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Nº DOI: 10.18065/RAG.2019v25.

GESTALT-TERAPIA: UM MÉTODO DE TRABALHO PARA


O PROCESSO SAÚDE-DOENÇA EM ONCOLOGIA
Gestalt-terapy: a method of work for the health-disease process in oncology
Gestalt-therapy: un método de trabajo para el proceso de salud- enfermedad en oncología

Mariana Correia Lacerda


Lílian Cherulli de Carvalho
Jorge Ponciano Ribeiro

Resumo: A Gestalt-terapia é proposta como um método de trabalho para atendimentos, intervenções, acompanhamen-
tos psicológicos e psicoterapia no tratamento oncológico. Por olhar o ser humano em sua totalidade, essa abordagem
proporciona a abertura de consciência aos indivíduos para que não se percebam somente como pessoas adoecidas e
entendam as implicações causadas por essa experiência, desenvolvendo ajustamentos criativos e ampliando o contato
consigo, com o mundo e com o próprio adoecer. O processo saúde-doença é concebido nesse artigo como um proces-
so complexo, pensa-se sobre a importância da atuação do psicólogo ao longo de todo o caminho para a saúde, como
agente que media a relação do sujeito com o adoecimento, partindo dos paradigmas da Psicologia da Saúde, Psicologia
Hospitalar e Psico-oncologia.
Palavras-chave: Gestalt-terapia; Psicologia da Saúde; Psico-oncologia, Oncologia; Saúde-Doença.

Abstract: Gestalt-therapy is propose as a method of psychological treatment, interventions, counselling and psycho-
therapy in cancer treatment. By looking at the human being as a totality, this approach provides the opening of
conscience to individuals so that they do not see themselves only like sick persons and understand the implications
caused by this experience, developing creative adjustments and expanding contact with themselves, with the world
and with their own sickness. The health-disease process is considered in this article as a complex process. It reflects
upon the importance of the psychologist in all the way to health, as an agent that mediates the individual relationship
with the illness, based on the paradigms of Health Psychology and Oncology Psychology.
Keyword: Gestalt-Therapy; Health Psychology; Oncology Psychology; Oncology. Health-Disease.

Resumen: La Gestalt-terapia se propone como un método de trabajo para la atención, intervenciones, acompañamientos
psicológicos y psicoterapia en el tratamiento del cáncer. Al observar el ser humano en su totalidad, este enfoque pro-
porciona abertura de conciencia a las personas para que no se consideren sólo como personas enfermas y entiendan las
consecuencias causadas por esta experiencia, el desarrollo de ajustes creativos y aumentando el contacto con si mismo,
con el mundo y con los enfermos a sí mismo. El proceso de salud-enfermedad está diseñado en este artículo como un
proceso complejo, se piensa acerca de la importancia del psicólogo a lo largo de todo el camino a la salud, como un
agente que media en la relación del sujeto con la enfermedad, a partir de los paradigmas de Psicología de la Salud y la
Psicogía Oncológica.
Palabras Clave: Gestalt-terapia; Psicología de la Salud; Psicogía Oncológica; Oncología; Salud-Enfermedad.

Introdução de se tratar. Amplia as oportunidades para que o pa-


ciente possa ser mais do que um sujeito acometido
Nas instituições de saúde e também nos mode- por uma determinada patologia como, por exemplo,
los terapêuticos comumente aceitos verifica-se que o câncer, e sim um indivíduo que pode manifestar
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o ser humano adoecido é obrigado a deixar de lado suas emoções durante e após seu tratamento, a res-
seus sentimentos e aflições para se tornar “pacien- peito de assuntos direta ou indiretamente relacio-
te”, posicionando-se de forma passiva durante o nados à vivência do adoecimento.
tratamento da doença. Deve-se levar em considera- Nesses termos, há que se refletir sobre o fazer
ção, contudo, que além de sua individualidade, no profissional do psicólogo inserido nas instituições
curso de sua existência real e produtiva, existe uma de cuidado da saúde, considerando sua atuação se-
diversidade de aspectos inter-determinados que en- gundo paradigmas da Psicologia da Saúde, da Psi-
volvem o processo saúde-doença e que o indivíduo cologia Hospitalar e da Psico-oncologia. Inserimos,
é composto por fatores biofisológicos, psicológicos, então, a Gestalt-terapia como um método de traba-
espirituais, sociais, culturais e econômicos. lho no processo saúde-doença, analisando a impor-
A partir dessas considerações, pensa-se na tância do atendimento, do acompanhamento, da
presença fundamental do psicólogo durante o pro- intervenção psicológica e do trabalho em psicotera-
cesso de adoecimento. Esse profissional oferece pia em todo o processo de adoecimento-tratamento,
espaço para que a pessoa adoecida expresse seus durante o tratamento oncológico.
sentimentos, fale sobre sua doença, seu sofrimento, Sabemos que a doença física é acompanhada
posicionando-se de modo mais autônomo e empo- por manifestações emocionais, sendo a experiência
derado diante da própria experiência de adoecer e de estar doente vivenciada e representada de forma

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Mariana Correia Lacerda, Lílian Cherulli de Carvalho, Jorge Ponciano Ribeiro

