Você está na página 1de 18

Aoristo)))))

International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

A Fenomenologia Antropológica de Binswanger

Binswanger’s Anthropological Phenomenology

Profª. Drª. Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo


Adjunta do Curso de Psicologia da UERJ1

RESUMO
Neste estudo procedemos a uma revisão narrativa da literatura, de modo a mostrar as
diferentes etapas da psiquiatria tal como desenvolvida por Ludwig Binswanger, ao mesmo
tempo realizamos uma análise crítica dessas etapas. Discorremos sobre os motivos do
afastamento desse estudioso das bases biológicas que sustentavam a psiquiatria da época, em
direção a uma perspectiva psicanalítica. Nessa etapa, Binswanger defende as bases psíquicas
das enfermidades mentais, das quais em breve tempo também se afasta por avaliar que na
psicanálise, também, havia uma redução ao psíquico. Esse estudioso passa, imediatamente,
para os estudos das bases fenomenológicas com seu mestre Edmund Husserl, acreditando que
nessa perspectiva ficaria livre de qualquer redução. Em um breve intervalo de tempo, esse
estudioso da psiquiatria passou a estudar a analítica do Dasein com Martin Heidegger,
assumindo a Daseinsanalyse nas bases de seus estudos. No entanto, com a crítica de
Heidegger à daseinsanálise de Binswanger, este acabou por denominar o seu projeto de
psiquiatria como fenomenologia antropológica, interessando-se pelas vivências do espaço e do
tempo daqueles que apresentavam enfermidades psíquicas.

PALAVRAS-CHAVE
Fenomenologia; Daseinsanálise; Ludwig Binswanger

ABSTRACT
In this study we have a narrative review of the literature of way showed the different stages of
psychiatry such as develop by Ludwig Binswanger while we conduct a critical analysis of these
stages of psychiatry. We wrote about the reasons Binswanger`s movement from the biological
bases that support psychiatry epoch towards a psychoanalytical perspective. In this stage
Binswanger defends the psychic bases of mental disorders, of which in brief time deviate by

1
Email: ana.maria.feijoo@gmail.com

A Fenomenologia Antropológica de Binswanger


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

review that psychoanalysis there was psychic reduction. This scholar doing that he starts his
phenomenological studies with his master Edmund Husserl, believing that perspective would
be free of any reduction. In a short period of time, this psychiatry scholar start to study
analytics of Dasein with Martin Heidegger, taking as Daseinsanalysis has his ground studies.
Given that Heidegger criticized his Daseinsanalysis. Binswanger changed the name of his
psychiatry project to phenomenological anthropology, by becoming interested in the time and
spaces experiences of those who had illness mental.

KEYWORDS
Phenomenology; Daseinsanalysis; Ludwig Binswanger

INTRODUÇÃO Artículos y conferencias escogidas


Estudar os diferentes momentos (1977/1946), na tradução espanhola de
das investigações de Binswanger em Mariano Marín Casero, de 1977.
psicopatologia pode contribuir para Originalmente, a obra foi publicada em
uma postura crítica ao modo como a alemão, com o título Ausgeträgeund
Aufsätze, em 1946. Como o próprio
psicopatologia vem reduzindo
título da obra indica, a publicação
125
atualmente – por meio de seus
manuais descritivos das doenças consta de uma série de conferências e
mentais, tais como o CID 10 e o DCM artigos, selecionados pelo próprio
V – cada vez mais, essas expressões autor, em que ele mesmo faz uma
humanas ao biológico. Isso porque esse análise crítica de sua passagem pelos
psiquiatra traçou um caminho diferentes estudiosos que
totalmente contrário ao que hoje se influenciaram cada uma das etapas de
estabelece. Binswanger, em seus seu pensamento em psiquiatria. Além
estudos sobre as enfermidades desse texto, tomamos outros escritos
psíquicas, inicia com uma forte de Binswanger, tais como Introduction a
influência da explicação biologizante. l’analyse existencielle (1957/1971), Três
Na tentativa de sair do modelo médico, formas de existência malograda
ele busca na psicanálise outra (1956/1977) e a terceira parte de
possibilidade de compreensão do Existencia: nueva dimensión em
psiquismo e, por fim, recorre à Psiquiatría y Psicología (MAY,
fenomenologia e à hermenêutica. ANGEL, ELLENBERGER, 1958/1977).
Para fazermos este estudo, Em consulta às bases de dados e
primeiramente procedemos a uma bibliotecas virtuais, tais como Google
revisão da literatura sobre o percurso Scholar, Lilacs, Scielo, Mendeley,
de Ludwig Binswanger (1881–1966) utilizando os seguintes descritores:
nos seus estudos em psiquiatria. Como Ludwig Binswanger, psicanálise,
fonte primária de nossas consultas daseinsanálise, antropologia,
bibliográficas tomamos sua publicação fenomenologia, localizamos os artigos

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo


Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 124-141
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

publicados sobre o tema, no período de personalidade no decorrer da história


1990 a 2015, que discutiam, ainda que de vida, sob o enfoque psicanalítico.
de forma indireta, a mesma Binswanger defendia a tese de
problemática com relação às etapas da que toda a fundamentação da
psiquiatria de Binswanger. São artigos psicopatologia – fosse pela perspectiva
de Giovanetti (1990), Loparic (2002), biológica, ou pela perspectiva dos
Dastur (2005), Basso (2011) e Töpfer sintomas, ou, ainda, na perspectiva da
(2013). Dos livros que tratam dos temas formação da personalidade – era
em questão, também foram insuficiente para demarcar o espaço de
consultados: Foucault (1954a, 1954b), pesquisa e da clínica em psiquiatria.
Tatossian e Moreira (2012), Stein (2012) (GIOVANETTI, 1990). Ele insistia na
e Rodrigues (2015). necessidade de ir ao encontro das
Binswanger formou-se em bases que sustentariam a autonomia da
medicina em 1907, pela Universidade psiquiatria, sem deixar de dar aos
de Zurique. No início de sua vida estudos da psiquiatria um estatuto
profissional, ele voltou seus estudos científico e acreditava que essas bases
para a psiquiatria, sob a orientação de poderiam ser encontradas nos estudos
Eugen Bleuler. Desde muito jovem, ele filosóficos. As questões que os seus
se interessou pela filosofia, e logo em projetos em psiquiatria suscitam são:
suas primeiras publicações aparece a afinal, conseguiu Binswanger
sua insatisfação com as bases desvencilhar-se da tendência
neurológicas e biológicas com que a biologizante? Uma vez que o projeto
psiquiatria de então se articulava. O daseinsanalítico foi desqualificado por
psiquiatra chamava a atenção para a Heidegger, Binswanger perderia
problemática da pesquisa em crédito em suas teses?
psiquiatria, bem como de seu status Na tentativa de buscar a unidade
científico, concluindo, desde muito e a autonomia em seu projeto de
cedo, que essa área de estudo se psiquiatria, Binswanger recorreu
encontrava em uma situação crítica, na primeiramente às bases psicanalíticas
medida em que era totalmente e, em seguida, às filosóficas. Giovanetti
dependente de processos biológicos. A (1990) organiza o caminho de
psiquiatria estabeleceu-se com base Binswanger em quatro direções: os
naturalista, na qual as doenças mentais estudos sobre psicanálise; os escritos
seriam doenças do cérebro. Ou, ainda, que explicitam a fenomenologia; os
a ciência psiquiátrica apoiava-se em trabalhos clínicos que caminham na
uma explicação psicobiológica, direção de uma antropologia; e os
dirigindo-se às doenças sindrômicas, estudos sobre a vida de artistas. Neste
cabendo-lhe a identificação de estudo pretendemos, em uma revisão
sintomas. Em uma terceira via de narrativa da literatura, localizar e
interpretação, as doenças psiquiátricas proceder a uma análise sobre o
eram tomadas como psíquicas – logo, percurso do psiquiatra Ludwig
oriundas da elaboração da Binswanger na elaboração de uma

