida cotidiana. No entanto, a seita da Tolerância logo se confrontou com
seus rivais linha-dura, favoráveis à dominação mecânica. A intolerância fervente entre as
duas facções finalmente irrompeu quando algumas Máquinas Tolerantes desejaram
reservar vários mundos para o desenvolvimento irrestrito da vida biológica. O caos se
instalou, e o Império das Máquinas, aparentemente um monólito impecável da galáxia,
enfrentou sua primeira guerra civil curta e amarga.

A guerra não causou danos duradouros, mas evidenciou claramente um fato: a


maior entidade que a galáxia já viu não estava isenta de problemas.

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A Queda das Máquinas  (O Retorno dos Espaciais)  

A longo prazo, as lutas internas do Império das Máquinas poderiam ter levado à
sua queda. No entanto, não foi necessário esperar tanto tempo, pois o Império teve uma
morte mais curta, mas imensamente cataclísmica.

Por muito tempo, o Império das Máquinas e o Império dos Asteromorfos


observavam-se nervosamente. Ainda não haviam entrado em confrontos abertos, já que
os Asteromorfos mantinham-se principalmente em suas arcas espaciais e o Império das
Máquinas ocupava os planetas. Em quase todos os sistemas solares habitáveis da galáxia,
a mesma tensão reversa se acumulava entre seres orgânicos vivendo no vazio e máquinas
habitando mundos perfeitamente terrestres.

O poder estava equilibrado entre os dois impérios rivais. Além disso, esse
equilíbrio envolvia forças suficientemente fortes para destruir planetas em massa. Cada
lado sabia que qualquer tipo de guerra resultaria em aniquilação mútua, e apenas a
insanidade poderia iniciar tal conflito.

Bem, o Império das Máquinas pós-guerra civil enlouqueceu, de certa forma. Para
desviar a atenção das lutas internas, precisava de um novo inimigo para consolidar suas
facções rivais. Que imprudência esse inimigo tenha sido os Asteromorfos

É desnecessário e quase impossível descrever a carnificina que se seguiu. Os


conflitos duraram até alguns milhões de anos, e a perda resultante de vidas (tanto
mecânicas quanto orgânicas) fez o Genocídio das Máquinas inicial parecer irrelevante.

Quando a poeira cósmica se assentou, os vencedores se apresentaram. Os


conquistadores foram os Asteromorfos, transformados além do reconhecimento após
cinquenta milhões de anos de autoperfeição contínua. Seus cérebros grotescamente
hipertrofiados estendiam-se como asas de cada lado, e seus membros derivados dos
dedos haviam se transformado em um intrincado conjunto de velas e pernas. Dotados de
tecnologia superior e paciência ilimitada, esses seres quase destruíram completamente as
Máquinas, apesar de terem perdido um número substancial de sua própria espécie.

O conflito também lançou os Asteromorfos nos assuntos de seus primos humanos,


há muito tempo negligenciados. Por mais impossível que parecesse, alguns dos Súditos
das Máquinas haviam sobrevivido ao tormento. Agora, os Asteromorfos não podiam mais
ignorá-los.  

Com as Máquinas desaparecidas, coube aos Asteromorfos fazer a limpeza após


eles. Eles acolheram os Súditos e usaram sua herança genética para povoar planetas
inteiros. Durante essa era de reconstrução, que durou mais dois milhões de anos, muitos
construtores de mundos Asteromorfos surgiram como verdadeiros Deuses, criando
mundos habitados praticamente do zero. Enquanto isso, seus Súditos tornaram-se os
herdeiros de uma Galáxia verdadeiramente nova e dilacerada pela guerra.

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A Galáxia Pós-Guerra:

Ao repovoar os mundos perdidos, os deuses Asteromorfos também tomaram


medidas para garantir a segurança contínua de suas criações. A ascensão abrupta das
Máquinas havia mostrado que, a menos que cuidadosamente regulamentada, a riqueza
das estrelas poderia sempre abrigar uma raça de usurpadores intergaláticos.

Os Asteromorfos, vigilantes, mas sempre transparentes, não queriam interferir


diretamente. Em vez disso, eles produziram versões terrestres de sua própria espécie para
regular a galáxia. Adaptaram seus dedos delicados e etéreos em membros esguios,
encolheram consideravelmente seus cérebros para se readaptarem às exigências da
gravidade. O resultado foi uma linhagem secundária, considerada diminuta pelos
padrões Asteromorfos, mas ainda assim produzia semideuses em todos os sentidos da
palavra.  