única pela pessoa. A relação entre psique e câncer psicóloga provocou nos assistidos nos períodos de
é evidente e tem sido estudado desde Hipócrates, antes, durante e após o tratamento oncológico, mais
como cita o oncologista, professor e pesquisador especificamente em quimioterapia, radioterapia e
Weber (2012), e ainda hoje se buscam essas articu- cirurgia. Tal diferença pode ser justificada por meio
lações. Para o oncologista, o estar com câncer não das observações verbalizadas pelos próprios pa-
é um evento traumático: o que é traumático são os cientes durante os atendimentos psicológicos e nas
pensamentos e emoções associados ao adoecimen- reuniões em equipe multiprofissional.
to, como pensamentos de dor, morte, e debilidade, Os pacientes, de fato, falam sobre o processo
razão pela qual destacamos a importância do psi- de adoecimento para muitas pessoas e profissio-
cólogo no processo de adoecimento oncológico e nais, mas é nos atendimentos psicológicos que eles,
introdução da Gestalt-terapia como método de tra- enquanto indivíduos, encontram um espaço sem
balho nesse contexto. julgamentos para falar e serem compreendido sobre
Frederick Perls, um dos fundadores da Ges- como é estar com câncer, encontrando acolhimento
talt-terapia, foi um “profundo conhecedor do ser e compreensão sobre seu adoecimento.
humano e foi buscar onde pôde os conhecimentos O encontro fecundo entre a Gestalt-terapia e
necessários a esta compreensão” (Weber, 2012, p. a Oncologia se dá justamente pela necessidade de
114), tendo sido influenciado em seu pensamento acolher esses indivíduos em seu aqui-e-agora, de
pela Psicanálise, pela análise do caráter de Reich atendê-los com base no olhar fenomenológico e hu-
e pelas religiões orientais do Taoísmo e Zen-Bu- mano, de acolher esse ser humano em adoecimento
dismo. A compreensão de mundo e de pessoa da físico e psicológico. Esta é a razão de propormos a
Gestalt-terapia, parte de elementos das teorias do Gestalt-terapia como uma metodologia descritiva e
Campo, do Holísmo e da Psicologia da Gestalt, bem compreensiva para os atendimentos psicológicos e
como dos pressupostos filosóficos do Humanismo, psicoterapêuticos relacionados ao processo saúde-
da Fenomenologia e do Existencialismo. -doença em oncologia. Por ser uma abordagem di-
Para Ginger e Ginger (1995), a Gestalt-terapia nâmica, detém um conjunto de instrumentos para
enfatiza o aqui-agora, pela tomada de consciência a ampliação de consciência sobre o adoecimento,
da experiência atual abrindo espaço para a percep- com um olhar para a totalidade do ser humano
ção emocional e corporal do cliente. Desenvolve adoecido e sua experiência.
uma perspectiva unificadora do ser humano inte- Considerando os atendimentos psicológicos e
grando em todas as dimensões sensoriais, afetivas, a psicoterapia realizados no processo saúde-doen-
intelectuais, sociais e espirituais. Favorece um con- ça, a Gestalt-terapia é um método de trabalho que
tato autêntico com os outros e consigo, como uma orienta o acompanhamento psicológico, seja nos
forma de ajustamento criativo do organismo ao atendimentos realizados em momentos críticos do
meio. Analisa os processos de bloqueio de contato tratamento oncológico, como o processo cirúrgico
ou de interrupção no ciclo normal de satisfação das ou a quimioterapia e em psicoterapia durante e
necessidades. após o tratamento médico-oncológico.
Ribeiro (2011) descreve que essa abordagem
além de ser uma forma de psicoterapia é um méto- Psicologia da Saúde e Psicologia Hospitalar
do de trabalho e é uma teoria da pessoa, ao conce-
ber o indivíduo na sua totalidade, aqui-agora, como A Psicologia da Saúde surge na década de
um campo organismo-meio, em um movimento 1970 como um novo campo do saber, a princípio or-
processual, sempre à procura de alcançar sua me- ganizada em dois eixos, segundo Angerami-Camon
lhor forma. (2006): o primeiro ligado ao campo da Psicologia
Adotar a Gestalt-terapia como uma meto- Clínica, nos tradicionais consultórios particulares e
dologia de trabalho psicoterapêutico envolve estar fora das instituições de cuidado em saúde. O segun-
disponível para a emergência de fenômenos que se do, referente ao trabalho do psicólogo em ambula-
desvelam no campo, entre as pessoas que se fazem tórios de saúde – cuja atuação, até recentemente,
presentes no momento dos atendimentos. Tera- estava subordinada aos paradigmas da Psiquiatria
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peuta e cliente presenciam e vivenciam tais acon- – e nos hospitais gerais, onde, aos poucos, o psi-
tecimentos, conferindo novos olhares, sentidos cólogo se inseriu como facilitador do processo de
e significados para cada um deles. Envolve ainda tratamento, a partir da demanda da equipe médica.
compreender as forças mais ou menos conscientes Para o autor esse campo de trabalho da Psico-
que movimentam as energias vitais, que influen- logia leva em conta a historicidade do paciente, re-
ciam no modo como cada pessoa é-no-mundo e age ferindo-se à doença como um desequilíbrio entre o
nele. A abordagem gestáltica, em última instância, físico e o emocional, que provoca intercorrências
visa à ampliação da awareness, da consciência de na realidade social deste sujeito. Tenta compreen-
cada pessoa sobre si e sobre o mundo, em busca de der o sofrimento do paciente articulando-o com
autorregulação e realização. sua realidade existencial, considerando a dor que
A decisão de escrever sobre o tema Gestalt-te- sente como única, e utilizando a escuta sobre esta
rapia e Oncologia surgiu a partir dos atendimentos dor para compreender sua real dimensão e como ela
realizados por uma das pesquisadoras em uma clí- pode repercutir na vida desse ser adoecido (Angera-
nica particular especializada em tratamento onco- mi-Camon, 2006).
lógico. No dia-a-dia do trabalho, foi observada a Percebemos, portanto, que a atuação do psi-
diferença significativa que o acompanhamento pela cólogo no campo da saúde está fundamentada, em

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Gestalt-Terapia: Um Método de Trabalho para o Processo Saúde-Doença em Oncologia

