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Este artigo foi apresentado na comemoração do centenário de Bion, em 1997. A pedido dos
organizadores da conferência, o trabalho de Bion foi tratado sob a ótica do autor. O autor
escolheu iluminar o conceito de mente primordial, de Bion, e considerar a transformação dos
elementos β em elementos α. Refere-se também à distinção feita por Bion entre pensamento
sem pensador e o pensar necessitando de pensamentos para serem pensados por um pensador
(aparelho para pensar). O ponto principal do artigo diz respeito ao contraste que Bion faz
entre o “nada” (nothing) e a “não coisa”(no-thing). O autor se refere ao trabalho de Freud
sobre “A Negação”. Relembra seu próprio modelo de duplo limite. Tenta mostrar como a
concepção de Freud sobre a representação ocupa um campo muito mais amplo do que
geralmente é mencionado. Enfatiza diferenças entre conceitos básicos de Freud e de Bion.
Após tentar esclarecer as idéias de Bion sobre O, K, e -K, relembra a menção de Bion à
capacidade negativa, de Keats. Em seguida, expõe um breve sumário relativo ao seu conceito
do trabalho do Negativo, encontrando correspondência com os conceitos próprios de Bion.
Como conclusão, são mencionados dois mitos hindús, por seu grande valor simbólico.
Quando convidado por Parthenope Bion Thalamo e Francesca Bion para esta
conferência de abertura, senti-me não somente honrado, mas também comovido. Tive o
privilégio de conhecer Bion pessoalmente; tivemos longas conversas e trocamos cartas.
Mantenho uma lembrança vívida e forte do nosso relacionamento. No convite, Parthenope
Bion Thalamo disse-me que seu pai tinha “uma espécie de sentimento amizade” por mim,
comentário este que me tocou, pois da minha parte havia, por ele, uma espécie de respeito
filial. Outra razão pela qual fiquei comovido foi que, como todos sabem, não sou um
“Bioniano”, nem mesmo um Kleiniano. Respondendo a esta objeção, foi-me dito que, na
verdade, uma razão pela qual fui convidado a dar esta conferência foi eu não ser discípulo de
Bion. Parece-me que, enquanto conhecedor das idéias de Bion, eu poderia “usá-las”,
conservando-me fiel a meus próprios pensamentos.
Bion foi provavelmente o melhor exemplo de um pensador independente em
psicanálise, e encorajava os que dele se aproximassem a fazer o mesmo . Ao longo das
minhas trocas escritas ou orais com Bion, ele nunca tentou me “converter” às suas idéias ou
às de Klein. Concordávamos que nosso grande débito era com Freud.
Quanto ao fato de eu não ser nem mesmo discípulo de Klein, o próprio Bion escreveu
que algumas vezes se sentia mais próximo dos não Kleinianos do que de seus amigos
Kleinianos. No início de outubro de 1955, Bion recebeu uma carta, dizendo : “Vejo você
como o grande homem do futuro da Sociedade Psicanalítica Britânica”. Estava assinada por
D.W. Winnicott (Rodman, 1987, p.89). Em 16 de novembro de 1961, Winnicott reafirmou sua
apreciação relativa ao trabalho de Bion sobre pensamento: “Como muitas outras pessoas, eu o
acho difícil, mas muito importante” (p. 133). Concordo com isso. Encontrei Bion pela
primeira vez quando eu estava escrevendo, em colaboração com Jean-Luc Donnet, sobre
psicose branca, trabalho onde uma teoria do pensamento foi desenvolvida (Donnet/Green,
1973). Suas idéias me foram de grande ajuda, na ocasião.
Os dois Bions
A mente primordial: β → α
A expressão “mente primordial” não é tão clara, à primeira vista. Sua consistência se
baseia em sua oposição às partes “civilizada, individual, educada e articulada” do ser humano.
