Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Marina F. R. Ribeiro
1
Luis Cláudio Figueiredo inicia muitos de seus textos e aulas com essa expressão - para início de conversa -,
dessa forma, fazemos aqui um tributo a esse psicanalista e pesquisador tão profícuo.
2
Vermote (2019) no livro Reading Bion refere-se a essa mudança como uma cesura na obra bioniana; dividindo
seu livro em antes e depois da cesura, conectando vida e obra. No entanto, essa não é uma divisão feita apenas
por Vermote, mas encontramos essa ideia em Bléandonu (1993), Grotstein (2007), entre outros.
2
especialmente nos seus três últimos capítulos. Podemos considerar que a leitura feita por Luis
Cláudio Figueiredo3 é um tipo de microscopia dessa cesura, sob esse ângulo, um texto
original, considerando a vasta publicação de livros e artigos sobre Bion até o momento, em
inglês e português.
O psicanalista interessado na obra de Bion precisa inevitavelmente se dedicar ao
estudo das ideias desenvolvidas em Transformações (1965). Para aqueles que estão se
iniciando na obra, o livro ora apresentado pode ser um bom acompanhante na leitura do texto
original de Bion. E, para aqueles que já conhecem a obra em profundidade, o livro levanta
questões importantes e atuais de natureza epistemológica, principalmente no que se refere aos
diversos estatutos de O, apresentados por Bion no final do livro Transformações e destacados
pela leitura minuciosa e desconstrutiva de Luis Cláudio.
A partir do insight que Bion teve no final do livro Transformações, momento no qual
postula as transformações em O, há uma mudança catastrófica na vida e na obra. Aos setenta
e um anos Bion se muda para a Califórnia - Los Angeles (1968), para surpresa de seus pares
ingleses; uma mudança que revela o seu compromisso com a sua própria verdade emocional?
Uma transformação em O? Figueiredo segue, na sua leitura, os vestígios deixados no texto
pelas transformações do próprio Bion como um pensador da clínica e da teoria psicanalítica.
É justamente nos anos californianos, um período criativo e produtivo da sua vida, que
Bion fez quatro viagens ao Brasil (1973, 1974, 1975 e 1978), a convite de seu amigo e colega
Frank Philips, ministrando seminários e supervisões; semeando um legado que tem gerado
várias publicações em português.
O livro Reading Bion´s Transformation é uma leitura em profundidade do texto
Transformações (1965), uma análise conceitual não convencional, realizada originalmente
nos anos 2.000 no contexto de aulas na pós-graduação4. O texto de Bion é discutido passo a
passo, as referências epistemológicas são destacadas e analisadas. O livro aborda os três
primeiros e os três últimos capítulos do livro Transformações. A intenção é exercitar a
capacidade de leitura psicanalítica desconstrutiva, reconhecendo que Bion elevou o
pensamento e a prática psicanalítica a novos patamares.
A leitura que Figueiredo (2000, 2011) faz desfocaliza e refocaliza constantemente os
diversos estatutos de O que Bion discorre em 1965. Sumarizando, o principal objetivo do
livro Reading Bion’s Transformation é investigar os estatutos epistemológicos de O no livro
Transformações (1965); Figueiredo destacou e problematizou três, que serão apresentados
brevemente nesta introdução.
Figueiredo (1999), a partir das postulações de Jacques Derrida, expõe que uma leitura
desconstrutiva parte de uma proximidade, lealdade e liberdade para com o texto em todas as
suas dimensões. A leitura próxima e desconstrutiva privilegia o texto e a intertextualidade no
lugar da obra e de seu autor. Mesmo sendo necessário que a primeira leitura de um texto seja
sistemática e o texto tratado como obra, em um momento posterior, o leitor precisará se
desprender e se lançar em uma segunda leitura próxima e desconstrutiva, que considere o
texto e os diálogos intertextuais implicados.
3
Luis Cláudio Figueiredo tem uma publicação considerável em português, são vinte e quatro livros publicados
até o momento; considerado um dos psicanalistas brasileiros mais lidos, citados e referidos por seus pares. O
leitor de língua inglesa pode encontrar alguns artigos desse autor em revistas científicas.
4
A história detalhada deste livro está no final da introdução.
3
He later made the statement that the analyst, while listening to the patient,
should really listen to himself listening to the patient. This novel ‘technique’ can
also be applied to reading his published work, and I have every reason to believe
that that was how Bion desired for readers to approach his works: to listen to their
own spontaneous thoughts while reading him, i.e., their own transformations of
their own personal experiences upon reading him.
