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Mutações: a crise do industrialismo

A uma velocidade vertiginosa, dirigimo-nos da


tranquilizadora idade do hardware para a desconcertante
e espectral idade do software; o mundo que nos rodeia
está cada vez mais controlado por circuitos pequenos demais
para serem vistos e códigos complexos demais para serem
inteiramente compreendidos.
5
Mark Dery

Nossa meta mais importante no Facebook é ajudar a tornar


o mundo mais aberto e transparente.
Mark Zuckerberg6

O capitalismo nasceu industrial, logo após o período de gestação que


Karl Marx denominou “acumulação primitiva” e descreveu com furio-
sa energia num dos capítulos mais belos de O capital, comparando esse
episódio com o pecado original de Adão e Eva. Em razão das peculiares
circunstâncias de tal parto, os principais emblemas da revolução indus-
trial são mecânicos: a locomotiva, a máquina a vapor, inclusive aqueles
teares que os artesãos ludditas queimavam, revoltados, por considerá-
-los artefatos demoníacos capazes de lhes arrebatar sua forma tradicio-
nal de conseguir o pão cotidiano, transformando para sempre tanto
suas vidas como a história do mundo.7 Pelo menos nesse último senti-
do, hoje sabemos que aqueles antigos trabalhadores britânicos não es-
tavam equivocados. Contudo, talvez a máquina mais emblemática do
capitalismo industrial não seja nenhuma dessas, mas outra bem mais
cotidiana e até menos suspeita em sua aparente banalidade: o relógio.
Esse aparelhinho singelo e preciso, cuja única função consiste em
marcar mecanicamente a passagem do tempo, simboliza como nenhum
outro as transformações ocorridas na sociedade ocidental em sua árdua

5 Mark Dery, Velocidad de escape, Barcelona, Siruela, 1998, p. 9 -10.


6 Mark Zuckerberg, O blog do Facebook, 26/2/2009.
7 Christian Ferrer, Mal de ojo: crítica de la violencia técnica, Barcelona, Octaedro, 2000.

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transição rumo ao industrialismo e à lógica disciplinar que logo se ge-
neralizaria. A história do relógio é fascinante: sua origem remonta aos
mosteiros da Idade Média, precursores das rotinas regulares e ordena-
das, nos quais se praticava uma valorização inédita da disciplina e do
trabalho. Somente no século XIII surgiu o primeiro aparelho mecânico,
ainda muito rudimentar. Teriam sido os monges beneditinos – segundo
o historiador da técnica Lewis Mumford, a grande ordem trabalhadora
da Igreja Católica – que “ajudaram a dar, à empresa humana, a batida
e o ritmo regulares e coletivos da máquina”.8
Sua utilização foi se expandindo lentamente para fora dos muros
dos conventos quando as cidades começaram a exigir uma rotina
metódica, com todas as ações humanas sendo sincronizadas e as ta-
refas organizadas em intervalos regulares. Assim, para além dos si-
nos que ecoavam nos campanários assinalando certas horas do dia,
em meados do século XIV tornou-se habitual a divisão das horas e
dos minutos em sessenta partes iguais que passaram a servir como
ponto de referência abstrato para todos os eventos, inaugurando,
assim, virtudes como a pontualidade e aberrações como a perda de
tempo. Desse modo, no século XVI aconteceu o que agora parece
inevitável e até mesmo natural: o relógio doméstico fez sua aparição.
É claro que tal esquadrinhamento do tempo não ocorreu sem
violência: os organismos humanos tiveram que sofrer uma série de
operações para se adaptar aos novos compassos, dando à luz outras
formas de ser, de estar e de movimentar-se nas coordenadas espaço-
temporais. No romance O agente secreto, publicado em 1907, Joseph
Conrad conta a história de um atentado anarquista – inspirado num
fato real de finais do século XIX, obviamente fracassado – cujo alvo
foi um ponto bem significativo para o novo regime de poder: o Ob-
servatório de Greenwich, na Inglaterra. Trata-se do ponto do planeta
escolhido para operar como o quartel-general do enquadramento do
tempo em fusos horários, visando à sincronização mundial das tare-
fas humanas a serviço do capitalismo industrial. Nas grandes páginas
da história, os rodapés são pródigos em acontecimentos curiosos; eis
outro desses detalhes que também poderia ser visto como sintomático