Bion a vê como a presença de nossos ancestrais, da mesma maneira como a fissura branquial
é sinal de algo da anatomia do peixe. É interessante notar que Bion relaciona a mente
primordial a uma espécie de embriologia imaginária da mente. Bion compartilha uma
hipótese comum com Freud em que há algo de primitivo, na mente, não totalmente explicado
pelos primeiros estágios de relação objetal no desenvolvimento do bebê. Os traços deixados
pela filogênese e pela ontogênese, na estrutura da mente, devem desempenhar um papel
significativo nos estágios posteriores de desenvolvimento. Essa especulação se liga à hipótese
dos elementos β. Para Bion, os elementos mais primitivos da psique são os elementos β,
ligados às experiências sensoriais. Em “Cogitações”, Bion diz que os elementos β podem
corresponder a fenômenos sob o domínio do princípio do prazer-desprazer. O mais importante
é que os elementos β, do mesmo modo que o espaço β, são impensáveis, porque se encontram
no território dos pensamentos sem pensador (1922, p313).
Esta idéia de pensamentos para os quais não há pensador nos coloca frente ao
paradoxo de ter que admitir que existem pensamentos que não podem ser pensados por uma
pessoa, pois num certo nível falta a esta aparelho para processar os pensamentos, portanto tais
pensamentos não podem ser comunicados. Se os pensamentos precisam de um pensador,
temos que considerar que o pensador não deve ser confundido com um organismo portador de
pensamentos que serão projetados num objeto, para que este se torne um pensador.
(If thoughts need a thinker, it could be that the thinker is not to be confused with the organism
that has thoughts that have to be projected into an object who is a thinker.)
(Si los pensamientos necesitan un pensador, podría ser que el pensador no debe confundirse
con el organismo que tiene pensamientos que tienen que ser proyectados en un objeto que es
un pensador).
Como o objeto possui um aparelho para pensar, ele pode transformar os pensamentos
primitivos, reenviando-os ao bebê, de forma a capacitá-lo a reintrojetá-los, e vir ele próprio,
bebê, se tornar assim, um pensador, que deverá lidar por si só com seus pensamentos. Esta
concepção é um dos raros exemplos que mostra a articulação de uma perspectiva
intrapsíquica com uma intersubjetiva. Também é uma concepção notável, que mostra a
transição do pensamento concreto (pensamentos sem pensador) para o pensamento abstrato
(pensamentos desenvolvidos por um pensador). A mente primordial é constituída de
pensamentos que, devido à sua natureza primitiva e crua, não são elaboráveis como tais.
Assim, têm que ser expelidos da psique. O destino dos pensamentos produzidos por um
pensador é serem conservados na mente e continuarem a ser transformados em abstrações
mentais. Uma questão permanece: como pode um pensamento sem pensador ser expelido da
mente, considerando-se que o processo de descarga, que os expulsa da mente, o faz sem que
toda a atividade mental primitiva também o seja? A resposta provável é que é impossível
livrar-se inteiramente dos elementos β, que ficam bloqueados na mente, e que envenenarão
outros processos mentais, caso se manifestem predominantemente outra vez.
Durante minha conversas com Bion, surpreendí-me com seu grande interesse por
Descartes. Ele achava que o objetivo de Descartes de chegar a “idéias claras e precisas”
poderia ser aplicado à Psicanálise. Pelo menos essa era uma tarefa que deveria ser realizada
em teoria. O projeto de Descartes, no que concerne à mente, era atingir o mesmo grau de
precisão das demonstrações matemáticas. Bion e Lacan, embora tendo partido de premissas
muito diversas, estavam ambos no mesmo caminho, buscando o mesmo objetivo final. Porém,
como já mencionei, Bion, tendo partido desse ideal, acabou se desiludindo. Qual a razão dessa
desilusão, se não devido à influência indelével da mente primordial, representada na Grade
pelos elementos β? Na linha dos elementos Β, colunas 3, 4, 5, as colunas encontram-se vazias,
o que significa que não há nada entre “ψ” e ação. É importante notar que a evacuação através
da ação é a tentativa mais radical de negação.
Pensamento e Psique
Negação
Qual é o principal passo para esta transformação? Para que a mente se desenvolva,
esta deve ser capaz de introjetar e de manter o que foi introjetado, seja bom ou mau. Bion
está, aqui, muito perto de Freud. Estou pensando especialmente no trabalho de Freud sobre ‘A
Negação’(1925). Segundo ele, o que se supõe que ocorra no início da vida é uma equação
entre o que é mau, o que é estranho e o que é externo. É apenas a constituição de um ego
primitivo prazeroso que permitirá o prosseguimento da elaboração, quando os objetos que
provêem satisfação forem perdidos. É deste modo que Freud explica a passagem do
predomínio do julgamento que tudo atribui ao princípio do prazer-desprazer, para o do
julgamento da existência: tendo então o ego que decidir se uma coisa existe ou não,
independentemente de sua qualidade, seja ela boa ou má.