contraste com o modelo biomédico tradicional, em si, de sua doença de sua dor, de seu sofrimento, de
uma tentativa de humanização do processo saúde- suas expectativas, de suas fantasias, de seus medos,
-doença, com o olhar diferenciado sobre o adoeci- de suas angústias; não precisam estar somente na
mento, em um acolhimento ao ser adoecido com posição paciente, de corpo biológico e sem vida, es-
tudo aquilo que o envolve. tático e adoecido somente.
Como uma proposta que resgata a visão inte-
gral do indivíduo e a compreensão da saúde-doença Psico-oncologia e Gestalt-terapia
como um fenômeno multicausal e interdependente,
Sebastiani e Maia (2005) destacam os movimentos Weber (2012), médico oncologista, pontua que na
que questionaram o papel exclusivo da Medicina Oncologia o “dogma” de que fatores psicológicos influen-
na resolução dos problemas de saúde. Pontuam que ciam o processo biológico do câncer ainda não é discuti-
estes movimentos surgiram por volta dos anos 50 e do, sendo tratado como um tabu. O autor analisa que: “Se
mais intensamente a partir dos anos 70, firmando o câncer ocorresse sem qualquer relação com a pessoa e
de maneira definitiva a posição de confronto ao pa- a personalidade do paciente, isto é, se fosse mesmo um
radigma do modelo biomédico vigente durante os evento puramente biológico, então, o paciente seria só
últimos 150 anos. uma vítima, apenas um observador passivo de processos
Dentro do modelo biomédico, compreendia-se físicos irreversíveis” (pp. 57).
que a demanda para a saúde emanava da institui- É nesse sentido, que pensamos sobre a importância
ção hospitalar e, como consequência, o psicólogo do acompanhamento psicológico ligado à Oncologia, pois
da saúde inicia suas atividades e ações dentro des- como Weber (2012, pp. 57) destaca a partir de suas obser-
sa instituição. A inserção do psicólogo no contexto vações e evidências: “o paciente pode desempenhar um
hospitalar proporcionou, ao longo do tempo, um papel no curso de sua doença”. Esta é também a proposta
reposicionamento de sua própria função, passando da Psicologia da Saúde e da Gestalt-terapia que posicio-
a atuar de forma a não ser mais passivo, mas agente nam o indivíduo como ator durante todo o processo de
ativo no processo de hospitalização, com interven- adoecimento e não somente como um sujeito passivo de
ções mais sistemáticas junto ao paciente, com aten- seu tratamento. Para Veit e Carvalho (2008), a Psico-
dimentos ao longo de todo o período de internação, -oncologia é constituída pela área do conhecimento
preventivos, e não somente quando solicitados pela da Psicologia da Saúde aplicada aos pacientes com
equipe de saúde em função de demandas emergen- câncer, sua família e os profissionais da saúde. O
ciais. Em uma atuação que aos poucos foi se tor- câncer, por muito tempo na história das doenças,
nando reconhecida também pela própria equipe de passou a ser símbolo das emoções não expressadas,
saúde, o psicólogo hospitalar passa a ser conside- sendo reservada à pessoa com tal enfermidade a
rado como um profissional da saúde, integrante da idéia de incapacidade de lidar de forma adequada
equipe multiprofissional de cuidados. com as questões emocionais de sua vida (Sontag,
A Psicologia Hospitalar passa a ocupar seu es- citado por Veit & Carvalho, 2008). A Medicina co-
paço nos hospitais de forma a proporcionar à pessoa meçou, portanto, a perceber que os aspectos psicos-
adoecida, como cita Romano (1999), a possibilidade sociais estavam envolvidos na incidência, evolução
de não ser mais aquele objeto do conhecimento e e remissão do câncer.
da ação pela equipe médica, mas um participante À medida em que se constituiu a percepção da
de seu processo de cura; considerando-o mais do associação entre o câncer e os fatores psicológicos,
que um ser humano acometido por uma determi- comportamentais e sociais, fez-se necessário o de-
nada patologia: um agente de suas condições vitais, senvolvimento de técnicas da Psicologia da Saúde
como uma pessoa que está trabalhando para conse- que melhorassem a qualidade de vida dos pacien-
guir reconstruir sua saúde. Enquanto colaborador tes, seus familiares e da própria equipe de saúde,
no processo de cuidado, o psicólogo hospitalar en- aumentando a participação ativa da pessoa em todo
tende que o processo saúde-doença pode ser avalia- o processo de adoecimento e tratamento (Veit &
do levando em consideração não somente os fatores Carvalho, 2008).
biológicos (como é proposto pelo modelo biomédi- É nesse campo do cuidado com o indivíduo
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co) inerentes à patologia, mas também os fatores adoecido que a Gestalt-terapia se insere, articulan-
sociais e psicológicos do paciente, da família e da do seu sistema crítico e seus métodos de trabalho à
própria equipe de saúde. atuação da Psicologia da Saúde e Psico-oncologia.
Angerami-Camon (2003) aponta que o psicó- Como uma maneira de escuta a totalidade desse ser
logo hospitalar torna-se responsável por minimizar humano adoecido, proporcionando um espaço para
o sofrimento provocado pela hospitalização, traba- compreensão de suas questões emocionais e rela-
lhando com todo o contexto de vida da pessoa, as cionadas ao adoecimento.
sequelas e manifestações emocionais do processo
saúde-doença. A função do psicólogo é apreender Gestalt-terapia e Oncologia: uma articulação
o homem como um todo, como um ser que adoe- possível para atuação do psicólogo no processo
ce. Esse ser que está em um contexto hospitalar, no saúde-doença
qual o saber médico impera sobre um corpo biológi-
co, e que necessita de uma escuta diferenciada que Para Ribeiro (2006), a Gestalt-terapia é uma
abranja a história de vida do sujeito e promova um abordagem que resgata o humano em sua relação
espaço para se compreender a história de sua doen- corpo-pessoa, mente-pessoa, ambiente-pessoa, os
ça. As pessoas precisam de um espaço para falar de três ângulos de uma totalidade fenomenológica-