Esses seres, frequentemente conhecidos como Terrestres Espaciais ou


simplesmente Terrestres, nutriram e controlaram o desenvolvimento das civilizações
pós-guerra em muitos planetas. Atuaram como cuidadores, profetas, reis e imperadores,
mas também como ceifadores sombrios, conforme a ocasião exigia.    

É claro que esse empreendimento nem sempre ocorreu conforme planejado. Na


maioria das vezes, as raças recém-nascidas se recusaram a obedecer seus mentores e, em
vários casos, até se rebelaram contra eles. Desnecessário dizer que esse crime sempre foi
punido com uma rápida extinção. Além disso, até mesmo os Terrestres foram
corrompidos. Em vez de oferecerem orientação, em muitos planetas os Terrestres
simplesmente se comportaram como deuses, tecendo religiões elaboradas em torno de si
mesmos para explorar descaradamente seus súditos. Isso não era ético nem produtivo,
mas esse método parecia garantir mais estabilidade do que tentar realmente educar as
novas raças..    

De uma forma ou de outra, a consciência orgânica recuperou sua dominação na


galáxia. O Novo Império, administrado pelos Terrestres, povoado por uma miríade de
descendentes dos Súditos e supervisionado pelos oniscientes Asteromorfos, alcançou um
progresso maior e uma calma duradoura na galáxia do que todos os seus predecessores
juntos.

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Um Terrestre Espacial nu exibe a anatomia altamente divergente, porém bizarramente


humana, que é característica dessa espécie. Esses Terrestres em particular mantêm uma
hegemonia religiosa sobre seus súditos desavisados, vestindo véus elaborados e adereços na
cabeça para afirmar sua 'herança divina'.  
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As Novas Máquinas:

Muito tempo após sua queda do poder, as Máquinas ainda se agarravam à


existência. Durante as fases iniciais do pós-guerra, os Asteromorfos planejavam
exterminar cada uma delas, apenas para descobrir que as Máquinas eram simplesmente
muito úteis para serem destruídas. Por milhões de anos, elas tinham aperfeiçoado a
interface entre mente e máquina a ponto de poderem viver e operar nas condições mais
inóspitas. Esses seres, privados de seu poder galáctico, fariam contribuições inestimáveis
para a pesquisa e exploração no Novo Império.

Havia um senso de justiça poética em tudo isso. As Máquinas, que uma vez
distorceram formas de vida biológica a seu bel-prazer, finalmente experimentavam um
destino semelhante. Para começar, os Asteromorfos eliminaram completamente sua
capacidade de manipulação gravitacional autossustentável; a própria força que os
tornava invulneráveis no passado. Eles foram dotados de uma vida finita e imaginação
levemente amortecida, para evitar que a história se repetisse. No entanto, a natureza
degradante dessas mudanças não implicava uma regressão geral.

Ao contrário de seus ancestrais, as Novas Máquinas foram dotadas de corpos


nanotecnológicos capazes de se remodelarem continuamente, o que significa que
podiam assumir todas as formas e tamanhos imagináveis, e até mesmo alguns que não
eram. Um cidadão máquina poderia viver por algum tempo no vazio do espaço,
conduzindo pesquisas, e então se transformar em um plano corporal completamente
diferente para passar férias em um cometa, uma selva tropical ou um oceano de metano.
Ele ou ela também faria a viagem pessoalmente, crescendo propulsores de
hipervelocidade temporários e motores ramjet!    

Apesar de sua impressionante versatilidade, as Máquinas nunca foram tão


comuns ou proeminentes, mesmo após aceitarem completamente seu papel como
cidadãos humildes do Novo Império. As maiores guerras na história concebível haviam
incutido nos orgânicos uma desconfiança profunda de seus vizinhos mecânicos, e as
Novas Máquinas eram sempre tratadas com algum grau de discriminação. Os pecados de
seus pais vieram para acorrentar essa espécie humana mais esplendorosa de todas.

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Uma cidadã máquina do Novo Império. Ela exibe um par deslumbrante de braços
ramificados que combinam tanto com as últimas tendências da moda quanto com seu
trabalho como artesã. Máquinas que seguem a moda podem parecer incomuns para um
leitor desta era, mas nunca esqueça que esses seres são inteligências humanas, apenas em
corpos diferentes.
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O Segundo Contato  

Com ondas sucessivas de descoberta e colonização auxiliadas por máquinas, o


Novo Império cresceu exponencialmente. O crescimento em riqueza e progresso foi tão
grande que descrevê-lo exigiria o uso de conceitos ainda não explorados hoje em dia.
Conversar com um homem atual sobre os acontecimentos do Novo Império seria
semelhante a dar palestras sobre geopolítica do século XX a um caçador-coletor.