Embora Bion reconheça a inevitabilidade da Identificação Projetiva primitiva, no seu
modelo, ele enfatiza a importância de se manter o que foi introjetado para que este possa vir a
ser transformado pela elaboração. Caso contrário, a condição dos elementos β torna-se
predominante, e a evacuação parece ser a única saída. É desnecessário dizer que uma parte
dos elementos β, que só podem ser expelidos (da mente), ficam de fato permanentemente na
mente, mas num estado de exclusão. O conhecimento é a combinação dos elementos α e
elementos β referentes tanto ao que nós sabemos quanto ao que não sabemos. Conservar
dentro da mente o que foi introjetado, contendo-o no espaço psíquico, como material para
transformação, é nossa única chance de pensar e, consequentemente, de saber o quanto não
sabemos. Este processo importante corresponde ao que Freud chama de Representação: ‘o
processo de pensamento tem a capacidade de trazer à mente outra vez algo antes já percebido,
reproduzindo-o como uma presentificação, sem que o objeto externo tenha que estar presente
(p.237). Isto não é Bion, é Freud, no artigo ‘A Negação’, em 1925. É obvio que, para poder
reproduzir internamente o que antes foi percebido como externo, para presentificá-lo outra
vez, os conteúdos da percepção ou seus traços devem ter sido preservados na mente. Se isto
foi conseguido, é porque o que foi preservado teve algum valor, interesse ou utilidade e,
portanto, não foi evacuado. Para Freud, o primeiro movimento da mente primordial é a
divisão entre o que é bom e o que é mau, entre o que deve ser incorporado e o que deve ser
eliminado. Freud contrapõe, aqui, introjeção e expulsão (não projeção). Se nos referirmos a
outro par, incorporação poderia ser oposto à excorporação (Donnett & Green, 1973). Com
esta última colocação, o uso de um padrão próximo à função digestiva é comum tanto a Freud
quanto a Bion.
Proponho um modelo para conceituar esses processos. Se traçarmos uma linha vertical
entre o de dentro e o de fora, esquematizamos o processo de evacuação de dentro para fora e
como a base da diferenciação entre o que é interno e o que é externo. Se traçarmos, então,
uma linha horizontal no meio do espaço interno, separamos consciente de inconsciente.
Construímos, assim, um modelo de duplo limite (entre dentro e fora, e entre consciente e
inconsciente). Nos pacientes neuróticos, as representações psíquicas se movimentam, a partir
do inconsciente, através do pré-consciente para o consciente num primeiro momento, e são
expressas então, por meio da verbalização; são comunicadas ao outro, no mundo externo. Nos
pacientes psicóticos, é como se as mensagens fossem evacuadas diretamente do inconsciente,
e projetadas no objeto externo, evitando a elaboração que as transformariam, através da
passagem pelo pré-consciente, antes de sua verbalização. Neste último caso, a linguagem é
pobre ou cheia de delírios projetados no analista. Podemos pensar, aqui, no conceito de objeto
bizarro de Bion. Em ambos os casos, a falta de uma elaboração corresponde a um fracasso
para pensar os pensamentos, devido ao colapso do pensador.
A diferença entre Freud e Bion pode ser vista a partir de suas premissas básicas. O
modelo de Freud parte da premissa de que a criança sempre será capaz de construir uma
1
- N.T.:Juissance:gozo.