8 Lewis Mumford, Técnica e civilización, Madri, Alianza, 1994, p. 30.

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nesse sentido: a primeira greve da França – uma instância de resis-
tência que marcaria a fogo a sociedade moderna – foi organizada em
1724 pelo grêmio dos operários relojoeiros.
Num importante conjunto de livros, artigos e conferências, Mi-
chel Foucault analisou os mecanismos que fizeram funcionar a socie-
dade industrial num ritmo sempre cronometrado por infinitos reló-
gios, cada vez mais precisos em sua incansável tarefa de pautar o
tempo dos homens. Após uma lenta e complexa incubação, esse tipo
de configuração socioeconômica e política eclodiu nos países cen-
trais do Ocidente quando o século XVIII estava chegando ao fim, foi
se desenvolvendo ao longo do século XIX com sua vocação de con-
quista planetária e teve seu ápice na primeira metade do XX, cobrin-
do então quase toda a superfície da Terra. Porém, nas décadas mais
recentes, sem deixar de dar continuidade a esse processo, começou
uma virada vertiginosa que continua ainda hoje: a transição desse
regime industrial, com base na maquinaria analógica, para um novo
tipo de capitalismo apoiado em outra aparelhagem.
A progressiva automatização das indústrias acabou desvalorizan-
do a mão de obra operária, desembocando numa crise aguda e estru-
tural do emprego em nível mundial. Paralelamente, a globalização
dos mercados vem provocando profundas mudanças na geopolítica
e enfraquecendo, em boa medida, tanto a capacidade de ação como
a própria definição dos velhos Estados-Nação. Essas tendências se
vinculam, também, a certo esvaziamento do âmbito político – pelo
menos, em sua versão oitocentista das lutas partidárias –, num com-
plexo movimento que inclui a privatização dos espaços públicos e a
intromissão do mercado em âmbitos que antes lhe estavam vedados,
bem como a desativação dos canais tradicionais de resistência ou
contestação. E, sobretudo, em que pese certo mal-estar cada vez mais
pronunciado em meio à suposta universalização do conforto e do
bem-estar, cresce uma asfixiante impressão de que não há alternati-
vas imagináveis para o projeto vigente.
Simultaneamente, o capital financeiro se sobrepõe ao produtivo,
impondo a circulação de fluxos ao redor do planeta como parte de
uma gradativa abstração e virtualização dos valores. Tal processo se
acelerou a partir da crise de 1973, quando o dólar dos Estados Uni-

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dos – que já no acordo posterior à Segunda Guerra Mundial tinha se
tornado o meio mais usado para o comércio mundial – perdeu o res-
paldo da conversibilidade em ouro que lhe outorgavam as reservas do
Banco Central daquele país, radicalizando-se assim a separação entre
as duas esferas: a produtiva e a financeira. Desse modo, deslanchou a
passagem para um sistema global de taxas de câmbio flutuantes, algo
que iria se acentuar nos anos seguintes com a introdução de diversas
tecnologias que operam segundo a lógica digital, tais como os caixas
eletrônicos, os cartões de crédito e débito, as transferências automáti-
cas via internet e a informatização geral do sistema financeiro.
“O sal tem três dimensões, a nota tem duas”, constata o ensaísta
francês Paul Virilio, acrescentando em seguida que, com a moeda
eletrônica, “essa dimensão desaparece em proveito de um impulso
eletromagnético”.9 Esse longo processo de virtualização do dinheiro
desembocou, de maneira triunfante, na internet. Quando o comércio
começou a dar seus primeiros passos na rede mundial de computa-
dores, as companhias informáticas e financeiras concorriam em bus-
ca de um formato de moeda digital que conseguisse se impor de ma-
neira padrão em todo o mundo, algo que finalmente parece ter ficado
em mãos das principais operadoras de cartões de crédito. Como o
expressara um especialista da área, William Mitchell, em seu livro
City of bits: “agora também o dinheiro é informação digital, circu-
lando continuamente pelo ciberespaço.”10 Ou, como diria o funda-
dor da empresa Microsoft, Bill Gates: fluindo através do “sistema
nervoso digital” do planeta Terra.11
Mas não é só o dinheiro que está ficando “obsoleto” em seu for-
mato material, para entrar no ágil e etéreo caminho da virtualização.
Como parte desse movimento, até mesmo o conceito de propriedade
– tão caro ao modo de produção capitalista – parece ter sido atingi-
do. Há quem detecte certa pulverização da propriedade privada, cuja

9 Paul Virilio, Cibermundo: a política do pior, Lisboa, Teorema, 2000, p. 30.


10 William Mitchell, City of bits. space, place, and the Infobahn, Cambridge, MIT Press,
1998, p. 78.
11 Bill Gates, Business @ the speed of thought: using a digital nervous system, Nova York,
Warner Books, 1999.

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solidez estava ligada à consistência dos bens materiais. Contudo,
num regime que vem solapar o sistema da propriedade dos objetos
– com seu cortejo de escrituras, cartórios e outras instituições visivel-
mente defasadas em relação à veloz realidade contemporânea –, es-
taria ganhando força uma noção mais volátil e flexível: a de acesso.
“A propriedade é uma instituição lenta demais para se ajustar à nova
velocidade da nossa cultura”, constata o economista Jeremy Rifkin.12
Essa clássica noção se baseia na ideia de que possuir um ativo físico
num período extenso de tempo é algo valioso; no entanto, “num
mundo de produção customizada, de inovação e de atualizações con-
tínuas e de ciclos de vida de produto cada vez mais breves, tudo se
torna quase imediatamente desatualizado”, diz Rifkin. Assim, numa
economia em que a mudança se apresenta como a única constante,
verbos como ter, guardar e acumular parecem estar perdendo boa
parte de seus antigos significados.
De acordo com essa perspectiva, o que conta cada vez mais não é
tanto a posse dos bens no sentido tradicional, mas a capacidade de
acesso ao uso desses objetos como um serviço. Assim, surgem solu-
ções como o leasing, que permite driblar a obsolescência constante
de produtos como carros e computadores, por exemplo, converten-
do-os em serviços que os interessados podem acessar. Nesses casos,
em vez de comprar um produto específico e concreto, o cliente ad-
quire o direito de usar um bem sempre atualizado, pagando uma
mensalidade às instituições financeiras que operam como intermedi-
árias. Desse modo, em meio às tendências virtualizantes e à preocu-
pação crescente com a segurança física, uma proliferação de senhas,
cartões magnéticos, cifras e códigos permitem o acesso aos diversos
serviços oferecidos pelo capitalismo da propriedade volatilizada.
As transformações se propagam aceleradamente e, ao que parece,
nessa reciclagem o capitalismo se revigora. Hoje a ênfase destaca
não apenas os serviços, mas, sobretudo, o marketing e o consumo.
Estes últimos são explorados com tecnologias novas e sofisticadas:
toda uma série de saberes e ferramentas se desenvolvem em torno

12 Jeremy Rifkin, A era do acesso: a transição de mercados convencionais para networks


e o nascimento de uma nova economia, São Paulo, Makron Books, 2001, p. 5.