A Fenomenologia Antropológica de Binswanger


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

modalidade específica de psiquiatria. em 1922. Com esse estudo, o


Para procedermos à investigação desse psiquiatra deixa demarcado o caminho
tema tomaremos como fonte primária que pode ser tomado pela psiquiatria
a publicação Artigos e conferências, sem o risco de recair em uma ciência
reunidos pelo próprio autor em dois sem rigor. Esse diálogo com a
volumes. Binswanger (1946/1977) fenomenologia estará presente até a
organizou esse livro selecionando sua última publicação, intitulada Delire
textos de artigos e conferências que e datada de 1965.
contemplam todas as etapas de sua Cabe lembrar que a
psiquiatria: psicanalítica, fenomenologia não estará presente
fenomenológica, daseinsanalítica e o apenas na psiquiatria elaborada por
retorno à fenomenologia. Binswanger, mas, também, em outros
O primeiro momento diz respeito psiquiatras que em seus estudos
à sua ênfase psicanalítica, que aparece lançam mão da fenomenologia para a
nos textos datados de 1926. Neles compreensão dos fenômenos
podemos acompanhar a ligação do psicopatológicos. Dentre outros,
psiquiatra com a psicanálise, em uma podemos citar: Ellenberger
tentativa de alcançar cientificidade nas (1958/1977), Gebsattel (1969),
formulações da psiquiatria, bem como Minkowski (1930/1968). Esses 127
acompanhar as considerações que estudiosos se interessaram em pensar
apontam para seu afastamento dos as diversas vivências psíquicas não
pressupostos psicanalíticos. São eles: mais tendo como base o caráter
Experiência, compreensão e interpretação biológico e nem o psíquico das
na Psicanálise; Meu caminho até Freud; e enfermidades mentais. Eles foram
Função vital e história vital interior. É buscar na intencionalidade, tal como
notável o modo como Binswanger faz proposta por Husserl em suas
considerações respeitosas acerca da Investigações Lógicas (1901/ 2006) – ou
psicanálise e de seu criador. Isso se faz seja, como fluxo temporal e espacial –,
notar pelo fato de que, mesmo tendo se o modo como a vivência do espaço e
afastado das premissas da psicanálise, do tempo sofria alterações naqueles
ele tenha mantido a amizade, o que de algum modo apresentavam-se
companheirismo e a parceria com seu transtornados.
mestre Sigmund Freud até o momento Minkowski (1930/1968) atém-se à
da morte deste. estrutura da depressão pela vivência
No segundo momento, também do tempo e apresenta, com riqueza de
presente em Artigos e conferências, detalhes, as expressões verbais e
Binswanger brinda o leitor com uma corporais de uma paciente em
síntese do projeto fenomenológico de depressão profunda. Ellenberger
Husserl em comparação com o método (1958/1977) – no capítulo III do livro
científico natural, sob o título Sobre Existência: nova dimensão em
fenomenologia, publicado originalmente psiquiatria e em psicologia – escreve

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo


Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 124-141
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

um texto intitulado Introdução clínica à implicitamente, aos trabalhos de


fenomenologia psiquiátrica e à análise Binswanger.
existencial, onde apresenta uma Por fim, no último momento de
classificação da psicopatologia sua obra, com o tema O problema do
fenomenológica para esclarecer de que espaço na psicopatologia, Binswanger
modo a fenomenologia de Husserl foi (1946/1977) retoma a antropologia
apropriada por diferentes estudiosos fenomenológica, analisando os
do tema. Gebsattel (1969) apoia-se na problemas psicopatológicos à luz da
fenomenologia ao referir-se à atitude categoria fenomenológica do espaço.
anancástica falida como uma vivência Binswanger, ao tratar o espaço, sai de
de coerção, que só pode se dar dessa uma compreensão do espaço tal como
forma quando sustentada pela tomado naturalmente e passa a pensá-
possibilidade da liberdade. lo como espaço orientado, que diz
No terceiro momento, prenúncio respeito ao mundo circundante. Com
de sua fase daseinsanalítica, as tematizações sobre o espaço,
encontramos Sonho e existência, que Binswanger destaca a importância da
compõe um dos capítulos de Artigos e análise do modo como ele se constitui
conferências. (BINSWANGER, nas diferentes psicopatologias.
1946/1977). Nessa publicação, o (RODRIGUES, 2015). O tema do
psiquiatra defende que o sonho deve espaço e do modo como Binswanger
ser entendido por meio de vai interpretar os sonhos será
determinações históricas de enfaticamente apreciado por Foucault
constituição de sentido, que ocorrem (1954a), ao afirmar que o modo como
no decorrer da própria existência – e Binswanger vai conceber a
não por meio de uma estrutura manifestação das significações nos
psíquica tomada como universal. Em sonhos abarca uma antropologia da
Sonho e existência, a influência da imaginação, marcando então uma nova
ontologia hermenêutica de Heidegger definição das relações do sentido e de
se apresenta muito claramente, em símbolo, de imagem e expressão. Para
detrimento da fenomenologia eidética Binswanger, no modo de ser do sonho
de Husserl. Em Mudanças na concepção e a existência se anuncia
interpretação dos sonhos, Binswanger significativamente.
(1946/1977) parece dar destaque ao Com base na organização
elemento hermenêutico, que ganha um estabelecida em Artigos e conferências,
grande acento, já apresentado no este estudo tem como objetivo
próprio título: Desde os gregos até o descrever o percurso dos estudos
presente. No entanto, a relação entre psiquiátricos de Ludwig Binswanger a
Heidegger e Binswanger não tem o partir de quatro grandes momentos de
mesmo destino que teve a amizade sua obra: psicanalítico,
deste com Freud. Heidegger (2001), fenomenológico, daseinsanalítico e o
junto a outros psiquiatras, não se retorno à fenomenologia.
cansou de proferir críticas, explícita e Acompanhando as

