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22/01/2024, 10:49 Cibernéticas Proletárias | Passa Palavra

Cibernéticas Proletárias
Haveria possibilidade aqui de uma guinada a um comunismo
cibernético através do desenvolvimento das cibernéticas proletárias,
ao invés de termos que aguardar a implementação de um novo sistema
por uma tecnocracia vermelha?

25/04/2023

Por Grevo de Vergere

§0. A Cibernética como perigo de extinção, apenas?

Não há notícias de que o ano de dois mil e dezenove tenha presenciado uma
rebelião de seres conhecidos como “replicantes”, uma espécie de androide,

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que eram utilizados para trabalhos forçados e uma “colonização”


extraterrenas. Não há notícias de que esses seres, meio humanos, meio
máquinas, tenham buscado seu criador para prolongar seus tempos de vida em
um mundo quase apocalítico. Tampouco há notícias de que esses seres tenham
desenvolvido capacidades emocionais, afetivas, sentimentais para se
imaginarem humanos… Ridley Scott, então, esteve sempre equivocado em seu
Blade Runner ao prognosticar essa revolta de seres quase humanos… em 2019
outras revoltas aconteciam, mas não essa…

Em 2023 ainda não é possível dizer que as máquinas tenham sido tornadas
humanas, ainda que há muito tempo o ser humano tenha se tornado apêndice
de máquinas. Ainda assim, o chamado Vale do Silício na Califórnia
estadunidense tem sido alvo de especulações a fim de avaliar até que ponto o
desenvolvimento de uma Inteligência Artificial (IA) pode ser perigosa para a
vida humana na terra. Em um texto publicado em fevereiro de 2018, chamado
Inteligência Artificial e Capital [1] , o teórico polonês Tomasz Konicz, próximo
do pensamento ligado ao grupo Krisis [2], descreve como poderia se dar essa
possibilidade de mudança de polos em que a IA ultrapassaria em muito a
capacidade intelectual humana, se colocando de forma autônoma e em posição
de dominância. Konicz cita o matemático Vernor Vinge, criador do termo
singularidade, que entende ser possível e mesmo inevitável que a formação da
inteligência artificial supere o potencial intelectual dos seres humanos em
todas as áreas relevantes, levando em consideração, inclusive, a extinção física
da humanidade.

Diferente do cenário de Blade Runner, em que a singularidade seria a mescla


entre seres humanos e máquinas, Konicz descreve a singularidade destes
tempos no sentido de que a IA se tornaria uma “abstração real”, uma espécie
de software que desenvolveria consciência e residira numa “nuvem global”.
Uma inteligência artificial, portanto, que se desenvolveria exponencialmente e
de forma autônoma. Esse desenvolvimento possibilitaria um avanço de
inteligência e de progresso tecnológico sem precedentes, o que transformaria

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a humanidade de forma radical, podendo levar até mesmo a sua extinção.


“Consequentemente, após o ato de singularidade, a IA tornar-se-ia
independente, tenderia a escapar ao controle e superaria a capacidade
intelectual da humanidade em pouco tempo”[3].

Nesse cenário a singularidade deste software não poderia mais ser controlada
e, devida a sua capacidade intelectual muito superior a humana, poderia
assumir o controle do processo de civilização. Seria nesse momento em que a
anunciada Matrix se faria verdadeira, ou seja, o tempo histórico em que ao
contrário de as máquinas-humanas serem controladas e escravizadas em
função da sobrevivência humana, seriam os seres humanos escravizados em
função de produzir energia para o funcionamento das maquinas inteligentes?
Este software singular seria então a “mente” dominante que levaria adiante,
se necessário fosse, uma guerra física contra seres humanos rebeldes, afim de
manter a dominação política e social, como aquele desenhado na película das
irmãs Wachowski?

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Konicz, ainda que adepto de uma certa teoria do colapso, não acredita muito
nessa espécie de fantasia hollywoodiana, na medida em que destaca que a
ironia contida nessa transformação tecnológica é o fato de que estaríamos
vivendo o tempo em que supostamente veríamos ser cumprida a “profecia” ou
a “fantasia” do “sujeito automático” de Marx lá nos Grundrisse. Neste
cenário, muito mais realista do que o dos filmes, Konicz entende que
justamente a IA daria vida ao “Sujeito automático”, por meio do movimento
social global, cegamente desmedido, em busca da valorização do Kapital:

O absurdo escandaloso, em que ninguém repara, é precisamente o facto de as máquinas,


cada vez mais inteligentes, poderem produzir cada vez mais bens, num tempo cada vez
menor, com cada vez menos trabalho humano. O paraíso parece estar próximo, as
necessidades básicas de todas as pessoas podem ser satisfeitas, mas, no entanto, o
inferno irrompe na terra – surgindo com ele os cultos de morte correspondentes, como o
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islamismo, o fascismo e o transumanismo. A produção cada vez mais eficiente no


capitalismo, toda a racionalidade do processo de produção, visa um propósito afinal
irracional: a maior valorização possível do capital investido. O propósito próprio de obter
o maior lucro possível por meio da produção de mercadorias torna-se independente no
plano social global. Por trás das costas dos produtores, esse processo de valorização do
capital desenvolve uma dinâmica própria, que enfrenta os seus sujeitos de mercado
como um poder estranho, quase natural. Portanto, se a própria força de trabalho não
pode mais ser vendida no mercado de trabalho, devido a um surto de racionalização,
porque as novas técnicas de automação tornam o trabalho maciçamente supérfluo,
então as máquinas já estão a roubar às pessoas os seus meios de subsistência. As
máquinas já “dominam” sobre a humanidade capitalista tardia, fazem isso como
concretização do movimento de valorização do capital, realmente abstrato e cego, que se
torna cada vez mais eficiente por meio da concorrência, afastando cada vez mais o
trabalho da produção de mercadorias, ao tornar-se cada vez mais “inteligente”.[4]

A cibernética seria, então, um processo necessário à lógica do Kapital que


radicalizaria o senso de organização da sociedade capitalista: a unidade-em-
separação. A separação [5] é a forma geral da sociedade capitalista que foi,
ainda que instintivamente, pensada por Marx já lá nos Manuscritos de 1944 e
que depois aparece melhor formulada na parte sobre o fetichismo da
mercadoria em O Kapital. A lógica do Kapital, para promover sua existência e
sua preponderância em relação a todas as outras formas de organização social
que a precederam e que podem lhe suplantar promove uma unidade na
separação em contraposição a uma unidade de contrários que poderia
possibilitar uma síntese dialética geral entre formas particulares de
organização ou modos de vida distintos. A unidade promovida pelo Kapital é
aquela engendrada pela sociedade de mercado em que as pessoas se tornam
cada vez mais interdependentes por meio das relações de troca. São essas
relações, ainda que não apenas comerciais, que estimulam as relações entre os
seres humanos e entre estes e a natureza. O Kapital reduz as pessoas, e,
sobretudo, os trabalhadores a pequenos vendedores de mercadorias,
principalmente a força de trabalho, proporcionando-lhes alguma autonomia,
mas sempre dentro de certos limites. Qualquer forma de unidade real, tem sido
prontamente incorporado à lógica do Kapital, exacerbando a separação, na
forma de identidades ou mesmo no próprio movimento dos trabalhadores que

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entendeu, durante quase um século, que a unidade operária que se dava nas
fábricas por meio de um desenvolvimento continuo das forças produtivas
poderia levar a uma “unidade real”. Como pode ser constatado num breve
percurso pela história do movimento operário, não foi isso que aconteceu [6].

Na linha de pensamento de Konicz, o cumprimento da fábula marxiana do


sujeito automático, seria, portanto, algo como a cibernética ter elevado a
unidade-em-separação da lógica do Kapital a níveis inimagináveis. De certa
forma isso se assemelha ao pensamento de um grupo insurrecionalista francês
ligado a revista Tiqqun e ao chamado Comitê Invisível [7]. Num texto,
intitulado La hipótesis cibernética [8], em que o grupo propõe fazer uma
genealogia da cibernética, a identificação máxima desse processo está no fato
de que a cibernética seria uma nova e possivelmente mais avançada e bem
elaborada forma política e social de dominação. Nesse sentido, ela teria em
muito superado o que eles também chamam de hipótese liberal. A cibernética
proporia uma forma de conceber e organizar os “comportamentos biológicos,
físicos e sociais como totalmente programados e reprogramáveis”. O sentido
desse controle estaria na necessidade de sobrevivência do “sistema”, por isso
as formas de ação e organização dos seres humanos deveriam estar dentro de
espaços de equilíbrio a fim de evitar as crises ou de serem facilmente
manipuláveis durante uma crise. O fim último da atividade humana seria
sempre a de impulsionar o “sistema” levando ao seu equilíbrio e
desenvolvimento. Dessa forma, a “hipótese cibernética” não deveria ser
apenas criticada, mas sim combatida e vencida pois, na medida em que
conseguiu produzir suas próprias verdades, ela seria hoje o anti-humanismo
mais consistente, seria algo como uma “guerra deliberada contra tudo o que
vive e tudo o que dura”.