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de uma retórica própria – ou, então, emprestada de outros campos.
“De provocação em provocação, a filosofia enfrentaria rivais cada
vez mais insolentes, cada vez mais calamitosos, que Platão ele mesmo
não teria imaginado em seus momentos mais cômicos”, ironizam
Gilles Deleuze e Felix Guattari, aludindo à apropriação de termos
como conceito e evento por parte dos novos saberes mercadológicos.
E continuam os filósofos franceses: “enfim, o fundo do poço da ver-
gonha foi atingido quando a informática, o marketing, o design, a
publicidade, todas as disciplinas da comunicação apoderaram-se da
própria palavra conceito e disseram: é nosso negócio, somos nós os
criativos, nós somos os conceituadores!”13
Nesse universo, que hoje se encontra no auge, pululam também
os nichos e os perfis, numa segmentação dos públicos cada vez mais
exaustiva que aponta para o uso de recursos com níveis crescentes
de sofisticação e precisão – como o marketing direto e a personali-
zação da oferta e da demanda, por exemplo, que operam com a
ajuda do garimpo de dados e de cálculos com enormes quantidades
de informação, visando tanto a estimular como a antecipar os dese-
jos de consumo de cada indivíduo. Ou seja, todo um arsenal retóri-
co e técnico renovado, porém a serviço dos mesmos prosaicos fins,
cada vez mais legitimados no plano ético ou moral, inclusive no
sentido estético: vender mais.
Por isso, mais de um século após sua formulação, nesta época de
ágeis mudanças, o diagnóstico de Karl Marx a respeito do “fetichis-
mo da mercadoria” parece estar atingindo seu ápice, numa era em
que a magia do consumo tem enfeitiçado com seus encantos pratica-
mente todos os hábitos socioculturais. Alguns autores que retomam
as teorias marxistas na contemporaneidade, do estadunidense Fredric
Jameson ao alemão Robert Kurz, sustentam que o capitalismo teria
alcançado seu apogeu na época atual, com o domínio absoluto do
mercado em todas as esferas da vida e no planeta inteiro. Como sin-
tetizam, também, Michael Hardt e Antonio Negri em seu livro Impé-
rio: “Nessa passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de

13 Gilles Deleuze e Félix Guattari, O que é a filosofia?, Rio de Janeiro, Editora 34, 1992,
p. 19.

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controle, pode-se dizer que a relação cada vez mais intensa de mútua
implicação de todas as forças sociais que o capitalismo buscou duran-
te todo o seu desenvolvimento foi plenamente realizada.”14
Neste contexto, a tecnologia adquire uma importância primor-
dial. As ferramentas de uso habitual, nos mais diversos âmbitos, vêm
abandonando gradativamente as leis mecânicas e analógicas que pre-
valeceram nos séculos XIX e XX, para se plasmar nos códigos infor-
máticos e digitais que hoje controlam todos os aparelhos com os
quais convivemos de modo cada vez mais simbiótico. Agora, a eco-
nomia global é impulsionada pelos computadores e pela internet,
pela telefonia móvel com suas diversas redes de comunicação e infor-
mação, pelos satélites e por toda a miríade de gadgets teleinformáti-
cos que abarrotam os mercados. Tudo isso contribui, de forma oblí-
qua e complexa – embora não por isso menos potente –, para a
produção dos corpos e das subjetividades do século XXI.
Num breve artigo de 1990, apresentado como um mero posts-
criptum, Gilles Deleuze tentou sistematizar esse conjunto de trans-
formações sociopolíticas e econômicas dos últimos anos, vislum-
brando a formação de um novo tipo de sociedade: a implantação
gradativa e dispersa de outro regime de poder e de saber. Nesse tex-
to, o filósofo retomou as ferramentas teóricas legadas por seu colega
Michel Foucault, para estender sua analítica do poder à atual socie-
dade informatizada. Além de detectar uma crise generalizada das
instituições de confinamento características da era industrial (esco-
las, fábricas, hospitais, prisões), o autor procurou mapear o surgi-
mento de novos mecanismos de dominação, que seriam mais astutos
e eficientes no novo contexto.
Esses dispositivos inovadores, que não cessaram de surgir nem de
se aperfeiçoar nas últimas duas décadas e meia que já se passaram
desde a publicação daquele artigo, estão se infiltrando nas institui-
ções disciplinares que articularam a sociedade moderna. Nesse pro-
cesso, que às vezes é silencioso ou dissimulado, mas em outras ocasi-
ões pode ser muito estrondoso, contribuem para derrubar os muros
daqueles antigos estabelecimentos, desestabilizando sua ordem e

