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M
uitos argumentam que a fic-
ção científica começou com
Frankenstein em 1818. Sem
dúvida, o tema fundamental que seria calço, seja Isaac Asimov com suas leis da
explorado por autores posteriores teve robótica, AM de “Eu não tenho boca e
início no clássico de Mary Shelley: o re- preciso gritar”, os replicantes de Blade
lacionamento do homem com sua cria- Runner, a skynet de Exterminador do Fu-
ção. O monstro do livro não é um mero turo ou a Matrix dos irmãos Wachowski,
zumbi, ele é culto e gentil, com uma dentre inumeráveis exemplos. Contudo,
natureza que tende a empatia. Em mui- por que se limitar a ficção? O doutor
tos aspectos, ele é melhor que seu cria- Guillotin encontrando seu fim na má-
dor. Todavia, sua incapacidade de ser quina de sua criação, Santos Dummont
aceito na sociedade humana e a solidão cometeu suicídio ao ver aviões bombar-
decorrente levam o monstro a ao res- deando São Paulo; Oppenheimer recitou
sentimento e a inveja. Ele é o produto o Bhagavad-Gita – “Agora eu me torno
falho de um homem falho, abandonado morte, a destruidora de mundo” – en-
logo após o nascimento e negado pelo quanto contemplava a destruição trazi-
mundo. Victor Frankenstein, por outro da por sua criação. A história da huma-
lado, é forçado a confrontar a abomi- nidade, desde a invenção da agricultura,
nação oriunda de seus esforços, enxer- mas especialmente após a revolução
gar que suas ambições de criar vida pro- industrial, tem sido uma de confrontar
duziram algo que não é nem humano e suas tecnologias, de lidar com o impacto
nem inumano. Frankenstein é um falso de tentar manipular a realidade, de ma-
deus que criou uma falsa vida. As con- nusear uma fração de poderes divinos.
tradições entre criador e criatura levam Desses poderes, a habilidade de emu-
ambos a um conflito que os destrói. lar a essência vital se destaca como uma
Mary Shelley criou a história funda- manifestação altamente instável. É o re-
mental sobre os dilemas do ser humano flexo da nossa própria existência, e, por
com a tecnologia. Os demais escritores consequência, de nossas limitações. O
de ficção científica seguiriam em seu en- medo da IA está presente na cultura há
Imagem retirada do site Big Bizang referente à matéria “Matrix e o Código da Realidade” (2019)
vos mercados com mais eficiência que utilização da IA. As incontáveis horas
qualquer ser humano, identificando van- perdidas pelas limitações humanas serão
tagens e flutuações com velocidade e substituídas por máquinas capazes de
precisão incomparáveis. Recentemente, identificar, categorizar e analisar os mi-
experimentos foram feitos para desen- lhões de documentos das demandas pú-
volver programas capazes de criar anún- blicas. Esses robôs poderão acelerar todo
cios automaticamente, utilizando-se de tipo de processo burocrático e jurídico
um banco de dados de anúncios prévios. por alguns instantes, produzindo relató-
Os resultados ainda são muito distantes rios imparciais e eficientes para os ges-
de utilização comercial, mas não é difícil tores públicos e advogados desempenha-
imaginar um futuro próximo onde cam- rem suas funções. Existe a possibilidade,
panhas de marketing serão completa- distopia para uns, utópica para outros, da
mente desenvolvidas por IA. Em menor própria IA assumir o controle da gestão
escala, programas já são aplicados para pública. Elas certamente seriam as gesto-
desenvolver arte e texto para logotipos ras mais eficientes, técnicas e neutras pos-
e comerciais. Na macroeconomia, gover- síveis, mas muito do aspecto ideológico
nos podem se utilizar da IA para avaliar da administração pública seria perdido.
a miríade de dados coletados sobre suas Na guerra e na segurança pública, es-
populações, relações comerciais e de- paços onde questões de sobrevivência
sempenhos econômicos para desenvol- tomam precedência sobre dilemas éticos,
ver métodos precisos de administração. a IA já é aplicada com mais sucesso que
Nesse mesmo aspecto, a temível bu- em qualquer outra área humana. A Guer-
rocracia estatal pode desaparecer pela ra na Ucrânia é um campo de testes da
Todos esses sonhos, porém, estão limi- técnico, foram submetidos pelos segun-
tados pela capacidade de perpetuar nos- dos, que o aceitaram. Essa é a grande ar-
sas crenças diante dos desafios impostos gumentação a favor de incorporar a IA a
pelo avanço tecnológico. Não digo dos nossa sociedade, pois estaremos em des-
riscos intrínsecos a IA, mas de sua uti- vantagem diante de todos que o fizeram.
lização por grupos menos escrupulosos. A vinda de todos esses dilemas é ine-
Todas as vantagens aqui descritas podem vitável. Eles são intrínsecos à existência
ser adaptadas para fortalecer regimes ti- competitiva da raça humana. Aqueles
rânicos e distópicos, que não terão tantas que negam o avanço da tecnologia são
considerações éticas sobre o uso de uma submetidos aos que o aceitam. Simples-
tecnologia que pode fortalecer sua socie- mente temer esse progresso é abrir um
dade na competição darwiniana entre os espaço vulnerável onde avaliações éticas
povos. Utilizando do poderio cultural, da nossa sociedade não se adaptarão a
econômico e militar fornecido pela IA, IA, negando todos os benefícios trazidos
essas nações e ideologias podem impor por ela. O progresso técnico é inevitável,
suas vontades sobre os grupos que nega- e o único caminho viável é o da adapta-
ram o avanço tecnológico. Aqui jaz a dua- ção. Ainda que haja riscos a serem balan-
lidade demonstrada pelos chineses e japo- ceados – como a inteligibilidade indefi-
neses: os primeiros, por rejeitar o avanço nida da artificialidade computadorizada.