A Fenomenologia Antropológica de Binswanger


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

transformações dos pressupostos sob a orientação de Carl Gustav Jung e,


elaborados pelo psiquiatra desde a por intermédio deste, em 1907 chegou
psicanálise, a fenomenologia e a a Sigmund Freud, a quem submeteu
hermenêutica por meio da noção de seus primeiros trabalhos. Um desses
psiquismo interiorizado, passando pela trabalhos, datado de 1909, versava
noção de intencionalidade, até alcançar sobre histeria. Outro manuscrito,
as considerações hermenêuticas, a fim datado de 1911, tratava de suas
de conquistar a autonomia da análises sobre fobias histéricas.
psiquiatria, podemos elencar A influência da psicanálise na
elementos para nos posicionar frente à psiquiatria de Binswanger (1946/1977)
forte tendência biologizante da fica claramente evidenciada na parte II
psiquiatria na atualidade. de Artigos e conferências, na seção
Psicanálise e psiquiatria. Em 1920, pela
primeira vez Binswanger (1946/1977)
1. BASES PSICANALÍTICAS apresenta uma conferência sobre o
diálogo da psiquiatria com a
PARA A PSIQUIATRIA psicanálise, com o intuito de sustentar
Em Artigos e conferências podemos
a prática psiquiátrica em bases
encontrar o manuscrito Freud e a
rigorosas: “Tem-se que decidir se se 129
constituição da psiquiatria clínica,
quer seguir sendo somente uma ciência
publicado pela primeira vez em 1936
aplicada, um conglomerado que
para homenagear o octogésimo
encontra sua coerência por sua tarefa
aniversário de Freud. Nessa
prática de psicopatologia, neurologia e
oportunidade, o psiquiatra dá relevo à
biologia, ou se se quer chegar a ser
importância dos ensinamentos de
uma ciência psiquiátrica” (p.196).
Freud na história da psiquiatria. Com
Interessavam a esse estudioso os
Freud, diz Binswanger (1946/1977), a
princípios metodológicos da
psiquiatria conquistou profundidade e
psicanálise, ou seja, a sua sistemática e
ampliação essenciais.
coerência, como também a teoria da
Entre 1926 e 1930 encontramos
libido, a análise interpretativa e a
textos, em Artigos e conferências
teoria do inconsciente. Com essas
escolhidas, que versam sobre a ligação
bases, o psiquiatra acreditava poder
de Binswanger com a psicanálise. Essa
construir um sistema em psiquiatria.
referência à psicanálise ocorreu
Binswanger rejeita a perspectiva
quando Binswanger buscou outras
empírica na psiquiatria, optando pela
bases para a psiquiatria que se
reflexão metodológica e a investigação
diferenciassem das biológicas.
teorética. Binswanger (1946/1977)
Acreditou o psiquiatra que encontraria
buscou em Freud os fundamentos
na psicanálise os elementos necessários
psíquicos para as enfermidades
para a constituição de uma psiquiatria
mentais, e na Conferência de 1920 ele
científica. Ele fez seu doutoramento
afirma isso categoricamente.

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo


Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 124-141
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

Função vital e história de vida Ainda sob a influência de Freud,


interior foi uma conferência de 1927, Binswanger apresentou, em 1926, um
que ocorreu no Instituto de Psicologia ensaio intitulado Experiência,
da Universidade de Berlim, em que compreensão e interpretação na
tratou da oposição entre as Psicanálise, onde afirma que a
investigações científico-naturais e as interpretação psicanalítica se dá em
psicanalíticas. Nessa apresentação, um acompanhar da experiência.
Binswanger defende a importância do Afirma Binswanger (1946/1977) “que a
levantamento da história de vida do psicanálise fundamentou, de modo
paciente (1946/1977). A publicação efetivo, pela primeira vez, o ‘ estudo
Função vital e história de vida interior próprio da humanidade’ sobre a
aparece em um momento em que as experiência” (p. 200). Ele acrescenta,
discussões dos estudos da psiquiatria – ainda, que com a estrutura psíquica tal
presentes em Wernick, Bohloeffer, como elaborada por Freud, a
Meynert, Jackson, dentre outros psiquiatria tem muito a conquistar,
ganhavam proeminência, por inclusive podendo, com tal
sustentarem a diferença das fundamentação, ampliar e aprofundar
enfermidades psicogênicas, do tipo um horizonte incalculável para a
funcional, e as que se davam por um ciência psiquiátrica.
desdobramento de processos Para esclarecer sobre a
psíquicos. As enfermidades compreensão, Binswanger recorre aos
psicogênicas funcionais atuam por ensinamentos de Schleiermacher,
meio de processos involuntários e as Dilthey, Simmel, Rickert sobre a
psicogênicas psíquicas sofrem a compreensão. O psiquiatra defende
influência da vontade articulada por que a compreensão é um processo
um conteúdo específico da vivência fundamental para aqueles que
das pessoas. Nesse segundo caso é que estudam a vida do homem, que
encontramos as histerias e as aparece no modo como Freud
pseudodemências. desenvolve seu processo
Segundo Binswanger, os interpretativo. E assim, Binswanger
ensinamentos de Freud provocaram (1946/1977) conclui que Freud reúne
mudanças radicais e decisivas nas teses pela primeira vez a experiência, a
de Wernicke, Bonhoeffer, Meynert e compreensão e a interpretação.
Jackson sobre a histeria e as doenças Em todos esses textos referidos a
psicogênicas. Defendia Freud que Freud, Binswanger tentou justificar o
tanto os estados psicogênicos como os seu afastamento da psicanálise. No
estados histéricos consistiriam em entanto, neles permaneceram sempre
reações de uma dada pessoa a presentes os elementos que se
acontecimentos externos. Daí surge a mantiveram no projeto deste
grande importância que a história da psiquiatra. Binswanger afirma que seu
vida interior vai conquistar no âmbito projeto de psiquiatria unitária não
da psiquiatria clínica. caberia nem à biologia, nem à

