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SOCIOLOGIA DA

RELIGIÃO

Mayara Joice Dionizio


Espiritualidade e religião
no ciberespaço
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

„„ Reconhecer como se dá a presença do sagrado nas redes sociais e


sua adequação nas arquiteturas informativas digitais.
„„ Identificar como o ciberespaço pode aguçar o senso de religiosidade
do ser humano, aproximando-o de Deus.
„„ Analisar a forma como a religiosidade tem sido vivenciada virtualmente,
o papel atribuído às tradições institucionais, a lógica de mercado
religioso e a concorrência simbólica.

Introdução
A revolução digital empreendida desde a década de 1980 alterou tanto
o paradigma científico quanto as possibilidades de relações, instaurando
outra linguagem, outra relação com o tempo e o espaço, e, visto a virtuali-
dade que a vida assume, também com o espaço religioso. Nesse contexto,
observamos um paradoxo: ao mesmo tempo que o ciberespaço facilita
o acesso dos indivíduos ao conteúdo religioso, o relativiza, o confronta
e lhe oferece outras opções. Cabe, então, à instituição religiosa e aos
estudiosos da religião repensarem o espaço religioso, ressignificando
o discurso religioso contextualmente à época e, não menos desafiante,
pensando em estratégias de acesso às mais distintas subjetividades.
Neste capítulo, você entenderá como se dá a presença do sagrado nas
redes sociais e de que modo se transpõe semioticamente nesse espaço.
Ainda, verá como o ciberespaço pode ser afirmativo no que compete à
evangelização. E, por fim, compreenderá as análises sobre o comporta-
mento dos membros nas redes, como isso se associa às instituições e qual
o papel do mercado religioso e simbólico no mercado virtual.
2 Espiritualidade e religião no ciberespaço

1 Presença do sagrado nas redes sociais


e sua adequação nas arquiteturas
informativas digitais
Desde seu início, a tecnologização da vida, como fenômeno também existencial,
vem colocando diversos paradoxos. Já na década dos anos 1980, autores como
Vilém Flusser (1920-1991) se dedicavam a pensar o impacto da tecnologia na
vida do ser humano. Ao longo dos anos, a tecnologia vem a cada dia se supe-
rando em seus paradigmas, ao ponto de se torna difícil não apenas acompanhar
sua atualização, mas também traçar qualquer prognóstico quanto aos seus
efeitos existenciais. E assim também acontece na esfera religiosa. A partir desse
contexto, autores contemporâneos se colocam o desafio de pensar esse novo
pathos, como Gilbert Simondon (1924-1989), Byung-Chu Han (1959) e Gilles
Lipovestky (1944), que se dedicam a problematizar os efeitos da tecnologia na
vida contemporânea, acentuando-se para o fato de que tal problematização
que teve início no século XX, como pensadores como Martin Heidegger
(1889-1976), Giorgio Agamben (1942), Michel Foucault (1926-1984), Pierre
Bourdieu (1930-2002), entre outros. Contudo, a atenção aqui estará voltada a
compreender a arquitetura digital por meio das reflexões que simbolizam os
problemas do nosso tempo em relação à religião e à tecnologia.
Simondon (1969), filósofo e tecnólogo francês, ilustrou em sua obra os
modos relacionais entre os humanos e a tecnologia, problematizando as ca-
tegorias de divindade e máquina. Porém, inicialmente, faz-se necessário
compreender o que ele entende por sagrado. Já no fim dos anos 1950, segundo
Felinto (2004), Simondon tratava do conceito de tecnofobia, segundo o qual
os objetos e os instrumentos tecnológicos se configuram de duas formas no
imaginário humano:

„„ uma junção, a reunião material em forma de um objeto inanimado;


„„ uma ameaça para a humanidade.