Mas como se deu esse processo em que a cibernética teria despontado como
grande inimigo dos seres humanos? De acordo com Tiqqun, ela teria surgido
sob a abordagem inofensiva de uma simples teoria da informação, uma
informação sem origem precisa que poderia estar já no ambiente de qualquer

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situação cotidiana. Voltada para o controle de um determinado sistema, essa


teoria da informação postulava que isso só poderia ser obtido por meio de um
grau “ótimo” de comunicação entre as partes envolvidas. Por isso, seria
preciso, antes de tudo, a contínua extorsão da informação, um processo de
separação entre as entidades e suas qualidades, de produção de diferenças.
Essa teoria da informação que desenvolveu-se como cibernética, buscava
então, administrar as incertezas de múltiplos processos e por isso requereria a
representação e a memorização do passado. Na sequência, a cibernética
engendraria um discurso que postularia uma analogia de funcionamento entre
organismos vivos e máquinas que seriam reunidos sob a ideia de um
“sistema”. Perdida sua aparência inofensiva, a “hipótese cibernética”
proporia dois tipos do que Tiqqun entende como “experimentação científica e
social”: a primeira, estaria situada no campo do controle e teria como objetivo
uma espécie de domesticação dos seres vivos, estabelecendo uma mecânica do
seu funcionamento, buscando “gerir, programar e determinar o homem e a
vida, a sociedade e o seu ‘devir’”. A segunda experimentação, estaria no campo
da comunicação e teria como proposta imitar a forma de viver dos seres
humanos com a fabricação de máquinas “inteligentes”, daí a busca pelo
desenvolvimento de robôs e da Inteligência Artificial, chegando a rápida
circulação de informações que desembocou na constituição das chamadas
“redes sociais” [9] . Tiqqun destaca que essas duas propostas de
experimentação científica e social estariam ligadas diretamente pela ideia
fantasiosa de uma “Autômato Universal”, demasiado semelhante ao Estado
como o Leviatã de Hobbes.

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A trajetória de “hipótese cibernética” desembocaria para o grupo numa


espécie de “capitalismo cibernético” a partir dos anos de 1970 [10]. Essa forma
de organização do Kapital, teria se sobreposto ao fordismo e teria se
desenvolvido para, nas palavras de Tiqqun, “permitir que o corpo social
devastado pelo Kapital se reforme e se ofereça por mais um ciclo ao processo
de acumulação”. Nessa forma de “capitalismo cibernético”, a cibernética teria
como uma das suas funções principais, se não a principal, impedir a
reprodução das crises do Kapital, garantindo uma coordenação entre a
produção e a circulação, eliminando ao máximo o tempo desta última,
permitindo, inclusive que o centro de gravidade da valorização do valor
desloque-se para a circulação, na medida em que poderia acelerar o ciclo
produção-circulação-consumo. Tiqqun determina, portanto que “o

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cibercapitalismo tende a abolir o próprio tempo, a maximizar a circulação


fluida até seu ápice, a velocidade da luz, como já costumam fazer certas
transações financeiras. As categorias de ‘tempo real’ ou ‘just in time’ são
testemunho suficiente desse ódio à duração” [11].

Qual a alternativa que esse grupo ativista propõe a essa forma social
organizada em torno e pela cibernética? Sabemos que eles dizem ser
necessário não apenas criticá-la, mas combatê-la. Combater a cibernética
antes de ser um “cibernético crítico”, repetem eles. Mas como se daria esse
combate? Para Tiqqun, o combate à “hipótese cibernética” pode ser dar
através do pânico, visto que a cibernética tem obsessão pela organização de
sistema controláveis, o pânico deve ser entendido como uma mudança no
estado do sistema autorregulador.

Para frustrar o processo de cibernetização, para derrubar o Império, é necessário um


pânico aberto. […] Em situação de pânico, as comunidades rompem com o corpo social
concebido como totalidade e querem escapar dele. Mas como ainda estão fisicamente e
socialmente cativos dele, são forçados a atacá-lo. Mais do que qualquer outro fenômeno,
o pânico manifesta o corpo plural e inorgânico da espécie […] A busca do pânico ativo —
“a experiência mundial do pânico” — é, portanto, uma técnica para assumir o risco de
desintegração que cada pessoa representa para a sociedade como um indivíduo que
assume riscos. É o fim da esperança e de qualquer utopia concreta que assume a forma de
uma ponte lançada para não esperar mais nada, não ter nada a perder. E é uma forma de
reintroduzir, através de uma sensibilidade particular às possibilidades das situações
vividas, às suas possibilidades de colapso, à extrema fragilidade do seu ordenamento,
uma relação serena com o movimento de fuga para a frente do capitalismo cibernético.
No crepúsculo do niilismo, trata-se de tornar o medo tão estranho quanto a esperança
[12].

A linha ofensiva de Tiqqun segue pela intersecção do pânico com o caos e pelo
irromper de uma suposta “revolta invisível” que, por meio de uma “guerrilha
difusa”, na forma de luta que deve produzir tal invisibilidade aos olhos do
inimigo, poderia propagar uma guerra civil contra o Kapital e sua cibernética.

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“A revolta invisível, a guerrilha difusa, não sancionam uma injustiça, criam um mundo
possível. Na linguagem da hipótese cibernética, sei como criar a revolta invisível ou a
guerrilha difusa, ao nível molecular, de duas maneiras. Primeiro gesto, eu fabrico algo de
real, desarticulo e me desequilibro desarticulando. Toda sabotagem começa aí. O que
meu comportamento representa naquele momento não existe para o dispositivo que está
desequilibrado sobre mim. Nem 0 nem 1, sou o terceiro absoluto. Meu gozo ultrapassa o
dispositivo. Segundo gesto, não respondo aos loops retroativos humanos ou das
máquinas que tentam me cercar, como Bartleby “prefiro não”, fico fora disso, não entro
no espaço dos fluxos, não me conecto, Eu fico e descanso. Eu uso minha passividade
como um poder contra os dispositivos. Nem 0 nem 1, sou nada absoluto. Primeiro tempo:
gozo perversamente. Segundo tempo: me reservo. Mais Além. Mais aquém. Curto-
circuito e desconexão. Em ambos os casos não há feedback, há uma linha de fuga. Linha
externa de fuga de um lado que parece vir de mim; linha interna de fuga do outro lado
que conduz a mim mesmo. Todas as formas de distorção partem desses dois gestos:
linhas externas e internas de fuga, sabotagem e recuo, busca de formas de luta e
assunção de formas-de-vida. O problema revolucionário de agora em diante consistirá
em combinar esses dois momentos” [13].

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Podemos perceber que tanto Konicz, ligado à Crítica do Valor, como o grupo da
revista Tiqqun de perspectivas insurrecionalistas, compartilham de uma
mesma perspectiva crítica sobre a Cibernética. Em última instância, como
técnica apurada de dominação, a cibernética tenderia a subjugar a humanidade
até o ponto de sua possível eliminação. Não podemos discordar desse sentido
geral da crítica, compreendemos que as técnicas desenvolvidas pelo Kapital,
ainda que por acaso ou de forma espontânea, tendem a tornar-se
instrumentos de organização social no sentido de impulsionar a valorização do
valor, ao mesmo tempo em que forjam novas formas, cada vez mais eficazes,
de controle dos seres humanos e da natureza. No entanto, não nos parece que o
combate a cibernética se dê apenas com o alarmismo de uma denúncia como
faz Konicz ou, em pior caso, como abstrações distantes da realidade cotidiana
dos trabalhadores como faz a revista Tiqqun. Pensemos, em que medida,
diante dos processos de trabalho e de organização social pressupostos pela
cibernética, poderíamos incentivar as pessoas em geral e os trabalhadores em
particular a promover o “pânico”. Ou em que medida poderíamos pensar que
pessoas que dependem da sua sobrevivência mediada por um aplicativo
algorítmico possam apenas decidir “descansar” e se isentar de participar da
lógica 0 e 1, pressionando o “sistema” com a ideia de ser um “nada-absoluto”
na busca por provocar um curto-circuito e uma desconexão?