concepção de seio, na satisfação alucinatória de desejos. O estranho, o externo, o mau, foram
expelidos, e o ego de puro prazer conseguiu fantasiar um seio nutridor que é apenas uma
criação da mente. Isto se mostrará impróprio, e a criança precisará encontrar outros meios de
obter satisfação, alcançando finalmente o que deseja quando a mãe interpretar seus sinais de
desprazer. Bion parte de outro ponto de vista, tentando explicar a falha psicótica. Para ele, não
é ponto pacífico que a satisfação alucinatória de desejo terá lugar. Ela pode não ocorrer, em
função da experiência de ameaça de aniquilamento ou do medo de morrer do bebê. O bebê
não consegue se livrar tão facilmente do que é mau, que continua a perseguí-lo apesar da
identificação projetiva. Como se livrar de uma ansiedade existente nas camadas mais
profundas da mente primordial? A projeção é seguida pelo retorno do projetado. Assim, o
destino das primeiras experiências e de suas transformações precisa ser explicado de outra
maneira. Bion excluiu a transformação expontânea dos elementos β em elementos α sem a
ajuda do objeto. É aqui que a capacidade de reverie da mãe representa a intervenção útil do
adulto, uma mente madura que pode ser introjetada pela criança para transformar sua
experiência interna destrutiva.
K, -K
Entre as grandes inovações da teoria de Bion, uma delas tem grandes conseqüências: o
símbolo K, para conhecimento. Ao contrário de Freud e de Melanie Klein, Bion decidiu
defender a existência do conhecimento como uma categoria independente, que não poderia ser
reduzida ao interjogo de outras duas: amor e ódio. Foi impossível explicar a conquista
científica da mente apenas com o desenvolvimento de amor e ódio como expressões dos
impulsos. Mas também foi impossível defender a capacidade de conhecer independentemente
destes.
A tentativa de Bion é mais interessante do que apenas acrescentar um novo eixo para
lidar com o conhecimento. K simboliza conhecimento, e –K, o seu contrário. Simboliza não
só a ignorância, mas também a tendência de manter ativamente a ignorância, com a adoção de
uma atitude em que convém evitar a consciência e a desvantagem da aproximação da verdade.
Percebo-me novamente concordando com o pensamento de Bion, quando tento conceituar o
‘Trabalho do Negativo’ (1933).
A evacuação é, certamente, um modo de se livrar da excitação nociva, mas não o
único. Já levantamos a questão: como pode a mente, a mente primordial, se livrar do estado
criado pela frustração? A projeção, sem dúvida, é uma possibilidade. O objeto se torna mau, é
atacado e jogado fora, mas o sentimento de perseguição é sentido ‘dentro’; a ansiedade, a
ameaça de aniquilamento, são internas. Como Freud, acredito que somente uma parte disso
pode ser projetada externamente. Também acredito que no começo o objeto não está separado
do self do bebê, de forma que a perseguição é então vivida como um perseguidor interno,
misturado ao self, porque suponho que não há separação entre um objeto persecutório e um
sujeito perseguido. . Uma expressão, em Francês, diz: ‘persécuté-persécuteur’, isto é
‘perseguido-perseguidor’. Isto me leva a propor uma alternativa para a evacuação.
Sugiro que os pensamentos - já que ainda não se pode falar de um pensador – os
pensamentos e sua expressão mais primitiva, o ‘pictograma’, sejam destruídos. Pode ser que a
noção de pictograma não seja adequada. Estou perto, aqui, de algumas idéias de Winnicot, e
assumo que há alguma forma de presentação, tão primitiva quanto possível, que se aproxima
de uma imagem pictórica. Ao invés de ter, como resultado, uma imagem aos pedaços – a
imagem do seio, por exemplo – temos uma destruição da imagem, um borrão ou o seu
desaparecimento gradual, que cria um ferimento na mente, produzindo uma hemorragia da
representação, uma dor sem qualquer imagem do ferimento, apenas um estado de vazio, como
eu disse, ou um buraco. Bion mencionou o papel dos buracos negros na mente, atraindo e
destruindo os pensamentos. Isto poderia completar a teoria dos elementos β como reativando
a destruição da capacidade de representar. Portanto, o esboço preliminar do aparelho de
pensar pensamentos fica danificado. O quadro total da situação ou fica borrado, ou deixa
sinais de pedaços fragmentados (que mais tarde se tornarão objetos bizarros), sem nenhum elo
que possa uni-los. Como Bion disse, o paciente psicótico tem seqüências, mas ignora as
conseqüências. A conjunção constante está perdida.