Podemos compreender a alusão feita à tecnofobia também a partir das


produções artísticas que começaram a ser produzidas no século XX — filmes
que expressam essa relação ambígua entre homem e máquina, como 2001:
Uma Odisseia no Espaço (de 1968), do diretor Stanley Kubrick (Figura 1).
Espiritualidade e religião no ciberespaço 3

Segundo Simondon (1969), esse imaginário acerca da figura do robô re-


presenta o medo humano da substituição de si pela máquina. Contudo, para
além desse temor, o indivíduo acabou por desenvolver outras relações com
a máquina e sua constante atualização tecnológica, o que, de acordo com
Simondon (1969), apresenta outra via de relacionamento.
Se a máquina esgota em certos aspectos a reinvenção do humano de forma
cultural — pensando aqui que Simondon faleceu antes da ampla absorção
tecnológica das relações —, caberia à técnica a categoria de sagrado, de
ressignificar a dimensão sagrada. Isso se daria ao ponto em que a tecnologia,
em seu aspecto inaugural, traz a promessa de transgressão: as fronteiras entre a
máquina tecnológica, humano e sagrado se confundem. Como ressalta Felinto
(2004), e como apontado por diversos pensadores, tal forma de conceber a
relação entre o humano e tecnologia estaria, como já sinalizado e proposto
por outros autores (inclusive Karl Marx ao pensar a religião), estruturada nas
instituições como forma de representação do homem no mundo, uma ocorrência
oriunda da cisão tão aprofundada ao longo da história entre ciência e religião,
isto é, pode-se dizer que a transcendência humana é uma promessa que orbita
em torno das relações possibilitadas pela tecnologia.
Contudo, Simondon (1969) depositava na filosofia a possibilidade de outro
olhar obre a máquina: por sua capacidade de traçar problematizações críticas
sobre quaisquer objetos ou temáticas, seria ela a responsável por auxiliar o
humano a compreender melhor a tecnologia e refletir sobre sua relação com
ela. Como Felinto (2004) ressalta, as previsões de Simondon acerca do ima-
ginário sobre a cibercultura precisam ser atualizadas. O filósofo acreditava
que as expectativas dos “tecnélifos” tinham origem nesse imaginário; assim,
previsões de que as máquinas dominariam a humanidade eram fruto desse
medo. Contudo, ele não poderia prever a evolução desse objeto técnico até o
que conhecemos atualmente como cibercultura, está implicada diretamente
nas construções de um inconsciente imaginário que consegue cooptar até
mesmo o discurso crítico filosófico, de modo que o ciberespaço seja também
o seu espaço de acontecimento.
Para tanto, precisamos delimitar de qual concepção de imaginário estamos
tratando e como ele se liga à religião em sua constituição. De acordo com
Felinto (2004), apesar da amplitude de definições que buscam precisar o que
seja o imaginário e como ele se torna uma faculdade operatória em relação
à internet e à religião, elas servem de base para o estudo da formação da
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cibercultura. Segundo Iser (1993), que nos possibilita a aproximação de uma


