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Departamento de Psicologia

TRAUMA E PULSÃO EM PSICANÁLISE

Aluno: Bruno Daemon Barbosa


Orientador: Monah Winograd

Introdução
A teoria do trauma de Sándor Ferenczi e suas reformulações técnicas e teóricas na
proposta terapêutica da psicanálise são as principais referências de Felicia Knobloch no
percurso do livro “O tempo do traumático”. Os chamados casos-limites muito estudados por
Ferenczi e frequentes na clínica atual permitem outras concepções acerca do desenvolvimento
psíquico e da natureza do trauma. Nesses casos o trauma teria a sua origem em momentos
mais primitivos da constituição subjetiva, onde mecanismos de defesa são desencadeados por
processos psíquicos anteriores a ação do recalque.
O campo da representação já não se apresenta como a via de acesso ao conteúdo do
trauma, o que leva a técnica psicanalítica clássica ao encontro com a noção de irrepresentável.
Através de uma revisão do conceito de trauma em Freud e Ferenczi, Knobloch estudará a
natureza do trauma na tentativa de compreender o seu lugar no tempo das experiências clínica
e psíquica.

Objetivos
A leitura de uma bibliografia selecionada e de textos e livros complementares serviram
de referência para o estudo dos conceitos de trauma e pulsão, o principal objetivo do nosso
trabalho. O livro “O tempo do traumático” de Felicia Knobloch foi a obra que conduziu o
percurso do nosso estudo. Contudo, diversas questões ao longo do tempo e atividades
extracurriculares ocasionaram a leitura de fontes adicionais. Os principais autores estudados
foram Sigmund Freud, Sándor Ferenczi, Luiz Alfredo Garcia-Roza e André Green
O texto de André Green, “Narcisismo primário: estado ou estrutura?”, expõe uma
tentativa de elaborar o conceito de pulsão de morte em seu papel fundamental na estruturação
do narcisismo primário. O autor faz um percurso conceitual em que destaca mecanismos de
defesa do psiquismo anteriores a ação do recalque. O papel da pulsão de morte no processo de
estruturação do narcisismo primário envolve momentos anteriores as defesas do ego. É
preciso a ação de outros mecanismos de defesa, tais como a negação e a clivagem. Além
disso, a própria pulsão dispõe de mecanismos diversos ao recalcamento, onde há uma
modificação interna a ela. O retorno sobre si e a inversão em seu contrário são expressões do
trabalho da pulsão de morte e supõem uma pulsão inibida em seu fim.
No livro “Acaso e repetição em psicanálise”, Luiz Alfredo Garcia-Roza revisa a teoria
pulsional desenvolvida por Freud a partir de 1905 na tentativa de compreender o conceito de
pulsão e o seu caráter de incompletude teórica. Assim, recorre a alguns autores da filosofia e
da psicanálise, tais como Spinoza, Hegel, Kierkegaard, Nietzsche, Deleuze e Lacan, além de
retornar aos mitos da Grécia Antiga. Ao longo da obra, Garcia-Roza formula algumas
questões para analisar o estatuto da pulsão como um conceito limite na teoria psicanalítica.
Além das obras de André-Green e Garcia-Roza, outras fontes foram também utilizadas
no estudo. Destacam-se os textos de Sigmund Freud “O Ego e o Id” e de Sándor
Ferenczi,“Confusão de línguas entre adultos e a criança”, além dos o textos de Mohammed
Masud Raza Khan “O conceito de Trauma Cumulativo” e Thierry Bokanowski “ Variações
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do conceito de traumatismo: traumatismo, traumático, trauma”. Foi também proposta a


leitura da obra literária “Bartleby, o escriturário” de Hermen Melville a fim de discutir a
função desobjetalizante da pulsão de morte.
Além da leitura de textos e livros, houve a participação em atividades extracurriculares
como aulas de pós-graduação, encontros com professores de instituições nacionais e
internacionais de ensino superior, a discussão de casos clínicos e a participação em
seminários. Estas atividades foram importantes para o desenvolvimento e a extensão dos
conhecimentos em psicanálise e como um meio de entrar em contato com outras maneiras de
pensar os aspectos clínicos e teóricos que envolvem os conceitos de trauma e pulsão.

