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No século XIX um sapateiro tinha uma oficina com centenas (sim, podia ser
mais de uma centena) de instrumentos para fazer sapatos, era um artista.
Cada sapato era uma obra, de alta qualidade, feita para aquele pé. Foi
substituído por um designer que faz sapatos e milhões de operários que
operam: colocam solas, cosem, colam, cortam, cada um faz a sua tarefa,
estupidificante, de forma repetitiva. São de má qualidade e duram pouco mas
são triliões de sapatos. Porque as máquinas que os fazem nunca conseguiram
fazer melhor do que uma obra de um artista/sapateiro. A maioria dos operários
de sapatos hoje não faz a mais pequena ideia de como se faz um sapato. Em
breve assim será com os designers, não saberão desenhar. Porque agora este
rumo chegou aos textos.
Mas não foi de agora: escrever e ler, que são a mesma actividade, exige uma
educação intelectual exigente, que desenvolve o nosso cérebro e uma
autodisciplina muito difícil de adquirir – tem sido substituída nas ultimas 3
décadas pelo empobrecimento dos currículos na escola, substituição da leitura
pelo ecrã, substituição do ensino lento e complexo da leitura pelo ensino
repetitivo de pequenos textos; substituição do jornalismo porque corta e cola;
temos hoje teses de mestrado que antigamente eram trabalhos de disciplina;
quilos de livros vazios; séries cujos guiões se repetem ad nauseum;
professores que se limitam a repetir o que está no manual, cada vez mais fácil
e repetitivo; agora com os telemóveis basta mandar um emoticon. É por isso
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que quando lemos os textos do ChatGPT aquilo nem parece mau – aquilo
repete o mau que estava a ser feito há décadas. O ChatGPT vai fazer milhões
de textos iguais, como os móveis da Ikea, e a roupa made in China.
Porque não tenho grande angustia? Digamos que eu tenho com o capitalismo
uma relação pacífica – é um sistema paranóico, irracional, de criar infelizes,
que gera o seu antagonista, a classe trabalhadora, nós, gente com uma
capacidade única de mudar o rumo da história. Ciclicamente os operários mais
estupidificados, padronizados, ignorantes, se rebelam com uma grandeza tal, e
a sua força, concentrada é tal, que mudam o mundo e param a marcha da
desordem. Cada um destes operários – das fábricas, professores, designers –
individualmente pode ser tão desinteressante como o trabalho alienado e vazio
que faz, mas em conjunto a lutar fazem o que o mais brilhante dos intelectuais
não é capaz de fazer. As melhores artes, direitos, vanguardas científicas
nasceram das revoluções. Por isso não percebo o medo de greves e os apelos
à estabilidade, quando o que a sociedade precisa é de uma rotundo Não, um
divórcio urgente, uma ruptura completa com um modus operandi sociopata.
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Por isso a grande questão revolucionária é e sempre foi a mesma – como
construir uma sociedade onde o trabalho é emancipado e não padronizado?
Essa é a ideia socialista (nada a ver com o PS ou com a URSS). A ideia
socialista é a projecção de futuro de que o bem comum (comunismo é o
comum) assegurado, em cooperação, nos liberta para o trabalho criativo. E o
trabalho criativo é o único reino da liberdade e do desenvolvimento pleno do
indivíduo. Nunca como hoje foi uma questão tão importante e actual.
Fonte: https://estatuadesal.com/2023/02/11/chatgpt/