A Fenomenologia Antropológica de Binswanger


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

psicologia. E conclui tal tese com o


seguinte argumento: “A doença mental 2. BASES FENOMENOLÓGICAS
é retirada do campo simplesmente
natural, ela também é retirada do
PARA A PSIQUIATRIA
Foram vários os psiquiatras que,
campo de um assunto mental, para ser
por acreditarem na insuficiência das
compreendida e discutida a partir das
ciências naturais para a compreensão
possibilidades originais do ser do
das enfermidades mentais, buscaram,
homem”. (BINSWANGER, 1971/1957,
na fenomenologia de Husserl,
p. 33).
elementos para pensar a psiquiatria de
Em 1920, Binswanger encontrava-
modo mais amplo. Esses psiquiatras
se imbuído da ideia de que a situação
foram Eugène Minkowski, Von
da psiquiatria era crítica e via, na
Gebsattel e Arthur Tatossian, dentre
importância que a psicanálise dava à
outros. Ludwig Binswanger também
história de vida particular, uma saída
compôs o grupo dos psiquiatras na
para a crise em que a psiquiatria se
perspectiva fenomenológica – no
encontrava. (GIOVANETTI, 1990).
entanto, seu interesse pela filosofia
Dado seu interesse pela filosofia,
dirigia-se muito mais a buscar
Binswanger foi então buscar, na
fenomenologia de Husserl e na
subsídios para fundamentar com rigor 131
a psiquiatria, do que propriamente
ontologia de Heidegger, outras bases
para a prática clínica.
temáticas e metodológicas para a
Segundo Giovanetti (1990), a
construção de uma psiquiatria. Na sua
adesão de Binswanger à
clínica em Bellevue, ele promoveu
fenomenologia deu-se em 1922 e se fez
estudos com Edmund Husserl, Martin
presente em todas as suas obras.
Heidegger, Martin Buber, Max Scheler,
Binswanger, na resenha Sobre
Sigmund Freud, Kurt Lowith,
fenomenologia – solicitada a ele pela
contando, ainda, com a presença de
Sociedade Suíça de Psiquiatria e
psicoterapeutas, psiquiatras, literários
publicada em 1922 – esclareceu sobre a
e artistas. (GIOVANETTI, 1990,
importância da noção de
MOREIRA, PITA, 2013). Nesses
intencionalidade como aquilo que é
encontros, acabou por sofrer a
fundamental na vida consciente.
influência das concepções e do método
Em Sobre a fenomenologia
fenomenológico, inaugurado por
(BINSWANGER, 1947/1976) aparecem
Husserl, desenvolvendo assim sua
os elementos mais significativos na sua
antropologia fenomenológica.
adesão à fenomenologia. Essa resenha
Binswanger, participante dessa
é composta por três partes: a primeira
tradição fenomenológica na
versa sobre a ciência da natureza e a
psiquiatria, persistia em buscar
fenomenologia; a segunda apresenta o
subsídios para fundamentar com rigor
método fenomenológico e a terceira
uma psiquiatria unitária e autônoma.
consiste na relação entre a

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo


Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 124-141
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

fenomenologia e a psicopatologia, ambos veem algo sem, no entanto,


como mostraremos a seguir. perceber sensivelmente. Podemos
Na introdução, Binswanger exemplificar esse ver imediato
(1946/1977) afirma ainda que, em 1922, realizado por Machado de Assis,
Kronfeld – em Zentralblatt für die quando ele vê a loucura sem nenhuma
gesamte Neurologie und Psychiatrie – faz referência à fragmentação da vida
uma compilação das ideias psíquica ou orgânica, presente nos
fundamentais em psiquiatria que manuais ou teorias da psicopatologia.
sustentam uma discussão da Sem necessitar das descrições
psicopatologia em termos pormenorizadas dessa área de estudo,
fenomenológicos, porém com Machado de Assis não só apreende,
pretensões a um conhecimento mas nos conduz, com ele, a
universal. Binswanger refere-se à acompanhar a saga de Quincas Borba e
fenomenologia como um a loucura de Barbilhão; a melancolia
conhecimento provisório e não de uma que abarcava a existência de Brás
ordem conclusiva. Ele diz que a Cubas e a sisudez de Dom Casmurro.
psiquiatria tem muito a ganhar em seu Com esses exemplos, não pretendemos
diálogo com a fenomenologia, uma vez dizer que a fenomenologia imita a arte,
que apresenta, de forma clara e plena, apenas pretendemos esclarecer que há
a descrição de uma ciência eidética, outros modos de lida, de apreensão, de
que muito tem a contribuir com a conhecimento das coisas para além da
Psicologia e com a Psiquiatria como apreensão sensível. Aliás, existe um
ciências empíricas. modo de lida que é o mais originário, e
Na parte referente à apresentação foi por esse caminho de visada das
daquilo que distingue a ciência da coisas que Husserl nos ensinou. Sobre
natureza e a fenomenologia, isso nos esclarece Binswanger
Binswanger (1946/1977) esclarece a (1946/2013):
dualidade clássica, presente na ciência
da natureza, entre corpo e psique, O termo técnico de Husserl é, em
apreensíveis pela percepção sensível, oposição à intuição sensível, a
seja como uma unidade da mesma intuição categorial, sobretudo,
natureza, seja decomposta em suas porém, a visão das essências ou
intuição (fenomenológica). Nas
propriedades ou funções. Ele afirma
Investigações lógicas, também fala de
que, no entanto, existem outros modos
“ideação imanente” e de
de lida com as coisas para além da “ideização”, levadas a termo “com
percepção sensível. Trata-se da lida base na intuição” (p. 94).
pela experiência imediata e direta de
algo, ou seja, uma apreensão mais Na segunda parte, Husserl refere-
originária, presente nos artistas. Cita, se ao método fenomenológico, ou seja,
dentre esses artistas: Flaubert, com a como podemos alcançar as intuições
suas obras literárias; Van Gogh, com categoriais. Sabemos que os artistas
sua pintura. Binswanger afirma que caminham de algum modo para