Entendemos que essas abstrações são pouco propositivas na busca do


enfrentamento à cibernética e mesmo na vida real podem provocar apenas o
descrédito de quem as propõe . Ao contrário, questionamos se não teria, a
mesma cibernética, nenhum sentido próprio em função do outro polo da luta
de classes. Questionamos se ela não serviria, em nenhuma hipótese, para um
processo de luta de trabalhadores ou numa perspectiva mais ampla, num
sentido de planejamento e organização de uma sociedade que rompesse e
superasse a lógica do Kapital. Historicamente não estivemos sozinhos nesses
questionamentos, houveram companheiros e pesquisadores que já nos inícios
do desenvolvimento cibernético pensaram em que medida essa força produtiva
poderia ser útil no sentido da luta de classes e da busca por novas formas de
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organização social, naquilo que chamaram de “socialismo cibernético”.


Pensamos com eles, um tanto a partir deles, e tanto buscando ir pra além
deles.

§1. Um Socialismo Cibernético, mas qual?

O problema do “cálculo socialista” [15] segue sendo imprescindível para se


pensar a revolução enquanto processo de transformação de modo de produzir
a vida. Anarquistas e comunistas já se debruçaram sobre essa questão de
diversas formas, seja na aposta radical e criativa no futuro baseada nas formas
radicais e criativas do presente, em meio a processos revolucionários que se
desenvolviam, seja no desenvolvimento de estratégias econômicas anteriores
ou posteriores aos levantes revolucionários. O exemplo histórico do modelo
soviético, contudo, permaneceu como a clássica caricatura da economia
socialista: centralização estatal, planificação econômica, manutenção da
sociedade de classes com a burocracia estatal estabelecendo o papel de classe
dominante, etc, etc, etc. O socialismo real, dessa forma, apresenta-se como
um período transitório entre o capitalismo e o capitalismo.

Os argumentos levantados por Mises e complementados por Hayek e suas


críticas ao modelo soviético vão no sentido da identificação da incapacidade do
Estado de lidar com as complexas necessidades da vida social pela sua inépcia
em dar conta de uma quantidade assombrosa de inputs dos sistemas sociais. A
planificação econômica centralizada requer uma estrutura burocrática que,
pela sua rigidez, leva à lentidão de tráfego e perda de informações, bem como a
limites de input e output, que implicam em uma má performance na alocação
de recursos. Nesse caso, os mercados cumpririam melhor a função devido ao
seu caráter descentralizado, facilitando o trato com as complexidades sociais
uma vez que a propagação e processamento de informações se daria através
dos diversos participantes dessa rede escalável, de forma descentralizada. O
próprio campo socialista aceitou essas críticas e tentou responder a essas
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problemáticas oferecendo alternativas tanto aos mercados capitalistas quanto


à centralização estatal, dentre elas podemos citar dois campos que
aprofundaram a questão: o socialismo de mercado e o socialismo cibernético
[16].

O socialismo de mercado remete a um pensamento anterior ao debate em


torno do cálculo econômico socialista, principalmente considerando-se as
vertentes mutualistas e individualistas do anarquismo que priorizam a ideia de
uma economia de mercado e de interações voluntárias não intermediadas pelo
Estado [17]. Mas, é dentro do debate do cálculo econômico que se consolida e
ideia de socialismo de mercado encontrada principalmente no teorema de
Lange-Lerner, e que ainda tem o Estado como agente centralizador, sendo
portanto ainda assim uma modelo de planificação econômica centralizada.
Para alguns, a China seria o exemplo mais moderno de socialismo de mercado,
ao qual outros argumentam que a China “não é nem um modelo estável de
socialismo de mercado nem um sistema capitalista estável” [18].

Se a queda do modelo soviético pareceu dar razão aos liberais, as experiências


neoliberais modernas, contraditoriamente, refutaram o argumento crítico à
planificação. Corporações como o Walmart e a Amazon mostraram que o
planejamento é o fator chave da alocação ótima de recursos [19], e que com as
tecnologias modernas suas cadeias de suprimentos conseguem funcionar de
forma rápida e transparente, com compartilhamento de informações entre
todas as etapas [20]. Nesse sentido, expandir o funcionamento a nível
internacional (a tal da escalabilidade) se torna tarefa relativamente simples.
Jack Ma, fundador do Alibaba já sugeriu que o planejamento econômico
moderno fundado nas tecnologias de informação pudesse desbancar a “mão
invisível do mercado” [21], já Binbin Wang e Xiaoyan Li traçam a “construção
preliminar de um sistema econômico de mercado orientado ao planejamento
na era da informação” [22], argumentando que o planejamento pode servir
como um potencializador, elevando o nível de uma economia de mercado. Se
por um lado o “retorno” do planejamento é visto por alguns atores como uma

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possibilidade de um revival soviético, para outros é visto como um novo


estágio do Kapital que agora pode performar melhor na alocação de recursos
através da utilização de novas tecnologias, como a Big Data, o Machine
Learning, etc.

Para além dos mercados, logo após Segunda Guerra Mundial, surgiu a
perspectiva de um socialismo cibernético. Esse pensamento se apoia em
alguns exemplos históricos como o projeto cibernético de Victor Glushkov na
União Soviética (que não chegou à implementação) e o projeto Cybersyn de
Stafford Beer no Chile durante o governo de Salvador Allende, nos anos 1970.
Tais experiências são retomadas, como por exemplo por Paul Cockshott e Allin
Cottrell no livro Towards a New Socialism, de 1993, que centra-se no debate
em torno do cálculo econômico socialista para defender o uso de
computadores para a criação de uma economia socialista planificada
complexa. Em O problema de escala do anarquismo e o caso do comunismo
cibernético [23] , Aurora Apolito apresenta os desafios do anarquismo para
generalizar suas experiências de nível micro, elevando-as a um nível macro.
Na sequência, a autora descreve as experiências do que ela chamou de

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comunismo cibernético. O núcleo dessas experiências, então, exporia as


possibilidades de resolução da escalabilidade no anarquismo, e poderia
apontar para formas criativas de organização considerando-se o atual estado
da digitalização do mundo, onde a internet e os smartphones possuem papéis
essenciais na gestão da vida política, econômica e social moderna.

A implementação do socialismo cibernético no entanto, parece permanecer


sob um viés “top-down”, com um importante papel do Estado enquanto
perspectiva transitória, como se o socialismo cibernético nada mais fosse que
uma “espinha dorsal” socialista faltante para a socialdemocracia [24]. O
problema de implementação na verdade é anterior à questão da escalabilidade,
mas também se ulterioriza em relação a ela [25]. Atualmente muito se tem
falando em “socialismo de plataforma”, ou mais especificamente em
“cooperativismo de plataforma”, cuja perspectiva política parece cada vez
mais tentar buscar do Estado políticas de incentivos a plataformas
tecnológicas baseadas no cooperativismo, além da criação de infraestruturas
públicas de regulação e controle do trabalho [26]. Embora essas experiências
possam ser interessantes, não estamos convencidos de sua capacidade de
generalização e de ruptura, podendo ter um efeito adverso do esperado
naquelas abordagens que priorizam o Estado.

§2. Cibernéticas Proletárias?

Muitos anticapitalistas parecem interessados em superar o capitalismo sem,


contudo, inserirem-se nas lutas sociais, mesmo sendo elas as geradoras de
condições para alteração do modo de produção [27]. O desenvolvimento de
tecnologias voltadas a solução dos problemas do trabalho moderno busca
justamente o oposto, o fim dos conflitos – o apaziguamento das relações de
classe. Daí que as lutas sociais não pareçam interessantes por não oferecerem
alternativas de gestão. Temos visto vários teóricos e desenvolvedores
apontarem para este ou aquele lugar como ponto de partida: seja a criação de
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cooperativas virtuais para se opor ao capitalismo de plataforma, sejam novas


“moedas”, etc. sem que estas estejam de fato integradas nos processos de luta
dos trabalhadores – ou nos seus processos mais interessantes e criativos. Em
geral, essa perspectiva “mutualista cibernética” gera um milieu contracultural
ou um mercado alternativo. Por isso, ao invés de oferecermos alternativas de
trabalho, entendemos que se deve apostar nas perspectivas que potencializam
as lutas e resistências frente a ele.