definição que sustenta a própria categoria das relações travadas digitalmente,
o imaginário só pode ser pensado a partir de sua efetividade, ou seja, a partir
dos produtos da imaginação representados materialmente, poderíamos começar
a investigar a faculdade imaginativa. E isso é o mesmo que acontece em relação
à produção artística: fruto de um processo imaginativo, a obra concretiza em
formas, imagens, palavras, entre outras produções simbólicas aquilo que a
imaginação impulsionou. Felinto (2004) sublinha que essa transcendência
é própria à religião, que está fundamentada em uma experiência que visa a
um sagrado que, por sua vez, seria uma forma de transgressão libertadora.
Portanto, podemos ver no espaço discursivo e comunicativo da cibercultura
que o discurso e a sua estrutura semiótica estão associados à ideologia e à
constituição cultural e história.
Tal conceitualização sobre a produção semiótica como matriz da cibercul-
tura é chamada pelo sociólogo Hermínio Martins (SOROMENHO-MARQUES,
2012) de “gnosticismo técnico-científico”: a possibilidade de salvar-se, de
transgredir a partir da decifração de conhecimentos secretos. Ou, ainda,
seguindo a contribuição de Statlender (1972), a gnosis seria um impulso
humano com vistas à transcendência em direção ao sagrado espiritual. Po-
rém, isso não quer dizer que os indivíduos enxerguem no acesso digital uma
possibilidade mágica para além da máquina, e sim que a transgressão sagrada
constituinte dos indivíduos também permanece nessa relação. Como aponta
Lemos (2004, p. 43): “[...] na bifurcação do universo mágico primitivo, proposto
por Simondon, a técnica separa-se da religião sem perder, nesse momento, as
referências ligadas ao sagrado [...]”. Além disso, tal paralelo entre religião e
tecnologia se mostra simétrico também no que compete ao aspecto formativo.
Se antes podíamos identificar na religião um quesito formador do humano, uma
bildung (ideais de formação, educação e cultura do homem alemão no século
XVIII), como diziam aos românticos alemães, desde a metade do século XX,
com o desenvolvimento tecnológico, podemos observar uma ressignificação.
Uma vez que a religião é formadora em amplos aspectos das categorias do
conhecimento humano, esse poder passa a ser agora da tecnologia, inclusive
porque as matrizes do saber entendem que seu lugar de acontecimento está
submetido ao espaço tecnológico.
Nesse sentido, diversos autores propõem uma reflexão partindo do que
poderia ser chamado de “religião da tecnologia”, como tecnognose e tec-
norreligião (FELINTO, 2004), onceitos que entendem a gnose aplicada à
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rede. Nesse aspecto, conforme Felinto (2004), a tecnologia também pode ser
concebida como a gnose: uma religião excludente e a qual poucos têm acesso,
como observado em diversas situações sociais, por exemplo, pelo custo da
máquina e dos recursos para custear esse acesso.
Conclui-se, portanto, que a tecnologia não pode ser considerada apenas
um objeto material produzido e controlado pelos indivíduos. Tendo em conta
as projeções temporais a que Simondon (1969) teve acesso e às atualizações
tecnológicas desde esse momento, podemos dizer que a cibercultura opera
sobre o sujeito, de modo que ao mesmo tempo que produzimos conteúdo,
somos capturados por outros conteúdos presentes nas redes. Contudo, não se
trata de uma necessidade da rede de investigar os perfis e obter informações,
visto que esse conteúdo é dado pelo próprio usuário. Essa rede, chamada aqui
de cibercultura, cria um ciberespaço de transmissão contínua, e as noções de
sagrado, por meio de uma transcendência, são estabelecidas também pelas
relações tecnológicas.

Figura 1. Cena do filme de Stanley Kubric, 2001: Uma Odisseia no Espaço.


Fonte: sam100/Shutterstock.com.
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2 Ciberespaço: senso de religiosidade do ser


humano e sua aproximação com Deus
Na contemporaneidade, o ciberespaço tem se mostrado um duplo do espaço
real, no qual, assim como na realidade material da vida, podemos encontrar
grupos, conhecer pessoas, gerir e fundar empresas, realizar cursos e até mesmo
graduações inteiras, e criar espaços de lazer (por plataformas de streamings ou
chats). E isso também é válido em relação à evangelização, já que grande parte
dos mais jovens se relaciona com o mundo e entre si por meio do ciberespaço.
Contudo, algumas instituições e líderes religiosos se mantêm contrários a
essa forma de comunicação: a impressão de que a internet enfraqueceria o
contato entre as instituições e os fiéis, acabando por dissolver a comunidade
religiosa, ainda se coloca como uma ameaça para alguns. Assim, surgem
alguns questionamentos: a internet pode evangelizar? O ciberespaço pode
aproximar os indivíduos de Deus?
No sentido formativo, não há como dizermos que a tecnologia não participa
culturalmente e, portanto, de modo constitutivo de nossa sociedade. Visto que
o ciberespaço contém um grande acervo de dados e informações — o chamado
big data —, podemos afirmar que praticamente todo o conhecimento, como
todos os dados obtidos até aqui sobre as pessoas, as instituições e momentos
de lazer dos indivíduos, encontra-se no domínio da internet. Torna-se, então,
inevitável que o processo de evangelização aconteça também por meio das
redes. Voltando-nos ao surgimento da instituição cristã, por exemplo, durante
a instauração da religião por meio das pregações de Paulo, em pleno período
helenístico, um dos obstáculos percebidos pelos primeiros teólogos foi o da
comunicação. As pregações precisaram se adaptar à linguagem e aos sím-
bolos helenísticos, o que se observa pelo fato de os primeiros cristãos serem
helenísticos, como o filósofo romano Sêneca. Jesus estabeleceu contatos
com o povo por meio de uma linguagem própria à época, maneira pela qual
promoveu sua evangelização.
Ao problematizarem o ciberespaço e a cibercultura, autores como Lévy
(2000) argumentam que o desafio teológico de todas as épocas reside na
evangelização contextualizada ao seu tempo. Uma vez que os humanos sejam
os filhos de Deus, caberia aos teólogos e líderes religiosos estabelecerem nas
redes um acesso à evangelização. Segundo o teólogo Zizioulas (1985), que
se posiciona de forma mais ortodoxa em relação à Igreja, a comunhão é o
fundamento da vida. Para ele, pelo fato de a igreja ultrapassar qualquer forma
institucional, fixando-se propriamente em um modo de vida, ela apresenta
uma relevância social: sendo o humano imagem e semelhanças de Deus após
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o batismo “imago Dei”, trata-se de assumir uma posição social dentro da