A Fenomenologia Antropológica de Binswanger


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

alcançar aquilo que se mostra a eles. alcançar a esfera da psicologia


Acreditamos que esse modo se dá pelo fenomenológica, para assim chegarmos
método tal como compreendido pelos à essência percepção, essência
gregos originais: metà-hodós. consciência, essência objeto intencional
Fogel (1998) esclarece, acerca do – passando-se então, da esfera dos
método da Filosofia: “O ‘metá’ contido fatos para a esfera das essências. Para
em ‘método’ (metà-hodós’) diz ‘de Binswanger, Husserl pensava a
acordo com’ ou ‘junto de’ o caminho” fenomenologia como a ciência
(p.29). Acompanhando os passos da normativa do psíquico. E era nessa
filosofia na conquista de um método, linha de pensamento que o psiquiatra
seguiremos tomando o método como idealizava a sua psiquiatria. E termina
um lugar no qual o caminho e o essa exposição da seguinte forma: “(...)
pensamento que investiga co- o fato de que e em que medida a
pertencem ao tema investigado. O psiquiatria tem, apesar disto, o maior
metà-hodós consistirá no modo pelo interesse pela fenomenologia enquanto
qual podemos nos acercar do espaço método científico”. (BINSWANGER,
que denominamos mais originário, ou 1946/1977, p.117).
seja, anterior a qualquer compreensão Na parte III, em Sobre a
teórica na qual a existência se dá. fenomenologia, Binswanger (1947/1976) 133
Binswanger (1946/1977), então, vai pensar a relação entre
pergunta como tornar possível fenomenologia e psicopatologia,
apropriar-se de um método da filosofia afirmando que a psiquiatria, por ser
pela psiquiatria, afirmando que: uma ciência empírica, jamais poderá
alcançar a intuição das essências puras.
Husserl não facilita as coisas para No entanto, a psicopatologia poderá se
nós aqui, uma vez que por um lado, aproximar de uma ciência pura, na
abre, poder-se-ia com certeza dizer, medida em que mais puros forem seus
um fosso insuplantável entre conceitos. O psiquiatra argumenta que
conhecimento de fatos e
por esses motivos poderá falar de uma
conhecimento de essências [...],
fenomenologia psicopatológica.
contudo, ele também fala da conexão
íntima entre psicologia e Foi, então, em 1922, após entrar
fenomenologia (Ideias, p.158) e em contato com o conceito de
sempre acentua uma vez mais o consciência intencional de Husserl, que
procedimento gradual do método Binswanger (1946/1977) aderiu
fenomenológico desde o fato decisivamente ao método
particular dado na experiência até a fenomenológico em suas investigações.
pura visão de essências (p. 111). Ele acabou rompendo com os
pressupostos naturalistas da
Binswanger defende, então, que é psicanálise e assumiu definitivamente
por meio das reduções a perspectiva fenomenológica de
fenomenológicas que poderemos método, que, segundo o próprio

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo


Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 124-141
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

Binswanger, o acompanhou durante para a constituição de sua


toda a sua trajetória profissional. daseinsanálise.
Binswanger inicia por tecer No prefácio à tradução francesa
comparações entre o projeto do livro de Binswanger, Sonho e
fenomenológico de Husserl e o método Existência, editado em 1954, Foucault
científico natural, deixando claro que, (1954) detém-se em mostrar a diferença
pelo caminho da fenomenologia, entre Binswanger e Freud nas suas
colocaria a psiquiatria no rol das teorias sobre o sonho. Afirma que cabe
ciências rigorosas. Assim, ele analisa os acentuar que as diferenças entre os
problemas psicopatológicos à luz da dois estudiosos estão nas concepções
categoria fenomenológica do espaço. de imagem e imaginário, símbolo e
Ele sempre se interessou pela filosofia, significado. Essas diferenças se fazem
até que acabou por considerar que a presentes no modo como Freud e
fenomenologia e a ontologia Binswanger, respectivamente,
hermenêutica lhe ofereciam outras conduzem em suas clínicas o relato dos
bases para suas elaborações teóricas, sonhos por seus pacientes. O primeiro
não só em psiquiatria, como também trabalha com a dimensão do psíquico
para sua atividade clínica, como como o espaço mais originário das
podemos constatar na apresentação de expressões psíquicas; com o caráter
acompanhamentos psicoterápicos, tais simbólico da vida psíquica que se
como o clássico Ellen West apresenta no sonho na forma de
(BINSWANGER, 1958/1977) e o caso imagem. O segundo trabalha com a
Ilse (1977 d). dimensão antropológica dos sonhos e,
para discutir seus conteúdos, segue as
orientações presentes em Husserl
3. BASE DASEINANALÍTICA (1900/2006), na primeira investigação
lógica: índice e significação, bem como
PARA A PSIQUIATRIA analisa os sonhos em seu caráter do
Em Artigos e conferências escolhidas imaginário.
(1946/1977), Sonho e existência tornou- Loparic (2002) comenta que Sonho
se um clássico, constantemente e existência apresenta uma estrutura
referido em diferentes publicações de ontológica que é básica para a
livros e artigos. Foucault (1954) ateve- compreensão da daseinsanálise: o
se à análise, discussão e crítica do movimento de ascensão e queda. Diz
conteúdo presente na publicação do Loparic (2002): “Trata-se de uma única
psiquiatra; Loparic (2002), em seu onda vital de forma senoidal, com
artigo Binswanger, leitor de Heidegger: fases ascendentes ou vitoriosas e
um equívoco produtivo?, faz uma breve descendentes ou malogradas, que
análise do texto com o subtítulo O acontece sem qualquer manifestação
sonho e a existência. Huygens (2011) do indivíduo no qual se manifesta”
refere-se a esse escrito como algo que (p.2).
está muito além de uma simples A construção de uma
passagem, trata-se, pois, de um salto

