Você está na página 1de 17

Green, André. A mente primordial e o trabalho do negativo.

Tradução de: Célia Fix


Korbivcher. Livro Anual de Psicanálise, 1998 ; v.14. p.133-48, 2000

A MENTE PRIMORDIAL E O TRABALHO DO NEGATIVO

André Green, Paris

Este artigo foi apresentado na comemoração do centenário de Bion, em 1997. A pedido dos
organizadores da conferência, o trabalho de Bion foi tratado sob a ótica do autor. O autor
escolheu iluminar o conceito de mente primordial, de Bion, e considerar a transformação dos
elementos β em elementos α. Refere-se também à distinção feita por Bion entre pensamento
sem pensador e o pensar necessitando de pensamentos para serem pensados por um pensador
(aparelho para pensar). O ponto principal do artigo diz respeito ao contraste que Bion faz
entre o “nada” (nothing) e a “não coisa”(no-thing). O autor se refere ao trabalho de Freud
sobre “A Negação”. Relembra seu próprio modelo de duplo limite. Tenta mostrar como a
concepção de Freud sobre a representação ocupa um campo muito mais amplo do que
geralmente é mencionado. Enfatiza diferenças entre conceitos básicos de Freud e de Bion.
Após tentar esclarecer as idéias de Bion sobre O, K, e -K, relembra a menção de Bion à
capacidade negativa, de Keats. Em seguida, expõe um breve sumário relativo ao seu conceito
do trabalho do Negativo, encontrando correspondência com os conceitos próprios de Bion.
Como conclusão, são mencionados dois mitos hindús, por seu grande valor simbólico.

Quando convidado por Parthenope Bion Thalamo e Francesca Bion para esta
conferência de abertura, senti-me não somente honrado, mas também comovido. Tive o
privilégio de conhecer Bion pessoalmente; tivemos longas conversas e trocamos cartas.
Mantenho uma lembrança vívida e forte do nosso relacionamento. No convite, Parthenope
Bion Thalamo disse-me que seu pai tinha “uma espécie de sentimento amizade” por mim,
comentário este que me tocou, pois da minha parte havia, por ele, uma espécie de respeito
filial. Outra razão pela qual fiquei comovido foi que, como todos sabem, não sou um
“Bioniano”, nem mesmo um Kleiniano. Respondendo a esta objeção, foi-me dito que, na
verdade, uma razão pela qual fui convidado a dar esta conferência foi eu não ser discípulo de
Bion. Parece-me que, enquanto conhecedor das idéias de Bion, eu poderia “usá-las”,
conservando-me fiel a meus próprios pensamentos.
Bion foi provavelmente o melhor exemplo de um pensador independente em
psicanálise, e encorajava os que dele se aproximassem a fazer o mesmo . Ao longo das
minhas trocas escritas ou orais com Bion, ele nunca tentou me “converter” às suas idéias ou
às de Klein. Concordávamos que nosso grande débito era com Freud.
Quanto ao fato de eu não ser nem mesmo discípulo de Klein, o próprio Bion escreveu
que algumas vezes se sentia mais próximo dos não Kleinianos do que de seus amigos
Kleinianos. No início de outubro de 1955, Bion recebeu uma carta, dizendo : “Vejo você
como o grande homem do futuro da Sociedade Psicanalítica Britânica”. Estava assinada por
D.W. Winnicott (Rodman, 1987, p.89). Em 16 de novembro de 1961, Winnicott reafirmou sua
apreciação relativa ao trabalho de Bion sobre pensamento: “Como muitas outras pessoas, eu o
acho difícil, mas muito importante” (p. 133). Concordo com isso. Encontrei Bion pela
primeira vez quando eu estava escrevendo, em colaboração com Jean-Luc Donnet, sobre
psicose branca, trabalho onde uma teoria do pensamento foi desenvolvida (Donnet/Green,
1973). Suas idéias me foram de grande ajuda, na ocasião.

 
Os dois Bions

O trabalho de Bion pode ser dividido em duas grandes vertentes : a primeira,


representada por sua tentativa de construir uma nova teoria psicanalítica, que não fosse apenas
uma extensão do trabalho de Freud ou de Klein, mas fosse uma nova formulação da
psicanálise contemporânea, partindo de um ponto de vista totalmente diferente. Como base
para essa conceituação não seria considerado o paciente neurótico, mas o psicótico. A teoria
psicanalítica mostrou-se inadequada para entender e analisar pacientes psicóticos. O principal
artigo de Freud sobre psicose foi ‘O Caso de Schreber’ (1911), e todos sabemos que ele não
tinha nenhuma inclinação para tratar pacientes psicóticos. Melanie Klein começou a explorar
este novo campo mas, se me permitem dizê-lo, ela não dispunha das ferramentas conceituais
corretas para fazer descobertas significativas: faltava-lhe uma teoria do pensamento. As idéias
de Bion foram sintetizadas com a Grade, que representa suas descobertas para uma
classificação na formalização. Este posicionamento continua até Atenção e Interpretação
(1970). Uma segunda vertente, quantitativamente mais limitada, é o resultado de uma
inspiração oposta. Uma Memória do Futuro (1975) e Alvorada do Esquecimento (1979) nos
falam sobre ela. Nestes livros, Bion aparece como um autor de ficção; talvez deliberadamente
como um representante da “ficção científica psicanalítica”.
Bion intrigou muitas pessoas ao iniciar este outro lado do seu trabalho quando
mudou-se para os Estados Unidos. Em a “Memória” começa com a frase “Estou cansado”.
Talvez o cansaço não seja somente físico, mas tenha a ver com seu esforço para construir uma
teoria científica. Como ele escreveu: “A própria psicanálise, é apenas uma lista na pele de um
tigre. Eventualmente poderemos vir a encontrar o tigre. A coisa em si, “O”. Bion teve de levar
seriamente em conta que a coisa-em-si é incognoscível. Podemos apenas nos aproximar de
seus derivados. Aqui, a referência não é apenas a Kant, que ele cita, mas também a Freud. E,
se o resultado parece muito distante do que imaginamos pareceria ser a verdade, talvez outro
método possa ser tentado. Interpretar sonhos é uma coisa, construir um discurso baseado no
modelo de um sonho artificial é outra coisa, especialmente quando se teve um pesadelo.
Numa cópia da “Memória do Futuro” que Bion me ofereceu, ele escreveu, depois de assinar:
“Sem pesadelos, por favor”. Provavelmente ele quis me proteger da experiência que tivera.
Concluindo: a classificação é evidência do poder da mente, mas também de sua limitação,
pois pode estar limitada apenas à vida desperta. Ficção é seu oposto, ou seja, aquilo que
experimentamos com os sonhos (subtítulo do livro). E pode ser um método melhor para nos
aproximarmos do incognoscível, do vazio, do infinito sem forma. Não que se possa nos dizer
qualquer coisa sobre este, mas dessa forma evitamos o risco da racionalização e tentamos,
assim, explorar as camadas da mente além do visível ou do pensável.
Há cem anos, Wilfred Ruprecht Bion experimentou a caesura entre o útero de sua mãe
e ele mesmo . Ele escreveu o seguinte sobre essa experiência: “O homem conhece o universo
no útero de sua mãe, e o esquece, ao nascer” (Bion 1977). Ao longo da vida, Bion fez um
enorme esforço de tentar recuperar um pouco desse conhecimento perdido. Colocação
semelhante pode ser encontrada no Talmud; talvez uma reminiscência não identificada.
Usando sua capacidade de identificação, Bion foi capaz de conceituar, através da
análise de seus pacientes e da sua própria auto-análise, as raízes da atividade psíquica, o ponto
a partir do qual supostamente devemos iniciar, pelo menos na ficção que construímos sobre
nós mesmos e sobre os outros. Foi isto que Bion denominou de mente primordial. Tentarei
esclarecer algumas idéias de Bion a respeito, estando seguro de que muitos de vocês têm
melhor conhecimento de suas concepções, e apresentarei também minhas próprias idéias em
relação a estas. No percurso, várias vezes irei ao encontro do trabalho de Freud, elo essencial
entre Bion e eu.