Por acreditarmos nas lutas sociais como condições para a superação do


capitalismo, compreendemos a necessidade de destrinchar essas lutas,
incentivá-las e refletir sobre elas. Acontece que as próprias reflexões feitas
sobre as lutas também são, em grande medida, intermediadas pelas
ferramentas (cada vez mais virtuais) que nos possibilitam analisá-las e
vivenciá-las. As mediações virtuais da composição técnica agem no
desenvolvimento dos processos de luta e formas de organização de classe.
Tudo se forma no que há de material, mesmo que virtual. Isso nos leva a
refletir sobre o quanto nossas opções e nossas atuações são reflexos das
mediações dessas tecnologias no trato com os processos de luta e organização
e o quanto, em certa medida, nos tornamos reféns delas. Desse modo, tão
importante quanto entender as formas de trabalho e as dinâmicas de
resistência é entender o conjunto de ferramentas utilizado. Se a passagem da
composição técnica para a composição política, ou a sua intersecção, é o ponto
crucial no entendimento da composição de classe, o arcabouço tecnológico
disponível e utilizado pelos trabalhadores, principalmente na virada de uma
composição para a outra, nos parece um ponto essencial para investigação e
intervenção.

O que chamaremos de cibernéticas proletárias se diferencia do socialismo


cibernético ou do socialismo de plataforma na medida em que não são
mediadas (ou não são mediadas em maior grau) por uma perspectiva de
futuro, de alternativa ao sistema econômico, mas sim pelo presente e pela
relação dos trabalhadores com formas já definidas, implementadas e

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funcionando em produção. Ou seja, as cibernéticas proletárias se apresentam


mais pelo que são – um terreno fértil a contradições – do que pelo que
pretendem ser. Essas relações contraditórias, por sua vez, geram um duplo
movimento na formação dessas cibernéticas, um de caráter composicionista –
a criação ou adoção de novas ferramentas – e outro de caráter
decomposicionista – a sabotagem e exploração de vulnerabilidades dos
sistemas. Esse duplo movimento é atravessado pela posição em relação ao
Kapital – o caráter composicionista ou decomposicionista podem se expressar
tanto contra como a favor dele. No movimento composicionista, a utilização de
novas ferramentas (seja da forma planejada pelos desenvolvedores, seja como
subversão de seus propósitos iniciais) podem servir para preencher as lacunas
deixadas pelas ferramentas convencionais de trabalho – potencializando a
produtividade – e/ou abrindo margem para organização e conspiração para a
luta social. Por outro lado, por mais que o movimento decomposicionista
pareça estar em oposição direta ao Kapital ao se utilizar da burla e da
sabotagem, essa oposição é também um fator temporal já que se num primeiro
momento a exploração das vulnerabilidades estabelece uma forma de “ganho”
sobre um determinado aplicativo, por exemplo, posteriormente ela é um
indicativo de erro que acaba sendo mapeado e solucionado, aumentando a
robustez e a integridade do sistema.

Entendemos que as organizações proletárias clássicas, há muito já


burocratizadas, foram substituídas (no “chão de fábrica”) por uma
multiplicidade de formas em rede – mais ou menos difusas, mais ou menos
integradas – proporcionada por novos softwares, agora na forma aplicativo.
No entanto, ao invés de afirmarmos a não-organização dos trabalhadores,
acreditamos que devemos dar um passo atrás e nos perguntar quais formas
assumem suas múltiplas organizações hoje e quais são as tecnologias que as
estruturam.

Os trabalhadores hoje em grande medida fazem uso de “tecnologias


complementares” (ferramenta ou conjunto de ferramentas tecnológicas

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utilizadas para facilitar o processo de trabalho que, no entanto, não são


condições para seu exercício) que são ignoradas pelas análises que buscam o
entendimento das dinâmicas do trabalho. Inclusive, por não serem
“tecnologias requisito” (ferramenta ou conjunto de ferramentas tecnológicas
sem os quais torna-se impossível trabalhar), muitos trabalhadores também as
desconhecem. Aplicativos de apoio como os “walkie-talkies” do Zelo, ou de
monitoração coletiva em tempo real, como o Life360 [28] servem como
tecnologias complementares ao processo produtivo, por vezes até
extrapolando-o, servindo de estruturas de apoio, confiança e segurança entre
os trabalhadores. Os próprios grupos de Whatsapp, as páginas e grupos do
Facebook, os canais do Youtube, etc, podem ser enxergados na ótica do
movimento composicionista das cibernéticas proletárias – são hoje parte
fundamental tanto do trabalho quanto dos movimentos de resistência a eles
(alguns mais, outros menos, é claro). Reconhecer isso não significa defender a
perspectiva de “disputa das redes” simplesmente porque não nos parece que
seja possível disputar os GAFAM [29]. No entanto, entender essa “composição
tecnológica” no trabalho é de suma importância para visualizarmos os limites
dos aplicativos convencionais e pensar em novas formas.

Se o trabalho, sob a égide da cibernética, é elevado a um nível superior, burlas


e sabotagens também evoluem e se aceleram. O próprio hacking adquiriu
novos contornos sociais, popularizando-se com o trabalho plataformizado. Se
antes ele era possível apenas para os curiosos e/ou estudiosos das tecnologias
de informação, a emersão das empresas-aplicativo trouxe consigo novos tipos
de hackers – que agora passam a ser também os próprios trabalhadores –
muitos dos quais com acesso limitado, ou nenhum acesso, a computadores
(nas formas desktop ou notebook). A exploração dos bugs e as estratégias de
contorno e burla criam uma relação retroalimentar com a própria dinâmica do
trabalho que incide diretamente na elevação de consciência sobre o
funcionamento dos algoritmos [30] mesmo que parcial.

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E se na burla e exploração de vulnerabilidades, bem como na própria vivência


de uso das plataformas, os trabalhadores informatizados conseguem por vezes
entender os códigos que regem seu trabalho, podemos aqui imaginar a
potência de uma união entre programadores das empresas-aplicativo e
trabalhadores de aplicativo dessas mesmas empresas pela sua capacidade de
enfrentamento à caixa-preta algorítmica. Os trabalhadores de tecnologia têm
possibilidade de elucidar sobre o funcionamento de funções dos aplicativos,
confirmando ou esclarecendo os entendimentos que os trabalhadores de
aplicativo já têm adquiridos pela própria dinâmica do trabalho, mas não sua
confirmação. Arrancar definições precisas sobre o funcionamento de funções
da plataforma é uma necessidade para se ganhar terreno. As próprias lutas dos
entregadores contra os bloqueios indevidos, são um exemplo de subtração da
indefinição imposta pelos algoritmos. Essas indefinições provocam
entendimentos difusos sobre vitórias ou derrotas em uma luta, uma vez que
apresentam-se através das percepções. É normal ouvir alguns trabalhadores
dizerem que depois de uma paralisação tiveram leve melhora nisso ou naquilo
enquanto outros afirmam que nada mudou. Essas vitórias indefinidas são
frutos da aparente indefinição das regras de trabalho proporcionada pela
ocultação dos códigos – aparente porque elas estão lá, só não são acessíveis.
Ao não terem definições precisas sobre as regras de funcionamento dos
aplicativos os trabalhadores ficam reféns ou da percepção ou da palavra das
empresas.

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As cibernéticas proletárias podem ter o potencial de operar com mais


facilidade, diríamos, nesses segmentos de trabalhadores que tem o seu
trabalho cotidiano mediado por um aparelho celular e por um aplicativo (como
o caso dos motoristas de aplicativo ou entregadores de delivery), ou por
computadores (como o caso de programadores, designers, etc) pelo simples
fato de já estarem dentro dessa lógica cibernética. No entanto, existem formas
de atuação por meio da cibernética em segmentos menos “fluídos”, por assim
dizer, como fábricas, galpões de logística e mesmo no comércio, bares e
restaurantes, pois mesmo que esses trabalhadores não atuem diretamente
com app de serviços e que tenham a obrigação de se manterem presos aos seus
postos de trabalho, impedidos de circular pelas instalações de uma fábrica, por
exemplo, sabemos que o contato com o celular sempre é possibilitado de forma
“secreta” quando ele fica aberto num canto escondido da máquina ou quando
um trabalhador vai ao banheiro. Também a popularização do Whatsapp
possibilitou o surgimento de uma infinidade de grupos, com objetivos
distintos, e que permite um contato contínuo – principalmente nos “grupos de
zoeira” – com os colegas de trabalho, formas essas que podem servir como um
elemento proto-organizador [31] de conflitos.

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Saímos, portanto, da abstração de pensar diretamente uma forma de


organização social comunista, para pensarmos as formas de luta dos
trabalhadores nesse tempo histórico. Ainda mais, saímos da ideia de que um
conteúdo revolucionário pode, por si só, ser levado adiante com as formas
tradicionais de organização. Entendemos que uma forma revolucionária deva
ser investida daquele conteúdo e nesse sentido, estruturas burocratizadas e
pró-Kapital como sindicatos e partidos socialdemocratas, movimentos sociais
e cooperativas de trabalhadores, mais ou menos atrelados ao Estado, não
podem mais dar conta de processos de enfrentamento. Quais formas, então,
poderiam fazer parte de infraestruturas que, munidas de um conteúdo
revolucionário tivessem força para se colocar em luta contra o Kapital? Teria a
cibernética condições de sustentar essas formas necessárias?