A leitura do texto pode vir a ser uma experiência de transformação para o leitor,
exigindo o que Bion (1970) chamou de paciência: a tolerância ao não saber, a estar à deriva.
E, também, ter fé, denominada como uma atitude científica por Bion, de que algum sentido
emergirá do caos do estado esquizopanóide de mente, para se entrar em um estado de
segurança, o estado depressivo de mente, assim se chega a um K (conhecimento), sempre
provisório e momentâneo. Lembrando que Bion ofereceu aos conceitos kleinianos uma
tridimensionalidade, complexidade e plasticidade significativas; principalmente aos conceitos
4
5
Os termos transformações e invariâncias tem origem na matemática.
5
Na primeira apresentação oral de Bion das ideias sobre Memória e Desejo em 1965
(publicado como texto em 1967) nas reuniões científicas da Sociedade Britânica, ele diz:
6
Retomo o conceito de transformação em alucinose na discussão da vinheta clínica no final da introdução.
7
Vermote (2019, p.166) considera que no livro Atenção e interpretação (1970) Bion “...succeeded in integrating
T (K) and T (O) as a dual track of psychic functioning and change. ”
6
8
Se permanecermos estritamente dentro de uma conceptualização bioniana, a resistência se refere ao
desconhecido, ou seja, ao espectro conhecido-desconhecido e ao aprender e não aprender com a experiência
emocional. Lembrando, também, que referente a díade consciente-inconsciente, Bion propõe a díade
finito-infinito.
8
que a verdade emocional é o alimento da mente, mas que tememos o contato com essa
verdade, ou seja, resistimos a ela, resistimos ao desconhecido em nós.
Na terceira, última e plena acepção de O como o infinito vazio e sem forma do qual o
mundo emerge em estado ainda caótico, as razões da emergência da resistência se tornam
compreensíveis. A resistência é gerada diante da angústia ao infinito vazio e sem forma, ao
desconhecido. Bion (1965/2014, p. 261) usa essa formulação poética de John Milton em
Paradise Lost para representar O:
Figueiredo (2000, 2011) considera que apenas nesta terceira compreensão que O
corresponde à coisa-em-si kantiana, que não pode ser conhecida, no entanto, suas qualidades
primárias e secundárias podem ser apreendidas, citando Bion:
Dessa forma, como compreende Figueiredo (2000, 2011), Bion acentua o hiato entre a
lógica do mundo dos conceitos (K) - o senso de dentro e fora, objetos internos e externos,
introjeção e projeção, continente e contido - e o plano do infinito vazio e sem forma no qual
a experiência emerge. Esse hiato tem uma reverberação significativa no universo teórico da
psicanálise: o intervalo entre saber psicanálise e ser psicanalisado, entre o saber de si e o
tornar-se si mesmo.
Continuando nessa direção de destacar algumas articulações específicas presentes
neste livro, no intuito de conduzir e instigar o futuro leitor, enfatizamos, que é a partir do
livro Transformações (1965) que passa a ser fundamental a qualidade das transformações que
se realizam na sala de análise e na dupla analítica, dentro do campo analítico. Transformar é
trans + formar, formar para além, que implica tanto em movimentos formativos, quanto nos
desintegradores, transformar tanto forma como destrói formas. Na experiência do
inconsciente implicada na psicanálise, é preciso que se reconheça tanto a dimensão do
tornar-se como do desfazer-se, movimento, este último, pouco realçado em outros textos. O
movimento de desformar, desfazer-se em O, é uma ênfase da leitura de Figueiredo (2000,
2011):
9
Embora Bion não esteja se apresentando como místico, não deixa de nos sensibilizar a
lembrança de que para ele a procura das formas adequadas de expressão é tão necessária,
quanto fracassada, pois é sempre uma aproximação que comporta distorções, como escreve
Figueiredo (2000, 2011). Tal como o místico, o psicanalista tem uma experiência de O que
não pode ser nem desqualificada nem transformada em representação adequada, já que toda
transformação de O é de alguma forma hiperbólica. Poderíamos dizer que L, H, e K são
sempre inadequados a O, embora sejam apropriados a transformações DE O. Em cada um
destes vínculos há uma espécie de exagero e distanciamento, o que está na raiz do que Bion
chama de hipérbole.