A mente primordial: β → α

A expressão “mente primordial” não é tão clara, à primeira vista. Sua consistência se
baseia em sua oposição às partes “civilizada, individual, educada e articulada” do ser humano.
Bion a vê como a presença de nossos ancestrais, da mesma maneira como a fissura branquial
é sinal de algo da anatomia do peixe. É interessante notar que Bion relaciona a mente
primordial a uma espécie de embriologia imaginária da mente. Bion compartilha uma
hipótese comum com Freud em que há algo de primitivo, na mente, não totalmente explicado
pelos primeiros estágios de relação objetal no desenvolvimento do bebê. Os traços deixados
pela filogênese e pela ontogênese, na estrutura da mente, devem desempenhar um papel
significativo nos estágios posteriores de desenvolvimento. Essa especulação se liga à hipótese
dos elementos β. Para Bion, os elementos mais primitivos da psique são os elementos β,
ligados às experiências sensoriais. Em “Cogitações”, Bion diz que os elementos β podem
corresponder a fenômenos sob o domínio do princípio do prazer-desprazer. O mais importante
é que os elementos β, do mesmo modo que o espaço β, são impensáveis, porque se encontram
no território dos pensamentos sem pensador (1922, p313).
Esta idéia de pensamentos para os quais não há pensador nos coloca frente ao
paradoxo de ter que admitir que existem pensamentos que não podem ser pensados por uma
pessoa, pois num certo nível falta a esta aparelho para processar os pensamentos, portanto tais
pensamentos não podem ser comunicados. Se os pensamentos precisam de um pensador,
temos que considerar que o pensador não deve ser confundido com um organismo portador de
pensamentos que serão projetados num objeto, para que este se torne um pensador.
(If thoughts need a thinker, it could be that the thinker is not to be confused with the organism
that has thoughts that have to be projected into an object who is a thinker.)
(Si los pensamientos necesitan un pensador, podría ser que el pensador no debe confundirse
con el organismo que tiene pensamientos que tienen que ser proyectados en un objeto que es
un pensador).
Como o objeto possui um aparelho para pensar, ele pode transformar os pensamentos
primitivos, reenviando-os ao bebê, de forma a capacitá-lo a reintrojetá-los, e vir ele próprio,
bebê, se tornar assim, um pensador, que deverá lidar por si só com seus pensamentos. Esta
concepção é um dos raros exemplos que mostra a articulação de uma perspectiva
intrapsíquica com uma intersubjetiva. Também é uma concepção notável, que mostra a
transição do pensamento concreto (pensamentos sem pensador) para o pensamento abstrato
(pensamentos desenvolvidos por um pensador). A mente primordial é constituída de
pensamentos que, devido à sua natureza primitiva e crua, não são elaboráveis como tais.
Assim, têm que ser expelidos da psique. O destino dos pensamentos produzidos por um
pensador é serem conservados na mente e continuarem a ser transformados em abstrações
mentais. Uma questão permanece: como pode um pensamento sem pensador ser expelido da
mente, considerando-se que o processo de descarga, que os expulsa da mente, o faz sem que
toda a atividade mental primitiva também o seja? A resposta provável é que é impossível
livrar-se inteiramente dos elementos β, que ficam bloqueados na mente, e que envenenarão
outros processos mentais, caso se manifestem predominantemente outra vez.
Durante minha conversas com Bion, surpreendí-me com seu grande interesse por
Descartes. Ele achava que o objetivo de Descartes de chegar a “idéias claras e precisas”
poderia ser aplicado à Psicanálise. Pelo menos essa era uma tarefa que deveria ser realizada
em teoria. O projeto de Descartes, no que concerne à mente, era atingir o mesmo grau de
precisão das demonstrações matemáticas. Bion e Lacan, embora tendo partido de premissas
muito diversas, estavam ambos no mesmo caminho, buscando o mesmo objetivo final. Porém,
como já mencionei, Bion, tendo partido desse ideal, acabou se desiludindo. Qual a razão dessa
desilusão, se não devido à influência indelével da mente primordial, representada na Grade
pelos elementos β? Na linha dos elementos Β, colunas 3, 4, 5, as colunas encontram-se vazias,
o que significa que não há nada entre “ψ” e ação. É importante notar que a evacuação através
da ação é a tentativa mais radical de negação.

Pensamento e Psique

O pensamento freqüentemente é confundido com atividade psíquica. Freud, como


Bion, estava interessado nessa diferença, por ex: quando ele diz que os impulsos são
enraizados no somático, e que já se constituem numa atividade psíquica primitiva “numa
forma para nós desconhecida”. Poderíamos dizer impensáveis? Há seguramente uma
diferença daquilo que nós diríamos sobre o que conhecemos como pensamento. A conclusão é
que precisamos distinguir entre eventos psíquicos, que devem ser compreendidos como
enraizados no corpo, “pensamentos sem pensador”, que estão muito próximos da atividade
psíquica primitiva, e “pensamentos, que devem ser pensados por um pensador” e, então,
comunicados a outro pensador. A hipótese de Bion, de que a experiência emocional é a matriz
da mente, está ligada à proximidade dos pensamentos sem pensador com os modelos
extraídos da atividade corporal. Pensar é uma digestão da mente.
Frances Tustin, que foi analisada por Bion e que trabalhou com pacientes autistas,
expôs essas questões de modo convincente, relatando uma sessão (Tustin, 1984). O preço a
pagar, por pensar, é o de ser o pensador quase que necessariamente um mentiroso. Bion
aplicou esta conclusão a si próprio. O pensador, que construiu uma teoria sofisticada,
inevitavelmente falsificou a experiência. Suponho que se pode dizer que a mente primordial é
constituída de uma atividade psíquica cuja raíz está no corpo, sendo esta já uma forma de
pensamento, mas sem pensador. Compreender o que seja pensamento sem pensador
provavelmente significaria considerar o elemento psíquico em íntima conexão com o impulso
e o pensamento que é expresso por meio da ação e que corresponde, no sistema de Bion, à
evacuação. De certa forma, Bion concorda com Descartes a respeito da relação entre
pensamento e pensador. ‘Penso, logo, existo’. Mas ele acrescenta : ‘O próprio Descartes, na
sua conceituação de dúvida filosófica, foi incapaz de duvidar da necessidade de um pensador’
(1977 p.12). Bion acredita que um psicanalista deveria considerar a crença de um indivíduo
sem pensamento assim como ele gostaria que Descartes aceitasse a idéia de pensamento sem
pensador. Estas afirmações altamente especulativas se baseiam na experiência clínica. Bion
aludia a pacientes que diziam não ter pensamentos e que alegavam não estar ‘pensando em
nada’.
Bion relembra a capacidade negativa, de Keats, da qual esses pacientes são incapazes,
entregando-se à ação. Ação não significa, necessariamente, atuação explícita. É mais um
modelo da ação do que a ação propriamente dita, que ilumina os seus (dos pacientes)
processos psíquicos, sejam eles de que espécie forem. Portanto, pode-se supor que os
pensamentos sem pensador não podem ser reconhecidos como tendo sido pensados e
atribuídos ao sujeito que os teve. Esta pode ser uma diferença importante entre as partes
psicótica e neurótica da personalidade. O neurótico, depois da interpretação ter sido dada pelo
analista, pode reconhecer a verdade subjacente, mesmo que a resistência se oponha a esse
‘insight’. O psicótico não reconhecerá esta verdade, como se essa verdade dissesse respeito a
outrem, o que significa que ele não se reconhece, pois vive num estado de alienação. Se ele se
conscientizasse de uma imagem de si mesmo, ficaria aterrorizado. Isto nos dá uma indicação
do fato que uma negação radical da mente primordial é causada por terror, provocando o risco
de morte mental. Negação e Identificação Projetiva excessiva podem ser uma mesma coisa.
Tanto a Negação quanto a Identificação Projetiva excessiva podem levar a um estado de
esvaziamento da mente. .
Se a Identificação Projetiva não for possível, devido à ameaça que representa de
aniquilamento da mente pelo seu esvaziamento, outro mecanismo pode ser utilizado: um
processo de apagamento, uma atividade de eliminação e de supressão que nada tem a ver com
a repressão como censura, e sim com a supressão radical do que ocorre na mente. Isto é o que
acontece, segundo penso, na psicose branca ou, em menor grau, nos estados de vazio. O
resultado é um ‘buraco vazio’, na mente, que não só atua como um vazio interno, mas tem o
poder de atrair todos os conteúdos mentais ou pensamentos ligados ao tópico principal,
central, de espaço vazio. Está em ação nesse momento uma atividade extremamente poderosa,
-K, uma espécie de vínculo negativo. Freud tinha alguma idéia disto, ao escrever, primeiro,
sobre Schreber, e depois, em menor grau, sobre o Homem dos Lobos. Ele substituiu o termo
supressão por ‘repressão’, no texto em que fala sobre o processo de negação do Presidente
(1911). Lacan propôs o conceito de foreclusão (supressão: Verwerfung), fazendo uma
distinção das conseqüências dessas duas idéias. Na supressão, os processos de simbolização
estão prejudicados. Entre os teóricos que fizeram observações semelhantes, há concordância
na idéia de que a função simbólica fica mesmo danificada nestes casos, o que explica o uso da
expressão “pensamento concreto”. Retornaremos a isso posteriormente.

