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Introdução: do tema
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.[1]
Da kinesis grega...
Quando voltamos a atenção para os antigos, como nas reflexões de Heráclito que
sobreviveram ao tempo, percebemos a noção de constante mudança (kinesis) mobilizou o
pensamento antigo. Entretanto, observou-se, nem por isso a realidade afasta seu aspecto de
permanência; sua "realidade ôntica", diria Parmênides.[2]
Esse modo de pensamento, qualitativo, ainda hoje está presente nas nossas vidas. E até hoje
a filosofia não superou a dicotomia entre idealismo e realismo, até porque ambos os lados da
famigerada disputa possui bons argumentos e importantes edifícios filosóficos.
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Em grande parte, é bom que se diga, que esses desenvolvimentos tiveram fortes influências
dos povos com que os europeus tomaram contato. Em especial, povos indianos, povos árabes
(muçulmanos ou não), povos do norte da África... Essas influências estão presentes por todos
os lados: na língua, nos números, no calendário, na medicina... e na filosofia. De fato, é
possível que só tenhamos textos de Aristóteles graças às versões conservadas em árabe, sem
falar de filósofos importantes como Al-Farabi, Averrois e Avicena.
Numa nova revolução, novamente impulsionada pela ciência, mas de mãos dadas com o
capitalismo, o século XX assistiu ao advento do computador pessoal e da internet, suplantando
o suporte físico (inclusive, do livro) pelo digital, abrindo horizontes ainda imperscrutáveis para a
presença das máquinas na vida humana. Por máquina, aqui, não me refiro apenas a objetos
físicos, mas a aplicações, que são conjuntos de comandos e bancos de dados que reagem a
cenários e até se desenvolvem a partir dos cenários encontrados (machine-learning).
O termo algoritmo define um sistema fechado de comandos que se comporta de acordo com
as entradas (os inputs) que recebe. Uma conta de multiplicar não deixa de ser um algoritmo.
Mas também é a decisão do Google Maps de virar à direita, de acordo com as condições do
trânsito, ou de um carro autônomo de fazer uma brecada brusca para não atropelar um
pedestre desatento.
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... e o tecnofeudalismo
A Amazon Alexa, por exemplo, nada mais é do que (...) um sistema totalitário centralizado
criado para satisfazer seu proprietário, Jeff Bezos. (...) nos treina para dizer o que
queremos. Vende-nos (...) independentemente de qualquer mercado real. Nos faz
reproduzir seu capital na nuvem (...) Isto não é capitalismo. Bem-vindo ao
tecnofeudalismo!"[4]
Desde meados do século XX, mas sobretudo as últimas décadas vêm produzindo
transformações radicais nos nossos modos de vida; essas transformações se combinam umas
às outras, de modo que não temos tempo suficiente de refletir sobre elas até que uma nova
transformação nos atinja.
Entre elas, para os proponentes do conceito, vivemos uma nova fase do capitalismo, o
tecnofeudalismo, que pode ser explicado como uma evolução inerente ao sistema. Ele passa a
se valer dos dados das pessoas para intensificar a exploração e condicionar o fornecimento
dos produtos a um pequeno número de conglomerados, concentrando ainda mais a riqueza e
ampliando a desigualdade.
A comparação com o sistema feudal pode não ser tão simples, mas começa a ficar evidente se
observarmos um exemplo. DEAN (2022) aponta as discrepâncias entre o discurso da Uber e
suas práticas. Chamados de colaboradores, os motoristas não controlam suas condições de
trabalho e remuneração. "Não tem voz na negociação de seus contratos.":
Nesse sentido, Juliet Schor (After the gig, 2020, apud DEAN 2022), considera "as novas
plataformas de trabalho online como uma recriação moderna de uma forma econômica
baseada na servidão." Por uma série de fatores, mas que podemos sintetizar no investimento
restrito nos meios de produção (os motoristas usam seus próprios veículos), diversos
estudiosos concordam nessa nova conceituação.
Além disso, esse novo modo de vida restrito, no qual as pessoas aparentemente "podem
trabalhar a qualquer hora e de qualquer lugar" e tem em mãos "tudo do que precisam" (o
celular), pode produzir um sentimento de aldeia, nos quais as fronteiras são a própria atenção
humana, que se limita a fronteiras digitais de consumo e trabalho e suas próprias bolhas
ideológicas.
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1. CAMÕES, Luís Vaz de Obras completas, Tomo II. Soneto LVII. Lisboa, 1843. ↩︎
2. MARÍAS, Julián. "Heráclito". Conferência para o curso "Los estilos de la Filosofía”. Madri, 1999/2000. Ed. Jean Lauand.
Trad. Elie Chadarevian. Disponível em: http://www.hottopos.com/harvard3/jmheracl.htm. Acesso em 22.03.2024. ↩︎
3. CROSBY, Alfred W. A mensuração da realidade: a quantificação e a sociedade ocidental. trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Ed.
Unesp, 1999. CROSBY, Alfred W. The measure of reality. Cambridge, 1996. ↩︎
4. VAROUFAKIS, Yanis. "O capitalismo está morto." El país, 7.10.2023. Entrev. Miguel Ángel García Vega. Trad. Unisinos.
https://www.ihu.unisinos.br/categorias/633178-yanis-varoufakis-o-capitalismo-esta-morto-a-nova-ordem-e-uma-economia-
tecnofeudal Orig. "Yanis Varoufakis: 'El capitalismo está muerto. El nuevo orden es una economía tecno-feudal'" Disponível
em: https://elpais.com/economia/negocios/2023-10-07/yanis-varoufakis-el-capitalismo-esta-muerto-el-nuevo-orden-es-una-
economia-tecno-feudal.html ↩︎
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