Você está na página 1de 52

1

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................ 3

2 CONTRIBUIÇÕES DE BION ...................................................................... 4

2.1 Início da carreira como psicanalista ..................................................... 5

3 TEORIAS DESENVOLVIDAS POR BION................................................... 5

4 TEORIA DE GRUPO ................................................................................ 13

4.1 Os grupos terapêuticos ...................................................................... 14

4.2 A teoria de funcionamento dos grupos ............................................... 15

5 A TEORIA DO CONHECIMENTO ............................................................ 21

5.1 Vínculos L, H, K .................................................................................. 23

6 MEMÓRIA E DESEJO .............................................................................. 24

7 A FUNDAMENTAÇÃO PSICANALÍTICA DO PENSAMENTO DE BION .. 25

8 TEORIA DO PENSAMENTO .................................................................... 27

9 FUNÇÃO-ALFA E ESTILO DE PENSAMENTO EM BION........................ 29

10 BION E A CAPACIDADE DE PENSAR ................................................. 34

11 RELAÇÃO CONTINENTE-CONTEÚDO, FUNÇÃO Α, RÊVERIE.......... 37

12 TRANSFERÊNCIA E TRANSFORMAÇÕES ......................................... 42

13 O FENÔMENO AUTÍSTICO .................................................................. 45

14 O UNIVERSO AUTÍSTICO .................................................................... 46

15 AS DIFERENÇAS ENTRE A ANÁLISE E A PSICOTERAPIA


PSICANALÍTICA ....................................................................................................... 47

16 OBJETIVOS TERAPÊUTICOS PARA PSICANÁLISE E PSICOTERAPIA


PSICANALÍTICA: BION ............................................................................................. 49

17 BIBLIOGRAFIA ...................................................................................... 51

2
1 INTRODUÇÃO

Prezado aluno!

O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante


ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um
aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma
pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é
que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a
resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas
poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em
tempo hábil.
Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa
disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das
avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora
que lhe convier para isso.
A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser
seguida e prazos definidos para as atividades.

Bons estudos!

3
2 CONTRIBUIÇÕES DE BION

Fonte: pt.slideshare.net

Wilfred Bion nasceu na cidade de Muttra, na Índia, em 1897. Filho de pais


britânicos, foi enviado à Inglaterra aos oito anos para estudar, alistou-se no exército
aos dezenove e saiu após a Primeira Guerra para ingressar na universidade de
Oxford. Lá estudou História, Filosofia, Teologia e licenciou-se em Letras. Após entrar
em contato com as obras de Freud, resolveu cursar medicina e formou-se aos trinta e
três anos.
Bion começou a estudar psicanálise durante um período de dois anos como
trainee do psicanalista inglês John Rickmann, e mais tarde foi supervisionado por
Melanie Klein. Durante a Segunda Guerra Mundial, dedicou bastante tempo na análise
de grupos e essa experiência lhe rendeu algumas obras, Intra-group tensions in
therapy, Leaderless group Project e Group dynamics: a review. Bion abandonou as
pesquisas nessa área para se dedicar a psicanálise, ingressou na Sociedade Britânica
de Psicanálise e foi presidente da associação entre os anos de 1956 e 1962.
No final dos anos 1960, as ideias de Bion não batiam com as dos demais
psicanalistas da Sociedade Britânica e essas divergências fizeram com que o médico
se mudasse para Los Angeles, mas enfrentou nos Estados Unidos o mesmo impasse
que encarou em Londres. Bion, então, decidiu viajar o mundo divulgando suas ideias
em palestras e conferências, passando pelo Brasil durante a década de 1970.
4
2.1 Início da carreira como psicanalista