‘Nada’ e ‘Não Coisa’

É possível construir uma teoria psicanalítica do pensamento, ignorando os artigos de


filosofia? Provavelmente não. Cada psicanalista escolhe os filósofos com que se afina, senão
totalmente, pelo menos em consonância. De qualquer modo, citar filósofos nos obriga, como
psicanalistas, a interpretar suas idéias, contrapondo-as à experiência clínica. Isto é, aceitar o
fato de que não se pode evitar a deformação do que eles disseram. Kant foi uma referência
importante para Bion. Mas os filósofos contemporâneos provavelmente protestarão quanto
aos equívocos de Bion ao interpretar os conceitos de Kant, para uso próprio.
Bion fez uma importante distinção entre o ‘nada’ e a ‘não coisa’. Este par só é
compreensível por meio da categoria do negativo. Ele foi o primeiro psicanalista a expressar
claramente as diferenças. Por muitos anos, os psicanalistas não estiveram conscientes da
presença implícita do negativo na teoria psicanalítica - ela pode estar associada ao trabalho de
Hegel, entre outros. A hipótese do inconsciente foi adotada por todos os que estavam
convencidos da existência de atividade psíquica além do pensamento consciente. E, como
todo o trabalho de Freud consistiu da tentativa de desvendar o que estava reprimido, e de
dar-lhe um significado positivo, isto é, tornar o inconsciente consciente por meio da
interpretação, toda a atenção foi focalizada no conteúdo que emergia do inconsciente após a
interpretação, e não em sua especificidade enquanto estado inconsciente. O inconsciente só
podia ser pensado em sua forma positiva, isto é, numa forma que permitisse perceber seu
conteúdo como um pensamento, vontade, desejo, fantasia e assim por diante. Mas, e quanto à
sua natureza enquanto inconsciente? Além de Freud, poucos analistas ousaram indagar sobre
a natureza do inconsciente como inconsciente. Numa proposição circular, pode-se dizer que a
possibilidade de interpretar o que é inconsciente, tornando-o consciente, se deve à capacidade
potencialmente interpretável do inconsciente. Isto nos leva à questão de como é conseguida
essa interpretabilidade ou analisabilidade - do material inconsciente. Esta foi uma das
principais preocupações de Bion.
Quando Freud mudou do primeiro modelo topográfico para seu segundo modelo, em
1923, o inconsciente foi abandonado como sistema, e substituído pelo Id. A principal
diferença entre o Id e o inconsciente é que, no Id, do modo como Freud pensava, não havia
representações. O Id era constituído de impulsos, ou seja, era um conceito muito próximo da
noção de elementos β, de Bion. Bion tinha consciência disso. A principal diferença entre Bion
e Freud é que os impulsos, para Freud, sempre tiveram origens mais internas, no corpo,
enquanto que, para Bion, os elementos β também podem surgir de um estímulo externo na
mente primordial. O que é sensorial, nos elementos β, é principalmente a sua relação com o
corpo primitivo, onde falta um pensador, e não com a fonte original do próprio elemento. No
geral, pode-se dizer que a presença do pensador poderia estar menos relacionada à experiência
do ‘eu’ como tal, do que à sua possibilidade de representação. Em “Cogitações”, Bion tenta
iluminar a função α (1992). A função α, como todos sabemos, transforma os produtos
primitivos da mente, tornando-os aceitáveis e passíveis de interpretação. Este é o passo
essencial, decisivo, para a condição de analisabilidade. Requer um aparelho para pensar os
pensamentos.

Negação

Qual é o principal passo para esta transformação? Para que a mente se desenvolva,
esta deve ser capaz de introjetar e de manter o que foi introjetado, seja bom ou mau. Bion
está, aqui, muito perto de Freud. Estou pensando especialmente no trabalho de Freud sobre ‘A
Negação’(1925). Segundo ele, o que se supõe que ocorra no início da vida é uma equação
entre o que é mau, o que é estranho e o que é externo. É apenas a constituição de um ego
primitivo prazeroso que permitirá o prosseguimento da elaboração, quando os objetos que
provêem satisfação forem perdidos. É deste modo que Freud explica a passagem do
predomínio do julgamento que tudo atribui ao princípio do prazer-desprazer, para o do
julgamento da existência: tendo então o ego que decidir se uma coisa existe ou não,
independentemente de sua qualidade, seja ela boa ou má.
Embora Bion reconheça a inevitabilidade da Identificação Projetiva primitiva, no seu
modelo, ele enfatiza a importância de se manter o que foi introjetado para que este possa vir a
ser transformado pela elaboração. Caso contrário, a condição dos elementos β torna-se
predominante, e a evacuação parece ser a única saída. É desnecessário dizer que uma parte
dos elementos β, que só podem ser expelidos (da mente), ficam de fato permanentemente na
mente, mas num estado de exclusão. O conhecimento é a combinação dos elementos α e
elementos β referentes tanto ao que nós sabemos quanto ao que não sabemos. Conservar
dentro da mente o que foi introjetado, contendo-o no espaço psíquico, como material para
transformação, é nossa única chance de pensar e, consequentemente, de saber o quanto não
sabemos. Este processo importante corresponde ao que Freud chama de Representação: ‘o
processo de pensamento tem a capacidade de trazer à mente outra vez algo antes já percebido,
reproduzindo-o como uma presentificação, sem que o objeto externo tenha que estar presente
(p.237). Isto não é Bion, é Freud, no artigo ‘A Negação’, em 1925. É obvio que, para poder
reproduzir internamente o que antes foi percebido como externo, para presentificá-lo outra
vez, os conteúdos da percepção ou seus traços devem ter sido preservados na mente. Se isto
foi conseguido, é porque o que foi preservado teve algum valor, interesse ou utilidade e,
portanto, não foi evacuado. Para Freud, o primeiro movimento da mente primordial é a
divisão entre o que é bom e o que é mau, entre o que deve ser incorporado e o que deve ser
eliminado. Freud contrapõe, aqui, introjeção e expulsão (não projeção). Se nos referirmos a
outro par, incorporação poderia ser oposto à excorporação (Donnett & Green, 1973). Com
esta última colocação, o uso de um padrão próximo à função digestiva é comum tanto a Freud
quanto a Bion.

