Visões perigosas: uma arque-genealogia do cyberpunk –
comunicação e cibercultura. Porto Alegre: Sulina, 2006.
Parte I – investigando os antecedentes do cyberpunk
Introdução: Cyberpunk, 20 anos depois, a morte é apenas um upgrade. “A fusão
homem-máquina, o implante de memórias, a ideia de superação da carne pela mente, a dissolução entre real e simulação, o visual obscuro dos figurinos (a dupla couro + óculos escuros), a metrópole soturna e o estilo technoir, continuam a permear o imaginário pop” (p.13). O apelo cinematográfico se dá também pela carga imagética gerada pela proposta original dos cyberpunks, em que a tecnologia aparece como um elemento trivial na vida cotidiana e que a comunicação humana se dá através das máquinas. Mas, com “o fim do ciberespaço como nós conhecemos na década de 90”, começamos a discutir e revisar conceitos e teorias relativos aos usos da tecnologia. (p.14) Quais seriam os elementos que deram sustento e constituíram o cyberpunk enquanto um movimento ou um modo de ser da cibercultura? Uma primeira hipótese é a respeito da influência do romantismo gótico em toda a constituição da ficção científica, e por conseguinte, do cyberpunk, e a influência do autor Philip K. Dick (technoir), aliados a uma determinada estética. Além disso, o cyberpunk também possui raízes profundas na subcultura hacker, e nos movimentos punks (dos anos 1970) de modo geral, o que o trabalho aqui também busca dar ênfase. Finalmente, outro ponto importante para compreender o cyberpunk, de acordo com Amaral, é entender o embate, feito dentro da própria subcultura, dos elementos underground versus os elementos mainstream (p.17, 18, 19). Amaral apresenta uma leitura arque-genealógica do cyberpunk partindo de duas vertentes: “1) como subgênero literário da ficção científica; 2) como uma visão do mundo contemporâneo, através do seu impacto cultural que engloba, além da literatura, uma subcultura de ordem da rebeldia juvenil” (p.23-24). “O cyberpunk é apresentado enquanto um dos elementos definidores da cibercultura não só em termos artísticos [...], como de uma postura em relação ao mundo, seja esta a atitude encontrada na ética e no comportamento dos hacker e, consequentemente, na criação de ONG’s como a EFF (Eletronic Foundation Frontiers) que pregam o livre-fluxo da informação e defendem os direitos do ciberespaço” (p.24).
Os estudos sobre cyberpunk no campo da comunicação e da cibercultura: Há
poucas bibliografias discutindo o cyberpunk enquanto gênero literário/cinematográfico e enquanto manifestações e formas sociais das subculturas (p.25). Segundo a autora, há também uma lacuna em relação aos estudos brasileiros sobre a especificidade da ficção científica, de modo geral. Amaral também aponta para a possibilidade de se enxergar o campo da comunicação a partir do conceito de cyberpunk, “como uma categoria cultural que permeia e é permeada pelo pensamento tecnológico e cuja visão mescla elementos sintéticos e analógicos, máquinas e homens, talvez indicando uma dissolução de categorias como sujeito, objeto, individualidade, comunidade, etc” (p. 27). As tecnologias seriam então, elas próprias, um potencial distributivo das ideias acerca da cibercultura, nos filmes, comerciais, websites, programas de TV, jornais, bate-papos da internet, etc. O campo da comunicação estabeleceria então mediações entre os efeitos dos computadores na sociedade, sem ignorar o impacto da própria sociedade na computação (p.28). Em relação ao imaginário da tecnologia, a autora afirma que há aqueles autores pessimistas (fáusticos) ou otimistas (prometeicos), que compartilham a visão da técnica como um poder autônomo. Essa dicotomia aparece em termos de tecnicismo ou humanismo, característica da própria época que se propõem a dar conta (p.29-30). Para