14 Michael Hardt e Antonio Negri, Imperio, Buenos Aires, Paidós, 2002, p. 39.

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inaugurando novas formas de funcionamento. Um exemplo é o que
ocorre com os telefones celulares conectados à internet, que os alu-
nos usam cada vez mais nas salas de aula do mundo inteiro e de to-
dos os níveis de ensino, desativando assim a velha funcionalidade
das paredes escolares como mecanismos de poder.15 Desse modo, na-
quele sucinto ensaio escrito há mais de vinte anos, tão condensado
quanto fértil, o filósofo francês criou o conceito de “sociedades de
controle” para designar esse novo tipo de formação social que então
apenas começava a se delinear.
Marcada pelas mudanças rápidas e constantes, a sociedade con-
temporânea coloca em jogo certas estratégias ou “técnicas de poder”
cada vez mais sutis e menos evidentes. Entretanto – e, em boa medida,
porque recorrem ao prazer e à diversão, não apenas à repressão ou à
obrigação –, elas parecem ter agregado eficácia, permitindo exercer
um controle total em lugares abertos e fechados, burlando todos os
limites espaciais e temporais que poderiam obstaculizá-las. Por isso,
com os avanços das redes informáticas, por exemplo, os sólidos mu-
ros daqueles edifícios que organizaram as engrenagens da sociedade
industrial estão rachando: tanto os colégios como as fábricas, os hos-
pitais, os cárceres e outras instituições semelhantes estão em crise.
Mas surge um interessante paradoxo: junto com esses duros tijolos,
dissolvem-se também os limites que confinavam o alcance das anti-
gas técnicas disciplinares. Nessa transição, porém, não há somente
ruínas; ao contrário, muitos desses mecanismos de outrora ganham
sofisticação, alguns se intensificam e outros mudam radicalmente.
Na medida em que perde força a velha lógica serial (fechada e ge-
ométrica, progressiva e analógica) das sociedades disciplinares, emer-
gem novas modalidades apoiadas na tecnologia digital, que se espa-
lham aceleradamente por toda parte. Assim, o modo de funcionamento
associado aos novos dispositivos de poder é total e constante, opera
velozmente e em curto prazo. Sua impulsividade e sua ubiquidade
costumam ignorar todas as fronteiras: atravessam espaços e tempos,
devorando tudo o que poderia ter ficado de fora e desativando as al-

15 Paula Sibilia, Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão, Rio de Janeiro, Con-
traponto, 2012.

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ternativas que se interpõem em seu caminho. Por isso, apesar da leve-
za e dos tons coloridos com que costuma se apresentar, a nova confi-
guração socioeconômica e política pode ser vista como “totalitária”
num novo sentido: nada, nunca, parece estar fora de controle. Mas
essa vigilância multíplice é diferente daquela que vigorava algum tem-
po atrás: descentralizada e distribuída, costuma ser voluntária e até
mesmo desejada, além de se mimetizar com os roteiros do espetáculo
e do entretenimento que também se expandem. De tudo isso deriva,
portanto, sua enorme eficácia. Assim foi se delineando, nos últimos
anos, o surgimento de um novo regime de poder e saber, ligado ao
capitalismo pós-industrial, que alguns denominam “imaterial”.
Apesar de todas essas mudanças atualmente em curso, porém,
não há dúvida de que o emblemático relógio – aquele aparelhinho
singelo e implacável – continua liderando o cenário global. Mas ele
também não deixou de sofrer a atualização de praxe, que o fez pas-
sar das velhas leis mecânicas e analógicas para os reluzentes fluxos
informáticos e digitais. A função do relógio foi completamente inter-
nalizada nos últimos dois séculos, com uma proliferação de modelos
nos lares do mundo inteiro, nos prédios e nas ruas das cidades, e in-
clusive embutidos nos pulsos das pessoas e nos artefatos de uso coti-
diano. Longe de perder vigência, portanto, ainda persiste o clássico
lema burguês que contribuiu para forjar a ética capitalista com seu
selo protestante: “tempo é dinheiro.” A frase é quase uma homilia,
inscrita na Constituição dos Estados Unidos e assinada originalmen-
te por Benjamin Franklin, cujo rosto ilustra as notas de cem dólares
que hoje circulam pelos mercados globais.
A transição dos relógios analógicos para os digitais, todavia, sugere
algumas pistas interessantes: nos novos modelos, o tempo perdeu os
interstícios. O próprio aparelho específico tende a desaparecer, para se
incrustar em todos os outros e se diluir por toda parte. Como ocorre
com as instituições de confinamento, parece que também aqui os mu-
ros estão desabando: o tempo não é mais compartimentado geometri-
camente, passando a ser um contínuo fluido e ondulante, sempre esco-
ando e nunca suficiente. Mais uma vez, o relógio serve como emblema
e como sintoma, expressando em seu corpo maquínico a intensifica-
ção e a sofisticação da lógica disciplinar na sociedade de controle.

O homem pós-orgânico 29
Do produtor disciplinado ao consumidor controlado

Prefiro não fazer.