O negativo
Haverá um mecanismo por meio do qual possamos entender uma ação psíquica
empreendida? A resposta poderia ser a alucinação negativa. Se nos lembrarmos de que Freud
disse que ‘qualquer tentativa de explicar a alucinação deveria começar do negativo, ao invés
da alucinação positiva’ (1917, p232, n.3), poderíamos ter uma pista.
A alucinação negativa não se aplica apenas à percepção dos dados sensoriais.
Aplica-se também à percepção de pensamentos. Os pensamentos são percebidos quando a fala
ativa os traços mnêmicos das palavras. Alucinações negativas também podem ser aplicadas a
representações. Nestes casos, as representações não são apenas reprimidas, mas suprimidas,
isto é, não estão mais disponíveis para serem representadas de modo diferente da repressão ou
da cisão. A repressão mantém a representação tão longe quanto possível da consciência. Esta
é conservada na mente, ainda que fora de alcance, impossível de ter sua lembrança
despertada, mas ainda lá. No caso da alucinação negativa, alguns pensamentos principais são
perdidos, porque foram apagados. Não há sinal sequer de que tenham existido, nem de seu
desempenho subjacente. Às vezes, ao invés dos sintomas mentais, aparecem doenças
somáticas. Poder-se-ia dizer que o modelo da evasão ainda se mantém, aqui? Temos que
considerar dois tipos de evasão: uma, é o banimento. Corresponde ao modelo de Bion
fundado numa analogia com o trato digestivo: eliminação para o exterior, evacuação. A outra,
seria enterrar sem deixar vestígios, nenhum sinal da existência de um corpo. De tempos em
tempos, o analista, tal como o arqueólogo, encontra um dente, uma mandíbula, e reconstitui
toda uma personalidade a partir desses fragmentos. Nossas construções psicanalíticas são
mitos. Não seria útil confiar em métodos realísticos. Neste momento da ciência, estamos
tomados por supersimplificações.
“As descobertas da psicanálise nos impedem de ficar satisfeitos com a metodologia
dos cientistas ou dos filósofos da ciência, mesmo levando em conta o refinamento do método
que eles produziram para combater sua própria insatisfação. O psicanalista se encontra na
posição curiosa de estudar um objeto que ilumina a fonte mais arraigada de investigação não
cientifica, a saber, a mente humana, utilizando essa mesma mente como seu instrumento
cientifico e tendo que fazê-lo sem o conforto de pensar que suas observações são feitas por
uma máquina inanimada que, por estar morta, deve ser objetiva. Mas, claramente, a
incapacidade de aceitar que os métodos dos cientistas de outras disciplinas são científicos
diminui, ao invés de aumentar a esperança do psicanalista de ter mais êxito”. (Bion, 1992,
p.244).
O trabalho de Bion foi uma das fontes de inspiração do meu livro publicado em 1993:
Le travail du Negatif2. O trabalho do Negativo é uma expressão emprestada de Hegel, mas o
modo como a uso, na teoria psicanalítica, é análoga ao jeito que Bion usa a filosofia de Kant
em seu próprio pensamento. Ambos damos a estes conceitos filosóficos um novo significado,
de acordo com sua aplicação na psicanálise clínica. É impossível avaliar precisamente as
descobertas de Bion a partir de Freud, se compararmos de onde partiu e onde chegou. Durante
um encontro em Lyon, onde Bion apresentou uma de suas improvisações inteligentes,
dirigi-me a ele e no final, trocamos algumas palavras em particular, antes que a discussão
começasse. Eu lhe disse: ‘Quanto mais o ouço, mais vejo que você cita menos Melanie Klein
e mais Freud’. Ele respondeu: ‘Melanie Klein é uma contribuição importante, mas apenas
uma contribuição’.
Não desejo avaliar, aqui, as respectivas influências dos trabalhos de Freud e de
Melanie Klein, sobre o de Bion. O que pretendo enfatizar é a presença, no trabalho de Freud,
a presença do conceito do negativo passa desapercebida, e este tem sido desenvolvido desde
então em muitas direções, cada qual dependendo de um contexto diferente. Por exemplo,
Lacan (‘O estágio espelho’, 1949), Winnicot (O brincar e a realidade, 1971), Bion e eu, todos
temos pontos de vista diferentes a respeito desse conceito. Não é tão importante levantar,
aqui, questões de prioridade, uma vez que os diferentes contextos teóricos não se
comunicaram uns com os outros e um não se originou a partir de outro. Tenho tentado mostrar
que um conjunto de aproximações poderiam ser deduzidas da confrontação destes diferentes
corpos teóricos. Todos eles derivam de fato, de Freud, estejam ou não prontos a reconhecê-lo.