§3 . Infraestruturas Virtuais de Dissidência

Yun Dong em A Revolta na China: Resistência aos lockdowns [32] , repressão e


precariedade nos dá uma análise da resistência de massas dos movimentos aos
lockdowns na China, indicando a falta de uma “Infraestrutura de Dissidência”,
causada pela ação do Estado chinês de proibir partidos políticos independentes
e esmagar “grupos de direitos humanos, da sociedade civil e dissidentes
individuais destacados”. Decorre daí um rompimento com “a infraestrutura
dos movimentos sociais para convocar, organizar e sustentar uma luta de
massas”. No entanto, aponta a difusão dos protestos no microblog chinês
Weibo (uma das redes sociais mais populares na China) e do Wechat (espécie
de Whatsapp chinês), além de mais conhecidas, para nós, como o Telegram. A
pergunta que nos fazemos é: em que medida essa infraestrutura cibernética já
não seria uma infraestrutura de dissidência – precária, virtual, fora dos nossos
controles, etc, mas ainda assim uma infraestrutura de potencialização das
lutas – não pelas próprias redes, mas pelo uso subvertido delas na perspectiva
de luta social pelos manifestantes?

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Em En immersion numérique avec les gilets jaunes [33] , Roman Bornstein


realiza uma investigação cibernética do movimento dos Coletes Amarelos, na
França, dissecando não só as implicações dos algoritmos do Facebook [34]
como também uma análise das contas na rede social dos membros mais
proeminentes do movimento. Nesse caso, o autor busca identificar as formas e
tendências mais potencializadas pela rede – parece que o foco de análise a
partir da identificação de um populismo digital nos Coletes Amarelos é o que
orienta a visão do autor sobre o movimento – e é a partir daí que o movimento
nos é apresentado. Nos parece que essa investigação também parte da
identificação de uma infraestrutura digital do movimento, mesmo que crítico a
ele (como – ao que parece – ao movimento como um todo).

Somos confrontados com uma contradição: ao mesmo tempo que essas redes
operam na unidade-em-separação, elas também possibilitam a união das
insatisfações que superam a separação e promovem uma verdadeira união –
uma unidade-no-conflito. Não temos nenhuma esperança no Wechat, no
Facebook, no Whatsapp, etc, mas entendemos que essas ferramentas
cumpriram e ainda cumprem importantes funções na organização das lutas
sociais simplesmente porque elas existem e são populares, de fácil acesso, o
que leva a quase todas as pessoas que conhecemos estarem lá e se expressarem
através delas. No entanto, ao cumprirem suas funções para as lutas, elas
também impõem suas dinâmicas aos movimentos, determinando o alcance, os
tipos de materiais e até mesmo a longevidade das organizações virtuais (não
são raros os casos de movimentos e grupos políticos que têm suas redes
tiradas do ar pelas plataformas), ou seja, em certa medida elas podem
controlar e limitar a extensão do conflito. A dependência que as redes sociais e
os mensageiros instantâneos nos causaram é tanta que a internet mesmo se
mostra limitada – seja por opção, seja por determinação [35] – e o tráfego
virtual hoje em dia concentra-se cada vez mais em uns poucos sites, bem
diferente daquela perspectiva de descentralização e florescimento de mídias
livres na internet até o começo dos anos 2000 que uma vez fez surgir uma

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articulação internacional de mídias independentes conhecidas como


IndyMedia (para os brasileiros, CMI).

As redes sociais não podem ser disputadas. Elas podem ser usadas, sim, para
determinados fins como propaganda e agitação, e já são, mas suas lógicas
impõem limitações às expressões criativas das lutas sociais, levando-as a se
comporem virtualmente sempre de forma tolhida. A criatividade, é claro, não
se aguenta, pula o muro e tenta se impor – sem êxito – fazendo com que as
formas sejam adaptadas aos instrumentos disponíveis – se expressando em
conteúdo radical nas formas capitalistas das redes sociais. Há todavia aqueles
que acreditam que a disputa das redes é papel essencial do combate ao espectro
“fascista” crescente que já pode ser identificado como tendência global. E se a
linguagem da histeria faz sucesso na internet, não é por acaso que o apelo ao
irracional potencializa as ideias e os sujeitos mais execráveis. Mas como seria o
combate ao populismo digital [36] crescente propiciado por uma internet cada
vez mais ilhada, cada vez mais centralizada, cada vez mais personalista? A
resposta para alguns parece ser o próprio problema: a adesão ao populismo
digital. A adesão ao populismo digital vem com o intuito de “inversão dos
polos”. Nas eleições de 2022 essa estratégia ficou mais clara com o chamado
“Janonismo Cultural” [37], o que nada mais era do que a aproximação do PT de
uma estratégia digital populista, que o deputado André Janones conhece e da
qual soube utilizar muito bem no passado, tanto com a greve dos
caminhoneiros (o que garantiu sua eleição), como em relação ao auxílio
emergencial durante a pandemia (o que o tornou uma celebridade durante a
crise sanitária, principalmente entre aqueles que mais dependiam do auxílio,
levando-o inclusive a bater recorde com suas lives no Facebook [38]). Os
populistas digitais de esquerda, se jogam assim na aceleração da cacofonia
informacional das redes sociais para “combater a desinformação”, mas as
suas estratégias digitais se tornam cada vez mais parecidas com as dos que
buscam combater.

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A internet, tal qual a vida, é uma estrutura colossal sustentada por muita
paixão e trabalho não remunerado. Um conhecido meme dos profissionais de
tecnologia da informação é a realidade material das infraestruturas digitais
modernas. Casos como o de zloirock – desenvolvedor do core-js, biblioteca
muito popular do javascript que encontra-se em sites como yahoo, microsoft,
twitter, facebook, tiktok, etc. e que possui números estrondosos como 9
bilhões de downloads via npm e 19 milhões de repositórios do GitHub
dependentes [39] – que começou a pedir doações na internet por mal ter
dinheiro para comprar comida não são raros. Outro caso que explicitou toda a
importância desse trabalho não remunerado foi o de Azer Koçulu, entusiasta
de código-livre, que devido à confrontos legais com um mensageiro
instantâneo que tinha o mesmo nome de sua biblioteca, em conjunto com a
decisão da empresa npm, Inc. de mudar o nome de seu pacote em prol de
interesses comerciais da empresa responsável pelo mensageiro instantâneo, o
levou a apagar todos os seus projetos armazenados no npm [40]. Koçulu
apagou inclusive um código simples de apenas 11 linhas, mas que era
fundamental para tantas outras bibliotecas, sendo o suficiente para quebrar
diversos sistemas e impedir o trabalho de uma quantidade monstruosa de
desenvolvedores (incluindo, ironicamente, os do mensageiro instantâneo Kik).
Em meio ao caos, a empresa que rege o npm decidiu retornar o código de 11
linhas, desfazendo a ação de Koçulu e mostrando que trabalho não-
remunerado não significa liberdade (embora tenha feito isso colocando o
nome da defesa da comunidade e dos valores do open-source [41]). O sonho
socialista do trabalho coletivo e não alienado que certa vez encontrou na
internet e nas comunidades de software livre sua realização agora mostra a
face perversa dos trabalhos precários fundantes dos maiores sistemas digitais
do mundo.

Se a internet possibilitou formas socializantes como as comunidades de


software livre e os torrents, o Kapital respondeu com o crowdsourcing, o
combate à pirataria – e mais tarde com os serviços legais de streaming. No
entanto, mesmo subvertidas, e cumprindo papel contraditório, essas formas
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socializantes ainda hoje sustentam a infraestrutura digital moderna, por isso


nos parece inviável abrir mão delas. Precisamos retomar e repensar suas
perspectivas para que voltem a servir aos interesses coletivos e, a nosso ver,
aos interesses revolucionários. Precisamos estruturar comunidades pulsantes
de desenvolvedores e encontrar formas de envolver os trabalhadores não-
desenvolvedores na elaboração de novas ferramentas e sistemas socializantes.
Precisamos seriamente pensar em formas de alocação e realocação de recursos
radicais[42].