16
Bartebly

Só os paranoicos sobrevivem.
17
Andrew Grove

De acordo com o quadro analisado por Foucault, a sociedade indus-


trial se caracterizou pela implementação de novos mecanismos de
poder e de saber, bem mais eficazes e argutos do que aqueles vigentes
nos modos de vida pré-modernos. Isso foi possível, em boa medida,
graças aos conhecimentos que as ciências ajudaram a acumular, além
de toda uma mitologia própria dessa cultura que foi se instalando,
com seus fortes valores e crenças colocados a serviço da aparelhagem
capitalista e da modernização do mundo.
Tais métodos substituíram os rudes hábitos da escravidão, por
exemplo, pois “é elegância da disciplina dispensar essa relação cus-
tosa e violenta obtendo efeitos de utilidade pelo menos igualmente
grandes”.18 Assim, sem contradizer seus projetos de emancipação ins-
pirados nos ideais ilustrados e nas revoluções democráticas, as socie-
dades industriais desenvolveram toda uma série de dispositivos desti-

16 Bartebly, o escriturário [1891] (Rio de Janeiro: Rocco, 1986) é uma novela com ecos
kafkianos, de Herman Melville, cujo protagonista se recusa a obedecer às ordens de seu
empregador, um advogado com escritório numa rua de nome nada inocente, já no sécu-
lo XIX: Wall Street. O pacífico Bartebly acaba tendo um triste fim na prisão municipal.
17 Só os paranoicos sobrevivem (São Paulo: Futura, 1997) é o título de um best-seller so-
bre a vida empresarial na indústria teleinformática, escrito por Andrew Grove, famoso
diretor da companhia Intel quando esta liderava o mercado mundial de microprocessa-
dores. De acordo com o executivo, nos atuais ambientes de feroz competitividade e de
constantes inovações, a única possibilidade de triunfar é recorrendo à paranoia cons-
tante: “ter a sensação permanente de ameaça”. Por isso, para o autor, os trabalhadores
contemporâneos deveriam planejar suas carreiras como os empresários administram
seus negócios: detectando as funções que vão desaparecendo e procurando sempre “o
momento adequado para mudar”.
18 Michel Foucault, Vigiar e punir, Petrópolis, Vozes, 1977.

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nados a moldar os corpos e as subjetividades de seus cidadãos, a fim
de extrair deles o maior proveito possível. Mais elegante e eficaz, en-
tão, a sociedade moderna não precisou acorrentar nem açoitar os ope-
rários, conseguindo que eles voltassem no dia seguinte para trabalhar
nas fábricas por livre vontade e não pelo uso explícito da violência.
Essas tecnologias disciplinadoras foram rigorosamente aplicadas
nas diversas instituições de confinamento que compunham o tecido
social sob os cuidados de cada Estado-Nação: escolas, fábricas, ca-
sernas, hospitais, prisões, inclusive casas de família. Entre os dispo-
sitivos de poder tipicamente modernos que operavam nesses locais,
cabe destacar a arquitetura panóptica (que visava a interiorizar a
vigilância), a técnica da confissão (que instava a falar por meio de
um constante exame de si mesmo) e a regulamentação do tempo de
todas as criaturas humanas, desde o nascimento até a morte. Tais
mecanismos promoveram uma autovigilância generalizada, cujo ob-
jetivo era a normalização de todos os sujeitos; em outras palavras,
sua sujeição às normas. Por isso Foucault as denominou tecnologias
de biopoder, ou seja, de um poder que focalizava diretamente a vida,
administrando-a e modelando-a para adequá-la à normalidade e,
com isso, canalizar produtivamente suas energias e potências.
Como resultado desses processos, foram se configurando certos
tipos de corpos e determinados modos de ser com um inegável selo
histórico: nasciam, assim, os homens, as mulheres e as crianças da
era moderna. Sem ignorar a variedade e a riqueza inerentes a esses
bilhões de indivíduos, mas, ao contrário, desenvolvendo essas singu-
laridades para capitalizá-las da melhor forma possível, os dispositi-
vos de biopoder da sociedade industrial visavam a obter deles certa
docilidade corporal. Assim, os organismos humanos foram adestra-
dos para alimentar as engrenagens da produção fabril e as fileiras
dos exércitos nacionais. Por isso, tais corpos não eram apenas dó-
ceis, mas também úteis, já que respondiam e serviam a determinados
interesses econômicos e políticos. Cabe esclarecer, no entanto, que
essa intencionalidade nunca foi subjetiva: os interesses que sustenta-
ram o capitalismo de base industrial são bastante claros, podem ser
detectados ou descritos com facilidade, porém também são anôni-
mos; não têm rostos, donos ou nomes próprios que os identifiquem

32 Paula Sibilia
de maneira objetiva e imutável. Trata-se, portanto, de um projeto
histórico, coletivo e consensual, embora sempre em pugna com ou-
tras forças que resistem e lutam tentando se impor.
Essa formatação dos corpos modernos era complexa, também,
porque tinha uma dupla fisionomia: o processo devia conjugar uma
série de estímulos e repressões ao mesmo tempo, num difícil equi-
líbrio que sempre corria riscos de ser desafiado. Por um lado, as
forças corporais eram incrementadas, desenvolvidas e estimuladas,
para serem aproveitadas em termos econômicos de utilidade. Nesse
sentido, era a aptidão do sujeito adestrado que se potencializava
por meio de um conjunto de treinamentos e capacitações. Por outro
lado, as energias corporais também deviam ser diminuídas, sendo
subjugadas em termos políticos de obediência. Neste caso, era a
dominação do sujeito disciplinado que ficava acentuada, graças à
imposição e ao cumprimento de regras ou normas sob um estrito
esquema de vigilância. Assim, nesse complicado esforço cotidiano,
as sociedades industriais pretendiam gerar corpos submissos e pro-
dutivos, dispostos a trabalhar no âmbito das escolas e das fábricas,
por exemplo, enquanto suas potências políticas eram sufocadas a
fim de inibir as tentativas de rebelião.
Contudo, embora os investimentos biopolíticos nos corpos mo-
dernos estivessem inextricavelmente ligados à sua utilização econô-
mica, há um detalhe muito importante: a capacidade de opor resis-
tência está sempre presente e é um componente fundamental desses
movimentos históricos. Essa força opositora é inerente às relações de
poder – aliás, por definição: de acordo com a perspectiva foucaultia-
na, se não houver possibilidades de resistir, então simplesmente não
se trata de uma relação de poder, pois as situações desse tipo só po-
dem envolver “sujeitos livres”. Ainda assim, e mesmo que sempre
haja alguma capacidade de negociação ou mesmo de insurreição, em
todas as sociedades o corpo está imerso numa série de redes que lhe
impõem certas regras, obrigações, limitações e proibições. No caso
específico do mundo capitalista e industrial, as diversas manifesta-
ções do biopoder tinham como principal objetivo converter os cor-
pos e o tempo dos indivíduos em força produtiva, tendo a máquina
como modelo e como metáfora inspiradora.