Em vários momentos de sua obra Bion foi influenciado pelos princípios


filosóficos de Kant. Esses princípios se mostram, principalmente, nos conceitos de
valorização da relação humana, ética, e a relação médico/paciente.
Bion se interessa pela psicanálise quando faz análise com Rickman, que foi
analisando de Freud. Após fazer sua formação analítica com Melanie Klein, Bion se
torna seu mais importante discípulo.
Nos anos 60, efetua uma revisão filosófica do texto freudiano fundamentando-
a, ao mesmo tempo em Kant e Klein. Nesta revisão, divide o aparelho psíquico em
duas funções mentais: Alfa e a Beta. Assim denominadas para evitar a acumulação
de significados que um nome específico traria consigo.
Alfa é definida como investigação que se ocupa do pensar: do pensamento e
da aprendizagem pela experiência emocional. Os elementos Alfa seriam os
precursores da memória que teriam uma grande capacidade de articulação. Quando
a função Alfa, entre a mãe e o bebê, fracassa, o aparelho psíquico não fabrica
elementos Alfa. Não metabolizando as experiências emocionais.
Com esse fracasso, os elementos Betas que são os facilitadores da
identificação projetiva, não produzem sonhos e não são transformados em elementos
Alfa. Mas suas reflexões não tiveram boa repercussão na sociedade britânica. No ano
de 1968, Bion juntamente com sua família foi se instalar na Califórnia.

3 TEORIAS DESENVOLVIDAS POR BION

Parte Psicótica da Personalidade:


Bion designa a PPP (Parte Psicótica da Personalidade) não como uma
questão psiquiátrica, mas como um modo de funcionamento mental coexistente a
outros tantos. Assim todo o paciente psicótico tem uma parte neurótica em sua
personalidade, os neuróticos também têm uma parte psicótica oculta.
As características básicas que estão presentes na PPP são:
 Fortes pulsões destrutivas com predomínio da inveja e da voracidade
 Baixa tolerância as frustrações, no lugar de modificá-las

5
 As relações interpessoais mais intimas são caracterizadas pelo vinculo
sadomasoquista.
 Uso excessivo de dissociações e identificações projetivas patológicas
 Uso excessivo de projeções, sentimentos e pensamentos persecutórios.
 Grande ódio à realidade interna e externa, com preferência pelo mundo
das ilusões.
 Ataque aos vínculos de percepção e aos de juízos críticos, resultando
num prejuízo do pensamento verbal, da formação de símbolos e do uso
da linguagem.
 A onipotência, a onisciência e a imitação substituem o processo de
aprender com experiência. O orgulho dá lugar à arrogância, o
desconhecimento leva a estupidez e a curiosidade se transforma em
intrusividade.
 A pouca capacidade de descriminação leva a uma confusão entre o
verdadeiro e o falso, tanto do próprio self como do que está fora.
 Fuga a verdade, prevalecendo à negação através de distorções.
Camuflagens, omissões ou mentiras deliberadas.
Ao construir a proposição da existência de uma parte psicótica da
personalidade, Bion não se referia à equivalência de um diagnóstico psiquiátrico, mas
sim, a um espectro quantitativo e qualitativo acerca da área da mente em contrapartida
à área não psicótica preservada. Isso se refere muito mais ao tipo de angústia e
características do estado mental do que a manifestações clinicamente psicóticas com
grau máximo de ruptura com a realidade. Refere-se a um modo de funcionamento
mental coexistindo com outro modo de funcionamento (Bion, 1991a, 1991b, 1991c,
1992). No entendimento e nas palavras de Grinberg (1973), Bion explica que “todo
indivíduo, mesmo o mais evoluído, contém potencialmente funcionamentos mentais e
respostas derivadas da personalidade psicótica e que se manifestam como uma séria
hostilidade contra o aparelho mental, a consciência e a realidade interna e externa”
(p. 45).
Zimerman (2004a), em seu livro dedicado à obra de Bion, descreve
mecanismos característicos do funcionamento dessa parte psicótica da mente que se
encenam tanto na prática analítica diante das angústias e do crescimento mental
quanto no cotidiano, diante das frustrações e da realidade:

6
Qualidade das identificações projetivas:
De acordo com Bion (1991b), é de uma disposição constitucional com
predomínio pulsional destrutivo, capaz de forte inveja e voracidade, aliada ao baixo
limiar de tolerância à frustração, que nasce, em determinados bebês, uma pré-
condição de atacar tudo de que ele depende, de tal modo que um pêndulo psicótico
começa a tocar já na relação com o seio materno.
Por conta do ataque invejoso já destinado ao seio gratificador, alguns bebês
deixam até de mamar, mas para não morrer de fome, disparam na mente o emprego
de uma defesa primitiva, através do mecanismo de dissociação (splitting) voltam a
depender do seio-leite, mas congelam a relação com o seio-amor, promovendo uma
lacuna entre necessidade material e gratificação psíquica (Grinberg, 1973).
Esse funcionamento mental primitivo, como revela Grinberg (1973), é
reconhecido, na clínica psicanalítica, em pacientes que, tratam de conseguir
comodidades materiais de uma maneira insaciável sem gozar delas nem reconhecer
a existência dos seres vivos de quem dependem para obter tais benefícios. Não
podem experimentar gratidão nem interesse por eles e os tratam como objetos
inanimados (p. 62).
Não obstante, voltando a compreender a gênese deste funcionamento nos
primeiros meses de vida, Bion explica que é a capacidade de continência materna,
através da qualidade de rêverie1, a essas angústias projetadas tão cedo na mãe, que
se dará destino à força destas pulsões agressivas no universo mental do bebê.
Delouya (1998), em referência à teoria de Bion, lembra que, se a mãe dispõe desta
condição de rêverie, a qual, por meio da metabolização psíquica, permite transformar
as angústias em sentir e pensar, o bebê não só ingere as angústias transformadas,
mas também introjeta o modelo de continência e transformação, construindo seu
próprio aparelho de pensar os pensamentos.
Nas palavras de Hartke (2005) sobre esta tarefa materna como chave das
compreensões de Bion acerca do funcionamento psíquico, essa função é descrita
como a atividade mental, desempenhada nos primeiros tempos pela mãe em relação
ao bebê, de transformar em pensamentos as impressões sensoriais e emoções brutas
que emergem com as vivências.
Assim, para Hartke (2005, p. 51), a falha nessa atividade faz com que tais
impressões sensoriais e emoções permaneçam como fatos não digeridos

7
psiquicamente, que servem apenas para evacuação por identificação projetiva,
gerando atuações, fenômenos psicossomáticos e alucinações.
Grinberg (1973), ainda se apoiando nas compreensões de Bion, ressalta, por
outro lado, que a capacidade de tolerância à frustração também é uma condição inata
do bebê, portanto influi na responsividade da personalidade à carga pulsional
destrutiva e às condições de continência do ambiente. O autor acrescenta que
devemos considerar então, no desenvolvimento do funcionamento psicótico, uma
disposição destrutiva primária, assim como também a relação com uma mãe que foi
incapaz de realizar sua função de receber, conter e modificar as violentas emoções
projetadas pela criança” (p. 53).
Nesse contexto, as condições psicóticas se inauguram pela flacidez ou
privação do continente mental materno diante das excessivas cargas agressivas
projetadas pelo bebê, de modo que, ou elas não puderam ser suportadas e
simbolizadas pela, ou a própria mente do bebê, pela ação do ódio e da inveja, não
permitiu à mãe exercer está estruturante função continente.
Assim, as emoções brutas voltam a habitar a mente do bebê pela mesma via
pela qual foram expelidas, e muitas vezes acrescidas das angústias da própria mãe,
com os afetos agressivos, sem representação e destino, atacando os vínculos afetivos
e perceptivos.
Como decorrência, as identificações projetivas são empregadas como forma
de defesa primitiva, não verbal, de comunicar o registro que foi impresso sem nome e
sem palavra no psiquismo, porque não foi pensado e significado, e como forma de
descarregar de maneira evacuativa as ideias e angústias intoleráveis para a condição
mental.
As identificações projetivas equiparam-se aos acting, trocando pensamento por
ação, já que se formou de maneira muito rudimentar o aparelho para pensar os
pensamentos, ficando então o uso excessivo destas a serviço da parte psicótica da
personalidade (Bion, 1991c).
Desta maneira, como lembra Grinberg (1973), compreende-se a intersecção
que Bion destacou entre a capacidade de tolerar frustração e a capacidade de
transformá-la em pensamento, ou, no reverso, sob o domínio da parte psicótica, de
evadir-se da frustração e abortar a capacidade de pensar os pensamentos.