Resultados
O modelo de trauma teorizado por Sigmund Freud ao longo de sua obra pode ser
dividido em três principais momentos. As primeiras formulações estão compreendidas no
período que data de 1892 a 1920. Ao estudar, juntamente com Breuer, a etiologia da histeria
e criar o método catártico, Freud concluiu que o trauma seria de natureza sexual e uma
condição etiológica para o surgimento dos sintomas histéricos. A esta fase da obra é
comumente dado o nome de teoria da sedução, já que Freud entende a origem do trauma a
partir da relação entre vivências de experiências sexuais traumáticas de sedução na infância
(reais) e a ressignificação desses eventos após a puberdade. Dessa forma, a constituição do
trauma se daria em dois tempos: a partir de traços mnêmicos isolados (fora da cadeia
associativa inconsciente) e originados nas cenas de sedução da infância e de um segundo
evento que desencadearia uma série de associações que impossibilitariam uma descarga de
excitação. Neste momento, Freud trata o aparelho psíquico como um aparelho exclusivo de
memória, sendo as lembranças de reais experiências sexuais (de sedução) o fator chave que
leva a constituição do trauma.
No entanto, entre 1897 e 1920, o papel da sedução na constituição do trauma se torna
secundário e a noção de fantasia se torna o principal fator traumático. A conhecida frase “não
acredito mais na minha neurótica” contida na carta enviada a Fliess em dezembro de 1897
representa a virada da teoria freudiana. O aspecto real (externo) da sedução como fator
responsável pelo trauma é deixado de lado e a realidade psíquica (interna) das fantasias e dos
desejos se torna a principal fonte de conflitos inconscientes responsáveis pela vivência
traumática. É importante notar que Freud não abandona as idéias de trauma em dois tempos e
da sua natureza sexual, mas as reformula introduzindo o conflito inconsciente de uma
realidade psíquica que tem a fantasia (e não mais a realidade externa) como o principal motor
da constituição do trauma.
O segundo modelo de trauma em Freud surge com o texto “Além do princípio de
prazer” (1920). O atendimento a soldados lesionados no cérebro durante a primeira guerra
mundial levou Freud à formulação das neuroses de guerra, introduzindo a noção de
traumatismo como um rompimento do pára-excitação. O traumatismo é entendido como uma
efração, uma ruptura das defesas do ego que levam a um excesso de excitação. Com isso, é
exigido do aparelho psíquico medidas que escapem ao princípio de prazer na tentativa de
ligar as excitações e descarregá-las. As defesas neuróticas, insuficientes frente ao impacto do
trauma, são incapazes de proteger a integridade do ego e a compulsão à repetição se
apresenta como uma estratégia para lidar com esse excesso de excitação.
Em “Inibição, sintoma e angústia” (1926), o cessamento do principio de prazer é
relacionado ao que Freud denomina fator traumático. Um estado onde há a paralisação do
principio de prazer e um consequente transbordamento pulsional, onde a angústia-sinal não
permite ao ego se proteger dos excessos. Assim, nesse modelo o traumatismo é entendido
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como uma incapacidade do aparelho psíquico em contra-investir frente às excitações e ligá-


las de modo a introduzi-las no inconsciente psíquico.
O terceiro momento da teoria freudiana do trauma se dá com o livro “Moisés e o
monoteísmo” (1939), com base na relação que encontra entre traumatismo e narcisismo. As
experiências traumáticas ganham um caráter positivo e são pensadas como participantes da
organização e do funcionamento psíquico. O traumatismo apresenta então dois destinos: um
positivo (organizador), que envolve a rememoração e a elaboração do conteúdo recalcado, e
outro negativo (desorganizador), referente a clivagens que produzem efeitos destrutivos que
podem conceber danos precoces ao ego e criar feridas narcísicas.
Na construção da teoria do trauma Ferenczi se aproxima de Freud ao visualizar uma
relação entre o traumático e o pulsional que não se estabelece via representação. O
traumático é da ordem do irreprensetável e não pertence somente ao recalque, sendo por isso
impossível de ser recordado. Apresenta-se de outras maneiras e como não faz parte do
inconsciente não é dominado pelo circuito da linguagem, surgindo sob a forma de marcas
que o sujeito encena.
Ferenczi dá uma nova importância à realidade do trauma, afirmando que apenas a
noção de fantasia não é suficiente para a sua compreensão. Entende que o trauma psíquico é
real e tem sua origem em um conflito com o mundo externo. O traumático faz então parte do
processo de constituição subjetiva, já que, para Ferenczi, o encontro da criança com a
realidade externa é sempre complicado. Tal fator exige novos arranjos psíquicos que não se
originam sob a ordem do recalque, mas sob ação de mecanismos mais primitivos da vida
psíquica.
A experiência de encontro com o mundo externo é potencialmente traumática para a
criança. Na relação com o outro, há uma pressão sobre o psiquismo que é incapaz de atribuir
significados a realidade. O sujeito estabelece uma relação com o outro que se apresenta como
um meio de dar sentido as vivências penosas. É a partir do conceito de introjeção que
Ferenczi desenvolve estas idéias, pois seria na relação com o mundo da cultura e da
linguagem, representado pelo outro, que se da daria a criação do eu e do objeto. Dessa forma,
o trauma ganha um caráter estruturante e fundamental no percurso de desenvolvimento
psíquico.
Ao longo da vida infantil, o papel do adulto será significativo nos destinos das
experiências traumáticas. Segundo Ferenczi, o identificar-se com o outro a criança irá
recorrer a ele na tentativa de atribuir sentido a realidade. Contudo, é muito comum que o
adulto negue aquilo que a criança experienciou, inviabilizando a inscrição psíquica do evento
traumático. A confusão entre a linguagem da ternura de criança e a linguagem de paixão do
adulto, denominadas por Ferenczi, é o que desencadeará a incompreensão da criança frente
aos acontecimentos e tornará o traumatismo patógeno.
Com base nas idéias de Freud e Breuer acerca da dupla consciência, Ferenczi
estabelece o que chama de autoclivagem narcísica, ou autotomia. Como um conceito
emprestado da biologia, serve de metáfora para uma noção de trauma que o caracteriza como
uma fragmentação, um despedaçamento. A autotomia é um processo de deixar partes de si
mesmo que serve como uma medida para sobreviver. Ela representaria um trabalho não
apenas orgânico, mas também psíquico e presente em todo ser humano.
Na problemática do trauma, a relação entre a autoclivagem narcísica e a morte
mostra-se fundamental. O trauma é visto com uma comoção psíquica, uma reação as
excitações que modificam o eu e permitirão o surgimento de novas formações egóicas. O
trauma é um choque que carrega um fator surpresa responsável pelo desencadeamento do
sentimento de angústia, originado pela incapacidade do sujeito em adaptar-se a situação
penosa.
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Na comoção psíquica, o que fica aparente é o caráter de autodestruição que se