Para Bion, ser O ou tornar-se O, nem é uma possibilidade teórica, nem pode ser um
imperativo categórico, ou seja, superegoico, como diz Figueiredo (2000, 2011). É abordado
neste livro que a passagem a O, muito mais que o conhecimento de O, é o que está presente
nas situações de resistência, ou seja, no ato de se desfazer no desconhecido, nas águas turvas
e profundas. É a iminência de O, como sentimento de que aceitar e acolher O, que pode ser a
melhor solução – ainda que penosa – que deflagra a resistência a O. O conhecimento (K),
inclusive, pode ser um dos modos de não ocorrer a transformação EM O, de impedir sua
iminência. O que está em jogo não é o conhecimento e suas vicissitudes, ou seja, as
capacidades cognitivas do homem e seus limites, mas a possibilidade assustadora de passar a
O, de transformar-se em O, em sua iminência e imanência: o infinito vazio e sem forma.
Segundo Figueiredo (2000, 2011), uma situação patológica se instala quando o
encontro com O deve ser evitado e adiado infinitamente. Neste desviar-se, ficamos às voltas
apenas com as transformações de O. Isso quer dizer que não só prevalece o vínculo H, mas,
também, quando prevalece L e K – situações em que O está apenas hiperbolicamente
presente, nessa situação, há sempre uma resistência a O operando, uma resistência ao
desconhecido.
O que gera a resistência é a angústia diante do infinito vazio e sem forma – nada de
entes – e, provavelmente, o pavor do mundo emergente de águas turvas e profundas, pois o
mundo aqui não é conquistado, a partir do nada, na forma de algo simples e bem
discriminado. Nesta versão, o estatuto de O como incognoscível, encontra a sua plena
formulação. A ideia de O como infinito vazio e sem forma – um nada de entes, em termos
heideggerianos, ou seja, momento no qual o mundo emerge em estado ainda caótico. Neste
caso, fica muito mais fácil identificar as razões da resistência, da evitação ao desconhecido.
Assim, podemos supor que O seja um campo de possibilidades de ‘evolução’, em si
mesmo inacessível, mas cujos ‘produtos’ podem ser conhecidos, ou que O é o infinito vazio e
sem forma de onde são conquistadas as qualidades secundárias e primárias de que se
compõem os entes.
Após essa explanação teórica da teoria das transformações, vou apresentar uma
vinheta clínica que servirá de referência para refletirmos sobre os conceitos. Considerando,
que é sempre um desafio articular o material clínico com as abstrações teóricas, mas vamos
confiar no estímulo e curiosidade provocados pela experiência:
qual não consigo desviar os olhos e o pensamento: vejo a morte e estou paralisada.
Ele começa a falar, fico dividida, observando o que é dito e a intensa sensação de
morte na qual estou imersa, sem compreender absolutamente nada do que está
ocorrendo, sendo arrastada pela experiência perturbadora. Aguardo em um silêncio
receptivo. Ao final do nosso encontro, Antônio relata de forma distanciada e breve
os fatos de sua vida que precisavam ser sonhados, fatos estes que estavam contidos
e condensados na imagem dos sapatos de um morto, representação pictórica pela
qual fui subitamente abduzida ao encontrá-lo. Sua única filha nascera com várias
malformações, passou por intervenções cirúrgicas e viveu poucos anos. Antônio
havia me procurado após um ano da morte da menina ou da sua quase morte
psíquica; ele andava com os sapatos de um morto, desvitalizado, um morto ainda
vivo. Sua demanda manifesta de análise era expressa, porém, por outras questões:
não conseguia encontrar um lugar de reconhecimento profissional e financeiro. A
profissão - vida - se mostrou de uma brutalidade ímpar, e ali estava ele, um homem
andando com a morte acorrentada aos seus pés. E, na mesma sala, a analista,
tentando sonhar a brutalidade dos fatos de sua vida
alone he can become at one with his patients’ hallucinations and so effect
transformations O ˃ K.
.
O atual é aquilo que não envelhece com a passagem do tempo, talvez até se torne
melhor compreendido, o que penso ser o caso da leitura que Luís Cláudio Figueiredo fez do
livro Transformações em março de 2000, tendo como interlocutores os alunos da
pós-graduação da PUCSP.
A época em que essas aulas foram ministradas é um dado a ser destacado, pois
escassos textos nos anos 2000 se referiam a essa mudança na obra de Bion, e,
especificamente, os estatutos de O, do Ser e do tornar-se, justamente o que é examinado nessa
leitura do livro Transformações, e que vem sendo discutido atualmente entre estudiosos da
obra: o estatuto clínico das transformações em K e em O.