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-existencial. Sendo muito mais do que uma teoria, é a doença e com seu tratamento.
ao mesmo tempo, um procedimento, uma metodo- O gestalt-terapeuta não olha a doença e sim a
logia de trabalho, é uma psicoterapia do encontro e pessoa adoecida, que é também a proposta funda-
do contato. mental da Psicologia da Saúde, e vai além ao abrir
Ao adotar a Gestalt-terapia como método de espaço para que o indivíduo entre em contato com
atuação humano-existencial, adotaremos o termo o como é estar adoecido, com suas potencialidades
pessoa ou ser humano e não paciente como uma preservadas, com suas expectativas de vida e futu-
opção de se perceber a totalidade do indivíduo em ro. Este contato ocorre nos atendimentos psicológi-
ação e com todo seu potencial proativo, embora em cos, como uma forma de intervenção psicológica,
processo de adoecimento. embora no mesmo momento em que se faz quimio-
Em experiência pessoal nesse campo de atua- terapia ou outro procedimento curativo.
ção, uma inquietação surgiu quanto aos atendi- Nos atendimentos à pessoa em tratamen-
mentos psicológicos para as pessoas em processo to oncológico proposto pela Gestalt-terapia, sob a
de adoecimento por câncer, em específico, quando perspectiva do fenômeno do adoecimento, tem-se a
aconteciam nos moldes da Psicologia em contexto oportunidade de a pessoa entrar em contato com o
hospitalar. O modelo tradicional, já descrito, não seu mundo, seu aqui-agora, de atualizar e ressigni-
tem como foco principal a intervenção psicológica ficar experiências, sentimentos e perspectivas, tais
e a observação do fenômeno que emerge no campo como se sente, pensa, faz e fala em relação ao fato
no momento do atendimento pelo psicólogo mesmo de estar com câncer. Fazer contato com seu corpo
com seu olhar humano e diferenciado para o pro- adoecido, por vezes mutilado, ampliando a cons-
cesso saúde-doença. ciência de forma criativa e saindo do fechamento,
Entendemos, no entanto, que se pode ir mais muitas vezes proporcionado pelo adoecimento,
além da escuta terapêutica e da humanização das para pensar nas possibilidades de seguir com quali-
instituições de cuidado em saúde, como seria o dade de vida a despeito de um adoecimento físico.
proposto para o atendimento no modelo tradicio- Abrindo, portanto, possibilidades de contato com
nal da Psicologia Hospitalar. Pode-se trabalhar com sua realidade atual. Em um primeiro momento,
o ser adoecido naquele momento do atendimento, contato com o fato de saber da doença, depois con-
realizando, de fato, uma intervenção psicológica tato com seu corpo em tratamento e, por fim, seu
mais aprofundada do que somente uma escuta te- corpo após todo o processo de adoecimento. Esse
rapêutica. Uma intervenção de escuta ativa marca contato pode ocorrer tanto durante os atendimentos
a presença do terapeuta e da pessoa adoecida, a pontuais, no momento em que é realizado o trata-
partir das demandas apresentadas quanto às ex- mento, quanto em psicoterapia.
pectativas de passar pelo processo de adoecimen- Contato é a chave mestra para todo o trabalho
to, a partir de todas as suas inquietações, mais ou em Gestalt-terapia. É pelo contato que as nossas
menos fortemente relacionadas às experiências do necessidades são satisfeitas, necessidades de ter o
adoecer, seus medos, culpas, frustrações, ansieda- corpo saudável novamente. É pelo contato que uma
de e angústia. emoção é experienciada, em um movimento à pro-
O psicólogo acompanha a pessoa durante todo cura de mudança, contato é, portanto, energia que
processo de saúde-doença, seja em forma de atendi- transforma. Entrar em contato com o câncer e toda
mentos pontuais e de aconselhamento, seja em um a emoção que o adoecimento insere e transforma
processo de psicoterapia. Suas intervenções psi- sua vida, como uma forma de pensar em todas as
cológicas ocorrem durante esses atendimentos no mudanças como, melhoria na alimentação, pratica
exato momento do tratamento (como no decorrer de exercício físico, dar mais atenção a sua saúde e
da quimioterapia realizada na clínica), tanto quan- não ao trabalho somente, são formas de mudança
to em psicoterapia, atentando-se ao modo como se de visão de mundo que podem ser modificadas a
desenvolvem as relações e o contato entre-pessoas e partir do contato com o próprio adoecimento. Para
entre a pessoa adoecida e seu campo vital, incluin- Ribeiro (2007):
do o próprio adoecimento que a acomete.
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Uma intervenção psicológica em instituições Contato é saúde. Saúde é contato em ação.


de cuidado em saúde, à luz da Gestalt-terapia, per- Qualquer interrupção do contato implica uma
mite o trabalho no aqui-agora da pessoa em trata- perda na saúde. Contato é processo de auto-re-
mento oncológico. É possível trabalhar com a pes- gulação organísmica. Doença significa inter-
soa a experiência que emerge naquele momento e rupção do contato em um dos quatro campos
a deixar falar sobre isso, sentir e vivenciar de fato que compõem o espaço vital da pessoa: geo-
suas emoções, desenvolvendo com esse indivíduo biológico, psicoemocional, socioambiental e
uma intervenção psicológica e terapêutica, mesmo sacrotranscendental. A doença implica a per-
estando no momento do tratamento quimioterá- da da totalidade organísmica (p. 53).
pico. Trabalhar para que, mesmo durante alguns
minutos do atendimento a pessoa possa entrar em Essa é nossa proposta durante os atendimen-
contato com seu sentimento, pensando concre- tos psicológicos, abrir-se espaço para olhar o cor-
tamente como é estar em um processo de adoeci- po adoecido e entender o seu significado para cada
mento, como é estar ali recebendo o tratamento, indivíduo que está no processo de adoecimento.
sentindo dores ou simplesmente se sentindo bem, Como uma forma de proporcionar a pessoa adoe-
como uma forma de entrar em contato consigo, com cida um espaço de saúde, de contato com sua au-

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Gestalt-Terapia: Um Método de Trabalho para o Processo Saúde-Doença em Oncologia