8
Clinicamente, como explica Zimerman (2004b), a necessidade desta descarga
projetiva pode, por meio de sucessivos splittings, dar origem a outro produto: as
somatizações, no campo do corpo, e aos sentimentos persecutórios, no campo da
psique. Isto significa que nesse funcionamento psíquico, conforme esclarece
Sapienza (1992), pelo impacto das defesas de dissociação e identificação projetiva,
os objetos internos e externos ficam distorcidos em polos de idealização e
persecutoriedade e as relações [ficam] calcadas em vivências paranoides e soluções
homicidas (p. 309).
Grinberg (1973) acrescenta que na identificação projetiva utilizada pela parte
psicótica predominam a inveja e a voracidade, despojando a própria personalidade de
vitalidade; ou seja, um psiquismo trabalhando sob o motor ávido de inveja acidenta a
satisfação amorosa e a gratidão, enquanto se intoxica e prolifera na personalidade,
sendo, comparável a um ‘câncer’ mental [que corrói] as bases da sanidade mental
(Sapienza, 1992, p. 309).
Cumpre, por outro lado, não perder de vista que a proposição de Bion (1991a)
admite que, enquanto a parte psicótica opera sob o sistema de defesa da cisão e
identificação projetiva, a outra parte da personalidade, sob o funcionamento neurótico,
emprega a repressão para dar conta dos conflitos do ego. Isso significa, conforme
explica Grinberg (1973), que a parte psicótica da personalidade coloca no mundo real
o que a parte não psicótica reprimiu, caracterizando a dinâmica e a
multidimensionalidade da mente.
A respeito desta ideia, já em um dos seus primeiros textos de referência, “O
Gêmeo Imaginário”, subsidiado pela teoria kleiniana, Bion (1994b) explica o
funcionamento cindido da personalidade como um sistema de dupla imaginária:
enquanto uma parte da personalidade se relaciona com elementos arcaicos do próprio
paciente, a outra trancafia seus processos intrapsíquicos e lança mão do uso maciço
de identificações projetivas. Pela incapacidade de tolerar realidades psíquicas
internas que coexistam em si, está nega não só a realidade interna, mas também a
realidade externa.
Ataques aos vínculos:
Sandler (2009), outro autor brasileiro de importante referência dedicado ao
estudo da obra de Bion, coloca que, na psicose do cotidiano, a personalidade
conserva uma parte preservada pela amorosidade, realidade e tolerância, mas

9
apresenta também uma porção de seu funcionamento estéril, imaturo e por vezes
cruel, ou seja, na parte da personalidade que funciona psicoticamente, o ódio, além
de ser destinado à realidade externa, é também voltado aos sentidos, às emoções e
à própria vida.
Nessa perspectiva, na personalidade psicótica predominam os impulsos
destrutivos. O produto mental evacuado, entendido como destroços egoicos e
superegoicos, torna-se persecutório e distorce, contamina a percepção do real. A
parte psicótica da personalidade emprega esse produto mental evacuado e
reintrojetado como material para formar o pensamento (Grinberg, 1973).
A respeito disto, para Junqueira de Mattos (1992a), Bion contribuiu de maneira
inovadora com a psicanálise ao aperceber-se de que as vivências psicóticas estão
sob o primado do princípio do “antipensamento” (p. 325), por “(...) evadir-se do
conhecimento” (p. 459).
Assim, tanto a qualidade do pensamento como a do pensador, isto é, do
aparelho para pensar, ficam comprometidas, de modo a converter o desenvolvimento
do pensamento de estado dinâmico em um estado estático. O ataque extensivo à
consciência e ao aparelho das percepções, para Sandler (2009), obstrui estas
capacidades, configurando-as com um traçado rudimentar e imobilizando o
pensamento para permanecer em uma só perspectiva, promovendo falhas na
“capacidade da mente de vincular pensamentos” (p. 23).
Rezende (1995) sintetiza esse entendimento na proposição: psicotizando é que
absolutizo, não vendo outras possibilidades” (p. 28), e mais: a versão psicótica,
quando não inverte o sentido, privilegia um sentido só, absolutizando-o de maneira
unívoca e sem saída (p. 31).
Ademais, Rezende (1997) também explica que o pensar psicótico distorce o
princípio da realidade de modo a coincidir com o princípio do prazer, negando a
frustração. É por isso que, com o predomínio dos mecanismos psicóticos, o contato
com a realidade fica contaminado e impossibilitado de fazer, experiência da verdade
enquanto correspondência ao real” (p. 330).
Nos termos de Junqueira Filho (2009, p. 57, grifo do autor), essa “distorção do
entendimento” opera como armadilha que dissimula a verdade e se constitui como
barragem de defesa para lidar com o impasse criado pelo confronto com o real.