a autora, o pensamento acerca da técnica se deu em variadas épocas, mas se manifestou de forma mais abundante somente no século XX, a partir de imagens que fundamentaram um imaginário que acompanhou as transformações dessa sociedade. Entretanto, a questão estaria na essência do ser humano, desde épocas mais remotas. A cibercultura pode ser caracterizada pelo excesso de imagens e informações, assim como a visão de mundo do cyberpunk em suas representações artísticas, no que a autora chama de “hiperestetização”, baseada na noção de hiper-real proposta por Baudrillard, em que imagens repetidas infinitamente se tornam hiper-reais e nos contagia com uma indiferença “quase viral” (p.31-32). Tudo isso estaria ligado à possível desintegração do sujeito na modernidade, assim como a questão da noção do pensamento de rede, que são pertinentes aos domínios da cibercultura, até mesmo em um elemento muito importante para o cyberpunk: a questão do não-humano. As figuras do androide, do ciborgue e do robô são recorrentes no cyberpunk. Segundo Gunkel (2001), o conceito de ciborgue destruiria a noção de subjetividade humana, porque o ciborgue extrapola e excede o conceito de humano que temos na tradição humanista, que possui uma história ideológica definida. O ciborgue destruiria o conceito de humano, e as ficções cyberpunk constantemente apresentam um desdém em relação ao físico, e uma fascinação com as formas pelas quais a carne é irrelevante comparada com a memória. Para Bukatman (1993), alguns filmes estadunidenses como Tron, Exterminador do Futuro 2 mostram essa preocupação invasiva a respeito da dissolução de fronteiras e do desafio eletrônico para a definição do sujeito. No entanto, autores como Haraway, Baudrillard, Kroker, expressam a crise pós-moderna de um corpo que permanece central nas operações do capitalismo avançado, enquanto se torna inteiramente supérfluo como objeto (p.35). *Nos EUA há um medo muito grande da dissolução do sujeito justamente porque a sociedade é pautada por uma noção muito individualista da constituição humana*. Algo que acontece corriqueiramente nas ficções cyberpunk é a falta de interesse pela reprodução biológica, assim como os ataques ou agressões ao corpo (hacking, implantes, etc.) (p.36). Nesse sentido, a FC, de maneira geral, apresenta uma profunda reorganização da sociedade e da cultura contemporânea, narrando o novo sujeito que possui uma identidade terminal (p.36). “A FC ganha cada vez mais importância no momento cultural presente por ser este um momento que vê a si próprio como ficção-científica, ou, nos termos de Baudrillard, de um tempo hiper- real. Esse presenteísmo encontra-se no centro de uma cultura em transformação” (p. 37). Portanto, o cyberpunk seria uma “fusão de um subgênero da literatura de ficção científica e das teorias da cibercultura, como uma apresentação material do imaginário tecnológico” (p.44).
A constituição da FC e a influência do romantismo gótico: vários autores que
pesquisam a FC afirmam que este é um “gênero literário definidor do caráter técnico da sociedade contemporânea, sendo herdeiro de uma tradição literária que vem do romantismo dos séculos XVIII e XIX, sobretudo dos contos góticos e de horror. Mas em que sentido e através de quais características poderíamos observar essa herança gótica na FC? E de que maneira o cyberpunk, subgênero surgido na década de 80 do século XX, poderia ainda apresentar rastros e evidências dessas características, assim como as suas rupturas, diferenças e discrepâncias?” (p.46). Uma primeira observação a ser feita é que a FC possuiu um caráter primariamente popular, comercial, ligado aos jovens e fãs mais aficionados. Foi somente na década de 1970 que a FC começou a se delinear no meio acadêmico. Por isso, uma de suas