torregulação, olhando não somente para sua parte lho (2008), o primeiro sucesso no tratamento qui-
adoecida, mas para sua totalidade enquanto ser mioterápico do câncer foi no início da década de
humano em movimento e em contato com todas as 1950, quando começaram os estudos pioneiros
suas partes, enquanto pessoa, profissional, filho(a), para a associação de quimioterapia, radioterapia e
esposo(a), mãe, pai, amigo(a), etc. cirurgia, ampliando os casos tratados com sucesso,
A partir da ideia de ter a Gestalt-terapia como tanto com a cura quanto com o aumento da sobre-
método para a terapia na Oncologia, podemos pen- vida dos pacientes. Transcorridos cerca de 65 anos,
sar sobre como se desenvolvem os atendimentos e ainda convivemos com as ideias de “perda”, mas
intervenções psicológicas para os indivíduos antes atualmente discute-se mais sobre o tema – causas,
e durante o tratamento do câncer. consequências, meios de prevenção – e tem-se mais
notícias de pessoas que passaram pelo tratamento
Acompanhamento psicológico no oncológico com sucesso, diminuindo a sensação de
tratamento oncológico, a partir da descrição sofrimento, dor e morte imediata.
fenomenológica em Gestalt-terapia Nossa realidade brasileira, entretanto, mostra
que existem tratamentos e bons profissionais sem-
Nos atendimentos oferecidos, tão logo se te- pre atualizados em relação ao câncer seguindo pa-
nha um diagnóstico do câncer e se ocorre a prepa- drões e protocolos mundiais para atendimentos e
ração para começar o tratamento, pode-se perceber tratamentos. Começamos a perceber, então, que é
o quanto a pessoa quer ser acolhida, ouvida. Estar possível tratar o câncer, existindo pessoas que pas-
diante de uma pessoa-profissional que a escute sem saram pelo tratamento e estão bem, possuem qua-
pré-julgamentos ou olhar piedoso favorece tais rea- lidade de vida e continuam bonitas, alegres, com
lizações. E assim cria-se o ambiente de primeiro suas atividades sociais e pessoais.
atendimento psicológico para esse indivíduo que Com esse olhar baseado em evidências e na
frequentemente relata estar “sem chão”, desolado, totalidade do campo existencial durante o primei-
devastado pela notícia de que está doente e não por ro atendimento psicológico, percebemos que, abor-
qualquer doença, mas de câncer. dando os aspectos culturais envolvidos com o cân-
Os primeiros momentos do atendimento com cer, o indivíduo começa a entender os sentimentos
o psicólogo que utiliza a Gestalt-terapia como mé- que surgiram no momento da notícia de seu adoeci-
todo são para esclarecimentos, até didático, sobre mento (recebimento do diagnóstico), como pensar
o que é o câncer do ponto de vista biológico (ve- que o seu “chão se abriu”. Pode-se, portanto, já nos
rificando a explicação oferecida pela equipe médi- primeiros atendimentos com o gestalt-terapeuta,
ca e o que a compreensão pessoal desse esclareci- ter um espaço para uma ressignificação da própria
mento), sobre o que é para nossa cultura estar com doença, um contato com emoções, sentimento e
câncer e como esse olhar cultural influencia na sua sensações.
própria vivência de estar com câncer, sobre o que é Holanda (2014) resgata a postura buberia-
o adoecimento do ponto de vista psicológico e, por na e pontua que a Fenomenologia pode ser uma
fim e mais importante, como esse indivíduo começa postura, uma atitude que abre possibilidades sobre
a significar o fato de estar adoecido com o câncer. o modo como o ser humano se apresenta e como
Parte-se de olhar a totalidade existencial da pessoa revela formas de sua existência. Holanda completa
como ser humano e de olhar seus fatores biológicos, que o psicoterapeuta adota, portanto, uma postu-
sociais, psicológicos como partes de um indivíduo ra compreensiva, uma escuta ativa, observando e,
adoecido. esperando que o outro, enquanto um fenômeno,
Sobre essas dimensões, é interessante expor o emerja para sua consciência.
que comumente costuma-se ouvir/disseminar sobre Assim, intervenções psicológicas, por exem-
o câncer. Infelizmente, para muitas pessoas persis- plo, podem ser realizadas no momento em que
te o sentimento de sentença de morte, de perda da uma mulher se prepara para a cirurgia de retirada
qualidade de vida, de ter que parar tudo em sua da mama. Este dado se transforma para ela, em seu
aqui-agora, em um fenômeno destacado emergindo
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vida para tratar uma doença que não tem cura. Para
muitas mulheres existe o sentimento de perda de do campo estabelecido pela relação terapeuta-clien-
sua beleza (queda de cabelo e retirada do seio, por te. A compreensão desse fenômeno (com tudo que a
exemplo) e para os homens a perda de sua masculi- ele se relacione) possibilita e favorece a ampliação
nidade (nos casos de afetação da próstata ou órgãos de consciência dessa mulher sobre o seu aqui-agora.
sexuais). Como seres humanos não gostamos e não É uma forma de pensar o que significa essa cirurgia
queremos sentir dor e, para muitos, o adoecimen- para ela, como é ter que passar por esse processo,
to está ligado ao fato de sentir dor. Além disso, em como é sua relação com seu corpo adoecido e em
nossa cultura hedonista e com desejos de uma “lon- processo de tratamento.
gevidade pueril” não estamos acostumados a falar O campo relacional e vivencial das pessoas
sobre a morte; a ideia de que o ser humano é finito também pode ser compreendido como uma tota-
parece não agradar, e o diagnóstico, por vezes, ins- lidade de fatos que afetam diretamente seu com-
taura o pensamento de morte imediata. portamento, sendo constituído por forças interde-
Lembramos ainda que o câncer, por muitos pendentes que acontecem no aqui-agora (Ribeiro,
anos, foi tratado como “aquela doença”, em mui- 2006). A forma de analisar e explorar o campo das
to pelo desconhecimento, causado pela ausência pessoas em processo de adoecimento envolve um
de estudos e tratamentos. Segundo Veit e Carva- olhar para seu contexto de vida atual, como separa-