O modelo do duplo limite

Proponho um modelo para conceituar esses processos. Se traçarmos uma linha vertical
entre o de dentro e o de fora, esquematizamos o processo de evacuação de dentro para fora e
como a base da diferenciação entre o que é interno e o que é externo. Se traçarmos, então,
uma linha horizontal no meio do espaço interno, separamos consciente de inconsciente.
Construímos, assim, um modelo de duplo limite (entre dentro e fora, e entre consciente e
inconsciente). Nos pacientes neuróticos, as representações psíquicas se movimentam, a partir
do inconsciente, através do pré-consciente para o consciente num primeiro momento, e são
expressas então, por meio da verbalização; são comunicadas ao outro, no mundo externo. Nos
pacientes psicóticos, é como se as mensagens fossem evacuadas diretamente do inconsciente,
e projetadas no objeto externo, evitando a elaboração que as transformariam, através da
passagem pelo pré-consciente, antes de sua verbalização. Neste último caso, a linguagem é
pobre ou cheia de delírios projetados no analista. Podemos pensar, aqui, no conceito de objeto
bizarro de Bion. Em ambos os casos, a falta de uma elaboração corresponde a um fracasso
para pensar os pensamentos, devido ao colapso do pensador.

A teoria da representação de Freud

O conceito de representação, de Freud, é muito complexo. Ele geralmente é


esquematizado num único par: representação de coisa e representação de palavra. Essa teoria
abreviada ignora, de fato, referências adicionais importantes. O conceito de impulso, de
Freud, tem que ser compreendido também no corpo de uma teoria geral da representação. Ele
define o impulso como ‘representante psíquico do estímulo, tendo origem no interior do
organismo e alcançando a mente’ (1915, p.122). Mas Freud acrescenta, após esta definição,
que o impulso é uma ‘medida da demanda de trabalho feita à mente, em conseqüência de sua
conexão com o corpo’. Assim, podemos ver que, nesta premissa básica ou ‘hipótese
definitória’, de Freud, há um duplo processo: o primeiro, é a transformação dos estímulos
nascidos no corpo que alcançam a mente, mudando de excitações somáticas para
representações psíquicas; no segundo, um trabalho é imposto à mente visando mudar a
situação de frustração na comunicação de suas representações ao outro.
Sabemos que a primeira tentativa resultará na hipótese da satisfação alucinatória de
desejo, que pode estar relacionada a uma representação de coisa, o seio. Há, de fato, uma
re-apresentação. Penso que esta pode ser considerada como a primeira realização da função α.
Posteriormente a elaboração passará de uma representação de coisa para uma presentação de
palavra, no adulto. No bebê que não fala, o choro é a linguagem. Seu status é ambíguo. Se o
choro for somente uma maneira de evacuar a ansiedade provocada pela fúria da frustação, ele
estará relacionado aos elementos β, mas se for usado como meio de comunicação, ajudando a
estabelecer uma relação com a mãe por meio de uma mensagem, pode ser visto como uma
ferramenta para realçar uma conjunção constante despertando assim a ajuda da mãe, o que
pode constituir-se na raiz da função α. Neste último caso, a psique materna, ou seja, sua
capacidade de reverie, será importante.
Ainda está faltando, porém, outra categoria, geralmente não incluída na exposição da
teoria de Freud sobre representação. Estou falando, aqui, sobre o que Freud denomina
‘representações da realidade’ (Freud 1924). Ele as descreve como ‘idéias e julgamentos
previamente extraídos da realidade, por meio dos quais a realidade foi representada na mente’
(p.185). Aqui, se perceberá a referência implícita ao pensamento. Pode-se concluir que a
teoria da representação, de Freud, é um espectro que inclui a pulsão, o representante psíquico
da pulsão, a representação de coisa ou representante ideacional, ou representação de objeto, a
representação de palavra e a representação da realidade por meio de idéias e de julgamentos
relacionados ao pensamento. Se considerarmos os elementos que integram todos esses
processos, quanto mais progredimos na direção do pensamento, menos nos referimos
diretamente ao objeto ou aos sentidos, e mais alcançaremos um trabalho de abstração.
Como Bion sugere, a experiência emocional - outra expressão para a ativação do
impulso - está presente desde o início. A experiência emocional é o primeiro passo em direção
ao pensamento. No fim do caminho, encontramos o pensar. Eliminar a experiência emocional,
e substituí-la pelo pensamento abstrato, geralmente é trabalho da ciência, especialmente da
matemática mas, em psicanálise, precisamos manter em mente a experiência emocional,
refletir sobre ela, transformá-la sem evacuá-la, estar consciente dela sem sermos dominados
por ela e também sem eliminá-la. O pensamento não pode estar então, dissociado da dor, do
sofrimento, do prazer e do êxtase. A dor, tanto quanto a experiência prazerosa, é difícil de ser
tolerada. Como sabemos, ‘Jouissance’1, em francês, não tem equivalente em inglês; este termo
pode às vezes ter uma qualidade desorganizadora. Os psicanalistas deveriam ser capazes,
tanto quanto possível, de continuar a analisar, ou seja, de pensar, em tais condições.
Quando lidamos com os aspectos da representação, somos confrontados com outro
aspecto da negatividade. Neste caso, a mente não está vazia. O paciente tem algo a dizer, mas
acha difícil fazê-lo. Ele tem pensamentos e representações. Se permanece em silêncio, nem
ele nem o analista pensarão que sua mente está vazia. O analista sabe que o paciente reprime
alguma coisa, e pode distinguir entre o que o paciente está experimentando na sessão, que ele
chamará de resistência, e outra situação em que o paciente está de fato experimentando o
nada. Assim, estamos agora conscientes da necessidade de uma distinção mais clara entre
estas duas formas de negatividade, que fazem toda a diferença entre o “nada” e a “não-coisa”-
toda a diferença entre um buraco na mente e um sonho evanescente como algo embaraçoso de
se dizer, que pode facilmente ser esquecido. Este, mesmo não estando mais disponível para o
pensador, está produzindo uma ‘penumbra de associações’. Uma teoria psicanalítica do
pensamento não pode ter seu ponto de partida na abstração ou nas idéias, como é o caso de
muitos sistemas filosóficos. A teoria psicanalítica atingirá sua meta no domínio da abstração,
mas deverá partir de algum material mais bruto. Assim, Bion começa pelos elementos β, ou
pela experiência sensorial. O principal problema passa a ser como explicar a transição dessa
mente primitiva para a mente do pensador e a aquisição do aparelho de pensar os
pensamentos.

Premissas básicas de Freud e de Bion

A diferença entre Freud e Bion pode ser vista a partir de suas premissas básicas. O
modelo de Freud parte da premissa de que a criança sempre será capaz de construir uma
1
- N.T.:Juissance:gozo.
concepção de seio, na satisfação alucinatória de desejos. O estranho, o externo, o mau, foram
expelidos, e o ego de puro prazer conseguiu fantasiar um seio nutridor que é apenas uma
criação da mente. Isto se mostrará impróprio, e a criança precisará encontrar outros meios de
obter satisfação, alcançando finalmente o que deseja quando a mãe interpretar seus sinais de
desprazer. Bion parte de outro ponto de vista, tentando explicar a falha psicótica. Para ele, não
é ponto pacífico que a satisfação alucinatória de desejo terá lugar. Ela pode não ocorrer, em
função da experiência de ameaça de aniquilamento ou do medo de morrer do bebê. O bebê
não consegue se livrar tão facilmente do que é mau, que continua a perseguí-lo apesar da
identificação projetiva. Como se livrar de uma ansiedade existente nas camadas mais
profundas da mente primordial? A projeção é seguida pelo retorno do projetado. Assim, o
destino das primeiras experiências e de suas transformações precisa ser explicado de outra
maneira. Bion excluiu a transformação expontânea dos elementos β em elementos α sem a
ajuda do objeto. É aqui que a capacidade de reverie da mãe representa a intervenção útil do
adulto, uma mente madura que pode ser introjetada pela criança para transformar sua
experiência interna destrutiva.