10
Desse modo, em análise pode-se perceber que o paciente tem uma relação
parcial consigo mesmo, realizando ataques destrutivos ao elo entre ele e a realidade,
ou entre diferentes aspectos de sua própria realidade interna, tornando-se um
desconhecido de si mesmo e avesso ao conhecimento das próprias verdades. Esse
mecanismo, descrito por Bion como ataques aos vínculos, produz inibições na
capacidade do pensamento, linguagem e conhecimento e na formação de símbolos
(Bion, 1991b).
Bion, levado pela influência kleiniana, ressaltou em muito sua compreensão
acerca da intersecção entre a onipotência e a atividade de pensar psicoticamente, de
tal modo que chegou a firmar que a onipotência é o contrário da gratidão e que, em
tese, nas palavras de Rezende (1995, p. 224), “o onipotente é invejoso”.
Assim, segundo Grinberg (1973), no estado mental psicótico se desenvolverá
a onipotência e a onisciência como substitutos do processo de aprendizagem e não
existirá uma função ou uma atividade psíquica que possa discriminar entre o
verdadeiro e o falso; tão pouco haverá um tipo de pensamento capaz de autênticas
simbolizações (p. 54).
Da mesma forma, a função do superego, na sua porção construída de
fragmentos primitivos de destrutividade, alcança tamanha severidade que prevalece
uma superioridade moral no trato com o outro, marcada pela arrogância e estupidez
em substituição ao juízo crítico, à inteligência e ao orgulho sadio. Desse modo,
inscreve e impõe leis próprias não só ao próprio ego, mas também aos demais, ficando
tomado de cólera quando contrariado, visto que está na perspectiva de que tudo sabe,
pode, condena e controla.
Contribuindo com esse sentido, Rezende (2003) lembra a proposição de Bion
de que o orgulho, quando associado à pulsão de vida, sinaliza autovalorização, mas,
se associado à pulsão de morte, converte-se em arrogância.
Assim também, Rezende (1995) afirma que, na versão psicótica “‘as coisas têm
que ser do jeito que eu quero que sejam’” (p. 176), e carente de pensamento e dotado
de intolerância, o agir psicótico adiciona vivências na seguinte equação: “quanto mais
intolerante, mais atuante; quanto mais atuante, mais frustrado” (p. 179).
Para Grinberg (1973), Bion compreendeu que a parte com funcionamento
psicótico se organiza com um superego que rege sua moral sob critérios de uma
“superioridade destrutiva” (p. 52), privando o outro (o não-eu) de existência própria.