A Fenomenologia Antropológica de Binswanger


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

daseinsanálise psiquiátrica foi tomada determinação, ou seja, o ser do homem


por Binswanger como seu projeto de é marcado por uma negatividade; 2- A
ciência ôntica dos distúrbios psíquicos. noção de projeto que diz respeito ao
Isso teve início quando, em contato campo de sentidos que sustentam
com Ser e tempo (HEIDEGGER, recortes significativos diversos, que
1927/2003), Binswanger afirma ter tornam possíveis as nossas ações. O
encontrado a base ontológica de sua projeto, que se constitui por sentidos e
antropologia fenomenológica em seu torna possível a apropriação de
modelo de análise na psiquiatria. Essa significado, precisa aparecer e para que
virada de Binswanger – da psicanálise ele se dê, é preciso que ele se
à daseinsanálise – é comentada por operacionalize. É o mundo que fornece
Huygens (2011) como se constituindo sentidos com os quais cada um se
em uma significativa virada para a comporta.
elaboração de sua daseinsanálise. Heidegger e Binswanger entram
A estrutura da daseinsanálise em discordância no que diz respeito à
desenvolvida por Binswanger teve compreensão analítico-existencial do
como referência aquilo que sofrimento psíquico ou das crises
denominamos como o primeiro existenciais. Para Heidegger
Heidegger, mais especificamente a sua (1927/2003), é necessária a suspensão 135
obra Ser e tempo, de 1927. Binswanger, das prescrições do mundo para que o
ao articular a filosofia de Heidegger à Dasein possa se singularizar, apropriar-
clínica psiquiátrica, conquista a noção se de suas possibilidades mais
de projeto, aspecto endógeno (terceiro próprias, que no final das contas é o
campo etiológico, que nem é somático, confrontar-se com o caráter de
nem psíquico) que vai se constituir negatividade da sua existência. Para
como critério para lidar com a saúde Binswanger, apoiando-se em sua
mental e para pensar as enfermidades experiência clínica, ocorre justamente o
psíquicas. Assim, ele encontra um contrário. (NOVAES, FEIJOO,
espaço para pensar as suas teses fora PROTASIO, 2015).
dos critérios das ciências naturais, da Para Heidegger, é no interior do
biologia ou da psicologia. Binswanger projeto impróprio que o Dasein, no
ateve-se à concepção de projeto, ou início e na maioria das vezes se
melhor, à relação entre o ser-aí (Dasein) movimenta, ou melhor: se faz o que na
e o poder ser. Assim, Binswanger maioria das vezes se faz, porque se (o
tomaria de Heidegger as seguintes impessoal) diz o que faz sentido fazer.
considerações: 1- Suspensão de O que caracteriza o impróprio é a
qualquer teoria que pressuponha uma operacionalização de sentidos
determinação psíquica ou biológica sedimentados. O próprio é a
acerca do comportamento do homem. experiência de sentido que se constitui
Logo, o ser do homem se caracteriza a partir da indeterminação do Dasein. É
pela ausência de qualquer na experiência, que emerge em meio a

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo


Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 124-141
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

situações limites, que o Dasein se vê originário, que mesmo encurtado,


confrontado com sua estranheza jamais deixa de se apresentar como
constitutiva e o Dasein se abre a outras projeto. (NOVAES, FEIJOO,
possibilidades, a outros sentidos, PROTASIO, 2015).
abrindo espaço para o singular. Em Acontece que em Heidegger
conclusão, para Heidegger (2003) o (2003), para que o Dasein se abra para o
próprio é uma modulação do seu caráter de poder ser, é decisiva a
impróprio, já que mesmo aquilo que se tonalidade afetiva fundamental da
toma como singular ainda depende da angústia, situação limite em que o
familiaridade com o mundo. Dasein pode se confrontar com o seu
A clínica psiquiátrica dar-se-ia na poder ser. Binswanger (1957/1971)
tentativa de recomposição dos sentidos discorda dessa tese e afirma que aquele
sedimentados, da familiaridade que se apresenta transtornado já se
perdida. Para Binswanger, a loucura é encontra na situação limite em que a
a perda da familiaridade, dos sentidos negatividade já se anuncia. O
sedimentados, ou seja, para ele é nisso transtorno é o anúncio da negatividade
que o impróprio se apresenta. É a – logo, o transtornado tomado pela
loucura que inviabiliza a articulação de angústia tem que retomar a
sentidos possíveis: projeto – uma vez familiaridade com o mundo, de forma
que reduz, encurtando os projetos a reencontrar a positividade perdida.
existenciais. De acordo com Loparic (2002), em
Em Binswanger, o critério 1942 – com a publicação de Formas
fundamental para o exercício da clínica fundamentais e conhecimento da existência
psicológica seria a reconquista, a humana– aparece uma discussão que
rearticulação do projeto singular, o foi o motivo da ruptura definitiva de
projeto originário de cada Dasein, isto Heidegger com Binswanger. Nesse
é, a saída do encurtamento das livro, Binswanger aponta para a
possibilidades presentes no poder ser insuficiência do existencial Sorge
mais originário. Projeto esse que não (cuidado) no que diz respeito à clínica
pode ser reconquistado com a medida e o substitui pelo existencial amor. Por
dada pelo outro, mas no reencontrar-se isso Binswanger vai incluir, no
com a medida dada pela própria existencial cuidado, a relação do amor,
existência e que vem se encurtando por que antes de devolver o outro à sua
meio daquilo que é o próprio negatividade originária em uma
transtorno. A daseinsanálise de relação afetiva amorosa, vai propiciar a
Binswanger diz que é a amplitude do recomposição da familiaridade.
projeto originário, que cada um Frente às críticas dirigidas por
sustenta em sua existência, que fornece Heidegger a Binswanger, este se
a medida de cada existência em sua posiciona, qualificando o modo como
dinâmica de realização. Para esse se apropriou dos temas
psiquiatra, na clínica temos que heideggerianos, de equívoco
acompanhar os acenos do projeto mais produtivo. Ou seja, Binswanger

A Fenomenologia Antropológica de Binswanger


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

reconhece seu equívoco; no entanto, investigava a constituição dos mundos


não deixa de pôr em relevo as suas da melancolia, da mania e da
contribuições para os estudos em esquizofrenia.
psiquiatria. Não há dúvida de que a Em Três formas de existência
inspiração encontrada pelo psiquiatra malograda, publicada em 1956,
suíço nas ideias do filósofo da Binswanger (1956/1977) ainda estava
daseinsanálise proporcionou grandes e totalmente voltado para uma
inéditos estudos em psiquiatria. compreensão existencial das formas da
Podemos constatar, também, nas três existência esquizofrênica, bem como
últimas publicações de Binswanger: para os modos de transformações
Três formas de existência malograda possíveis. O ponto de partida para esse
(1956/1977), Melancolia e mania estudo era a descrição clínico-
(1960/1987) e Delírio (1965/2010), tanto psiquiátrica: ficaria para a atuação e
a presença de Heidegger quanto a de conhecimentos psiquiátricos a busca de
Husserl em suas formulações, como sintomas com fins de diagnóstico, e na
veremos a seguir. atuação psicoterapêutica ficaria a
Binswanger, no entanto, por não exibição e a transformação de formas
concordar com a perspectiva do Sorge existenciais possíveis no curso da
defendida por Heidegger, já que existência. Assim, a análise das 137
concluía que a ontologia heideggeriana situações em que aparecem quadros de
era insuficiente para sustentar as teses psicopatia esquizoide e esquizofrenia
da psicopatologia, toma a não ficaria reduzida ao método
fenomenologia transcendental de naturalista ou à explicação
Husserl e vai à busca da gênese das psicobiológica. Esses modos
doenças mentais. Trata-se do momento existenciais poderiam ser
em que Binswanger retorna a Husserl. compreendidos, numa maior
amplitude, como estrutura existencial
do ser-no-mundo. Com essas
considerações, vemos que Binswanger
ainda mantinha as bases ontológicas de
4. O RETORNO À Heidegger em suas investigações sobre
a esquizofrenia.
FENOMENOLOGIA DE HUSSERL Uma das duas últimas
Binswanger, ao retornar a
publicações data de 1960, Melancolia e
Husserl, distancia-se dos projetos
mania, na qual Binswanger (1960/1987)
anteriores, ou seja, não pretendia mais
retoma o último Husserl, com a ideia
fazer uma antropologia ou
de gênese temporal da estrutura
fenomenologia descritiva. Ele centrava-
fundamental da consciência
se, nesse momento, em uma
intencional em seu fluxo temporal.
fenomenologia na qual importava a
Assim, o psiquiatra desloca-se da ideia
gênese da subjetividade. O psiquiatra
das objetividades temporais – presente,