O papel do objeto: A capacidade de reverie

O conceito de objeto de Bion é bastante pessoal. Não é o mesmo de Freud, e também


difere do de Klein. Embora possa soar abstrato, é na verdade mais plausível que muitos
outros. Para Bion, a experiência direta da alimentação, que se relaciona com o seio, não basta
para explicar a riqueza da experiência. A mãe não alimenta a criança só com o leite, ou com o
seio, também a alimenta psicologicamente, ela devaneia sobre os sentimentos e estados
‘mentais’ da criança. Ela capacita a criança, então, a reintrojetar suas próprias projeções,
agora alteradas por ela. As Erínias, deusas sedentas de sangue que perseguiram Orestes após o
assassinato de sua mãe, graças à persuasão de Atenas, transformaram-se em Eumênides,
deusas benevolentes que protegerão a cidade. A capacidade de reverie da mãe é comandada
pela empatia, e é fator essencial de transformação dos elementos β pela função α. O papel do
objeto, ao promover a função α, é capacitar a criança a estabelecer vínculos, levando-a à
consciência de conjunções constantes.
Eu gostaria de enfatizar algo que pode parecer óbvio, mas que deve ser dito
abertamente. A função dos vínculos tem dois lados. De um lado, o vínculo é intersubjetivo,
isto é, um vínculo entre criança e mãe mas, visto de outro ângulo, o vínculo é interno ou mais
precisamente um vínculo intrapsíquico que conecta diferentes elementos, visando construir
um sistema de sinais que possa ser usado pela mente. É uma ilusão imaginar que a capacidade
de pensar se estenda por toda a mente: uma pessoa pode ser um grande matemático, e ainda
estar fixada a fantasias perversas ou ações perversas dirigidas ao seio materno, não tanto
como órgão de alimentação quanto como objeto erótico. Estou falando, aqui, a partir da
experiência clínica. Uma das primeiras conquistas da função α é propiciar atenção e notação,
o que supostamente deve contribuir para conservar os significados da experiência emocional e
tornar possível o seu registro. Este é o primeiro passo para transformações posteriores. É claro
que esta conquista só é possível através do cuidado da mãe. Ela presta atenção ao bebê, e nota
o que lhe acontece: quando o bebê está angustiado, a mãe sente compaixão e compreensão,
que são expressas por ela por meio da sua voz e da sua atitude.
Onde está o modelo do qual Bion extraiu sua teoria? Não foi da observação de
crianças, mas sim da experiência clínica com adultos regredidos. O que Bion descreve é a
transcrição de uma boa sessão com um paciente analisável. Ele se refere à sua própria
capacidade de reverie em relação ao paciente durante a sessão, levando a uma interpretação
que se mostra eficiente. Em seguida, ele observa o efeito da interpretação na mudança da
comunicação do paciente, e na sua capacidade de interpretar por si mesmo o que experimenta
na sessão. A preocupação constante de Bion com os fatos é prioritária a qualquer tentativa de
especulação. O primeiro registro é pictográfico (uma presentação–coisa–embrionária). Se isso
falha, os elementos β apresentados na forma de experiências sensoriais não são transformados
em imagens visuais (representações primitivas), mas são sentidos como ‘coisas em si
mesmas’.
A coisa-em-si é um conceito de Bion, emprestado de Kant, mas seu significado, no
contexto psicanalítico, é bem diferente. Para Bion, a coisa-em-si se refere a ‘fatos não
digeridos’, experiências não simbolizadas. Menos do que um acontecimento psíquico, são
matérias primas impróprias para elaboração psíquica. Nas minhas penumbras de associação,
lembrei-me do rei Lear. Quando Lear encontra Edgar numa charneca, disfarçado de homem
louco fugindo de Bedlam, inicia uma estranha conversa entre o depreciado rei, o tolo e o
pobre Tom. O pobre Tom se parece com o Rei Lear; após ter perdido tudo, ele fica em pé, nu,
na charneca e Lear lhe diz: ‘Você é a coisa em si’ (King Lear 3, 4, 106). Isto se deu muito
antes de que Kant sonhasse com essas palavras.

Na minha releitura de Atenção e Interpretação, em 1973, notei um paralelo entre o


conceito de objeto incognoscível, de Bion, e as idéias de Freud sobre o objeto conforme
mencionado no ‘Projeto’ (1850). Não só o objeto é desconhecido, mas também é
desconhecido o espaço mental como ‘coisa em si mesma’, porém este pode ser representado
por pensamentos. (Bion 1970, p.11). Esse estado originário da coisa em si, desconhecida,
encontra um estado final, o do símbolo O. Bion escreve: ‘usarei o símbolo O para denotar a
realidade última, representada por termos como realidade última, verdade absoluta, o informe,
o infinito, a coisa em si mesma’ (p.26). Tudo o que se sabe situa-se entre estes dois extremos:
o início e o fim, incognoscíveis. Falando do objeto da análise, Bion não reivindica alcançar
nada além da aproximação. De certa forma, todo o conhecimento é uma perda da verdade
absoluta, se comparado ao infinito informe.
A capacidade negativa, de Keats, outra figura de negatividade, tem paralelo com estas
idéias. Bion advoga uma atitude em que ‘o homem deveria ser capaz de ficar com a incerteza,
os mistérios e as dúvidas sem lançar-se à busca irritante de fatos e da razão’. A observação
nos mostra que certos pacientes (e também alguns analistas) não toleram o estado de
incerteza, de mistério ou de dúvida. Os pacientes se refugiam na evacuação e/ou na
onisciência. Os analistas, têm respostas prontas. Lembro-me de como Bion ficou
impressionado quando citei a frase de M. Blanchot: ‘La réponse est le malheur de la
question’. (A resposta é o infortúnio da pergunta). Ele usou esta proposição muitas vezes.

K, -K

Entre as grandes inovações da teoria de Bion, uma delas tem grandes conseqüências: o
símbolo K, para conhecimento. Ao contrário de Freud e de Melanie Klein, Bion decidiu
defender a existência do conhecimento como uma categoria independente, que não poderia ser
reduzida ao interjogo de outras duas: amor e ódio. Foi impossível explicar a conquista
científica da mente apenas com o desenvolvimento de amor e ódio como expressões dos
impulsos. Mas também foi impossível defender a capacidade de conhecer independentemente
destes.
A tentativa de Bion é mais interessante do que apenas acrescentar um novo eixo para
lidar com o conhecimento. K simboliza conhecimento, e –K, o seu contrário. Simboliza não
só a ignorância, mas também a tendência de manter ativamente a ignorância, com a adoção de
uma atitude em que convém evitar a consciência e a desvantagem da aproximação da verdade.
Percebo-me novamente concordando com o pensamento de Bion, quando tento conceituar o
‘Trabalho do Negativo’ (1933).
A evacuação é, certamente, um modo de se livrar da excitação nociva, mas não o
único. Já levantamos a questão: como pode a mente, a mente primordial, se livrar do estado
criado pela frustração? A projeção, sem dúvida, é uma possibilidade. O objeto se torna mau, é
atacado e jogado fora, mas o sentimento de perseguição é sentido ‘dentro’; a ansiedade, a
ameaça de aniquilamento, são internas. Como Freud, acredito que somente uma parte disso
pode ser projetada externamente. Também acredito que no começo o objeto não está separado
do self do bebê, de forma que a perseguição é então vivida como um perseguidor interno,
misturado ao self, porque suponho que não há separação entre um objeto persecutório e um
sujeito perseguido. . Uma expressão, em Francês, diz: ‘persécuté-persécuteur’, isto é
‘perseguido-perseguidor’. Isto me leva a propor uma alternativa para a evacuação.
Sugiro que os pensamentos - já que ainda não se pode falar de um pensador – os
pensamentos e sua expressão mais primitiva, o ‘pictograma’, sejam destruídos. Pode ser que a
noção de pictograma não seja adequada. Estou perto, aqui, de algumas idéias de Winnicot, e
assumo que há alguma forma de presentação, tão primitiva quanto possível, que se aproxima
de uma imagem pictórica. Ao invés de ter, como resultado, uma imagem aos pedaços – a
imagem do seio, por exemplo – temos uma destruição da imagem, um borrão ou o seu
desaparecimento gradual, que cria um ferimento na mente, produzindo uma hemorragia da
representação, uma dor sem qualquer imagem do ferimento, apenas um estado de vazio, como
eu disse, ou um buraco. Bion mencionou o papel dos buracos negros na mente, atraindo e
destruindo os pensamentos. Isto poderia completar a teoria dos elementos β como reativando
a destruição da capacidade de representar. Portanto, o esboço preliminar do aparelho de
pensar pensamentos fica danificado. O quadro total da situação ou fica borrado, ou deixa
sinais de pedaços fragmentados (que mais tarde se tornarão objetos bizarros), sem nenhum elo
que possa uni-los. Como Bion disse, o paciente psicótico tem seqüências, mas ignora as
conseqüências. A conjunção constante está perdida.