características principais é a transição que o gênero faz entre o mainstream e o underground, e entre histórias populares e histórias cult. O gênero foi primeiramente popularizado por Hugo Gernsback, em 1929, quando conceituou a FC como “extrapolação científica” ou “obra que contém elementos especulativos” (p.47). Mas, se “pensarmos nesse tipo de relação (arque-genealógica) entre gêneros e extrapolarmos a questão literária, chegaremos à concepção de FC como uma esfera de discurso” (p 49). Como discurso, a FC está presente em variadas mídias, como jogos de computador, arte, moda, música, comunidades na internet, etc. A principal unidade do romantismo, segundo Lowy e Sayre (1995) é seu caráter filosófico e político contraditório e dicotômico. Para os autores, o romantismo é uma visão de mundo, ou “uma estrutura mental coletiva que fica mais ou menos presente em determinados períodos históricos e movimentos artísticos” (p. 52). A herança do romantismo na FC se manifesta na ideia de utopia, de nostalgia (retornar aos valores perdidos), de estetização do presente (rejeição à euforia em relação à modernidade), e de maquinização do mundo (relações puramente utilitárias entre seres humanos). Nesse sentido, os românticos estão obcecados com o terror de uma mecanização do ser humano. A FC surge anti-romântica, incorporando novos intelectuais como cientistas e técnicos nas suas histórias, e celebrando o advento das novas tecnologias e da ciência natural, projetando “tecno-utopias”. Mas, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, instala-se a dúvida e o cetismo de uma visão decadentista e de crise, que descambam para as histórias sobre distopias, influenciadas pela visão de mundo romântica (p.52). “As viagens espaciais e batalhas intergalácticas com monstros de outros mundos dão lugar às perguntas pela identidade, pela memória, e constituição do ser humano, pela dissolução do real, entre outros” (p.53). Esse mundo é também o das vanguardas modernistas (como simbolismo, expressionismo e surrealismo), herdeiros da tradição romântica de recusa da realidade banal e da tecnicização e hiperindustrialização. O sublime1 tecnológico e o neogrotesco2 seriam os modos estéticos da cibercultura. “Roberts (2000) afirma que o ar sombrio, o estranhamento, o sobrenatural e o etéreo são constituintes da literatura gótica do final do século XIX” (p.60). Tanto a ficção gótica contemporânea, quanto a FC seriam literaturas da angústia. Já em relação à proeminência da cidade obscura no cyberpunk, a autora afirma que a cidade representa o fracasso da razão, em que os resquícios da destruição ambiental aparecem visceralmente. “Se analisarmos a cidade como elemento integrante da vida como pensavam os decadentistas, veremos que a metrópole e o desenvolvimento tecnológico caminham lado a lado” (p.65).
Divisões da FC por períodos: O período clássico/proto-scifi (1818-1938); Era
Gernsback (1926-1938); Época Dourada/hard-scifi (1938-1950); New Wave/soft-scifi (1960-1970); Cyberpunk (1980-1990); Pós-Cyberpunk (1990-2000). (p.67-83)
Parte II – a estética pop da cibercultura/ o cyberpunk como cultura híbrida
O cyberpunk possui temáticas distópicas dentro da FC, em que há uma versão
drasticamente exagerada da sociedade contemporânea. Outro aspecto a ser considerado é que o cyberpunk é também technoir (noir é auto-reflexivo e investigativo). “Technoir, se não pode ser nada mais, pode ser distinguido pelo seu lhar crítico sobre os efeitos da ciência e tecnologia, e a tecnologia da ciência não é nada mais do que associada com os instrumentos da visão que apreendem o mundo natural e os seus segredos. Novamente, no technoir, particularmente, a visão ajudada tecnologicamente está associada com a má percepção ou com o mal (Rickman, 2004, p. 289)” (p.113).