O homem pós-orgânico 33
Mas foi necessária a elaboração e a colocação em prática de todo um
arsenal de técnicas minuciosas, inscritas em diversas estratégias de orto-
pedia social, para converter os seres humanos em trabalhadores a servi-
ço do capitalismo industrial. De acordo com essa perspectiva, portanto,
e considerando sua avara definição como força braçal a serviço do capi-
tal, o trabalho estaria longe de constituir “a essência do homem”, como
postularam vários filósofos dos últimos séculos – dos arautos do Ilumi-
nismo até muitos dos seguidores de Marx, um dos críticos mais con-
tundentes e sagazes dessa configuração histórica. Para construir social-
mente o produtor disciplinado foi necessária uma complicada operação
política: aprisioná-lo num determinado regime de poder e submetê-lo
a um conjunto de regras e normas, demandando um jogo muito com-
plexo de relações de poder capilares, micropolíticas, capazes de fixar os
corpos e as subjetividades ao aparelho de produção capitalista.
Atualmente, porém, e apesar de todas as evidentes continuidades
desse universo, vivemos num contexto bem diferente daquele que ser-
viu de palco à sociedade moderna em seu apogeu industrial. Portanto,
cabe supor que estão emergindo novos modos de subjetivação, distin-
tos daqueles que produziram os corpos dóceis e úteis dos sujeitos dis-
ciplinados descritos por Foucault, ou mesmo daqueles que lutaram
fervorosamente contra essas tentativas de disciplinamento. O capita-
lismo contemporâneo se ergue sobre uma imensa capacidade de pro-
cessamento digital e metaboliza as forças vitais com voracidade inau-
dita, lançando e relançando constantemente no mercado novos
produtos, serviços e subjetividades. Estas últimas constituem merca-
dorias muito especiais, que são adquiridas e de imediato descartadas
pelos diversos tipos de consumidores aos quais se destinam, alimen-
tando uma espiral de consumo em aceleração crescente. Assim, a ilu-
são de uma identidade fixa e estável, característica da sociedade mo-
derna e industrial, vai cedendo terreno aos “kits de perfis-padrão” ou
“identidades prêt-à-porter”, segundo as denominações da psicanalista
brasileira Suely Rolnik.19 Trata-se de modelos subjetivos efêmeros, des-
cartáveis, sempre vinculados aos voláteis interesses do mercado.

19 Suely Rolnik, “Toxicômanos de identidade: subjetividade em tempo de globalização”,


in Daniel Lins (org.), Cadernos de subjetividade, Campinas, Papirus, 1997.

34 Paula Sibilia
Se o que se deseja compreender aqui é o impacto das transformações
mais recentes na produção de corpos e subjetividades, uma primeira
pista pode surgir da comparação entre as lógicas de funcionamento do
regime disciplinar, por um lado, e da sociedade de controle, por outro.
A primeira operava por moldes e visava à adequação às normas, pois
era ao mesmo tempo massificante e individualizante: num bloco único
e homogêneo, como foram pensadas então as massas ou o povo, por
exemplo, modelavam-se os corpos e as subjetividades de cada indivíduo
em particular. Já na sociedade contemporânea, tanto as noções de
massa e de povo quanto a própria ideia de indivíduo moderno estão
perdendo força. No lugar dessas figuras, outras emergem. O papel do
consumidor, por exemplo, assume relevância cada vez maior. Mais do
que integrar uma massa ou um povo – como os cidadãos dos Estados-
-Nação da era industrial –, ele faz parte de diversas amostras, nichos de
mercado, segmentos de público e bancos de dados.
Os métodos de identificação dos habitantes de cada país ilustram
essa transição do mundo analógico para o universo digital. Por um
lado, o documento pessoal representa o impulso massificante e indivi-
dualizante da sociedade industrial, como um elemento fundamental na
fixação de corpos e subjetividades dessa formação social; tal é função
da carteira de identidade, por exemplo. Essa cédula faz referência a um
Estado-Nação, contém um número que localiza o indivíduo dentro da
massa, uma foto, uma assinatura e uma impressão do dedo polegar
– todos dados analógicos. De outro lado, o sujeito da sociedade con-
temporânea detém cada vez mais cartões com chips e senhas de acesso
– todos dispositivos digitais. De maneira crescente, a identificação do
consumidor passa pelo seu perfil: uma série de dados sobre sua con-
dição socioeconômica, seus hábitos e suas preferências de consumo.
Todas essas informações se acumulam por meio do preenchimento de
fichas de cadastro e formulários de pesquisas, que são processados
digitalmente para serem armazenados em bancos de dados conectados
em rede. Estes, por sua vez, serão acessados, vendidos, comprados e
usados pelas empresas em suas estratégias de marketing. Desse modo
o consumidor passa a ser, ele mesmo, um produto à venda.
Um exemplo desse processo é uma tendência bem atual que se
verifica, sobretudo, na internet, onde as empresas mais cotadas do