Se as redes sociais e os mensageiros instantâneos cumprem funções de


“infraestruturas virtuais de dissidência”, isso se caracteriza mais pelas suas
popularidades do que suas possibilidades – e é na chave desses últimos que
nos parece importante intervir e investigar. Se as cibernéticas proletárias
podem nos apresentar novas possibilidades organizativas é através do
desenvolvimento delas que podemos pensar em direção a criação de sistemas
de conflitos, de infraestruturas de dissidência. As redes sociais comerciais têm
uma capacidade ótima em generalizar abstrações, e nos parece que repensar as
redes é partir do oposto. É a partir das especificidades da separação que
podemos, aí sim, construir plataformas de integração das experiências de
resistência. Mas de qual forma o desenvolvimento das cibernéticas proletárias
pode potencializar as infraestruturas virtuais de dissidência?

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As respostas já estão aí, tanto em presença quanto em falta. Na forma


aplicativo [43] podemos pensar em lugares mais seguros e ao mesmo tempo
abertos para troca de ideias e propostas de luta/organização; de
armazenamento de informações que se constituísse como uma memória dos
processos de luta, sendo possível relembrar e sistematizar as táticas de
confronto utilizadas ou criadas, bem como as ofensivas do Kapital para acabar
com os conflitos em suas diversas formas como negociações, cooptações e
recuperações, traçando os caminhos que levaram à derrotas e aqueles que
possibilitaram as pequenas ou grande vitórias; “enquetes operárias”
permanentes, no sentido da busca pelos pontos de confluência entre a vida dos
trabalhadores, as dificuldades enfrentadas no cotidiano do trabalho, as
perseguições, punições e assédios de todos os tipos, que pudesse exprimir a
vida dos trabalhadores e principalmente suas insatisfações e frustrações que
podem impulsionar um sentimento de que todos estamos fodidos e que, por
isso, é preciso fazer alguma coisa para mudar; espaços virtuais que sirvam
como proto-organizadores dos conflitos, fomentando as lutas ao mesmo
tempo em que ao tentar reunir e facilitar a identificação de pautas latentes,
podem apontar para uma linha organizada na luta; plataformas de
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(re)alocação de recursos para as lutas, ligando diversos processos e atores pela


unidade no conflito.

Tudo o que dizemos até aqui, e sobretudo esses breves pontos acima, não são
propostas fechadas, muito menos um programa. São uma tentativa de pensar
um processo em permanente construção através de reflexões que fazemos
sobre as lutas que nos envolvemos ou tivemos conhecimento. São apostas.
Apostas em formas criativas e coletivas futuras baseadas em formas criativas e
coletivas do presente, muitas delas já utilizadas fragmentariamente e de forma
intermitente pelos trabalhadores em seus tempos cotidianos e de conflito
contra o Kapital utilizando ferramentas que estão à disposição mesmo não
orientadas a esses fins. São, portanto, apostas que já estão nesse jogo, mas
ainda assim apostas.

Pensar no desenvolvimento de novas Cibernéticas Proletárias (e


consequentemente em Sistemas Virtuais de Dissidência) implica em repensar a
forma como os sistemas são feitos. É preciso repensar as formas de programar,
de compartilhar, e mais importante, de envolver os “usuários finais” nas
próprias etapas de desenvolvimento. Se defendemos até aqui os conflitos
sociais como geradores de relações de novo tipo e a investigação das
cibernéticas proletárias como forma de identificação das formas virtuais
criativas e radicais do presente para o desenvolvimento de sistemas orientados
às lutas sociais, não é para no final sucumbirmos à ditadura dos algoritmos. É
interessante, nesse sentido, pensar no que Aaron Benanav chamou de
“protocolos de planejamento” [44], que para o autor seria uma forma de
coordenação dos trabalhadores “em muitos locais de trabalho diferentes, para
resolver o problema do ‘cálculo socialista’ sem recorrer aos mercados ou
planejamento centralizado” [45]. Se Benanav, contudo, imaginou a
implantação desses protocolos já em um sistema de planejamento econômico
escalável, estamos aqui pensando em como adaptar esses protocolos para
sistemas de conflitos.

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Nesse sentido, a organização da nossa revolta pode, em um momento


posterior, reorganizar a sociedade? A cibernética pode ter um papel nesse
processo? É certo que a superação de qualquer modo de produção necessita de
uma alternativa – que ao longo da história se mostrou desenvolver no próprio
seio do sistema a ser superado. A questão que parece ser pertinente para se
pensar nesse salto é em que medida o desenvolvimento das cibernéticas
proletárias poderiam servir para a criação de “shadow planning systems”
[46], oferecendo condições para a superação do modo de produção capitalista.
Haveria possibilidade aqui de uma guinada a um comunismo cibernético
através do desenvolvimento das cibernéticas proletárias, ao invés de termos
que aguardar a implementação de um novo sistema por uma tecnocracia
vermelha?

Notas:

[1] http://www.obeco-online.org/tomasz_konicz9.htm
[2] Grupo de intelectuais alemães, reunidos em um grupo chamado Initiative
Marxistiche Kritik, que a partir do final dos anos 1980, buscou desenvolver o
que chamaram de “crítica fundamental do valor”, mais tarde conhecida
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apenas por “crítica do valor”. Robert Kurz, autor de livros como o Colapso da
Modernização e Últimos Combates é o autor mais conhecido e proeminente do
grupo que ficou famoso mundialmente ao publicar em 1999 o Manifesto contra
o trabalho. Krisis foi a revista que reuniu esses ativistas durante todos os anos
1990 e início dos anos 2000. Em 2004, depois de uma cisão devido a
divergências teóricas, Kurz e outros autores criaram uma nova associação e
passaram a publicar a revista Exit!.
[3] http://www.obeco-online.org/tomasz_konicz9.htm
[4] Idem.
[5] Esse movimento da unidade-em-separação também foi observado,
digamos, no nível “cultural” pelo movimento Situacionista em especial por
Guy Debord no seu A sociedade do Espetáculo: “A própria separação faz parte
da unidade do mundo, da práxis social global que se cindiu em realidade e
imagem. A prática social, perante a qual se põe o espetáculo autônomo, é
também a totalidade real que contém o espetáculo”.
[6] Para uma crítica da separação no movimento operário ver: A history of
separation. https://endnotes.org.uk/issues/4
[7] TIQQUN foi uma revista francesa autodesignada “órgão consciente do
Partido Imaginário”, foi publicada entre 1999 e 2001. Seus diálogos críticos
com a filosofia política abarcam um amplo espectro, que vai do movimento
okupa a Giorgio Agamben, de Georges Bataille à Autonomia, de Michel
Foucault à Internacional Situacionista. O Comitê Invisível, por sua vez é uma
espécie de pseudônimo de um autor ou de autores anônimos que publicaram
livros e textos de intervenção contra o Kapital, como A Insurreição que vem
(2007) e Aos Nossos Amigos, Crise e Insurreição (2014). A identidade do
Comitê Invisível foi associada aos Nove Tarnac, um grupo de pessoas que
incluía Julien Coupat, que foram presos “sob a alegação de que deveriam ter
participado da sabotagem de linhas elétricas aéreas nas ferrovias nacionais da
França”. O grupo sempre negou a participação na sabotagem e também que
fizesse parte do Comitê Invisível.
[8] https://tiqqunim.blogspot.com/2013/01/cibernetica.html

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[9] Importante salientar que na época da publicação do texto de Tiqqun, as


chamadas “redes sociais” ainda não existiam tal como entendemos elas hoje.
Nesse momento ainda não estávamos sob o paradigma que se convencionou
chamar web2.0. Podemos dizer que a “transição” para a web2.0 começa com o
surgimento das redes sociais. No Brasil, essa transição é perceptível com o
surgimento e popularização do Orkut a partir de 2004.
[10] Para Tiqqun “capitalismo cibernético” é igual a neoliberalismo. O
neoliberalismo se fundamentaria exatamente pela incorporação da cibernética
à lógica do Kapital: “Sob o impulso de Friedrich von Hayek, o paradigma
utilitarista é abandonado em favor de uma teoria dos mecanismos de
coordenação espontânea das escolhas individuais que reconhece que cada
agente tem apenas um conhecimento limitado dos comportamentos dos
outros e do seu próprio. A resposta é sacrificar a autonomia da teoria
econômica, enxertando-a na promessa cibernética de equilíbrio de sistemas. O
discurso híbrido resultante, mais tarde apelidado de “neoliberal”, dota o
mercado com as virtudes da alocação ótima de informações – e não mais
riqueza – na sociedade. Como tal, o mercado é o instrumento de perfeita
coordenação dos atores, graças ao qual a totalidade social encontra um
equilíbrio sustentável. O capitalismo torna-se aqui indiscutível na medida em
que se apresenta como um meio simples, o melhor meio, de produzir a
autorregulação social”. (Tradução nossa).
[11] https://tiqqunim.blogspot.com/2013/01/cibernetica.html.
[12] Idem. (Tradução nossa)
[13] Idem, grifo no original. (Tradução nossa)
[14] Algumas da “táticas” propostas pelo Tiqqun ainda são referenciadas no
imaginário hacker do final dos anos 1990 e começo dos anos 2000, algo como a
tentativa de fugir da Matrix. De certa forma eles dialogam com o pessoal do
Eletronic Disturbance Theater, que promoveu o que eles chamaram de
“Zapatismo Digital” e que usavam de ataques em sites famosos para divulgar o
levante zapatista, poluindo os sites com informações zapatistas ou
simplesmente tirando os sites do ar. Mas essas formas se tornaram mais