comunidade. Assim, tanto os fiéis devem existir ao modo de Deus (em comu-
nhão plena) quanto a igreja à imagem do criador, por exemplo, pela própria
comunhão eterna da Trindade. De acordo com Moreira (2015), o espelhamento
da Trindade começa pela relação entre os líderes das instituições religiosas e,
depois, entre os membros da comunidade, uma vez que não existem divino e
sagrado sem comunhão. É na comunhão que a palavra de Deus se espalha e
tem acesso às pessoas, não havendo cristianismo, por exemplo, sem comuni-
dade religiosa. Entender a igreja como comunhão significa pensá-la não em
relação aos modos de evangelização no ciberespaço inicialmente, mas antes
como praticar a comunhão nesse espaço.
Endossando essa forma de pensar a comunhão, na web e na igreja, pode-
mos destacar a figura do atual Papa Francisco. Em 26 de novembro de 2013,
o Vaticano publicou a primeira Exortação apostólica, Evangelii Gaudium, em
que resgata o papel missionário da Igreja, um texto oriundo da XII Assem-
bleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que aconteceu em 2012, que se
propôs a debater sobre a “nova evangelização para a transmissão da fé cristã”.
O documento expressa a posição do atual papado acerca da “crise do compro-
misso comunitário” da Igreja e coloca não somente a missão, mas também o
desafio que a acompanha de levar a “alegria do evangelho” às pessoas. Como
já ansiado, o Papa Francisco trouxe para a Igreja católica a necessidade de
atualizar e ressignificar a fé cristã de acordo com o contexto atual, devolvendo
a ela a reafirmação de sua missão inicial: por meio de suas atitudes e feitos,
dar o exemplo e retomar os ensinamentos práticos também de Jesus Cristo.
Além disso, como parte de sua história reformista, o Santo Padre reafirma
nesse documento as posições assumidas pela Igreja no Concílio do Vaticano
II — se a Igreja é o corpo de Cristo, uma forma de corpo místico, pertencem
a ela não somente os fiéis, como também qualquer ser existente. Portanto,
reparar as desigualdades sociais e as injustiças, buscar o bem de todos e lutar
para alcançar o maior número de pessoas são deveres de todo cristão. Por meio
da metáfora de que, quando uma parte do nosso corpo sofre, o corpo como
um todo sofre, sem poder localizar a dor em apenas um membro ou órgão,
para explicar o que acontece com a Igreja, o Papa orienta os evangelizadores
a buscarem se aproximar das pessoas também digitalmente:

[...] prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas
estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar
às próprias seguranças [...] enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus
repete-nos sem cessar: “Dai-lhes vós mesmos de comer” [...] (FRANCISCO,
2013, p. 49).
8 Espiritualidade e religião no ciberespaço

