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RELIGIÃO
Introdução
A revolução digital empreendida desde a década de 1980 alterou tanto
o paradigma científico quanto as possibilidades de relações, instaurando
outra linguagem, outra relação com o tempo e o espaço, e, visto a virtuali-
dade que a vida assume, também com o espaço religioso. Nesse contexto,
observamos um paradoxo: ao mesmo tempo que o ciberespaço facilita
o acesso dos indivíduos ao conteúdo religioso, o relativiza, o confronta
e lhe oferece outras opções. Cabe, então, à instituição religiosa e aos
estudiosos da religião repensarem o espaço religioso, ressignificando
o discurso religioso contextualmente à época e, não menos desafiante,
pensando em estratégias de acesso às mais distintas subjetividades.
Neste capítulo, você entenderá como se dá a presença do sagrado nas
redes sociais e de que modo se transpõe semioticamente nesse espaço.
Ainda, verá como o ciberespaço pode ser afirmativo no que compete à
evangelização. E, por fim, compreenderá as análises sobre o comporta-
mento dos membros nas redes, como isso se associa às instituições e qual
o papel do mercado religioso e simbólico no mercado virtual.
2 Espiritualidade e religião no ciberespaço
rede. Nesse aspecto, conforme Felinto (2004), a tecnologia também pode ser
concebida como a gnose: uma religião excludente e a qual poucos têm acesso,
como observado em diversas situações sociais, por exemplo, pelo custo da
máquina e dos recursos para custear esse acesso.
Conclui-se, portanto, que a tecnologia não pode ser considerada apenas
um objeto material produzido e controlado pelos indivíduos. Tendo em conta
as projeções temporais a que Simondon (1969) teve acesso e às atualizações
tecnológicas desde esse momento, podemos dizer que a cibercultura opera
sobre o sujeito, de modo que ao mesmo tempo que produzimos conteúdo,
somos capturados por outros conteúdos presentes nas redes. Contudo, não se
trata de uma necessidade da rede de investigar os perfis e obter informações,
visto que esse conteúdo é dado pelo próprio usuário. Essa rede, chamada aqui
de cibercultura, cria um ciberespaço de transmissão contínua, e as noções de
sagrado, por meio de uma transcendência, são estabelecidas também pelas
relações tecnológicas.
[...] prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas
estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar
às próprias seguranças [...] enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus
repete-nos sem cessar: “Dai-lhes vós mesmos de comer” [...] (FRANCISCO,
2013, p. 49).
8 Espiritualidade e religião no ciberespaço
Nesse contexto, muitas das posições assumidas pelo Papa se dão em detri-
mento da visão da igreja tradicional observada ao longo da História, de que a
instituição está no topo, enquanto os fiéis estão sempre abaixo, uma imagem
ainda de fácil acesso em grande parte das arquiteturas eclesiásticas. Com
isso, o Santo Padre coloca a Igreja a serviço do povo, e, como o corpo, estar
a serviço de Cristo. De acordo com essa concepção (FRANCISCO, 2013),
podemos compreender o ciberespaço como um local também de realização da
comunhão. Outro aspecto importante diz respeito à topologia atual da rede:
a igreja precisa se reinventar para se conectar com as pessoas porque o enxame
digital se tornou um lugar de concentração dos debates atuais. Nesse sentido,
a pluralidade encontrada na rede deve ser ressignificada: a comunhão é a
Igreja, que, por sua vez, deve ser compreendida à imagem da Trindade, logo
se devendo transformar a liquidez digital em uma consciência comunitária pela
comunhão. Nesse documento papal, assinala-se essa função das redes, ou seja,
expressa-se a necessidade de instrumentalização das redes para fazer chegar
às pessoas a palavra de Deus, demonstrando, a partir do olhar iterado pelo
Papa Francisco, uma nova saída missionária: “[...] as estradas digitais são um
campo essencial na nova ‘saída’ missionária [...]” (FRANCISCO, 2013, p. 20).
Assumindo essa nova realidade virtual, um dos maiores desafios atuais
consiste em lidar com a diferença entre as gerações e a constante atualiza-
ção tecnológica. Moreira (2015) atribui a desigualdade etária justamente ao
desenvolvimento científico e tecnológico. Atualmente, podemos observar
que cinco gerações coexistem no mesmo contexto tecnológico, que também
demanda tipos de diferentes de comunicação:
3 Religiosidade na virtualidade:
tradições institucionais, mercado religioso
e concorrência simbólica
A relação entre humano e religião sempre foi pensada teologicamente de
acordo com o contexto, isto é, desde o surgimento da religião cristã, uma
grande preocupação da instituição católicas consistia em conseguir comunicar
a palavra de Deus às pessoas. Para tanto, fez-se necessário estabelecer uma
linguagem própria também à realidade de cada época, o que não é diferente
na atualidade. Após a chamada revolução digital, o mundo que se estabelece a
cada dia é totalmente novo, o que nos leva a duas perspectivas do ponto de vista
religioso e histórico: a consciência de que a história é aberta e a necessidade
da religião de se colocar mais uma vez na história com todos os desafios que
a permeiam. Para isso, também é preciso ressaltar que, no que compete ao
aspecto cultural, a alteração do paradigma é constante, sem possibilitar uma
captação precisa do indivíduo, e sim de apenas alguns estratos de subjetivação.
A autonomia individual acaba por ser exercitada na utilização da rede,
já que indivíduo é levado a escolher informações e conteúdos, a se colocar
afirmativamente em relação às diversas questões, a treinar o autocontrole e
a alimentar a sua autoestima. A religiosidade na rede torna-se, nesse sentido,
uma questão de escolha, e, com o alcance facilitado, passa a ser exercida
também de modo digital. O indivíduo decide com quem falar, quando falar
e qual conteúdo acessar, possibilidades que também trabalham o processo
de autoconfiança necessário para a construção dessa autonomia: para fazer
escolhas, há que se posicionar afirmativa ou negativamente sobre o que pode
ser escolhido. É nesse contexto que as tradições religiosas institucionais pre-
cisam se inserir. A partir do surgimento de diversas escolhas, de informações
antes não conhecidas por falta de acesso, cria-se uma concorrência simbólica
inevitavelmente captada pelo mercado, também presente na rede.
10 Espiritualidade e religião no ciberespaço
Você sabia que muitos movimentos teológicos partem da obra marxista para pensar
a atuação religiosa em relação à desigualdade social e econômica? Sim, Karl Marx
pensa, ao longo de sua obra, as relações estruturadas social e economicamente. Para o
sociólogo, a ampliação do sistema capitalista transformaria o proletário em dependente
de uma renda que não paga suficientemente por sua força de trabalho que é, nessa
situação, explorada. Nesse contexto, Marx defende que a junção entre o campo e a
cidade, passando pelo mesmo processo de produção e divisão do trabalho em setores,
seria a súmula da ampliação e unificação do sistema capitalista, na medida em que
a agricultura compreenderia o último setor a garantir um laço ainda com o trabalho
mais primitivo. Desse modo, dar-se-ia a cisão na relação entre o humano e a natureza,
pois o capitalismo industrial a recriaria, então, por meio da fabricação do mundo.
Em outras palavras, eu não planto mais os alimentos que consumo, mas compro os
que foram produzidos por outrem.
12 Espiritualidade e religião no ciberespaço
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14 Espiritualidade e religião no ciberespaço
Leituras recomendadas
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