O negativo

Haverá um mecanismo por meio do qual possamos entender uma ação psíquica
empreendida? A resposta poderia ser a alucinação negativa. Se nos lembrarmos de que Freud
disse que ‘qualquer tentativa de explicar a alucinação deveria começar do negativo, ao invés
da alucinação positiva’ (1917, p232, n.3), poderíamos ter uma pista.
A alucinação negativa não se aplica apenas à percepção dos dados sensoriais.
Aplica-se também à percepção de pensamentos. Os pensamentos são percebidos quando a fala
ativa os traços mnêmicos das palavras. Alucinações negativas também podem ser aplicadas a
representações. Nestes casos, as representações não são apenas reprimidas, mas suprimidas,
isto é, não estão mais disponíveis para serem representadas de modo diferente da repressão ou
da cisão. A repressão mantém a representação tão longe quanto possível da consciência. Esta
é conservada na mente, ainda que fora de alcance, impossível de ter sua lembrança
despertada, mas ainda lá. No caso da alucinação negativa, alguns pensamentos principais são
perdidos, porque foram apagados. Não há sinal sequer de que tenham existido, nem de seu
desempenho subjacente. Às vezes, ao invés dos sintomas mentais, aparecem doenças
somáticas. Poder-se-ia dizer que o modelo da evasão ainda se mantém, aqui? Temos que
considerar dois tipos de evasão: uma, é o banimento. Corresponde ao modelo de Bion
fundado numa analogia com o trato digestivo: eliminação para o exterior, evacuação. A outra,
seria enterrar sem deixar vestígios, nenhum sinal da existência de um corpo. De tempos em
tempos, o analista, tal como o arqueólogo, encontra um dente, uma mandíbula, e reconstitui
toda uma personalidade a partir desses fragmentos. Nossas construções psicanalíticas são
mitos. Não seria útil confiar em métodos realísticos. Neste momento da ciência, estamos
tomados por supersimplificações.
“As descobertas da psicanálise nos impedem de ficar satisfeitos com a metodologia
dos cientistas ou dos filósofos da ciência, mesmo levando em conta o refinamento do método
que eles produziram para combater sua própria insatisfação. O psicanalista se encontra na
posição curiosa de estudar um objeto que ilumina a fonte mais arraigada de investigação não
cientifica, a saber, a mente humana, utilizando essa mesma mente como seu instrumento
cientifico e tendo que fazê-lo sem o conforto de pensar que suas observações são feitas por
uma máquina inanimada que, por estar morta, deve ser objetiva. Mas, claramente, a
incapacidade de aceitar que os métodos dos cientistas de outras disciplinas são científicos
diminui, ao invés de aumentar a esperança do psicanalista de ter mais êxito”. (Bion, 1992,
p.244).

Parênteses: o trabalho do negativo

O trabalho de Bion foi uma das fontes de inspiração do meu livro publicado em 1993:
Le travail du Negatif2. O trabalho do Negativo é uma expressão emprestada de Hegel, mas o
modo como a uso, na teoria psicanalítica, é análoga ao jeito que Bion usa a filosofia de Kant
em seu próprio pensamento. Ambos damos a estes conceitos filosóficos um novo significado,
de acordo com sua aplicação na psicanálise clínica. É impossível avaliar precisamente as
descobertas de Bion a partir de Freud, se compararmos de onde partiu e onde chegou. Durante
um encontro em Lyon, onde Bion apresentou uma de suas improvisações inteligentes,
dirigi-me a ele e no final, trocamos algumas palavras em particular, antes que a discussão
começasse. Eu lhe disse: ‘Quanto mais o ouço, mais vejo que você cita menos Melanie Klein
e mais Freud’. Ele respondeu: ‘Melanie Klein é uma contribuição importante, mas apenas
uma contribuição’.
Não desejo avaliar, aqui, as respectivas influências dos trabalhos de Freud e de
Melanie Klein, sobre o de Bion. O que pretendo enfatizar é a presença, no trabalho de Freud,
a presença do conceito do negativo passa desapercebida, e este tem sido desenvolvido desde
então em muitas direções, cada qual dependendo de um contexto diferente. Por exemplo,
Lacan (‘O estágio espelho’, 1949), Winnicot (O brincar e a realidade, 1971), Bion e eu, todos
temos pontos de vista diferentes a respeito desse conceito. Não é tão importante levantar,
aqui, questões de prioridade, uma vez que os diferentes contextos teóricos não se
comunicaram uns com os outros e um não se originou a partir de outro. Tenho tentado mostrar
que um conjunto de aproximações poderiam ser deduzidas da confrontação destes diferentes
corpos teóricos. Todos eles derivam de fato, de Freud, estejam ou não prontos a reconhecê-lo.
É importante estar consciente de que o negativo está muito presente nos ‘pressupostos
básicos’ de Freud. Pensemos apenas nos dois conceitos centrais principais: o inconsciente e o
id. Sobre o primeiro, a observação é óbvia, uma vez que a palavra é formada com o prefixo in
- que fala por si mesmo. Quanto ao segundo, Freud diz que quase tudo o que sabemos sobre o