Nesse contexto, muitas das posições assumidas pelo Papa se dão em detri-
mento da visão da igreja tradicional observada ao longo da História, de que a
instituição está no topo, enquanto os fiéis estão sempre abaixo, uma imagem
ainda de fácil acesso em grande parte das arquiteturas eclesiásticas. Com
isso, o Santo Padre coloca a Igreja a serviço do povo, e, como o corpo, estar
a serviço de Cristo. De acordo com essa concepção (FRANCISCO, 2013),
podemos compreender o ciberespaço como um local também de realização da
comunhão. Outro aspecto importante diz respeito à topologia atual da rede:
a igreja precisa se reinventar para se conectar com as pessoas porque o enxame
digital se tornou um lugar de concentração dos debates atuais. Nesse sentido,
a pluralidade encontrada na rede deve ser ressignificada: a comunhão é a
Igreja, que, por sua vez, deve ser compreendida à imagem da Trindade, logo
se devendo transformar a liquidez digital em uma consciência comunitária pela
comunhão. Nesse documento papal, assinala-se essa função das redes, ou seja,
expressa-se a necessidade de instrumentalização das redes para fazer chegar
às pessoas a palavra de Deus, demonstrando, a partir do olhar iterado pelo
Papa Francisco, uma nova saída missionária: “[...] as estradas digitais são um
campo essencial na nova ‘saída’ missionária [...]” (FRANCISCO, 2013, p. 20).
Assumindo essa nova realidade virtual, um dos maiores desafios atuais
consiste em lidar com a diferença entre as gerações e a constante atualiza-
ção tecnológica. Moreira (2015) atribui a desigualdade etária justamente ao
desenvolvimento científico e tecnológico. Atualmente, podemos observar
que cinco gerações coexistem no mesmo contexto tecnológico, que também
demanda tipos de diferentes de comunicação:

„„ os nascidos entre as décadas de 1920 e 1940;


„„ os nascidos entre as décadas de 1940 e 1960;
„„ a primeira geração a lidar com as máquinas tecnológicas, classificada
como Geração Y;
„„ a Geração Z, que corresponde aos nascidos entre os anos 2000 e 2010;
„„ os nascidos após 2010, classificados como Geração Alfa.

Contextualmente, as Gerações Y e Z correspondem àquelas que consoli-


daram a cibercultura e o ciberespaço.
Conclui-se que, ao lidar com diferentes gerações e públicos, a missão da
evangelização deve atender a um aspecto mais amplo de identificação. Uma
vez que a tecnologia possibilita uma mutabilidade e uma mobilidade virtual,
a noção de tempo e espaço se torna autorreferencial para cada indivíduo.
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Contudo, conforme Lévy (2000), embora essa questão represente um desafio,


cria a oportunidade de a Igreja pensar em um novo humanismo, ressignifi-
cando a humanidade no sentido de uma construção contínua: “[...] [a]ceitar
a perda de uma determinada forma de domínio significa criar uma chance
para reencontrar o real. O ciberespaço [...] exprime a diversidade do humano
[...]” (LÉVY, 2000, p. 111).

3 Religiosidade na virtualidade:
tradições institucionais, mercado religioso
e concorrência simbólica
A relação entre humano e religião sempre foi pensada teologicamente de
acordo com o contexto, isto é, desde o surgimento da religião cristã, uma
grande preocupação da instituição católicas consistia em conseguir comunicar
a palavra de Deus às pessoas. Para tanto, fez-se necessário estabelecer uma
linguagem própria também à realidade de cada época, o que não é diferente
na atualidade. Após a chamada revolução digital, o mundo que se estabelece a
cada dia é totalmente novo, o que nos leva a duas perspectivas do ponto de vista
religioso e histórico: a consciência de que a história é aberta e a necessidade
da religião de se colocar mais uma vez na história com todos os desafios que
a permeiam. Para isso, também é preciso ressaltar que, no que compete ao
aspecto cultural, a alteração do paradigma é constante, sem possibilitar uma
captação precisa do indivíduo, e sim de apenas alguns estratos de subjetivação.
A autonomia individual acaba por ser exercitada na utilização da rede,
já que indivíduo é levado a escolher informações e conteúdos, a se colocar
afirmativamente em relação às diversas questões, a treinar o autocontrole e
a alimentar a sua autoestima. A religiosidade na rede torna-se, nesse sentido,
uma questão de escolha, e, com o alcance facilitado, passa a ser exercida
também de modo digital. O indivíduo decide com quem falar, quando falar
e qual conteúdo acessar, possibilidades que também trabalham o processo
de autoconfiança necessário para a construção dessa autonomia: para fazer
escolhas, há que se posicionar afirmativa ou negativamente sobre o que pode
ser escolhido. É nesse contexto que as tradições religiosas institucionais pre-
cisam se inserir. A partir do surgimento de diversas escolhas, de informações
antes não conhecidas por falta de acesso, cria-se uma concorrência simbólica
inevitavelmente captada pelo mercado, também presente na rede.
10 Espiritualidade e religião no ciberespaço