apresenta como uma forma de evitar a angustia. A surpresa consiste em não se reconhecer o
objeto e experimentar a realidade como um risco de morte psíquica. Assim, a autoclivagem
será o meio de manter o objeto, mas com o preço de uma desorientação psíquica que leva a
destruição da própria consciência. Assim, essas impressões seriam inacessíveis à memória e
impossíveis de serem inscritas como traços psíquicos.
O momento do trauma entendido como um choque o caracteriza como um instante
onde tudo é uma sensação sem objeto. O traumatismo é vivido como uma experiência de dor
que fica marcada no corpo do sujeito e sobre a qual não há representação. O corpo torna-se o
lugar de expressão dessa marca e de expressão pulsional, que pode operar de forma
autônoma ao campo psíquico. A dimensão corpórea ressalta a importância do ato como uma
expressão atual (encenada) do trauma e a caracteriza como a reprodução de uma agonia
psíquica que leva a uma dor incompreensível e insuportável.
A noção de trauma apresentada por Ferenczi exige uma reformulação da técnica
terapêutica psicanalítica. A impossibilidade de um trabalho de pensamento que leve a
representação resulta em um excesso pulsional, que em uma sessão analítica é descarregado
em forma de ato e não como representação. Dessa maneira, o paciente age a sua dor e o que
se apresenta ao analista não é o retorno do recalcado, mas se origina de um lugar e um tempo
que não podem ser conhecidos via memória.
A dimensão corpórea, contudo, possibilita o reconhecimento da realidade do trauma.
A não-representabilidade não significa que o acontecimento não tenha existido e o agir do
paciente permite enxergar o impacto subjetivo que o trauma ocasionou. Assim, mesmo que
não haja uma representação do conteúdo, ele foi vivido e sentido pelo paciente. O trauma
então se constitui como uma marca (uma impressão) que não pôde ser inscrita em um sistema
de signos.
A ausência de um trabalho psíquico que permita a inscrição da impressão pressupõe
uma não ligação das excitações corporais, que ficam sem fazer parte do campo da
representação. As marcas ficam então no corpo e são apresentadas e não representadas, sendo
justamente pela ausência de ligação que surge a possibilidade de haver uma apresentação da
marca. Ou seja, o paciente repete a cena do trauma como se fosse atual, presente, e ao agir a
sua dor não atribui significado a essa impressão que não pôde ser inscrita como um traço
mnêmico inconsciente.
O surgimento da segunda tópica e a introdução do conceito de narcisismo trouxeram
modificações na teoria das pulsões de Freud. A ausência de um trabalho psíquico e de uma
ligação das excitações pulsionais com o objeto passaram a ser relacionadas a expressões da
pulsão de morte. Seria próprio dela o destino da não representação, onde a compulsão à
repetição se apresentaria como a sua principal característica. Na transferência a repetição do
trauma não quer uma elaboração do passado, mas apenas a sua presentificação, o que insere o
traumático em outra temporalidade.
Na concepção de Ferenczi a dor que é presentificada causa um sofrimento maior do
que a gerada pela lembrança da dor. É uma dor inatingível pela consciência e que não é
sentida nem mesmo como desprazer. É uma dor tão grande que coloca o sujeito frente a uma
morte sem presença e que não tem uma representação. Está fora do tempo, em um lugar que
não faz parte da história do sujeito.
Como o traumático se situa em outra temporalidade e fora do campo da
representação, a apresentação do acontecimento se constitui como um fenômeno que se
desenrola em um tempo específico. Que se dá como ocorrência, em um presente absoluto que
não pode ser apreendido pelo sujeito que deixou de ser histórico. O trauma é o acontecimento
que ficou retido na memória do corpo, mas sem ter a função de lembrança, estando além do
inconsciente e em um tempo irrepresentável.
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A experiência do traumático torna-se uma experiência do impossível, do lugar do