É importante estar consciente de que o negativo está muito presente nos ‘pressupostos
básicos’ de Freud. Pensemos apenas nos dois conceitos centrais principais: o inconsciente e o
id. Sobre o primeiro, a observação é óbvia, uma vez que a palavra é formada com o prefixo in
- que fala por si mesmo. Quanto ao segundo, Freud diz que quase tudo o que sabemos sobre o
2
- Já escrevi sobre uma das outras fontes, D.W. Winnicott, no ‘A intuição do negativo’, em ‘O Brincar e a
Realidade” (1977). A última influência do trabalho do Lacan.
id tem um ‘caráter negativo’ se comparado ao ego (1933, p.73). Além disso, se pensarmos nas
subtrações produzidas pela atividade da repressão, a consciência está, do ponto de vista de
Freud, no lugar oposto ao que ocupa na filosofia clássica. É uma porção muito pequena de
atividade psíquica. Não há necessidade de lembrar, aqui, a luta permanente contra a equação
psíquico=consciente. Além disso, o fato de que os impulsos, para Freud, encontram-se na raiz
da atividade psíquica, implica que algo está excessivo; há uma sobrecarga da mente, ligada às
exigências corporais dos impulsos, cujos derivados têm que ser mandados de volta ao
inconsciente, pois sua expressão livre dificulta a organização psíquica. Isto é o que acontece
na construção do ego, mais precisamente em sua parte consciente. Assim, o negativo, que está
na base da atividade psíquica, não só é normal, como também é um pré-requisito para
qualquer espécie de desenvolvimento psíquico. Além do mais, é devido à falta do objeto, sob
a pressão dos impulsos em busca de satisfação, que a mente é ativada e dá origem à satisfação
alucinatória de desejos, que se constitui na forma mais elementar de atividade psíquica, pelo
menos de acordo com Freud.
Mais tarde, em 1943, Suzan Isaacs, durante as Controvérsias Freud-Klein, defendeu a
idéia de que a ‘phantasia’ é a expressão psíquica dos impulsos, uma idéia Kleiniana bem
conhecida que merece muita atenção e que pode levantar um razoável número de críticas,
apesar de sua aparente simplicidade (Isaacs, 1948). Freud iria descobrir que sua descrição da
repressão, presente tanto na neurose quanto no desenvolvimento normal, estava incompleta. A
este respeito, um passo foi dado no seu comentário sobre o caso Schreber. Após ter escrito
que a repressão estava em atividade na sintomatologia do paciente, ele próprio se corrigiu:
‘Foi incorreto dizer que a percepção, que foi suprimida internamente, foi projetada para fora;
a verdade é, como observamos agora, que o que foi abolido internamente retorna do exterior ’.
(1911, p.71)
Assim, em 1911, Freud acrescentou, ao mecanismo da repressão (Verdrängung), o
mecanismo denominado foreclusão (Verwerfung) por Lacan, que foi quem atentou para esta
diferença.3 A observação de Freud supõe uma diferença radical entre reprimir e abolir. Neste
último exemplo, o que é internamente suprimido retorna do mundo externo por exemplo, na
forma de uma alucinação ou de uma idéia delirante. Isto soa como identificação projetiva,
mas na verdade foi exposto muito antes, por Freud, e passou desapercebido. Para Lacan, a
diferença entre os dois termos poderia ser interpretada como se, na repressão, os processos de
simbolização estivessem em atividade no inconsciente, enquanto que o que ocorre na
chamada supressão seria uma falha da simbolização. Também poderíamos pensar, aqui, na
equação simbólica como proposta por Hanna Segal 1957).