11
Nesse estado, a função do superego alcança enorme severidade e prevalece, na
dinâmica psíquica do paciente, como uma superioridade moral no trato com o outro,
marcada pela arrogância e estupidez em substituição ao juízo crítico, à inteligência,
ao orgulho sadio e à criatividade.
Além do ataque ao ego e à matriz de pensamento, esse mecanismo de
funcionamento do Superego ataca também a capacidade de reparação, de modo que
transforma o sentimento de culpa normal em patológico, pelo aspecto cruel de culpa
persecutória extrema. Segundo Sapienza (1992), este Superego aterroriza tanto o ego
que lhe impõe o peso de “ sacrifícios melancolizantes e trilhas suicidas” (p.309).
A serviço deste funcionamento, a curiosidade se transforma em intrusão, e a
linguagem, para evacuar a ansiedade, faz par com acting-out e, pela via da
identificação projetiva, produz efeitos dissociativos e confusionais no outro também.
Com a capacidade de pensamento comprimida, o símbolo é substituído pela
equação simbólica, de modo que os pensamentos, palavras e sentimentos são
distorcidos enquanto capazes de causar danos reais, e então precisam ser expulsos
para fora do psiquismo como em uma evacuação mental.
Em sucintas palavras, Zimerman (2004a), apresentando as ideias de Bion,
explica que esta área de hipertrofia mental está sob o primado do funcionamento
mágico, do “pensamento vazio” e do estado psíquico de angústia batizado como
“terror sem nome” (p. 133, grifos do autor).
Neste sentido, Sapienza (1992), fazendo referência à teoria psicanalítica de
Bion, explica que na parte psicótica da mente, predominam configurações de fantasias
primitivas inconscientes” que produzem jogos mentais “esterilizadores” e “atividades
mentais predatórias e degenerativas” entre os objetos internos, imperando um
“pandemônio de relações objetais impregnadas de desespero e malignidade
vampiresca”. Além disso, “a atividade desse vetor favorece a dispersão, negativação
de vínculos emocionais”, sobretudo ataca os vínculos de amor e conhecimento, pois
“opõe-se à simbolização”.
Promove uma confusão entre objetos internos fragmentados e mortos, que
procuram “vorazmente existência, com momentos de intenso estupor e violência
impulsiva”, e disto se faz a argamassa emocional que constrói a “barragem defensiva”
que interrompe o “livre trânsito da oscilação dinâmica” entre a parte psicótica e não

12
psicótica da personalidade. (Sapienza, 1992, p. 303, grifos do autor). Em outro
trabalho, Sapienza (2009) caracteriza esse estado como “inércia psíquica” (p. 37).
Não obstante, como continua o mesmo autor (1992), no estado de
funcionamento mental não psicótico prevalecem forças mentais de fertilidade e
criatividade entre os objetos internos, de modo que qualidades de confiança,
restauração e simbolização arquitetam uma construção interna de crescimento.
Esse estado, conforme explica Sapienza (2009), alberga um fluxo dinâmico de
transformação dos vínculos estabelecidos entre os objetos internos, de tal forma que
lhes confere condições cíclicas equivalentes a questões humanas universais, as
quais, assim como os vínculos, podem nascer, viver, crescer, ligar-se, desligar-se,
morrer e renascer.

4 TEORIA DE GRUPO

A teoria dos grupos de Bion parte de uma distinção inicial, existe o que é
denominado de grupo de trabalho de grupo refinado ou grupos de base, ou
mentalidade grupal, ou ainda de grupo de pressupostos básicos.
Grupo de trabalho: Diz respeito a reunião de pessoas para realizar uma tarefa
específica, cada um dá sua contribuição de acordo com o que tem a oferecer, assim
consegue – se manter um bom espírito de grupo.
Mentalidade de grupos: É definida por Bion como “ a expressão unânime da
vontade do grupo, à qual o indivíduo da vontade do grupo, à qual o indivíduo contribui
por maneiras das quais ele não se dá conta, influenciando desagradavelmente sempre
que ele pensa ou se comporta de um modo que varie desacordo com os pressupostos
básicos, ou seja, o indivíduo contribui com o grupo não percebendo quando pensa se
comporta favoravelmente a vontade do grupo.
Pressupostos básicos: Bion identificou três tipos de padrões de
comportamento próprios dos fenômenos de mentalidade de grupo, denominados
como dependência, acasalamento e luta – fuga. O primeiro diz respeito da
necessidade que o grupo tem por um líder, podendo ser uma ideia, pessoa ou história
do grupo. O segundo, o acasalamento, é que o grupo futuro atenderá ás necessidades
pessoais de seus membros, como um grupo melhorado, uma esperança no futuro.