irrepresentável impossível de ser apreendido pelo sujeito. Como forma de apresentar o seu
sofrimento, o sujeito sai do tempo e mostra a sua dor. A comoção psíquica que impede a
inscrição da marca insere o acontecimento em um tempo próprio do traumático. O sofrimento
é justamente daquilo que ainda não foi pensado e que por ser impossível de ser conhecido,
causa a dor de um presente infinito, inesgotável e desconhecido.
O tempo do traumático é um presente que não muda e não se renova. Não há um
passado e tão pouco um presente que pode ser criado por lembranças do passado. No
traumático há uma ausência de tempo, onde o presente é impossível de ser realizado como
presença. O tempo é morto, pois assim como a morte não pode ser representado pelo
inconsciente e não tem lugar na temporalidade histórica do sujeito.
O traumático leva ao encontro com a experiência do morrer, com o instante da morte
e não apenas a sua representação. Ele se choca com a história e nela engendra um sentido que
não pode ser explicado e significado, mas apenas constatado. É uma impressão que oferece
um saber que não pode ser posto em palavras. No instante traumático o sujeito é confrontado
com o seu próprio desconhecido e experimenta um excesso intolerável que o leva ao
encontro com um outro em si mesmo, com um estranho desconhecido.

Conclusões
Os modelos de trauma criados por Freud não se substituem, mas representam teorias
sobre uma mesma problemática. As suas elaborações seguem dois parâmetros: um referente
ao traumatismo como um agente de desligamento pulsional e outro referente às sequelas
causadas pelo traumatismo como fontes pulsionais secundárias. O que fica claro é que na
problemática do trauma não há um fora e um dentro. O trauma deve ser compreendido na
relação entre os processos psíquicos e eventos internos e externos.
Os estudos em Ferenczi levaram-nos ao conhecimento de uma concepção do trauma
que o coloca em momentos muito precoces da constituição psíquica e anteriores a ação do
recalque. O traumático é reconhecido como o lugar do irrepresentável, onde o trauma não
coincide com o recalcado e com a fantasia, mas com a relação entre o traumático e o
pulsional. No campo da clínica psicanalítica tal pensamento levanta questões sobre as
propostas dos modelos de tratamento, já que o trauma é compreendido como algo fora do
modelo do recalque e, portanto, fora do campo da representação.

Referências Bibliográficas

1 - CASTILHO, Antônio Luiz Pereira de. Revisitando o primeiro modelo freudiano do


trauma: sua composição, crise e horizonte de persistência na teoria psicanalítica. Ágora
(Rio J.), Rio de Janeiro, v.16, n.2, Dec. 2013. Disponível 20 em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S151614982013000200004&lng=en
&nrm=iso>.

2 - KNOBLOCH, F. O tempo do traumático. São Paulo: EDUC, 1998. 156p.

3 – GARCIA-ROZA, L. A. Acaso e repetição em psicanálise: uma introdução à teoria das


pulsões. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1986

4 – FREUD, S (1923). O ego e o id. In: Obras Completas, Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago,
1969
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5 - BOKANOWSKI, T. (2005). Variações do conceito de traumatismo: traumatismo,


traumático, trauma. In: Revista Brasileira de Psicanálise, 39(1), p. 27-38.

6 - GREEN, A. Narcisismo primário: estado ou estrutura? (1967). In: Narcisismo de vida,


narcisismo de morte. São Paulo: Editora Escuta. 1988. p. 87-128.

7 – FERENCZI, S. (1992). Confusão de língua entre os adultos e a criança. (A. Cabral,


Trad.). In Psicanálise IV (pp. 97-106). São Paulo: Martins Fontes.

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