A partir da queda do muro de Berlim, na década de 1980, o desenvolvi-


mento tecnológico se difundiu e movimentou o mercado mundial. A disputa
por melhoria da vida pela tecnologia passou a se colocar como um processo
que movimenta o mercado físico e simbólico, em que a cultura se transformou
cada vez mais em um lugar de disputa simbólica, com necessidades muitas
vezes criadas pelo mercado. Com isso, o setor publicitário tem avançado em
grandes proporções, já que se vende uma ideia antes de uma necessidade
ou de um objeto. E, nesse sentido, a internet promove a cultura do parecer
ser. Revistas, rádio e TV, antes responsáveis por influenciar as escolhas das
pessoas, são substituídas com o surgimento da internet, o que acaba gerando
uma dissolução midiática, uma vez que os meios de comunicação antigos
promoviam uma única voz. O mercado não só se apropria desse novo status
da sociedade, como também o promove.
Contextualmente, a escolha religiosa cada vez mais é adequada a um perfil
que se enquadra nesse desejo de parecer ser. Com o poder de escolha e os
impactos de personagens criados pelas agências de publicidade e marketing,
a religião como simbólico passou a compor essas subjetividades de acordo
com o todo simbólico. Como Durkheim (1966) destaca em As formas elemen-
tares da vida religiosa, a questão identitária está implicada na formação de
uma comunidade religiosa, mas, na era digital, a pluralidade subjetiva acaba
correspondendo à multiplicidade de ofertas simbólicas, religiosas ou não.
No início do século XX, até meados dos anos 1980, as referências identitárias
eram mais restritas à produção cultural pouco disseminada. Porém, hoje existem
muitas referências, como personalidades com funções criadas estritamente pelo
mercado e que influenciam uma gama enorme de pessoas (p. ex., blogueiras).
E o mesmo se dá com o mercado religioso.
Um dos aspectos que mais se associam à contemporaneidade reside na
abertura à multiplicidade, ao pluralismo em todas as esferas da sociedade, o
que se deve, de modo incontestável, à globalização. Em relação à religião, de
acordo com Berger (1985, p. 149), traduzindo a dinâmica com a qual a religião
precisa lidar atualmente, “[...] [a] submissão é voluntária e, assim, por definição,
não é segura. Resulta daí que a tradição religiosa, que antigamente podia ser
imposta pela autoridade, agora tem que ser colocada no mercado [...]” — e isso
coloca em debate o fim do monopólio religioso. Contudo, para analisarmos
o ciberespaço pela óptica do mercado religioso, devemos compreender sobre
qual mercado estamos tratando. Para Berger (1985), a leitura sobre o mercado
religioso parte de uma universalidade, à qual a religião estaria submetida.
Espiritualidade e religião no ciberespaço 11

Existem duas lógicas pelas quais podemos entender o mercado e a sua


relação com a economia. Para Sung (2014), há uma distinção entre a “economia
com mercado” e a “economia de mercado”: a economia pré-capitalista tinha
como sistema de funcionamento a economia com o mercado, caracterizada
pela produção de bens necessários às primeiras necessidades da sociedade,
portanto bens que têm valor de uso e que não se enquadram na lógica econô-
mica inaugurada na Idade Moderna, com a Revolução Industrial. Assim, esse
sistema mais primário não tem como premissa de funcionamento a desigualdade
econômica. Já a economia de mercado é quando o mercado é autorreferenciado
no sistema econômico, isto é, quando o mercado, além de ter uma função
central na economia, se autorregula, sem haver espaço para economia com uma
finalidade solidária, a não ser em razão de uma contrapartida. Nesse sentido,
Polanti (1980) define a economia de mercado como um sistema controlado e
regulado apenas por outros mercados em todos os seus setores. O que consiste
em uma relação de confiança, uma vez que os produtores de bens submetem as
suas produções à autorregulação do mercado: “[...] uma economia desse tipo se
origina da expectativa de que os seres humanos se comprometam de maneira
tal a atingir o máximo de ganhos monetários [...]” (POLANTI, 1980, p. 81).