13
O terceiro pressuposto básico está relacionado a luta – fuga, ou seja, o grupo
junto pode escolher lutar com alguma coisa ou fugir.
Cultura de grupos – o grupo reage aos efeitos da mentalidade do grupo
elaborando uma cultura própria sua. Bion usou essa expressão para descrever os
aspectos que nasciam do conflito entre a mentalidade do grupo e as vontades dos
indivíduos.
Como Bion dedicou pouco esforço ao entendimento dos grupos de trabalho,
algumas questões ficaram sem respostas, como por exemplo: os fenômenos próprios
da mentalidade de grupo ocorrem em grupos de trabalho onde existe um objetivo claro
uma agente e uma liderança formal? Não foi possível descobrir também como evitar
ou reduzir a perturbação que os pressupostos básicos impõem aos grupos de trabalho
na redução do conceito de cultura de grupo a mentalidade de grupos pois com essa
redução, Bion reduz seu estudo da cultura dos grupos de trabalho a dos grupos
organizados. Outra questão diz respeito a redução das relações de poder a uma
perspectiva psicológica, incidindo então em reducionismo psicológico.

4.1 Os grupos terapêuticos

A leitura de Bion (1975) e Bléandonu (1993) nos permitiu identificar os


seguintes grupos terapêuticos estudados pelo psicanalista inglês: um grupo de
diretores de empresas na clínica Tavistock, um grupo de analistas que haviam
trabalhado com grupos em consultório particular, um grupo composto por terapeutas
da clínica Tavistock e, posteriormente, grupos de pacientes psiquiátricos, em 1948.
No grupo terapêutico, Bion não estabelecia nenhuma regra de procedimento e
não adiantava qualquer agenda. Ele procurava convencer "grupos de doentes a
aceitar como tarefa o estudo de suas tensões".
Como, aparentemente, o grupo não tinha nada a fazer, tinha tempo para
observar um fenômeno análogo ao da associação livre. Os participantes se voltavam
a ele esperando que ele fizesse alguma coisa. Baseado na psicanálise, Bion
enfrentava esta espera com uma interpretação. Transformado no centro do grupo, ele
comunicava aos outros participantes o que sentia na situação. (Bléandonu, 1993, p.
75).

14
Ele se expressava em uma linguagem clara e direta, fazendo-se compreender
por todos os membros do grupo. Eric Trist (citado por Bléandonu, 1993) afirma que
suas intervenções eram raras e concisas e poder-se-ia guardá-las na memória,
porque ele esperava um volume de evidências razoável antes de fazê-las. Se um
membro do grupo as fizesse, ele se abstinha de fazê-la.
Destes grupos Bion retirou o material empírico para constituir a sua teoria de
funcionamento dos grupos.

4.2 A teoria de funcionamento dos grupos

A teoria dos grupos de Bion parte de uma distinção inicial. Existe o que o
psicanalista inglês denominou de grupo de trabalho ou grupo refinado e os grupos de
base, ou mentalidade grupal ou ainda grupos de pressupostos básicos.

Grupo de Trabalho
Por grupo de trabalho entende-se a reunião de pessoas para a realização de
uma tarefa específica, onde se consegue manter um nível refinado de comportamento
distinguido pela cooperação. Cada um dos membros contribui com o grupo de acordo
com suas capacidades individuais, e neste caso, consegue-se um bom espírito de
grupo. Por espírito de grupo, Bion (1975, p. 18) entende que se trata de:
 A existência de um propósito comum
 Reconhecimento comum dos limites de cada membro, sua posição e sua
função em relação às unidades e grupos maiores
 Distinção entre os subgrupos internos
 Valorização dos membros individuais por suas contribuições ao grupo
 Liberdade de locomoção dos membros individuais dentro do grupo
 Capacidade de o grupo enfrentar descontentamentos dentro de si e de
ter meios de lidar com ele
Um grupo se encontra em trabalho terapêutico quando ele adquire
conhecimentos e experiências sobre os fatores que contribuem para o
desenvolvimento de um bom espírito de grupo.
Na visão deste autor, o grupo é "essencial para a realização da vida mental de
um homem, tão essencial para isto quanto para a economia e a guerra" (p. 46).