2
- Já escrevi sobre uma das outras fontes, D.W. Winnicott, no ‘A intuição do negativo’, em ‘O Brincar e a
Realidade” (1977). A última influência do trabalho do Lacan.
id tem um ‘caráter negativo’ se comparado ao ego (1933, p.73). Além disso, se pensarmos nas
subtrações produzidas pela atividade da repressão, a consciência está, do ponto de vista de
Freud, no lugar oposto ao que ocupa na filosofia clássica. É uma porção muito pequena de
atividade psíquica. Não há necessidade de lembrar, aqui, a luta permanente contra a equação
psíquico=consciente. Além disso, o fato de que os impulsos, para Freud, encontram-se na raiz
da atividade psíquica, implica que algo está excessivo; há uma sobrecarga da mente, ligada às
exigências corporais dos impulsos, cujos derivados têm que ser mandados de volta ao
inconsciente, pois sua expressão livre dificulta a organização psíquica. Isto é o que acontece
na construção do ego, mais precisamente em sua parte consciente. Assim, o negativo, que está
na base da atividade psíquica, não só é normal, como também é um pré-requisito para
qualquer espécie de desenvolvimento psíquico. Além do mais, é devido à falta do objeto, sob
a pressão dos impulsos em busca de satisfação, que a mente é ativada e dá origem à satisfação
alucinatória de desejos, que se constitui na forma mais elementar de atividade psíquica, pelo
menos de acordo com Freud.
Mais tarde, em 1943, Suzan Isaacs, durante as Controvérsias Freud-Klein, defendeu a
idéia de que a ‘phantasia’ é a expressão psíquica dos impulsos, uma idéia Kleiniana bem
conhecida que merece muita atenção e que pode levantar um razoável número de críticas,
apesar de sua aparente simplicidade (Isaacs, 1948). Freud iria descobrir que sua descrição da
repressão, presente tanto na neurose quanto no desenvolvimento normal, estava incompleta. A
este respeito, um passo foi dado no seu comentário sobre o caso Schreber. Após ter escrito
que a repressão estava em atividade na sintomatologia do paciente, ele próprio se corrigiu:
‘Foi incorreto dizer que a percepção, que foi suprimida internamente, foi projetada para fora;
a verdade é, como observamos agora, que o que foi abolido internamente retorna do exterior ’.
(1911, p.71)
Assim, em 1911, Freud acrescentou, ao mecanismo da repressão (Verdrängung), o
mecanismo denominado foreclusão (Verwerfung) por Lacan, que foi quem atentou para esta
diferença.3 A observação de Freud supõe uma diferença radical entre reprimir e abolir. Neste
último exemplo, o que é internamente suprimido retorna do mundo externo por exemplo, na
forma de uma alucinação ou de uma idéia delirante. Isto soa como identificação projetiva,
mas na verdade foi exposto muito antes, por Freud, e passou desapercebido. Para Lacan, a
diferença entre os dois termos poderia ser interpretada como se, na repressão, os processos de
simbolização estivessem em atividade no inconsciente, enquanto que o que ocorre na
chamada supressão seria uma falha da simbolização. Também poderíamos pensar, aqui, na
equação simbólica como proposta por Hanna Segal 1957).
Um terceiro movimento foi feito por Freud, em 1925, em seu artigo sobre ‘A
Negação’ (Verneinung), no qual ele defende a idéia de que a forma linguística seria um
substituto intelectual para a repressão (1925, p.236). Por fim, em 1927, Freud descreveu a
cisão do ego (Ich Spaltung ), no artigo sobre ‘Fetichismo’ (pp. 152-7). Sua concepção de
cisão é diferente da de Klein. Ele a descreve como um repúdio à percepção, dando origem a
uma dualidade de mecanismos mentais, um deles admitindo o resultado da percepção (a visão
da ausência de pênis no interior do corpo da mãe), e o outro negando-o. É como se o paciente
dissesse: ‘Eu sei disto (que mulher não tem pênis), mas não consigo acreditar!’ Portanto, o
fetiche será o deslocamento do pênis que falta para um pedaço de roupa da mãe, por exemplo,
na luta contra a ansiedade de castração. Freud sempre insistiu em que cisão não é apenas uma
forma de negação, mas que também sempre inclui um reconhecimento, ainda que
contraditório devido a suas consequências traumáticas.
Propus reunir todos estes mecanismos afins: supressão, cisão ou repúdio, foreclusão
ou rejeição e negação, no conceito de ‘trabalho do negativo’. Esta reunião se justifica pelo
3
- Alguns autores não concordam com esta tradução, e propõem uma mais simples e mais adequada: rejeição.
fato de que todos estes mecanismos são elaborações do protótipo da repressão. Todos
implicam um julgamento de aceitação ou de recusa, uma pergunta cuja resposta deve ser dada
em termos de sim e não. Esta questão, como temos visto, é colocada de muitas formas,
baseada em diferentes contextos, lidando com materiais variados (impulsos instintivos, afetos,
representações, percepções, palavras, etc.), na concepção de Freud. Entre os vários
mecanismos de defesa descritos por Freud, Anna Freud e Klein (cuja contribuição inclui a
negação) etc., este grupo difere de outros porque seus constituintes implicam diretamente uma
escolha básica de aceitação ou de recusa, na consciência, dos derivados que estão enraizados
no inconsciente ou no id.
Fica fácil, então, mostrar que as idéias de Bion, contrapondo a ‘não coisa’ ao ‘nada’,
se justificam profundamente e podem ser relacionadas às elaborações de Freud, ainda que se
possa enfatizar, entre elas, a influência de Melanie Klein. De qualquer modo, estritamente
falando, o conceito de Melanie Klein não cuida tanto das diferenças estruturais. Ela invoca a
‘psicose’, que pode ser encontrada no início de cada desenvolvimento. As interpretações terão
de ir, em todos os casos, a essa profundidade, para produzir qualquer mudança significativa.
Pelo menos, esta é minha leitura de seu trabalho.
Nesta discussão das idéias de Bion, o importante é estabelecer a distinção entre a
ausência do seio e a aniquilação do seio. No primeiro caso - a ausência - que é encontrada em
condições normais e neuróticas, leva a representações ou, em outras palavras, a fantasias. Os
conceitos de Freud podem ser aplicados, aqui. O outro caso - o do aniquilamento - estaria
mais ligado à parte psicótica da personalidade, lidando com uma situação predominantemente
marcada pela destruição, uma forma mais precisa de supressão. Esta destruição, que pode ser
entendida tanto na linha de Freud de foreclusão e rejeição quanto de acordo com as
ansiedades de aniquilamento de Melanie Klein e que resultam não tanto em fantasias arcaicas
de destruição mas, como Winnicott e eu mostramos, numa destruição da atividade psíquica de
representação, criando ‘buracos’ na mente, ou sentimentos de oco, de vazio, etc. Quando
Freud descreveu os delírios de Schreber, ele os interpretou como processos de restituição,
após a retirada da realidade. Em outras palavras, uma colcha de retalhos, escondendo
cicatrizes ou espaços que mostram uma espécie de perda de substância. Bion descreve
ocorrências similares, mas a destruição, para ele, é consequência da identificação projetiva
excessiva, que evacua os conteúdos não assimiláveis da mente: os elementos β.
É claro que há diferenças entre as primeiras intuições de Freud e a conceituação de
Bion, meio século depois, embora a necessidade de diferenciar entre as diversas modalidades
de defesa, que também são formas de pensamento, seja semelhante em ambos os trabalhos. A
psicanálise contemporânea necessita muito de diferenciações estruturais, para não misturar o
material derivado de diferentes tipos de paciente numa única matriz.