Você sabia que muitos movimentos teológicos partem da obra marxista para pensar
a atuação religiosa em relação à desigualdade social e econômica? Sim, Karl Marx
pensa, ao longo de sua obra, as relações estruturadas social e economicamente. Para o
sociólogo, a ampliação do sistema capitalista transformaria o proletário em dependente
de uma renda que não paga suficientemente por sua força de trabalho que é, nessa
situação, explorada. Nesse contexto, Marx defende que a junção entre o campo e a
cidade, passando pelo mesmo processo de produção e divisão do trabalho em setores,
seria a súmula da ampliação e unificação do sistema capitalista, na medida em que
a agricultura compreenderia o último setor a garantir um laço ainda com o trabalho
mais primitivo. Desse modo, dar-se-ia a cisão na relação entre o humano e a natureza,
pois o capitalismo industrial a recriaria, então, por meio da fabricação do mundo.
Em outras palavras, eu não planto mais os alimentos que consumo, mas compro os
que foram produzidos por outrem.
12 Espiritualidade e religião no ciberespaço

O mercado religioso está situado na economia de mercado, contexto em


que a produção de materiais religiosos físicos ou simbólicos atende tanto ao
desejo dos consumidores quanto à capacidade de consumo, para os quais se
estabelecem as seguintes diferenças:

„„ os bens adquiridos, físicos ou não, devem atender ao desejo do consumi-


dor, independentemente de sua utilidade, do ponto de vista do mercado;
„„ para o produtor, não importa o desejo do consumidor, mas apenas que o
seu produto tenha saída. Nesse caso, é o mercado que opera equilibrando
as necessidades de ambos, alimentando a sua própria razão de ser.

Assim, a relação entre mercado e mercado religioso depende ainda mais


dessa estrutura, uma vez que um bem de consumo religioso está ligado total-
mente a um simbolismo e a um público bastante específico. Outros mercados
podem ter os seus respectivos públicos, contudo estão ligados, em sua maioria,
a uma série de estratos subjetivos e passageiros. Já o mercado religioso tem
um público ideológico mais duradouro, pois dificilmente se fragmenta sub-
jetivamente de maneira massiva.
Tal problematização nos leva a apresentar um aspecto mais profundo
relacionado a esse mercado, com a possibilidade de um estudo antropológico,
como sugerido por Polanti (1980), acerca do homo economicus. Essa nova noção
se fundamenta na ideia de que o humano se reduz àquilo que deseja obter,
contexto em que uma ética só seria possível se baseada na ação da escolha:
escolho aquilo que satisfaz ao meu interesse, dinâmica na qual minha relação
com outrem também está inserida. Do ponto de vista sociológico, como res-
salta Sung (2014), se essa submissão da religião ao mercado está exposta no
ciberespaço, pautando, de fato, as relações religiosas do mercado e da rede,
o humano deve começar a ser pensado pelos teólogos, sociólogos, filósofos
e estudiosos da religião como um homem econômico. Portanto, é a teoria da
escolha racional, da escolha pensada somente com vistas à satisfação dos
desejos individuais, que deveria pautar daqui em diante os estudos da religião.
Ainda, há outro fator importante sobre a existência do mercado reli-
gioso: a quase nulidade da manutenção, do controle e da regulação estatal do
campo religioso. Se nos voltarmos a outros períodos da história, vemos que
a hegemonia religiosa estava sempre associada a um Estado forte, ou seja,
o mercado também se submetia à regulação do Estado. Sem essa manutenção,
a oferta de bens simbólicos religiosos passa a se submeter apenas à lei de
Espiritualidade e religião no ciberespaço 13

autorregulação do mercado — de procura e de oferta. Portanto, a religião se


encontraria submetida à lógica do mercado, que, por sua vez, é relacional ao
ciberespaço como lugar de acontecimento, ambos submetidos à cibercultura,
que também os submetem. Trata-se de uma grande rede e de um grande tecido
virtual que estabelece não só outro homem, mas também outra linguagem,
um novo acesso à realidade que se estabelece no modo como o humano lida
com os outros e consigo mesmo.

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14 Espiritualidade e religião no ciberespaço

Leituras recomendadas
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STATLENDER, R. La gnose et l’hermetisme. In: DAVY, M. M. (org.). Encyclopédie des
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