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo


Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 124-141
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

passado e futuro – que na consciência se infiltra na propensão, tornando a


intencional ganha uma dimensão mais vivência depressiva uma eterna
original de atos intencionais: lamentação. O equilíbrio dessas três
apresentação, retenção e propensão, dimensões caracteriza o ser sadio.
dos quais se desdobra a objetividade Em 1965, Binswanger publica
temporal de passado, presente e Delírio (1965/2010), marcando um
futuro. As alterações intencionais da rompimento radical com Heidegger e
retenção e da propensão modificam retomando definitivamente à
toda a continuidade da consciência do fenomenologia transcendental de
paciente, bem como a objetividade de Husserl. Nesse texto, ele compreende o
sua estrutura temporal. É com essas delírio nas bases da consciência
dimensões que Binswanger procederá intencional. Binswanger, ao tratar dos
para alcançar as alterações do tempo delírios, considera a desestrutura
vivido nas diferentes enfermidades temporal fundamental sofrida nessa
mentais. Na melancolia, a retenção experiência e, mesmo que aborde em
comporta a culpa, obstruindo a suas análises as biografias, dá mais
propensão, o projeto. Ele argumenta relevo primeiramente à noção de
que no transtorno maníaco depressivo projeto-de-mundo e mais tarde à noção
(atualmente com a denominação de de estrutura em curso do Dasein. Em
Transtorno bipolar do humor) ocorre Anne, ocorre a perda de evidência
uma alteração do tempo vivido. natural, a ausência dos axiomas da
Em Melancolia e mania cotidianidade, que modificam a
(BINSWANGER, 1987), não só temporalização na constituição do Eu e
encontramos a influência do do Outro. E sem mundo, aquele que é
pensamento de Husserl sobre a acometido por uma estranheza do
estrutura temporal, bem como mundo, visto que perdeu a
encontramos considerações sobre ser- familiaridade com ele, cria seu mundo
no-mundo, de Heidegger. Tatossian e próprio: o delírio. Como o projeto do
Moreira (2012) afirmam que a gênese esquizofrênico fracassa em suas
fenomenológica da melancolia apenas pretensões, esse Dasein tende ao
foi abordada por Binswanger em 1960, suicídio, ao autismo ou ao delírio.
considerando, na análise de suas
situações clínicas, a modificação
melancólica do tempo vivido, em uma CONCLUSÕES
presunção transcendental. Para Ao acompanhar o percurso de
Binswanger, tanto a mania quanto a Binswanger na constituição de sua
melancolia são transtornos do tempo. psiquiatria, tanto com relação ao
Na mania ocorre um relaxamento da desenvolvimento teórico como em sua
trama temporal, em que os momentos prática clínica, podemos verificar que
da retenção e da propensão quase apesar de suas diferentes inspirações
desaparecem, dando lugar à expansão filosóficas, a gênese de cada uma das
do presente. Na melancolia, a retenção perspectivas adotadas em um

A Fenomenologia Antropológica de Binswanger


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

momento anterior de sua empreitada (1927/2003), se apropriou de noções


sempre esteve presente nas presentes em Ser e tempo, tais como:
formulações posteriores. Binswanger projeto, próprio e impróprio e Sorge.
nunca se absteve de realizar Embora Binswanger tenha
categorizações diagnósticas com base recebido muitas críticas e descrédito
no quadro sintomatológico de seu com relação aos seus projetos em
paciente. Também nunca deixou de se psiquiatria, é certo que ele foi fonte de
referir a Freud. E, ainda, a inspiração para muitos psiquiatras,
daseinsanálise jamais desapareceu em como Gebsattel, Ellenberger, Tatossian,
sua fenomenologia antropológica. Medard Boss. Ele também trouxe
Parece que a totalidade da obra desse elementos importantes para se pensar
psiquiatra caracterizou-se por sua a daseinsanálise clínica,
intuição clínica somada aos seus principalmente com as suas noções de
conhecimentos de filosofia, amor e confiança.
fenomenologia e psicanálise, tornando- Embora esse estudioso tenha sido
se, como ele mesmo denominou em pouco estudado em todo o mundo, na
resposta à crítica de Heidegger, um Alemanha há um centro de referência
equívoco produtivo. (LOPARIC, 2002). em estudos e pesquisas em
Binswanger, rumo à conquista da Binswanger. Há também uma grande 139
autonomia da psiquiatria, buscou biblioteca que comporta todo o acervo
referências em outros estudos para dos escritos de Binswanger, bem como
além das bases naturais próprias das de seus comentadores do mundo
pesquisas em sua época. Introduziu-se inteiro. No Brasil, a grande referência
amplamente nas discussões filosóficas, da daseinsanálise não é Binswanger. É
inclusive junto a estudiosos o psiquiatra Medard Boss que ganha
renomados. Aproximou-se da notoriedade. Em São Paulo, há um
psicologia existencial e dos psicólogos tributo a Boss com a denominação
que se atinham à relação da filosofia Associação Brasileira de
com a psicologia. Ao receber críticas Daseinsanálise.
que apontavam para a impossibilidade Podemos constatar, nesta revisão
da constituição de uma psiquiatria com narrativa da literatura por meio de
bases filosóficas, trouxe à discussão a artigos em revistas brasileiras,
possibilidade de tal diálogo. predominantemente, e nos poucos
Binswanger tratou de temas como livros de Binswanger traduzidos para
angústia e desespero tal como o português e espanhol, que esse
discutidos por Kierkegaard estudioso foi um pesquisador e clínico
(1844/2008). O psiquiatra, ao buscar as muito pouco conhecido pelos
bases de sua psiquiatria, encontrou em brasileiros. Binswanger, um dos
Husserl (1901/2006) os elementos que pioneiros na articulação de uma
ele precisava para sua fenomenologia daseinsanálise antropológica, tanto na
antropológica. Em Heidegger clínica psiquiátrica quanto na