No ano de 2008, Gina Tamburrino e eu fazíamos doutorado, tendo como orientador o
Luis Cláudio. Na ocasião, ele disponibilizou suas anotações das aulas ministradas em 2000
para organizarmos um seminário sobre Transformações. Ficamos impactadas com a
originalidade e complexidade daquelas anotações de aula e sem hesitação comentamos que
seria interessante a publicação daquele material. Luis Cláudio nos convidou para organizar e
editar aquelas preciosas anotações, o livro foi publicado em português em 2011.
Na direção de orientar o leitor de língua inglesa, o livro Reading Bion de Rudi
Vermote (2019) é um bom interlocutor para o livro Reading Bion’s Transformation, que
consiste em uma leitura pormenorizada e detalhada de um dos livros teóricos de Bion,
considerado extremamente complexo, mas fundamental para compreender de forma
consistente o pensamento bioniano.
A semelhança dos títulos dos dois livros foi uma coincidência, o livro em português
se chama Bion em nove lições. Lendo transformações, publicado em 2011. A origem do texto
são aulas ministradas na pós-graduação por Luis Cláudio Figueiredo, por esse motivo,
mantivemos os capítulos nomeados como lições. Como o título em português comporta um
certo humor paradoxal, pois não se trata de apresentar Bion em nove lições, mas de expor
uma leitura complexa do livro Transformações (1965), preferimos retirar a primeira parte do
título para a versão em inglês, o que acentuou a proximidade entre os dois títulos.
Coincidências à parte, ou melhor dizendo a partir do próprio Bion: os pensamentos
psicanalíticos buscam autores em diferentes continentes geográficos e psíquicos; os livros são
escritos em línguas e tempos diversos, no entanto, podem se interconectar na sua
textualidade, mesmo que em parte. Além disso, o título em inglês permite uma outra
compreensão: que Figueiredo segue atentamente os vestígios deixados no texto pelas
transformações do próprio Bion como um pensador da clínica e da teoria psicanalítica, como
já exposto.
14
Marina F. R. Ribeiro
9
Atualmente, Luis Cláudio Figueiredo é um dos professores orientadores do LipSic.
15
Referências bibliográficas
Bléandanu, G. Wilfred R. Bion. A vida e a obra. (1993). Rio de Janeiro: Imago. (Trad. Hoory
e Mortara).
Bion, R. Wilfred (1965). Transformations. The complete woks of W.R.Bion. London: Karnac
Books, 2014. Ed. Chris Mawson.
Bion, R. Wilfred (1965). Memory and desire, 1965. The complete works of W.R.Bion.
London: Karnac Books, 2014. Ed. Chris Mawson.
Bion, R. Wilfred (1967). Notes on memory and desire. The complete woks of W.R.Bion.
London: Karnac Books, 2014. Ed. Chris Mawson.
Bion, R. Wilfred (1970). Attention and interpretation. The complete woks of W.R.Bion.
London: Karnac Books, 2014. Ed. Chris Mawson.
Bion, R. Wilfred (1992). Cogitations. The complete woks of W.R.Bion. London: Karnac
Books, 2014.
Cintra, E.U. & Ribeiro, M.F.R. (2018). Por que Klein? São Paulo, SP: Escuta.
Figueiredo, L. C. (1999). Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi. São Paulo, SP: Escuta.
Gerber, I. & Figueiredo, L.C. (2018). Por que Bion? São Paulo: Ed. Zagodoni.
Grotstein, J. (2019). Listening to and reading Bion. In: Vermote, R. (2019). Reading Bion.
New York and London: Routledge, pp. 238-243.
Zimerman, D. Bion da Teoria à Prática. Uma leitura didática. (2004). Porto Alegre: Artmed.
Livros publicados decorrentes das 12 Jornadas sobre a obra de Bion em São Paulo ocorridas
na SBPSP desde 2008:
Bion: A décima face-novos desdobramentos. Org: Cecil José Rezze, Celso Antonio Vieira de
Camargo e Evelise de Souza Marra. Ed. Blücher: São Paulo, 2018.
Bion: Transferência, Transformações, Encontro Estético. Org: Cecil José Rezze, Celso
Antonio Vieira de Camargo e Evelise de Souza Marra. Ed. Primavera: São Paulo, 2016.
Psicanálise: Bion. Afinal o que é experiência emocional em Psicanálise? Org: Cecil José
Rezze, Evelise de Souza Marra e Marta Petricciani. Ed. Primavera: São Paulo, 2012.
Psicanálise: Bion- Clinica ↔ Teoria. Org: Cecil José Rezze, Evelise de Souza Marra e Marta
Petricciani. Ed. Vetor: São Paulo, 2011.