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ções, falecimento de amigos ou parente, mudanças, a partir da desmistificação dos ambientes e proce-
perdas. Pode-se identificar pessoas e situações que dimentos. Pode-se pensar e trabalhar sobre cirur-
se destacam – positivamente ou negativamente – ao gia, internações, medicações, alimentação, ou seja,
influenciar sentimentos e racionalizações do sujei- abrir um espaço para entrar em contato com o cam-
to adoecido. Pode-se explorar o modo como estão po no qual ocorrerá o tratamento. Técnicas que se
organizados a família, o ambiente profissional e so- operam por meio da fantasia, que permitam abordar
cial, se houve percepção, por parte da pessoa que os medos e as idealizações que as pessoas carregam,
está sendo acompanhada, de mudanças significati- que permitam abordar incongruências e paradoxos
vas nas relações que lhe são importantes. entre a experiência real e a imaginada tornam-se
Observando o campo no qual o indivíduo está, ferramentas úteis para o trabalho terapêutico.
temos um espaço para ouvir os relatos sobre senti- Ao olharmos o fenômeno adoecimento e as
mentos relacionados ao querer estar vivo, de não perspectivas envolvidas no campo do indivíduo, te-
entender o motivo de estar doente e ter que pas- mos a oportunidade de perceber manifestações de
sar pelo difícil tratamento oncológico, além de fa- mais esperança, pois a pessoa começa a entender
zer suas famílias e seus amigos passarem por isso que tratar um câncer não precisa ser vivido como
também. Para muitos, surge a percepção de que algo um pesadelo, com um “bicho de sete cabeças” ou
em seu passado pode ter acontecido para que hoje como a “pior coisa do mundo”. Analisar, que quem
estejam doentes, como se o adoecimento fosse uma sabe, a vida, Deus, um ser superior ou o mundo es-
expiação de culpas pregressas ou castigos. tão lhe dando a oportunidade de mudar, de apren-
Abre-se, então, oportunidade de pensar e olhar der, de viver. Percebemos que o indivíduo começa a
para o passado sem culpa, com um olhar de apren- pensar mais em si mesmo ou em como é bom cuidar
dizado, de que agora pode-se fazer diferente mesmo de si, se permitindo dizer sim para suas necessida-
adoecido e em tratamento do câncer. Tem-se um des.
espaço para perceber o corpo humano como uma O atendimento e as intervenções psicológicas
complexa máquina que precisa de manutenção, a partir de propostas da Gestalt-terapia abrem um
cuidado, energia e que, por muitas vezes, é negli- espaço para reflexão da pessoa sobre o processo de
genciado. Há, assim, ensejo para a ampliação da adoecimento, criando a oportunidade para que se
consciência e a ressignificação de que seu corpo pense sobre seu adoecimento e até mesmo sobre
precisa de cuidados. Tem-se oportunidade de con- questões práticas que surgem com o tratamento,
siderar como as pessoas costumam esquecer que a como cortar ou não todo o cabelo antes da primei-
vida pode ser curtida, sem tantas cobranças, tantos ra quimioterapia, querer ou não contar que está em
horários para cumprir, sem tantas coisas para fazer. tratamento do câncer, o que quer fazer durante o
Abre-se espaço para lembrar que são seres huma- período de tratamento e muitas outras partes que
nos e que podem parar para cuidar si mesmos, por- necessitam ser enfrentadas pela pessoa.
que, por vezes, se cuida mais do outro do que de si, Pode-se abordar também a experiência vivida
abrindo-se, portanto, a oportunidade de entrar em no momento exato do tratamento quimioterápico,
contato com suas próprias necessidades, que por em um atendimento pontual, valorizando mais uma
muito tempo podem ter sido esquecidas. vez o aqui-e-agora emocional vivido pela pessoa.
O atendimento psicológico se desenvolve por Algumas questões podem ser salientadas e focaliza-
meio da análise do que fazer agora que a doença das: como é estar sentado naquela cadeira receben-
está presente e precisa ser tratada. O tratamento é do a medicação; como é estar enjoado e cansado,
um momento oportuno para promover mudanças de com tanta medicação e rotina de exames; como é
olhares e concepções a respeito de si e das necessi- difícil não poder comer tudo o que gostaria; como
dades normalmente identificadas como prementes. é saber que dali a dois ou três dias estará passando
Nessa perspectiva de acolhimento e de atendimento muito mal pelos efeitos adversos; como é ruim ou
psicológico, baseado no aqui-agora, buscam-se a fo- bom estar longe do trabalho ou fora da rotina habi-
calização de figuras por vezes difusas, a tomada de tual, etc.
consciência e a ampliação de awareness, por meio Por meio do método gestáltico que prioriza a
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de um espaço de escuta e de reflexão pessoal. Esse realidade vivida, descreve a realidade assim como
momento é propício a uma abordagem, pedagógica, ela se apresenta, permite à pessoa descobrir o sen-
de orientações claras e objetivas sobre os caminhos tido de sua experiência, conduz a uma intersub-
a serem percorridos em procedimentos médicos, jetividade criativa, dá um rosto à situação real da
medicamentosos e clínicos, à construção de espa- pessoa. Abrem-se, enfim, oportunidades para que
ços para tirar dúvidas práticas sobre como será, por a pessoa entre em contato com todos esses elemen-
exemplo, o primeiro dia de quimioterapia. Algumas tos – nem sempre de fácil assimilação e aceitação
estratégias são interessantes e se mostraram efica- afetiva –, reconhecendo e trabalhando os bloqueios
zes, como conhecer o local e os profissionais que que impedem melhores processos de ajustamento e
estarão presentes durante o tratamento quimioterá- autorrealização.
pico, mostrar como serão os procedimentos, falar O formato do atendimento do gestalt-terapeu-
que se pode dormir, comer, ler, assistir televisão, ta, durante o tratamento oncológico, leva a pessoa
conversar e rir, enquanto recebe a quimioterapia. a considerar sempre que apenas uma parte sua está
Para além do “falar sobre”, a visita in loco pode adoecida e não sua totalidade. Dá sentido ao que
colaborar para uma ressignificação do processo acontece no seu campo enquanto se cumpre o tra-
existencial, para a elaboração de novos significados tamento, colabora para a significação mais positiva

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Gestalt-Terapia: Um Método de Trabalho para o Processo Saúde-Doença em Oncologia

e egossintônica de fenômenos e eventos proporcio- comportamento e traços de personalidade. O