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momento oferecem uma variedade de serviços gratuitos a grandes
quantidades de usuários, em troca dos quais estes devem fornecer
dados sobre seus perfis. Tais informações são muito valiosas em ter-
mos de marketing, pois permitem enviar publicidade direcionada de
acordo com cada tipo de consumidor, além de terem uma infinidade
de outros usos, atuais ou futuros. Assim, sem pedir dinheiro em tro-
ca, são oferecidos serviços cada vez mais fundamentais para os sujei-
tos contemporâneos: contas de correio eletrônico ou páginas nas re-
des sociais, espaço para armazenar ou compartilhar arquivos, bem
como para publicar sites ou blogs, acesso ao conteúdo de revistas e
jornais, sistemas de busca de informações, inclusive a própria cone-
xão à internet. Mas, em todos esses casos, o produto comprado e
vendido é ele: o consumidor.
Nos diversos âmbitos da sociedade contemporânea, portanto, é pos-
sível detectar certo deslocamento das referências. O sujeito é definido
cada vez menos em função do Estado-Nação como território geopolíti-
co no qual nasceu ou reside e, cada vez mais, em virtude do seu relacio-
namento com as corporações do mercado global: tanto aquelas cujos
produtos e serviços ele consome como aquelas para as quais ele vende
seus próprios serviços. Esta tendência foi anunciada há tempos na lite-
ratura de ficção científica, especialmente em certos contos, romances e
filmes afiliados à estética cyberpunk do final do século XX. Em alguns
relatos de William Gibson, por exemplo, os personagens dispensavam
o passaporte como documento pessoal de identidade. Nesses cenários
de um futuro que já então era verossímil, para se movimentar pelo
planeta interconectado bastava contar com os cartões digitais que cre-
denciavam o vínculo do portador com uma determinada empresa.
Às vezes, também naqueles relatos futuristas que já estão ficando
antiquados, no lugar do cartão eram utilizados pequenos chips colo-
cados sob a pele. Essa tecnologia já está disponível há um par de
décadas e, de fato, é utilizada habitualmente para identificar o gado
produzido em grande escala. No final do século XX, porém, tais
dispositivos começaram a ser comercializados como uma solução
para monitorar crianças e idosos – inclusive, como uma forma de
prevenção contra sequestros. Os organismos oficiais dos Estados
Unidos, por exemplo, já no início do novo milênio, aprovaram um

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chip subcutâneo com a identificação pessoal e clínica do portador,
para ser usado em emergências médicas. Do tamanho de um grão de
arroz, esses aparelhos são colocados sob a pele do braço ou da mão
com uma seringa; depois, quando for necessário, seu conteúdo pode
ser lido usando-se um escâner que proporcionará dados capazes de
agilizar o acesso aos registros clínicos do paciente. Com os avanços
nessa tecnologia, em 2012, chips desse tipo foram incorporados aos
uniformes escolares de algumas escolas brasileiras, por exemplo,
com o fim de enviar mensagens de texto aos celulares dos pais quan-
do as crianças atravessam os portões do colégio.
Voltando à oposição entre as velhas carteiras de identidade e essas
novidades tão características da sociedade de controle, que também
incluem os dispositivos biométricos de identificação, cabe aludir à
ironia contida num enorme cartaz que dominava, já na década de
1990, o setor de imigração do aeroporto de Nova York. Uma publi-
cidade do cartão de crédito American Express saudava assim as pes-
soas de diferentes países que faziam longas filas para ingressar legal-
mente nos Estados Unidos: If you have an American Express, you
don´t need a visa [Se você tem um American Express, não precisa de
visa]. Tratava-se de um trocadilho evidente com a marca Visa – prin-
cipal concorrente da companhia anunciante – e o termo visa, que
tanto em inglês como em espanhol significa “visto”. De fato, possuir
um cartão dessas marcas habilitava – ou, pelo menos, ajudava bas-
tante – os latino-americanos que procuravam obter o desejado visto
de turista que lhes permitiria entrar naquele país.
Assim, enquanto os cidadãos do mundo globalizado vão incorpo-
rando seus papéis de consumidores, a empresa impõe seus valores e
sua lógica a todas as instituições. Em plena era moderna, sempre de
acordo com as teorias de Foucault, tal função cabia à prisão, que
operava como o modelo analógico da fábrica e das demais institui-
ções de confinamento. Agora, porém, observa-se uma transição do
produtor disciplinado, aquele sujeito das fábricas e das escolas, para
o consumidor controlado: o sujeito empresarial. Nessas organiza-
ções sociais mais atuais, não há donos ou patrões claramente identi-
ficáveis: em meio a hierarquias confusas, como advertira Deleuze já
na década de 1990, os gerentes abundam e os operários tendem a