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difíceis de realizar e começaram a se mostrar insuficientes no longo prazo. Foi


nesse momento que alguns hackers começam a investir não mais em ficar
derrubando sites ou mudando informações, mas criar verdadeiras redes de
proteção, de privacidade, de enfrentamento aos grandes sistemas. A rede Tor
como garantia do anonimato e da privacidade e o Wikileaks como defensor da
transparência para os poderosos, são dois exemplos desse processo.
[15] O problema do cálculo socialista parte de um debate entre os anos 20 e 30
começado por Mises, e depois apoiado por Hayek, para a crítica do modelo
soviético. Segundo os economistas, a perspectiva soviética de planificação
econômica tinha capacidade inferior a de gestão de informações massivas e,
consequentemente, péssima capacidade de alocação de recursos, devido ao seu
caráter centralizador. Em oposição à centralização estatal da planificação
econômica, os economistas defendiam a descentralização do mercado, que por
sua complexidade estrutural lidaria melhor com a gestão massiva de
informações e atingiria um nível superior na alocação de recursos.
16] Em linhas gerais, para os socialistas de mercado as críticas referentes a
complexidade social e a impossibilidade de um órgão centralizador gerenciar
um número massivo de processos devido aos limites de input eram válidos e a
incorporação dos mercados no cálculo comunista seria uma forma de
apresentar uma boa solução para o problema levantado. Já para os
socialistas/comunistas cibernéticos, o problema apresentado poderia ser
resolvido com os avanços tecnológicos através da criação de sistemas
integrados que teriam capacidade de colher e processar esses inputs tão bem
quanto, ou até melhor que, os mercados.
[17] Não devemos confundir esses socialistas de mercado com os chamados
“anarco-capitalistas”, liberais radicais cujas elaborações são muito mais
focadas na escola austríaca e cuja oposição ao socialismo é notório. Há no
entanto, certa confusão terminológica. Em muitos textos anarquistas usa-se o
termo “libertarianos” para diferenciar-se dos “libertários”, que em essência
seriam socialistas, anarquistas, enquanto os “libertarianos” defenderiam o
livre mercado e poderiam se dividir em “libertarianos de direita” (como os

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anarcocapitalistas) e “libertarianos de esquerda” (como por exemplo os


defensores do agorismo ou do mutualismo – em especial os mutualistas
estadunidenses).
[18] https://hub.hku.hk/bitstream/10722/64825/1/Content.pdf?accept=1
[19] Em People’s Republic of Walmart, Leight Phillips e Michal Rozworski
recuperam o debate em torno do cáculo socialista apresentando a centralidade
da planificação econômica para empresas como Walmart e Amazon, que
conseguem atingir nível ótimo na alocação de recursos com uso das novas
tecnologias como Big Data e Inteligência Artificial, argumentando que a forma
como que essas empresas hoje atuam nessa gestão massiva de informações
poderia servir para uma economia socialista em oposição aos mercados.
[20] Por ironia da racionalidade econômica, a Sears, Roebuck & Company, uma
das competidoras principais da Walmart, foi destruída pela instauração de um
mercado interno através da reestruturação das operações, “dividindo a
companhia em trinta, e depois quarenta diferentes unidades que deveriam
competir uns contra os outros” – Peoples’s Republic of Walmart.
[21] “Over the past 100 years, we have come to believe that the market
economy is the best system, but in my opinion, there will be a significant
change in the next three decades, and the planned economy will become
increasingly big. Why? Because with access to all kinds of data, we may be able
to find the invisible hand of the market”. – Jack Ma (
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7890769/ )
[22] https://www.scienceopen.com/document_file/63ccc019-a2fa-4acd-
8edc-1fb4fcbfcca7/ScienceOpen/worlrevipoliecon.8.2.0138.pdf
[23] https://passapalavra.info/2020/07/133143/
[24] “From this point of view, our attempt to define the principles of a
socialist economic mechanism might be seen as providing the socialist
backbone which is conspicuously lacking in contemporary social democracy:
even those who disagree with our advocacy of a fully planned economy might
find some value in our arguments, insofar as they illuminate the undeveloped
component in the mixed economy’s ‘mix’.” – Towards a new socialism – Paul

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Cockshott, Allin Cottrell


[25] Para escalar um sistema é necessário que tenhamos esse sistema
implementado. No entanto, o processo de implementação sempre deve levar
em consideração a capacidade de manipulação de uma quantidade cada vez
maior de trabalho, isto é, a escalabilidade. Mesmo assim, um sistema já
implementado e escalável pode sofrer mudanças devido aos novos inputs
recebidos (em geral, feedbacks dos outputs gerados) por conta da ampliação de
seu alcance, o que leva à adaptações na implementação e incorporação de
novas funcionalidades.
[26] Entregadores de aplicativo organizados em torno da Aliança Nacional de
Entregadores de Aplicativo (ANEA) estão defendendo atualmente a
implantação de um sistema público a ser administrado pelo Ministério do
Trabalho e Emprego que funcione como um centralizador das informações de
trabalho por aplicativo feito em aplicativos diferentes. Nesse caso seria
possível reunir as informações que são hoje espalhadas pelos diversos
aplicativos e que ficam apenas salvas nas plataformas de trabalho. A
apresentação completa desse sistema, chamado de Plataforma Digital de
Integração Pública de Informações Sociais e do Trabalho, pode ser acessado
aqui: http://abet-trabalho.org.br/o-trabalho-e-gasoso-mas-os-
trabalhadores-sao-de-carne-e-osso-uma-proposta-de-como-
operacionalizar-direitos-deveres-e-obrigacoes-dos-contratos-gerenciados-
via-plataforma-digital-%C2%B9/.
[27] Estamos de acordo com Mauricio Tragtenberg, quando, no prefácio ao
livro Economia do Conflitos Sociais de João Bernardo, na sintetização da obra,
descreve uma economia revolucionária como aquela antagonista a economia
de submissão que caracteriza a sociedade capitalista, baseada na disciplina e
adaptação dos trabalhadores às máquinas e aos organismos administrativas da
fábrica e do Kapital. A economia revolucionária, ao contrário, possibilita a
emergência das pessoas como sujeitos coletivos em processos de luta e é a
partir desses processos de luta que as pessoas podem romper com a disciplina
do Kapital, criando as suas estruturas que possibilitam a continuidade da luta e

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a mesmo a ruptura com essa forma social, buscando a implementação de


relações comunistas entre as pessoas envolvidas no processo. É nesse sentido
que Tragtenberg afirma que comunismo não é algo a atingir, mas decorre da
auto-organização dos trabalhadores.
[28] O Life360 que muitos motoristas de aplicativo utilizam para monitorar
em tempo real os colegas de grupo de whatsapp, evitando áreas de perigo ou
qualquer outra ocorrência danosa, por exemplo, se apresenta como uma “rede
social privada orientada-a-família”, já o Zello se apresenta apenas como um
walkie talkie moderno.
[29] Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft, os gigantes da Web.
[30] Alguns motoristas da uber descobriram que, caso você desligasse a
internet e colocasse o “Destino Definido” voltando a religar em seguida, não
era descontado o uso da função (que naquele momento era de apenas 2 vezes
por dia), de forma que o motorista que seguisse esses passos conseguiria usar
o o Destino Definido de forma ilimitada (https://www.youtube.com/watch?
v=RcmaD3-a1jE). Alguns entregadores descobriram que ao aceitar corridas em
uma ponte que separava duas cidades conseguiam gerar um comportamento
não-esperado no aplicativo, recebendo a mais pelo deslocamento. Já nos EUA,
motoristas da Amazon descobriram que ao deixar seus celulares em árvores
perto de estabelecimentos, eles conseguiam enganar o algoritmo e pegar mais
rotas, mas para isso deveriam deixar celulares nas árvores e usar outros
celulares para trabalho, que deveriam estar sincronizados.
(https://fortune.com/2020/09/01/amazon-drivers-flex-app-phones-in-
trees/). Mesmo enquanto “ganho individual”, o compartilhamento desse
“know how” entre os trabalhadores faz com que a burla adquira um caráter
coletivo.
[31] Entendemos que as cibernéticas podem tem um sentido proto-
organizador das lutas, na medida em que não elegem um conflito por uma
pauta específica e determinada, como por exemplo as campanhas de data base
ou dissídios coletivos que são “lutas” com data marcada “organizadas” pelos
sindicatos, ou mesmo no caso dos aplicativos, lutas reivindicativas por