Ciência e Ficção: o pensador

Comecei opondo duas categorias, no trabalho de Bion. A primeira, que levou à


construção de um sistema científico dedutivo, e a segunda, na última parte de sua obra, mais
próxima da ficção científica. Mas, se considerarmos o conjunto do trabalho de Bion como um
processo de crescimento, e se aplicarmos seu próprio modelo ao seu pensamento, o que
podemos aprender com a experiência da sua leitura? Estamos inclinados a ter uma visão
desenvolvimentista de seus artigos, que nos ajudará a compreender o pensamento do autor.
Podemos, por exemplo, rotular os diversos artigos de seu livro “Pensamentos Revistos”
[Second Thoughts] (1967) como representando pensamentos sem um pensador. Não digo, é
claro, que Bion como pensador já não estivesse presente nesses trabalhos. Isto poderia estar
escandalosamente errado. Durante esta fase, Bion escreveu alguns dos seus trabalhos mais
significativos tais como ‘Diferenciação das personalidades psicóticas das não-psicóticas’
(1957), ‘Ataques ao vínculo’ (1959) e, no final, seu trabalho ‘Uma teoria do Pensamento’
(1962b), que é um prenúncio do que virá a seguir. O que estou tentando dizer é que, até
Aprendendo com a Experiência (1962), onde o objetivo de construir um sistema teórico é
claramente colocado, tal empreitada torna-se possível com o pressuposto de que há um
pensador, um teórico, um autor, articulando os diferentes aspectos de suas descobertas. Tal
tarefa requer um duplo movimento, prospectivo, olhando para o futuro numa tentativa de
alcançar um projeto, e retrospectivo, tentando vincular as dispersas explorações da mente.
A próxima fase mostrará uma evolução muito significativa. Pode ser dividida em duas
sub-fases. A primeira, representada por Aprendendo com a Experiência (1962a) e por
Elementos da Psicanálise (1963). Nestes dois livros, a capacidade de pensar e de associar de
Bion é ainda mais admirável. Ele alcança um grau de clareza insuperável. Suponho que a
maior parte do conhecimento que adquirimos, com respeito ao seu pensamento, nos foi dado
através desses dois livros. A segunda sub-fase é representada por Transformações (1965) e
Atenção e Interpretação (1970). É como se, temendo cair no pecado da arrogância, Bion
desenvolve sua própria auto crítica, a primeira a levantar objeções contra suas descobertas ou
a mostrar seu valor limitado. Fica então inquestionável e claro que seu trabalho anterior,
mostrando a presença de um pensador, propõe agora que esse pensador é quase
necessariamente um mentiroso.
Claro que Bion não falsificou intencionalmente as suas descobertas, mas
imediatamente percebeu que tornar pública a sua experiência analítica era, inevitavelmente,
falsificar sua natureza. Habitualmente, os psicanalistas se contentam em conseguir trazer à luz
uma pequena parcela de conhecimento a partir de um imenso continente de ignorância. Mas
Bion era obcecado pela enorme quantidade de escuridão quando esta se comparava aos flashs
efêmeros produzidos por uma breve iluminação. O que ele fez foi comparável, até certo
ponto, ao que Freud fez antes dele, ao se defrontar com o enigma da compulsão à repetição.
Em Além do Princípio do Prazer (1920), ele se voltou para a biologia dos micro-organismos.
Podemos agora entender que isso se deu por ele ter sido incapaz de encontrar respostas
às questões levantadas pela prática psicanalítica. À sua maneira, Bion, intrigado com o
mesmo tipo de problemas, volta-se para a pintura, a música, a poesia, a filosofia, a teologia e,
principalmente, para a geometria. Em “Atenção e Interpretação” há uma mistura da antiga
tendência de desenvolver uma tentativa de alcançar a descoberta de um sistema científico
dedutivo dotado de uma nova tendência, relacionada à astronomia, à sociologia e aos estudos
místicos. Podemos ver que quanto mais longe Bion vai, na tentativa de se aproximar da
verdade, mais ele percebe que um modelo não pode conter a totalidade da experiência
psíquica.
Houve, portanto, uma grande fase preparatória, antes da Memoria do Futuro. Foi mais
uma evolução do que uma mutação. O que se pode dizer, sobre essa mudança significativa?
Freud descobriu a psicanálise depois das suas primeiras experiências com pacientes
neuróticos. Mais tarde, ele não ficou satisfeito com suas descobertas iniciais, mesmo
considerando que o seu ‘insight’ havia alcançado grande penetração. Teve a intuição do
inconsciente, mas estava muito incomodado com as idéias pré-concebidas que lhe vinham de
sua consciência. Assim sendo, resolveu se colocar no lugar dos pacientes e se fechar todas as
noites no mundo dos sonhos. Ao acordar, tentava lembrar os sonhos, anotando-os, para fazer
associações ao seu conteúdo e construir uma teoria que os explicasse, ou seja, que traduzisse
o que vinha do inconsciente para a linguagem consciente. O que Freud queria era alcançar o
domínio dos impulsos e de suas expressões inconscientes.
Bion fez escolha diversa. Depois de ter conseguido muito na direção de um sistema
científico da mente, ele considerou ser impossível, na verdade, domesticar um mundo interior
em que os dinossauros ainda estavam vivos. Freud não escreveu, em 12 de julho de 1938,
meses antes de morrer: ‘com neuróticos, é como se estivéssemos numa paisagem pré-histórica
- por exemplo, em Jurassic, os grandes sáurios ainda correndo por todo canto’? (Freud, 1941,
p. 229). Assim sendo, ao invés de explicar os sonhos com uma linguagem consciente, parece
que Bion decidiu usar o sonho para construir artificialmente um tipo de conhecimento que
somente o sonho é capaz de transmitir. Isto o levou à idéia de que nenhuma teoria
psicanalítica poderia conter o que a experiência psicanalítica pode nos ensinar. Teria o
conteúdo feito explodir o continente? Se isso tivesse ocorrido, não estaríamos aqui
comentando o trabalho de Bion, mas penso que estamos conscientes de que, por mais que
nossos pensamentos evoluam, poder-se-á considerar que um pensador talvez não será capaz
de pensar todos os pensamentos formulados por Bion.
Aplicando as idéias de Bion, e as desenvolvendo numa direção que ele não indicou
explicitamente, podemos chegar à conclusão de que talvez nenhuma teoria psicanalítica terá
sucesso em construir uma teoria completa e verdadeira da mente. Talvez a mente primordial
tenha mais de uma direção a ser desenvolvida. Nesse sentido, estamos considerando a idéia de
vértices, tão cara a Bion. Afinal, o que faz o mundo inóspito é sua diversidade. Está além do
meu alcance dar uma idéia das diferentes vicissitudes possíveis do primordial. Até onde diz
respeito a Bion, se minha hipótese de duas direções principais em seu trabalho está correta, eu
poderia rotulá-las de outro modo. A primeira direção pertence mais provavelmente à ciência
ou talvez a uma filosofia da ciência. A segunda direção, a ficção, ou mesmo a ficção
científica, é uma forma de literatura, e pertence à arte. Enquanto visitava a China, fui atraído
repentinamente por um ideograma muito fascinante. Sem dúvida, fui suscetível ao seu
impacto estético e não fui capaz de decifrar nada do que ele dizia. Este poderia ser
considerado um trabalho artístico, independentemente do seu significado enquanto frase.
Quando indaguei o que as letras significavam, disseram-me que dizia algo como: ‘É inútil
ficar bravo com assuntos sem importância’. Os que me conhecem, sabem também, que isso
me acontece freqüentemente. Haveria, ali, uma ligação entre minha atração por aquela
caligrafia e seu significado, para mim secreto? Eu não ousaria sugeri-lo. Isto nos leva ao
símbolo, usado por Bion, na forma mais primitiva de representação, o pictograma.

Os Mitos e o Primordial: fontes hindús

Um ponto muito importante, no trabalho de Bion, é o resultado da elaboração dos


elementos α. De acordo com sua concepção, a “matéria da mente” é submetida a uma
transformação decisiva, que cria os ingredientes dos devaneios, dos sonhos e dos mitos. Essa
é a relação entre o mito de Édipo e a experiência emocional infantil da experiência de Édipo.
Eu gostaria de encerrar oferecendo, em sua memória, dois mitos emprestados dos Vedas. Esta
é uma forma de me comunicar com ele por meio de uma cultura que o impressionou
profundamente. De acordo com o primeiro mito, o Genitor Supremo gosta tanto de sua filha, a
Deusa da Fala, que os deuses decidem fazer uma criatura que evite o incesto. Eles criam
Rudra, que significa ‘gritador’ ou ‘uivador’, porque ele não tem nome. Essa criatura é um
monstro, feito da compilação de todas as partes horríveis de diversos animais. Dessa forma,
só o medo do monstro conseguirá deter o Genitor Supremo da realização incestuosa. Aqui, a
expressão de Freud, horror ao incesto, encontra sua ilustração. Não interpretarei este mito
mas, ao invés de fazê-lo, apresentarei outro, que também tem que lidar com a Deusa da Fala,
que é tão apropriada ao nosso trabalho.
Esta Deusa da Fala é uma criatura muito feminina, muito atraente, que só pode ser
capturada se for possuída sexualmente. Por ser ela parte da linguagem Veda, ela tem uma
afinidade por sacrifícios, ou seja, por sua representação mitológica nos Vedas. Esta atração
termina com uma cópula entre a Fala e o Sacrifício. Se um ser resultasse dessa possível
concepção, este deus seria tão onipotente que ameaçaria todos os outros deuses, tornando a
existência destes inútil e supérflua. Então, eles chamam Indra, deus da guerra e da luta. Este
se torna mensageiro dos deuses, e tem a missão de prevenir o nascimento do eventual bebê.
Indra transforma-se num embrião e insinua-se na relação sexual dos dois parceiros, a Fala e o
Sacrifício. Ele entra no útero da Fala, ocupando o lugar do filho que seria concebido. No
nascimento do filho substituto, Indra, transformado em feto, será evacuado, rasgando o útero
da mãe, impedindo assim a concepção, um produto inigualável de Fala e Sacríficio que nunca
nascerá. (Detienne & Hamonic, 1995, pp. 81, 89). O conteúdo rasgou o recipiente. Será que
esta união da Fala com o Sacrifício seria a verdade absoluta, que nós nunca alcançaremos?
Deixo a pergunta em aberto, evitando o infortúnio de uma resposta.

Tradução: Célia Fix Korbivcher


Revisão: Ana Maria A. Azevedo e Haroldo Pedreira

Você também pode gostar