nados como efeitos das próprias terapêuticas, por self, enquanto central energética holística do
exemplo, a retirada de uma mama, reflete sobre as desenvolvimento humano, cria condições de
expectativas quanto ao impacto dessa realidade na mudanças pelo qual abandono de fatores nega-
autoestima e em um relacionamento afetivo, as limi- tivos e pelo investimento nos fatores positivos
tações advindas da administração de medicamen- que permitem a evolução e, consequentemen-
tos fortes, enquanto em tratamento quimioterápico, te, a mudança da pessoa humana (p. 36).
entre tantos outros. Tudo isso é parte do seu aqui-
-e-agora e não forma a sua totalidade enquanto ser Weber (2012), médico oncologista, relata suas
humano o reconhecimento dessa condição favorece observações sobre seus pacientes durante anos de
o ajustamento criativo, a partir de partes saudáveis, acompanhamento do tratamento do câncer e per-
buscando manter autonomias e desenvolvendo po- cebe algo em comum entre eles como sentimento
tencialidades enquanto ser humano vivente, e não de solidão, culpa e autocondenação, questões estas
somente um ser humano adoecido. que podem ser trabalhadas com o foco na mudança
Muitas emoções e novas gestalten surgem nos em psicoterapia.
momentos de atendimento mais pontuais, por isso Faz-se necessário, portanto, uma ampliação
entendemos ser igualmente importante que se reali- de consciência sobre sentimentos “guardados”, os
ze o processo de psicoterapia, além dos atendimen- não ditos, sobre gestaltens inacabadas, pois o corpo
tos psicológicos durante todo o processo de adoeci- sente o que nós sentimos em nosso coração, alma e
mento-tratamento oncológico. mente. Se não colocarmos para fora, o corpo acu-
mula, adoece, fica em uma eterna digestão. Muitos
Psicoterapia com o método da Gestalt-terapia indivíduos relatam desconfortos na garganta, estô-
durante e após o tratamento oncológico mago, barriga, como um bolo não dissolvido. Perce-
be-se que pode ser alguma forma do corpo colocar
A importância de se estar em processo psico- para fora e de qualquer maneira seus lixos emocio-
terápico, enquanto em tratamento oncológico e até nais, como doença cardíaca, câncer, doenças gas-
mesmo após, relaciona-se ao fato de que em psico- trointestinais.
terapia percebe-se qual é, para a pessoa, conceito de Em psicoterapia, para indivíduos em processo
saúde-doença dominante e como é, para ela, a exis- de adoecimento oncológico, trabalhamos o quanto
tência do câncer em sua vida, no sentido de amplia- as pessoas se sentiam abandonadas ou sobrecarre-
ção de consciência pelo fenômeno do adoecimento gadas, como uma forma de pensar sobre seus me-
e suas questões relacionadas. Pensa-se também so- dos, ansiedades, raivas, culpas e o quanto essas
bre se, e como, essas questões estão relacionadas questões influenciam o seu aqui-agora. Percebemos
com sua vida atual e com os acontecimentos de seu que a pessoa busca a psicoterapia não por estar
passado e perspectiva de futuro. adoecido pelo câncer, mas sim por uma busca do
Na psicoterapia com indivíduos em tratamen- autoconhecimento para conseguir lidar com ques-
to oncológico, quase sempre, ocorre um processo tões que o levaram ao adoecimento e como influen-
de mudança, por meio do qual a pessoa busca uma ciaram seu passado e influenciam no seu presente,
ressignificação de suas coisas e da sua própria exis- em uma continuidade do processo de mudança e
tência. Busca-se, ainda, é uma ressignificação do autorregulação necessários para a construção do
próprio ser adoecido, em um processo de mudança processo de saúde.
contínua de sua existência antes do adoecimento Para Ribeiro (2007) o processo psicoterapêuti-
e no seu aqui-agora. O indivíduo percebe que não co expõe o modo como o indivíduo faz contato com
pode continuar o mesmo que era antes do adoeci- o mundo e com isso o terapeuta faz contato com seu
mento, pois a mudança é necessária para não passar cliente, permitindo, portanto, entrar na intimidade
pelo adoecimento novamente. desse outro para cuidar de suas feridas, em uma for-
Observa-se que uma das primeiras mudanças ma de “cumplicidade com a totalidade do ser e do
existir do outro” (pp. 26). Segundo Vianna (2009),
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percebidas é a do olhar para o mundo, com percep-


ções de valores perdidos e novos valores aprendi- uma psicoterapia gestáltica “mostra-se como uma
dos, envolvendo coisas simples como cuidar de si abordagem plena de recursos estruturados, com
mesmo, de seu corpo, de sua alma, valorizando as métodos e técnicas eficazes em psicoterapia” (pp.
coisas simples da vida como um passeio no parque 163). A autora ainda completa que é uma aborda-
ou contemplações da natureza, mudança do ritmo gem psicoterapêutica flexível e ampla nos recursos
de vida, de trabalho, uma desaceleração necessária necessários para a mobilização de conteúdos que
e fundamental para sua saúde. Pensando na impor- geram sofrimentos e para auxilio no desenvolvi-
tância dessas mudanças necessárias, Ribeiro (2007) mento do potencial humano, buscando a autorrea-
afirma: lização.
A Gestalt-terapia atua com o foco em localizar
A mudança é decorrência da consciência as Gestalten cristalizadas, provocar sua movimenta-
emocionada, a qual é fruto da intra e intera- ção, promover a conscientização deste sistema que
ção dos três sistemas, cognitivo, sensório e está paralisado e do modo de lidar com ele exercido
motor, da pessoa com o meio ambiente. Estes pela pessoa, e com foco em conduzir a uma ressig-
sistemas podem se combinar das mais dife- nificação dos vividos. Esta estratégia baseia-se na
rentes maneiras, formando diferentes tipos de crença de que, uma vez revivido o que está retido

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Mariana Correia Lacerda, Lílian Cherulli de Carvalho, Jorge Ponciano Ribeiro