Um terceiro movimento foi feito por Freud, em 1925, em seu artigo sobre ‘A
Negação’ (Verneinung), no qual ele defende a idéia de que a forma linguística seria um
substituto intelectual para a repressão (1925, p.236). Por fim, em 1927, Freud descreveu a
cisão do ego (Ich Spaltung ), no artigo sobre ‘Fetichismo’ (pp. 152-7). Sua concepção de
cisão é diferente da de Klein. Ele a descreve como um repúdio à percepção, dando origem a
uma dualidade de mecanismos mentais, um deles admitindo o resultado da percepção (a visão
da ausência de pênis no interior do corpo da mãe), e o outro negando-o. É como se o paciente
dissesse: ‘Eu sei disto (que mulher não tem pênis), mas não consigo acreditar!’ Portanto, o
fetiche será o deslocamento do pênis que falta para um pedaço de roupa da mãe, por exemplo,
na luta contra a ansiedade de castração. Freud sempre insistiu em que cisão não é apenas uma
forma de negação, mas que também sempre inclui um reconhecimento, ainda que
contraditório devido a suas consequências traumáticas.
Propus reunir todos estes mecanismos afins: supressão, cisão ou repúdio, foreclusão
ou rejeição e negação, no conceito de ‘trabalho do negativo’. Esta reunião se justifica pelo
3
- Alguns autores não concordam com esta tradução, e propõem uma mais simples e mais adequada: rejeição.
fato de que todos estes mecanismos são elaborações do protótipo da repressão. Todos
implicam um julgamento de aceitação ou de recusa, uma pergunta cuja resposta deve ser dada
em termos de sim e não. Esta questão, como temos visto, é colocada de muitas formas,
baseada em diferentes contextos, lidando com materiais variados (impulsos instintivos, afetos,
representações, percepções, palavras, etc.), na concepção de Freud. Entre os vários
mecanismos de defesa descritos por Freud, Anna Freud e Klein (cuja contribuição inclui a
negação) etc., este grupo difere de outros porque seus constituintes implicam diretamente uma
escolha básica de aceitação ou de recusa, na consciência, dos derivados que estão enraizados
no inconsciente ou no id.
Fica fácil, então, mostrar que as idéias de Bion, contrapondo a ‘não coisa’ ao ‘nada’,
se justificam profundamente e podem ser relacionadas às elaborações de Freud, ainda que se
possa enfatizar, entre elas, a influência de Melanie Klein. De qualquer modo, estritamente
falando, o conceito de Melanie Klein não cuida tanto das diferenças estruturais. Ela invoca a
‘psicose’, que pode ser encontrada no início de cada desenvolvimento. As interpretações terão
de ir, em todos os casos, a essa profundidade, para produzir qualquer mudança significativa.
Pelo menos, esta é minha leitura de seu trabalho.
Nesta discussão das idéias de Bion, o importante é estabelecer a distinção entre a
ausência do seio e a aniquilação do seio. No primeiro caso - a ausência - que é encontrada em
condições normais e neuróticas, leva a representações ou, em outras palavras, a fantasias. Os
conceitos de Freud podem ser aplicados, aqui. O outro caso - o do aniquilamento - estaria
mais ligado à parte psicótica da personalidade, lidando com uma situação predominantemente
marcada pela destruição, uma forma mais precisa de supressão. Esta destruição, que pode ser
entendida tanto na linha de Freud de foreclusão e rejeição quanto de acordo com as
ansiedades de aniquilamento de Melanie Klein e que resultam não tanto em fantasias arcaicas
de destruição mas, como Winnicott e eu mostramos, numa destruição da atividade psíquica de
representação, criando ‘buracos’ na mente, ou sentimentos de oco, de vazio, etc. Quando
Freud descreveu os delírios de Schreber, ele os interpretou como processos de restituição,
após a retirada da realidade. Em outras palavras, uma colcha de retalhos, escondendo
cicatrizes ou espaços que mostram uma espécie de perda de substância. Bion descreve
ocorrências similares, mas a destruição, para ele, é consequência da identificação projetiva
excessiva, que evacua os conteúdos não assimiláveis da mente: os elementos β.
É claro que há diferenças entre as primeiras intuições de Freud e a conceituação de
Bion, meio século depois, embora a necessidade de diferenciar entre as diversas modalidades
de defesa, que também são formas de pensamento, seja semelhante em ambos os trabalhos. A
psicanálise contemporânea necessita muito de diferenciações estruturais, para não misturar o
material derivado de diferentes tipos de paciente numa única matriz.