O homem pós-orgânico 37
desaparecer. Nesse cenário que ainda está em mutação, não surpre-
ende que tenham perdido efetividade as práticas de resistência carac-
terísticas das sociedades disciplinares: das greves e passeatas mais
tradicionais até todas as outras ações sindicais nelas inspiradas.
As modalidades de trabalho também mudam e se expandem, tanto
no espaço como no tempo. Abandonando o esquema dos horários fi-
xos e das jornadas laborais estritamente delimitadas em rígidas coor-
denadas espaçotemporais, os novos hábitos privilegiam contratos de
curto prazo e enaltecem a flexibilidade, com base na execução de pro-
jetos sem compromissos jurídicos adicionais. Os muros das empresas
também desabam: os funcionários ou colaboradores são aparelhados
com tecnologias de conexão permanente (telefones móveis, computa-
dores portáteis, acesso à internet, dispositivos de geolocalização) que
embaçam os limites entre lugar de trabalho e lugar de lazer, tempo
de trabalho e tempo de lazer. Tais “coleiras eletrônicas” – como as
batizara Deleuze, em alusão aos sistemas que permitem monitorar
os presos em regimes semiabertos – constituem apenas uma das vá-
rias formas sociotécnicas de controle que hoje se desenvolvem. Afinal,
isso ocorre numa era que apregoa a digitalização total e na qual tudo
pode ser monitorado, ou deveria poder sê-lo, pois se considera dese-
jável que todos estejam sempre disponíveis, ligados, on-line.
Nesse mundo “sem fora”, o confinamento está perdendo vigor
e eficácia como a principal técnica para dominar os corpos huma-
nos e extrair deles a maior produtividade possível. Corroborando
as intuições esboçadas por Deleuze há quase um quarto de século, o
homem confinado pelos muros das instituições disciplinares, sujei-
to à vigilância de um olhar centralizado e constante que o submete
à norma, está cedendo lugar ao homem endividado da sociedade
contemporânea. Detentor de cartões bancários que oferecem acesso
aos bens e serviços por meio do uso de senhas em sistemas digitais,
o consumidor é condenado à dívida perpétua. De todas as cifras e
senhas que canalizam os fluxos informáticos do mundo contemporâ-
neo, os números do cartão de crédito ou os dados bancários figuram,
por exemplo, entre os mais cotados nos shoppings da internet, essa
rede mundial que se erige como um dispositivo emblemático da atual
sociedade de controle.

38 Paula Sibilia
A lógica da dívida sugere algumas pistas interessantes acerca das
novas modalidades de formatação de corpos e subjetividades. Dife-
rentemente do que acontecia no capitalismo ancorado no firme solo
industrial, o endividamento, em sua versão contemporânea, não
constitui um estado de exceção. Trata-se, ao contrário, de uma con-
denação permanente. Convertida numa espécie de moratória infinita,
agora a dívida não existe para ser quitada, mas para permanecer eter-
namente como tal: flexível, instável, negociável, contínua. De manei-
ra paradoxal, não ter dívidas chega a ser um sinal de pobreza, pois
significa não ter acesso ao crédito, não ter credibilidade no mercado.
Isso não se refere apenas ao plano mais banal e imediato do dinheiro:
a dívida se instala como uma capciosa modalidade de sujeição em to-
dos os âmbitos, particularmente nos modos de lidar com o tempo. No
século XXI, ninguém tem tempo para nada: todos correm sem parar
e estão sempre atrasados, com uma infinidade de tarefas ou prazeres
pendentes, que não cessam de se acumular e, em consequência, per-
manecem ansiosamente protelados e em constante aumento.
Cabe notar, contudo, que em certo sentido essas mudanças não são
tão radicais como parecem: tanto o antigo sistema de confinamento,
disciplina e vigilância, quanto a nova modalidade de consumo desen-
freado e dívida ilimitada constituem, ambos, mecanismos de exclusão.
A miséria da maioria da população mundial parece ser uma caracterís-
tica estrutural do capitalismo, em todas as épocas e em todos os luga-
res em que foi implementado. Se, no apogeu industrial, um grande
contingente permanecia nas margens do esquema disciplinar em razão
de seus membros serem “numerosos demais para o confinamento”,
agora eles se revelam “pobres demais para a dívida”. E o que é ainda
pior: em grau e proporção crescentes.20 Estima-se que em 1750, quan-
do o mundo começava a violenta aventura da industrialização, a dife-
rença econômica entre os países mais ricos e os mais pobres era de
cinco para um; em comparação, projeções dadas a conhecer no ano
2000 sugeriam que tal brecha se alargou 390 vezes, e nada indica que
esse brutal movimento centrífugo será detido ou amenizado.

20 Gilles Deleuze, “Postscriptum sobre as sociedades de controle”, Conversações, Rio de


Janeiro, Editora 34, 1992, p. 224.

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Longe de minguar em seus efeitos, a virulência dos dispositivos de
exclusão socioeconômica parece estar aumentando sem alardes, en-
quanto o marketing se transforma num poderoso instrumento de con-
trole social e forma “a raça impudente de nossos senhores”, para reto-
mar as palavras de Deleuze. Nesse contexto, os métodos tradicionais
de luta política vêm perdendo eficácia, enquanto novas modalidades
começam a ser ensaiadas. Por isso, o filósofo francês instou a busca de
novas armas em seu célebre artigo de 1990: ferramentas políticas ino-
vadoras que venham a ser capazes de abalar os circuitos integrados do
novo regime de poder, desestabilizando suas certezas e abrindo o hori-
zonte para a emergência de outras possibilidades. Como bem concluiu
então esse autor, cabe aos jovens descobrir “a que estão sendo levados
a servir”, assim como seus bravos antecessores delataram “não sem
dor” os cruéis mecanismos da sociedade industrial.21

21 Gilles Deleuze, op.cit., p. 224 e 226.

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