sem solução e, tendo sido formado um novo sig- Proporcionar um espaço para ressiginificar o
nificado pela pessoa, acontecem as mudanças que adoecimento, melhorar a qualidade de vida, propor-
permitem o conteúdo ser assimilado adequadamen- cionar uma abertura de consciência com ampliação
te, não havendo mais a necessidade de empregar a das possibilidades e escolhas diante da mudança
energia que mantinha o sistema embotado (Vianna, de visão de mundo proporcionada pelo processo
2009, pp. 168-169). saúde-doença, entrar em contato com o que pode
Concordamos com Ginger e Ginger (1995) ser modificado na vivência com o outro, melhora
quando afirma que a terapia é um processo de mu- na autoimagem e auto-conceito são alguns dos pon-
dança da awareness (consciência) e do comporta- tos importantes que fazem o uso da Gestalt-terapia
mento, sendo essa mudança é necessária para ma- como método de trabalho na oncologia, brilhar aos
nutenção da saúde física e mental. Pensamos ser nossos olhos, por percebermos como podemos ser
importante fazer psicoterapia antes, durante e após instrumentos de melhora para a saúde e mudança
o processo de adoecimento pelo câncer, pela aber- para essas pessoas.
tura, ampliação de consciência e as mudanças que
ocorrem durante o processo psicoterápico. Referências
Com o processo psicoterapêutico ao longo do
tratamento oncológico observa-se uma melhora Angerami-Camon, V. A (2003). O psicólogo no hospital. Em V.
na qualidade de vida, pode ser a oportunidade da A. Angerami-Camon (Org.), Psicologia hospitalar: teoria
pessoa atendida estar consciente de sua condição e prática (pp. 15-28). São Paulo, SP: Pioneira Thomson
física e psicológica, como uma forma de vivência Learing, 6º ed.
verdadeira do processo de adoecimento. E o acom-
panhamento após o termino do tratamento fica cla- Angerami-Camon, V. A. (2006). O ressignificado da prática clí-
ro como as pessoas melhoram sua visão de mundo, nica e suas implicações na realidade da saúde. Em V. A.
entrando em contato com sua vida, se posicionan- Angerami-Camon (Org.), Psicologia da saúde: um novo
do melhor em relação as suas escolhas pessoais, em significado para a prática clínica (pp. 7-22). São Paulo,
um processo de escolha de si colocar em primeiro SP: Pioneira Thomson Learing.
lugar ao invés do trabalho ou sua família, ou cui- Ginger, S. & Ginger, A. (1995). Gestalt: uma terapia do contato.
dar melhor de sua saúde, escolhendo uma vivência São Paulo, SP: Summus.
com opções mais saudáveis e menos prejudiciais a
sua saúde, por exemplo. Holanda, A. F. (2014). Fenomenologia e Humanismo. Reflexões
necessárias. Curitiba, PR: Juruá.
Considerações Finais
Ribeiro, J. P. (2006). Vade-mécum da Gestalt-terapia. São Pau-
Utilizar a Gestalt-terapia como método de tra- lo, SP: Summus.
balho dentro do processo de tratamento oncológico
é abrir espaço para se pensar nossa existência, como Ribeiro, J. P. (2007). O ciclo do contato: temas básicos na abor-
forma de ampliar a consciência do indivíduo para dagem gestáltica. São Paulo, SP: Summus.
ir mais além de ser um doente ou um paciente com Ribeiro, J. P. (2011). Conceito de mundo e de pessoa em Gestal-
câncer, e resgatar o humano, o vivo, o todo e não t-terapia: revisitando o caminho. São Paulo, SP: Summus.
somente a parte adoecida. É pensar em um espaço
de ampliação de oportunidades, de apropriar-se do Romano, B. W. (1999). Princípios para a prática da psicologia
seu corpo, e em um ajustamento criativo passar do clínica em hospitais. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.
processo de doença ao processo de saúde, aumen-
tando a fluidez, como uma forma de experimenta- Sebastiani, R. W. & Maia, E. M. C. (2005). Contribuições da
ção. É perceber o que, de fato, se é, enquanto ser no psicologia da saúde–hospitalar na atenção ao paciente
mundo, para ir muito além de um corpo adoecido, cirúrgico. São Paulo, SP: Act. Cirúrgica Brasileira.
e ir além da experiência de se auto-conhecer para
ter uma qualidade de vida mesmo no processo de Veit, M. T. & Carvalho, V. A (2008). Psico-oncologia: definições
E s t u d o s Te ó r i c o s o u H i s t ó r i c o s

adoecimento. É retirar introjetos tóxicos para trans- e área de atuação. Em V. A. Carvalho; M. H. P. Franco; M.
formá-los em mecanismos saudáveis de elaboração J. Kovács; R. P. Liberato; R. C. Macieira; M. T. Veit; M. J.
do vivido, em um processo de mudança constante a B. Gomes & L. H. C. Barros (Orgs.). Temas em psico-on-
partir da ampliação de consciência da nossa totali- cologia (pp 15-19). São Paulo, SP: Summus.
dade enquanto seres humanos.
Vianna, K. S. (2009). Gestalt-terapia: uma escolha em psicote-
Durante o tratamento oncológico, o indivíduo
rapia. Histórico, fundamentos e conceitos. Brasília, DF:
se vê obrigado a entrar em contato com seu corpo
Kátia S. Vianna (publicação própria).
de uma maneira diferenciada daquela de quando
descobriu o adoecimento físico. Agora, o organismo Weber, W. (2012). Esperança contra o câncer: a mente ajuda o
necessita de outros cuidados, reage de forma dife- corpo. São Paulo, SP: Editora Europa.
rente, algumas vezes encontra-se anatomicamente
ou funcionalmente modificado. Há que se restabe-
lecerem significados para o corpo e novas relações
entre self-corpo e pessoa-mundo, dadas por meio
desse mesmo corpo que existe e faz contato com os
meios interno e externo.

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Gestalt-Terapia: Um Método de Trabalho para o Processo Saúde-Doença em Oncologia

Mariana Correia Lacerda. Mariana Correia Lacerda


graduada em Psicologia pelo Centro Universitário Uni-
Ceub, especialista em Gestalt-Terapia pelo Instituto de
Gestalt-Terapia de Brasília. Atualmente é Psicóloga Clí-
nica da Fundação Universidade de Brasília. Email: maria-
nalacer@gmail.com

Lilian Cherulli de Carvalho possui Graduação e Mestra-


do em Psicologia pela Universidade de Brasília. Foi Ana-
lista de Políticas Sociais do Ministério de Saúde (SAS/
Coordenação Geral de Saúde de Adolescentes e Jovens).
Atualmente é Docente do Instituto de Gestalt-Terapia de
Brasília e Analista Judiciária na Seção Psicossocial da
Vara de Execuções Penais do TJDFT.

Jorge Ponciano Ribeiro é Graduado em Filosofia e Teo-


logia pelo Seminário Provincial de Diamantina, Mestrado
e Doutorado em Psicologia pela Ponteficia Università Sa-
lesiana. É Professor Titular da Universidade de Brasília.

Recebido em 30.11.2016
Primeira Decisão Editorial em 03.04.2017
Aceito em 14.04.2018

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