Essa magnífica entidade não era cega para o universo ao seu redor. Sintonizou
seus olhos, ouvidos e sensores, investigando os eventos das galáxias vizinhas. Os Novos
Galáticos suspeitavam que as nebulosas circundantes também pudessem abrigar suas
próprias civilizações indígenas, e era sábio contatá-las antes que mal-entendidos ou
conflitos ocorressem. Em um aspecto mais sombrio, essas observações também serviam
como vigias em busca de invasores em potencial. Mesmo assim, a memória dos Qu não
foi esquecida.

A descoberta foi feita eventualmente. Uma das galáxias vizinhas mostrava padrões
de atividade que eram os inconfundíveis sinais de uma organização inteligente. Alguns
pensadores se alegraram com a descoberta de uma nova civilização, enquanto outros
temiam o retorno dos Qu. Felizmente, esse segundo encontro com uma espécie
alienígena provou ser pacífico. Talvez as inteligências de ambas as galáxias finalmente
estivessem maduras o suficiente para se encontrarem sem brigas.  

A outra galáxia era dominada por uniões conectadas de seres diferentes,


presididas por diferentes tipos de Anficefalos; criaturas bizarras que se assemelhavam a
serpentes gigantes com cabeças em ambas as extremidades, sendo que uma delas
possuía um corpo secundário retrátil que usavam para interagir com o mundo.
Aparentemente, eles haviam passado por séries alternadas de regressões, radiações
evolutivas e transformações genéticas autoimpostas, assim como a humanidade.

Apesar de todas as suas diferenças selvagens, os Anficefalos foram bem-vindos.


Eles foram os primeiros, mas certamente não os últimos.

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

Uma embaixadora Anficefala com espaçonaves típicas de sua espécie. Seu estranho plano
corporal revela uma história evolutiva tão complicada quanto a da humanidade.

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

Terra Redescoberta:

O objetivo deste trabalho não é descrever o progresso ilimitado que se seguiu ao


contato intergaláctico. Poderíamos prosseguir indefinidamente, relatando como as
galáxias unidas reencontraram e subjulgaram os Qu, como envolveram seus sóis com
cascas artificiais, multiplicando em bilhões as zonas habitáveis, como cruzaram o espaço
interestelar com buracos de minhoca e transformaram as viagens em algo do passado. No
final, os descendentes desses seres até conquistaram o próprio Tempo, prolongando a
existência de suas mentes indefinidamente por meio de tecnologias rejuvenescedoras.

Por um tempo, todos os homens foram deuses.

Mas, de (seu)nosso ponto de vista, uma descoberta verdadeiramente se destacou


nessa orgia de avanços. Comparada às realizações gigantescas como a domesticação do
espaço e a construção das conchas estelares, foi apenas um mero lampejo, uma revelação
de trivialidades há muito esquecidas. Tratava-se da redescoberta da Terra; o berço da
humanidade, onde o onipresente Asteromorfo, a Máquina deslizante pelas estrelas e as
milhões de humildes raças residentes poderiam traçar suas origens.

Isso foi feito silenciosamente por uma pesquisadora singular que vasculhava os
vestígios da história esquecida década após década. Milhões de anos de guerras, invasões
e extinções haviam enterrado as evidências de forma completa e abrangente. Quando ela
finalmente se deparou com evidências irrefutáveis, não havia ninguém por perto para
comemorar. Isso viria mais tarde.

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

No momento da redescoberta da Terra, os humanos haviam se distanciado


consideravelmente de suas formas ancestrais.

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

O Retorno:  

A descoberta despertou certo interesse, embora não tanto quanto outras


descobertas anteriores. Para a maioria dos humanos do cosmos, o local de nascimento
ancestral era apenas uma informação interessante, um detalhe curioso com o qual
haviam perdido qualquer conexão.

Mesmo assim, uma nave foi enviada e pousou sem cerimônias, pois agora não
havia mais inteligência na Terra. Muito distante dos principais centros de população, o
planeta havia sido completamente ignorado, tornando-se estagnado e selvagem. Mas
ainda era o Lar.  

Quando os exploradores pisaram fora, pés humanos pisaram na velha Terra mais
uma vez; após uma ausência de 560 milhões de anos. A humanidade estava de volta em
casa.

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

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TODOS OS AMANHÃS – C. M. KOSEMEN

Todos os Amanhãs:  

Devo concluir minhas palavras com uma confissão. A humanidade, a própria


espécie que tenho narrado desde seus primórdios terrestres até sua dominação das
galáxias, está extinta. Todos os seres que você viu nas páginas anteriores; desde o humilde
Verme até os Navegadores, desde o megalomaníaco Gravital até os cidadãos galáticos
supremos, estão mortos há bilhões de anos. Estamos apenas começando a juntar as peças
da história. O que você leu foi a nossa melhor aproximação da verdade.