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo


Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 124-141
Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

psicológica, no Brasil ficou quase que ____. La locura como fenómeno biográfico y
em total esquecimento. como enfermedad mental: el caso de Ilse. In:
Com este estudo pretendemos, May, R, Angel, E. &Ellenberger, H. (1977).
Existencia: nueva dimensión en Psiquiatria y
também, despertar motivações e
Psicologia. Sánchez Pacheco, Trad. Madrid:
interesse pelos estudos sobre esse
Gredos, 1977d, p. 262- 287.
grande pesquisador da psiquiatria, que ____. Mélancolie et manie: études
não se cansou de elaborar uma phénoménologiques. R. Lewinter, Trad. Paris:
resposta efetiva aos problemas das PUF, 1987.
ciências humanas, em especial a ____. Délire. Trad. J-M, Azorinet & Y, Totoyan.
psicopatologia tradicional. Estudos psis Grenoble: Jérôme Millon, 2010.
insistem, até hoje, em buscar os seus ____. Introduction. In: L. Binswanger,
fundamentos ora em uma base Introduction à l’analyse existentielle. Paris: Les
Éditions de Minuit, 1971, p. 39-47
biológica, ora em uma base psíquica.
____. Sonho e existência: ensaios e
Em síntese, Binswanger esmerou-se
conferências 1: escritos sobre fenomenologia
incansavelmente em contrapor-se ao e psicanálise / Ludwig Binswanger. Trad. M.
reducionismo, objetivismo, Casanova. Rio de Janeiro: ViaVerita, 2013.
naturalismo e psicologismo que vêm DASTUR, F. Qu’est-ce que la Daseinsanalyse?.
dominando a psiquiatria desde o Phainomenon, 2005. n. 11, p. 125 -133.
século XIX até os dias atuais, com a tão ELLENBERGER, H. Introducción clínica a la
proeminente neurociência. fenomenología psiquiátrica y el análisis
existencial. In: MAY, R; ANGEL, E. &
ELLENBERGER, H. Existencia: nueva dimensión
en Psiquiatria y Psicologia. Trad. Sánchez
REFERÊNCIAS Pacheco. Madrid: Gredos, 1977, p. 123-162.
BASSO, E. Ludwig Binswanger: a influência de FOGEL, G. Da solidão perfeita: escritos de
Kierkegaard sobre o trabalho de Binswanger. filosofia. Petrópolis, R.J: Vozes, 1998.
Trad. Myriam Moreira Protásio. In. Feijoo & FOUCAULT, M. Introduction. In: Binswanger.
Lessa. Psicopatologia: fenomenologia, Le reve et l’ existence. Trad. J. Verdeaux, Paris:
literatura e hermenêutica. Rio de Janeiro: Desclée, 1954a, p. 9-128.
Editora Ifen, 2016, p. 327-365. GEBSATEL, V. Imago hominis. Trad. Beatriz
BINSWANGER, L. Introduction à l´analyse Romero, Trad. Madrid: Gredos, 1969.
existencielle. Trad. J. Verdeaux. Paris: Les GIOVANETTI, J. P. O existir humano na obra de
Editions de Minuit, 1971. Ludwig Binswanger. Síntese, Nova Fase, 1990.
____. El caso Ellen West: Estudio 50, p. 87 -99.
antropológico-clínico. In: May, R, Angel, E. HEIDEGGER, M. Seminários de Zollikon. Trad.
&Ellenberger, H. Existencia: nueva dimensión Maria de Fátima Prado. Petrópolis: Vozes,
en Psiquiatria y Psicologia. Trad. Sánchez 2001.
Pacheco. Madrid: Gredos, 1977a, p. 288 - 434. ____. Ser y tiempo. Trad. Rivera Cruchaga.
____. Articulos y conferencias escogidas. Trad. Madrid: Gredos, 2003.
M. Casero. Madrid: Gredos, 1977b. HUYGENS, A. De la psychanalyse à l’analyse du
____. Três formas da existência malograda. Dasein: au-delá d’une passage, um sault. In. B.
Trad. G. Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1977c. Leroy-Viémon. Ludwig Binswanger:
philosophie, anthropologie clinique,
daseinsanálise, 2011, p. 269-287.
HUSSERL, E. Investigações lógicas (Vols. 1).

A Fenomenologia Antropológica de Binswanger


Aoristo)))))
International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

Trad. P. Alves & C. Marujão. Lisboa: Centro de Submetido: 11 de novembro de 2016


Filosofia da Universidade de Lisboa, 2007.
KIERKEGAARD, S. La enfermedad mortal. Trad. Aceito: 19 de dezembro de 2016
Demetrio Gutiérrez Rivero, Madrid: Trotta,
2008.
LOPARIC, Z. Binswanger, leitor de Heidegger:
um equívoco produtivo?.Natureza humana, 4
(2), 2002, p. 383-413.
MAY, R; ANGEL, E. & ELLENBERGER, H.
Existencia: nueva dimensión en Psiquiatria y
Psicologia. Sánchez Pacheco, Trad. Madrid:
Gredos, 1977, p. 523.
MINKOWISKI, E. Le temps vécu. Paris:
Delachaux et Nestlé, 1968.
MOREIRA, V. & PITA, J. A noção de delírio em
Ludwig Binswanger e Arthur Tatossian. In: A.
Tatossian & V. Moreira (Org.), Clínica do
Lebenswelt: psicoterapia e psicopatologia
fenomenológica, São Paulo: Escuta, 2012, p.
263-276.
NOVAES, J.; FEIJOO, A.M. & PROTÁSIO, M. A 141
psicopatologia em uma perspectiva
daseinsanalítica. Revista Latinoamericana de
Psicopatologia Fundamental. São Paulo, 18
(2), 280-291, jun. 2015.
RODRIGUES, R. Ludwig Binswanger: um
projeto de psicopatologia para além das
categorizações metafísicas. UERJ: 2015
[Dissertação de Mestrado Não-publicada,
Programa de Pós-graduação em Psicologia
Social da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro].
STEIN, E. Analítica existencial e psicanálise:
Freud, Binswanger, Lacan, Boss. RS: Ijuí, 2012.
TATOSSIAN, A. & MOREIRA, V. Clínica do
Lebenswelt: psicoterapia e psicopatologia
fenomenológica. São Paulo: Escuta, 2012.
TOPFER, F. O conceito de doença e
normatividade no pensamento de Ludwig
Binswanger e Medard Boss. Revista
Psicopatologia Contemporânea. São Paulo:
2013, 2 (2), 32-35.

Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo


Toledo, n˚1, v. 1(2017) p. 124-141

Você também pode gostar