As estéticas punk e hacker: O cyberpunk enquanto cultura híbrida funcionou como
uma espécie de resistência no jogo de forças entre FC underground e literatura séria (cult/mainstream). “Cyberpunk foi ele mesmo um local de resistência à metanarrativa da FC, uma tentativa de correção para trazer a sua epistemologia positivista e otimista mais contato com a realidade” (Landon, 1987, p. 159) (p. 130). Nesse sentido, o cyberpunk teria como base o niilismo, ou um realismo cínico que escolhe deliberadamente a alienação, como uma resposta significativa ao sistema. “A contestação, a inconformidade e o questionamento às autoridades aparecem no punk como uma maneira de quebrar as barreiras entre arte a vida cotidiana, assim como na tentativa dos autores cyberpunks de furar o constante bloqueio entre o mainstream e o underground literário” (p.132). O punk seria tanto um estilo musical, uma moda, uma atitude, estando indissociavelmente nas esferas da política, da estética e da cultura (subcultura), tendo como mote “o estilo é uma arma”. O punk e o cyberpunk daria ênfase na destruição e desconstrução, às atividades fora da lei, no sentimento anárquico e anti-social, no 1 Conceito formulado por Edmund Burke em 1756, como efeito estético que inspira o terror e a dor, provocando emoções contrapostas à da placidez da beleza. O sublime é o efeito condutor do gótico moderno, “aquilo que desafia a compreensão racional invocando uma mistura de prazer e terror no espectador” (p.57). 2 Aprece na cultura pop estadunidense através dos freakshows, e de suas reelaborações, que pensam a carne, o sangue, a matéria humana em sua não-humanidade. extremismo político, na violência estética baseada em fragmentos de arte do próprio corpo humano. Assim como os alienígenas e os androides da FC, os punks se apresentavam como o “Outro” da sociedade. A outra parte do cyberpunk tem origem nos grupos de hackers que começaram a surgir nos anos 1950, nas universidades como o MIT. A figura do hacker é a de um desajustado social, que possui curiosidade em tentar solucionar problemas técnicos através de processos criativos, ou que atua clandestinamente nas redes para roubar informação. Além disso, a cultura hacker também esteve envolvida com a ideia de compartilhamento de informação de forma livre, em que há uma certa resistência individual em suas ações. Essa ideia deu origem à ética hacker, que prega a descentralização de informação e recusa de centros de autoridade que podem produzir e ter acesso à elas, o espírito antiautoritário implícito na natureza da computação e comunicação, o desprezo pelas burocracias de rotina, e a possibilidade de criação de coisas belas e prazerosas na rede (p.154).
Parte III – visões cinematográficas – a estética fílmica cyberpunk
Cyberpunk no cinema ou cinema cyberpunk? Para a autora, como o cinema apenas
adapta/constrói uma determinada estética inspirada pelas literaturas cyberpunk, e não abordam a questão do ciberespaço sempre (questão fundamental para o subgênero), seria mais interessante falar em cinema com características cyberpunk, ou cyberpunk no cinema (p. 196-197). “Ao finalizer esse último capítulo, percebemos as relações tênue entre o cinema e a cibercultura, a partir da FC em seu hibridismo e vimos que as características e temáticas cyberpunks apenas reaparecem no cinema, mas não forma um corpus cinematográfico que possa considerar um conjunto de “cinema cyberpunk”. Contemplamos através dessa exemplificação da análise fílmica que a estética philipkdickiana foi tornada cyberpunk a partir da incorporação das temáticas do cyberpunk e do seu visual no cinema como vetor dessas transmutações. Os conceitos de cyberpunk convergem e apresentam-se na forma dos planos dos filmes, trazidos para a análise enquanto visualizações do conflito homem-máquina, da influência da cultura pop nas estórias e das noções de ciberespaço trazidas como diferenciais da geração cyberpunk ao longo da trajetória histórica da FC” (p.210).
Conclusões
“A inserção do conceito de cyberpunk enquanto um dos pilares fundadores da estética
da cibercultura a partir da perspectiva de circundá-lo pelo campo da comunicação foi um dos norteadores nessa pesquisa” (p.211). “Seja como forma de resistência (conforme apontado nos primeiros estudos), seja como um capital subcultural interligado pela estética e pelas relações de poder entre os seus participantes. É uma forma de apresentação da alteridade enquanto uma característica desse grupo. Entre punks, alienígenas, AI’s e androides observamos a constituição do outro. Um lembrete de que o humano é uma categoria em constante devir” (p. 212). “O cyberpunk aparece então na forma de uma estrutura estética que perpassa diversas tendências e gêneros dentro e fora da FC. O cyberpunk é então uma Weltanschauung, uma espécie de modo de ser na cibercultura” (p. 217).