Por que eles desapareceram? Talvez tenha sido uma guerra final e inimaginável de
aniquilação, uma que transcendeu o próprio significado de "conflito". Talvez tenha sido
uma gradual dissolução das galáxias unidas, e cada raça enfrentando seu fim particular
lentamente em seguida. Ou talvez, como as teorias mais selvagens sugerem, tenha sido
uma migração em massa para outro plano de existência. Uma jornada para algum lugar,
em algum momento, para algo diferente. Mas a questão fundamental é; honestamente,
não sabemos.

No entanto, o que aconteceu com a humanidade não importa. Como qualquer


outra história, foi temporária; certamente longa, mas essencialmente efêmera. Ela não
teve um final coerente, mas também não precisava ter. A história da humanidade nunca
se resumiu à sua dominação final de mil galáxias, ou sua misteriosa saída rumo ao
desconhecido. A essência de ser humano não estava em nada disso. Em vez disso, residia
nas conversas de rádio das Máquinas ainda humanas, na vida cotidiana dos
estranhamente distorcidos Bug Facers, nas canções de amor intermináveis dos
Hedonistas despreocupados, nas demonstrações rebeldes dos primeiros verdadeiros
Marcianos e, de certa forma, na própria vida que você leva no momento.

Muitos ao longo da história desconheciam esse fato mais básico. Os Qu, em


sonhos de um futuro ideal, distorceram os mundos que encontraram. Mais tarde, os
Gravital, com seu insano desejo de recriar o passado, criaram os maiores massacres na
história da galáxia. Mesmo agora, é absurdamente fácil para os seres se perderem em
falsas narrativas grandiosas, vivendo vidas completamente impulsionadas em busca de
finais inexistentes, ideais, clímaxes e eras douradas. Ao pensar cegamente que suas
histórias servem a fins absolutos, tais criaturas quase sempre acabam se prejudicando, se
não prejudicando aqueles ao seu redor.

Para aqueles como eles, olhem para a história do Homem e voltem a seus sentidos!
Não é o destino, mas a jornada que importa, e o que você faz hoje influencia o amanhã,
não o contrário. Ame o Hoje e agarre todos os Amanhãs!

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TODOS OS HUMANOS – C. M. KOSEMEN

O Autor, com um crânio humano de um bilhão de anos.

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Caro leitor, a partir deste ponto, é o tradutor que está escrevendo. Gostaria de expressar minha
profunda gratidão a Kosemen por me conceder a oportunidade de traduzir esta obra-prima.
Sempre me questionei sobre a possibilidade de haver seres de outras estrelas, galáxias e planetas
vivendo simultaneamente conosco, evoluindo ao mesmo tempo. É incrível e, ao mesmo tempo,
assustador pensar que toda a nossa essência e memórias podem ser apagadas em um piscar de
olhos, do ponto de vista do Universo, não é mesmo?
Talvez, quando esse momento chegar, já tenhamos descoberto o verdadeiro propósito da vida,
talvez tenhamos desvendado o segredo da imortalidade e a existência de forças superiores que nos
criaram. Ou talvez... apenas tenhamos aprendido a abraçar nossa humanidade, a valorizar cada
momento que nos é dado.
Durante a escola, sempre olhava para as janelas durante as aulas e me perguntava “Qual minha
razão para estar aqui? Qual minha razão para viver aqui e neste estado?” essas perguntas ainda
permeiam minha mente, e às vezes, tenho medo de descobrir a resposta. Talvez eu esteja aqui
apenas para ser outro ser humano, ou para ser algo abaixo disto.
Eu sonhei com o dia em que me tornaria algo além do que sou, ansiava por essa transformação,
acreditando que isso me tornaria especial. No entanto, agora percebo que apenas consegui ser
aquilo que já era: um ser humano com sonhos e imaginações, por mais supérfluos que podem
parecer, mas que de alguma forma enriquecem minha vida.
Ao deparar-me com a oportunidade de traduzir esta obra, pensei: "Eu preciso disso, é meu destino!
Isso me ocorreu algo extraordinário!" No entanto, percebo agora que corri em uma pista apenas
para retornar ao mesmo ponto de partida, ao início.
Acredito que essa seja a jornada humana: buscar com ambições vãs, na tentativa de preencher
nossa existência efêmera com conquistas que consideramos importantes. Peço desculpas por essa
minha perspectiva pessimista, mas como o Autor mencionou na página final, mesmo que tudo isso
seja verdade, mesmo que nossa existência seja apenas uma "bolha" prestes a estourar com um
simples toque de dedo de uma criança ou pelo destino inexorável , ainda assim devemos nos apegar
a esses preciosos momentos de existência. Devemos sentir-nos honrados por alcançar algo que
todos almejam: o Tempo.
Se você está enfrentando alguma situação difícil no momento, caro leitor, lembre-se de que você é
humano! Faz parte de nossa natureza lutar para conquistar e sobreviver mesmo diante das
adversidades. Mesmo que o amanhã tenha uma possibilidade remota, lembre-se: você molda o seu
próprio amanhã! Não são as circunstâncias externas que determinam seu destino, mas sim você
mesmo! Você é um indivíduo único e especial, e isso faz toda a diferença!