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aumento de taxas. As cibernéticas podem ser proto-organizadoras na medida


em que a vão reunindo as informações (no caso dos apps – perseguições,
bloqueios, baixas taxas, esculacho dos clientes), que podem desembocar numa
luta, então está informação está “organizando” previamente, ainda que não
deliberadamente, a luta que vai ocorrer ali na frente. A partir disso a
cibernética pode se tornar um organizador durante uma luta e mesmo, talvez
mais importante, depois da luta, como continuidade do processo. Mas,
enfatizamos aqui que, antes dos conflitos ela tem o potencial de exercer esse
papel de deixar as coisas sempre num estágio latente, com o sentido de que a
qualquer momento algo pode acontecer.
[32] https://passapalavra.info/2023/03/147957/
[33] https://www.jean-jaures.org/publication/en-immersion-numerique-
avec-les-gilets-jaunes/ – chegamos a esse texto através de um outro –
https://passapalavra.info/2018/12/124695/ – e consideramos importante
creditar a referência direta desse texto por identificarmos ali nos comentários
muito do que havíamos desenvolvido até então. Os comentários do João
Bernardo dialogam inteiramente com o que buscamos fazer nesse texto, e seu
exemplo sobre o contato do trabalhador da Uber que se organiza virtualmente
com seus camaradas – através de formas como o monitoramento em tempo
real – dialogam diretamente com as experiências que tivemos contato e nos
inspiraram a escrever esse texto.
[34] O autor conclui que os algoritmos de classificação de conteúdo do
Facebook, bem como os de sugestão, potencializam as perspectivas populistas,
as notícias falsas e alarmantes, etc. Bornstein analisa também as mudanças
nos algoritmos da plataforma, como em 2018, onde o Facebook tenta deixar os
usuários menos expostos às páginas e mais aos seus contatos e suas
interações, o que o autor identifica como uma reorientação positiva na
diminuição da audiência nas páginas de desinformação. Por outro lado,
Bornstein identifica efeitos negativos, como a queda média de 31% das
audiências nas cinco mídias tradicionais francesas mais seguidas, em
contrapartida com um aumento nas bolhas de interesse, no compartilhamento

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de conteúdos publicados por amigos, seus grupos, etc. Essa mudança, segundo
o autor, garantiu sucesso aos Coletes Amarelos uma vez que ao entrar em dois
ou três grupos do movimento “80% do feed de notícias do usuário passa a ser
composto por publicações desse grupo”, além de colocar os dois membros
mais proeminentes do movimento em contato através da identificação de
interesses comuns e proximidade espacial. Os problemas relativos a toda essa
capacidade de manipulação involuntária mediada por algoritmos são claros e
já se provaram em outros momentos. O Facebook poderia facilmente cruzar e
vender esses dados para qualquer ator político que queira atingir os
participantes desse movimento, como fez a Cambridge Analytica na campanha
de Donald Trump e no Brexit.
[35] O caso dos angolanos com acesso limitado à internet e que usam o
facebook para buscar coisas, ao invés do google devido aos limites de banda
(https://caixadeferramentas.org/por-que-os-angolanos-estao-nos-grupos-
brasileiros-de-facebook/) e que é também uma realidade no Brasil entre os
mais pobres, que aderem a planos de internet limitada a alguns aplicativo
(como Whatsapp e Facebook) via operadora, prática essa conhecida como Zero
Rating.
[36] Segundo Leticia Cesariano, populismo digital “refere-se tanto a um
aparato (digital) quanto a um mecanismo (de mobilização) e uma tática
(política) de construção de hegemonia.” –
https://www.academia.edu/38061666/Populismo_digital_roteiro_inicial_pa
ra_um_conceito_a_partir_de_um_estudo_de_caso_da_campanha_eleito
ral_de_2018_manuscrito_
[37] O “Janonismo Cultural” ganhou esse nome nas eleições de 2022, quando o
deputado federal André Janones começou a “usar as armas dos bolsonaristas
contra eles mesmos”. Há aqui alguns questionamentos sobre seus métodos,
seguidos de sua defesa https://www.youtube.com/watch?v=wXzI9oLEB68 e
aqui podemos ver o deputado utilizando algo como um semiótica vulgar para
espalhar o que parece ser mais uma fake (observação no “fontes não
OFICIAIS”, por exemplo)

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https://twitter.com/AndreJanonesAdv/status/1643704641442525189
[38] https://exame.com/brasil/deputado-bate-recorde-de-marilia-
mendonca-em-live-sobre-auxilio-de-r-600/
[39] https://github.com/zloirock/core-js/blob/master/docs/2023-02-14-so-
whats-next.md
[40]
https://web.archive.org/web/20160330050734/https://medium.com/@azerbik
e/i-ve-just-liberated-my-modules-9045c06be67c
[41] Para os defensores do Software Livre na realidade a própria ideia do Open-
Source (Código Aberto) já é um desvio das ideias de defesa da liberdade dos
usuários, priorizando as vantagens práticas e se aliando aos que cada vez mais
cerceiam a liberdade na internet. Conferir aqui
https://www.gnu.org/philosophy/open-source-misses-the-point.html e aqui
https://www.anahuac.eu/2019/02/05/libre-software/
[42] Por exemplo: Enquanto algum jovem militante da organização mais
revolucionária do último minuto diagrama muito bem um panfleto com o
intuito de “dialogar com a classe trabalhadora”, conseguindo atingir um
número impressionante de treze pessoas, do outro lado da cidade uma
organização de trabalhadores sem conhecimento em design necessita de uma
arte para próxima manifestação. Uma simples plataforma de
compartilhamento de recursos poderia suprir tanto a necessidade do jovem
ultra revolucionário de estar conectado com a classe trabalhadores e fomentar
“a luta revolucionária” quanto a necessidade daquele grupo de trabalhadores
que planejam se manifestar pelo aumento do VR – e quem sabe essa união
momentânea não possa se desenvolver em algo mais interessante no futuro?
[43] É claro que não é apenas no desenvolvimento dos aplicativos, por assim
dizer, que devemos focar nossas energias. Repensar as formas da
infraestrutura de redes desses sistemas é uma questão essencial para tomar de
volta a liberdade nas redes – principalmente resgatar aquele potencial
subversivo e descentralizado que uma vez dominou a internet. Nesse sentido,
experimentar novas infraestruturas de rede, levantar servidores ativistas na

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construção do nosso terreno é essencial, e deve partir não apenas através dos
softwares, mas também dos hardwares. Para aprofundar mais as questões,
sugerimos a série “Construir o nosso terreno”
(https://passapalavra.info/2021/04/137355/) que levanta outras questões que
não tratamos nesse texto mas que julgamos ser igualmente interessantes e
necessárias.
[44] https://logicmag.io/commons/how-to-make-a-pencil/
[45] https://digilabour.com.br/automacao-e-futuro-do-trabalho-entrevista-
com-aaron-benanav/
[46] “The process of actually transforming the economy to a fully socialist
economy cannot be done too rapidly, because you need to first put in place an
alternative planning system. You have to set up a shadow planning system
first.” https://transversal.at/transversal/0805/cockshott/en – aqui há uma
referência aos ‘shadow systems’ (Shadow IT ou TI Invisível), que são sistemas
ou aplicações paralelas em uso e que não se encontram sob jurisdição de uma
departamento de TI em uma empresa, ficando em geral a cargo dos
trabalhadores. São muitas das vezes, de certa maneira, formas de contestação
– via produtividade – da gestão principal de TI de uma empresa pelo conforto
e praticidade dos trabalhadores. Por “shadow planning system” o que Paul
Cockshott quer dizer é que necessita-se a criação de um sistema de
planejamento paralelo, clandestino, uma dualidade de poder a nível
econômico.

As artes que ilustram o texto são da autoria de Clarence Holbrook Carter


(1904-2000).

https://passapalavra.info/2023/04/148276/ 38/38

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