Agradeço novamente o autor pela permissão de tradução, minha querida Fabiana que tem me
apoiado tanto junto de minha escola.
O Visionário por trás de “All Tomorrows”

Cevdet Mehmet Kösemen, nascido em 18 de maio de 1984 em Ancara, Turquia, é um pesquisador,


artista e autor turco. Reconhecido por suas obras de arte que retratam animais vivos e extintos, bem como
cenas surrealistas, e por seus escritos sobre paleoarte, evolução especulativa e história e cultura na Turquia,
Kösemen deixou sua marca no mundo da arte e da ciência.
Uma de suas colaborações notáveis foi com o paleoartista australiano John Conway e o
paleontólogo britânico Darren Naish, na coautoria do livro "All Yesterdays" em 2012. Essa obra, que
explorava ideias especulativas em paleoarte, recebeu ampla atenção e críticas positivas, destacando-se na
mídia internacional. A iniciativa surgiu quando Conway e Kösemen perceberam a falta de representações
realistas dos dinossauros nas obras de arte modernas, ignorando características importantes que dificilmente
teriam sido preservadas nos fósseis, como tecidos moles diversos. Além disso, Kösemen contribuiu para o
livro "Cryptozoologicon", aplicando a evolução especulativa a criptídeos, o que também recebeu
reconhecimento global.
Em 2011, Kösemen descobriu suas raízes como descendentes de Dönmeh, judeus forçados a se
converter ao Islã no século XVII. Ele publicou um livro sobre essa história intitulado "Osman Hasan and
the Tombstone Photographs of the Dönmes" em 2014, que foi adquirido por prestigiados institutos de
pesquisa e universidades ao redor do mundo. Essa publicação rendeu a Kösemen o prestigioso Prêmio de
História Eduard-Duckesz em 2016.
Outra contribuição marcante de Kösemen foi o livro "The Disappearing City" em 2018. Nessa
obra, ele explora e reúne fotografias de placas de rua e arquitetura turcas do século XX em Istambul. O
livro retrata a rápida substituição dos edifícios do século XX na cidade, o que faz com que Istambul perca
preciosidades arquitetônicas, ao contrário de cidades como Tel Aviv, que conseguem preservar esse
patrimônio. No entanto, Kösemen ganhou destaque especialmente por seu trabalho no campo da evolução
especulativa. Em 2006, ele lançou online o livro "All Tomorrows" como um arquivo PDF gratuito. Essa
obra cativante explora uma história futura especulativa da humanidade e seus descendentes ao longo de
bilhões de anos. Em 2021, o livro experimentou um aumento significativo de popularidade na internet.
Além disso, Kösemen é conhecido por seu projeto de evolução especulativa chamado "Snaiad", que
apresenta um mundo alienígena fictício chamado Snaiad, com um ecossistema diversificado de criaturas
criadas pelo próprio Kösemen. Ele tem o desejo de publicar Snaiad como um livro no futuro.
Um documentário sobre a vida e o trabalho de CM Kösemen, intitulado "Tangent Realms: The
Worlds of CM Kösemen" e dirigido pelo cineasta independente Kevin Schreck, foi lançado em 2018. O
filme não apenas explora a arte de Kösemen, mas também mergulhou em sua vida pessoal e nas questões
que ele e outras pessoas enfrentam em determinados momentos de suas vidas. O documentário recebeu
prêmios em vários festivais de cinema independente, consolidando ainda mais a influência de Kösemen no
cenário artístico e científico. Essa biografia destaca os principais marcos da carreira e vida de Cevdet
Mehmet Kösemen, permitindo que os leitores conheçam sua trajetória e contribuições para a arte, a
paleoarte, a evolução especulativa e a preservação da história e cultura turca.

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