15
Entretanto, os grupos que ele foi observando na sua experiência clínica não se
comportavam desta forma. Eles pareciam mobilizados por forças estranhas, que
levavam seus participantes a agirem de forma diversa à que era esperada deles na
busca da realização dos objetivos em torno dos quais eles próprios concordaram em
reunir-se. Este fenômeno levou-o a observar atentamente aquilo que ele denominou
inicialmente como mentalidade de grupos.

Mentalidade de Grupos
A mentalidade de grupos é "a expressão unânime da vontade do grupo, à qual
o indivíduo contribui por maneiras das quais ele não se dá conta, influenciando-o
desagradavelmente sempre que ele pensa ou se comporta de um modo que varie de
acordo com os pressupostos básicos" (Bion, 1975, p. 57). Ela funcionaria de forma
semelhante ao inconsciente para o indivíduo.
Ela seria responsável pelo "fracasso dos grupos" que Bion reputa à "expressão
num grupo de impulsos que os indivíduos desejam satisfazer anonimamente e a
frustração produzida no indivíduo pelas consequências que para si mesmo decorrem
desta satisfação" (p. 46).
Em suas observações ele destaca diversas situações onde o grupo parece
estar mobilizado pela mentalidade de grupo. Conversas fúteis, ausência de juízo
crítico, situações "sobrecarregadas de emoções" a exercerem influências sobre o
indivíduo, estímulo às emoções independentemente do julgamento, em suma:
"perturbações do comportamento racional do grupo" (p. 31).
Desta forma, os grupos seriam como uma moeda, que possui duas faces, uma
voltada à consecução dos seus objetivos e uma outra regida por impulsos dos seus
membros, impulsos estes que se manifestariam quando se está reunido em um grupo
de pessoas.
Um dos termos que Bion utiliza para definir a mentalidade dos grupos é "padrão
de comportamento". Humbert (1985) afirma que o termo "pattern of behavior", foi
desenvolvido pelos biólogos e que havia sido incorporado por Jung para a definição
dos arquétipos. Este conceito articula a ideia de herança genética às contribuições
dadas pela cultura, diferentemente do conceito de instinto, muito empregado por
psicólogos do século XIX. Este conceito assemelha-se também à ideia de estrutura.

16
Ao prosseguir seus estudos, Bion foi distinguindo três padrões distintos, mas
intercambiáveis, que seriam uma constante na mentalidade de grupos. Ele os
denominou pressupostos básicos (basic assumptions).
A teoria dos pressupostos básicos possui suas raízes na teoria freudiana, que
tenta explicar os fenômenos grupais a partir da libido (instinto sexual). No seu famoso
estudo intitulado "A Psicologia de Grupo e Análise do Ego" ele abandona a proposta
de Trotter, que formulara a existência de um instinto gregário primário e inato para
explicar os fenômenos de grupo, para sustentar a hipótese psicanalítica de que os
fenômenos grupais possuem como origem um investimento afetivo sobre um objeto
que não pode ser obtido, seguido pela identificação com os supostos "rivais".
O pai da psicanálise ilustra seu ponto de vista com o nascimento de um
segundo filho na família (que gera inveja no primeiro, e que é punida pelos pais,
gerando uma identificação e um sentimento de comunidade, como forma possível de
conviver com esta ambivalência), a identificação entre as fãs de um cantor ou pessoa
de destaque e a competição pelo favoritismo entre as crianças na escola, seguida de
uma ênfase e exigência de igual tratamento.
Para Freud, o que "posteriormente aparece na sociedade sob a forma
de Gemeingeist, esprit de corps, espírito de grupo etc., não desmente a sua derivação
do que foi originalmente inveja" (Freud, 1921/1969b). Há, portanto, na origem do
sentimento social, segundo a psicanálise freudiana, a "influência de um vínculo
afetuoso comum com uma pessoa fora do grupo". Ele é uma "formação reativa contra
atitudes hostis de rivalidade".
No pós-escrito deste artigo, Freud afirma que os impulsos diretamente sexuais
são desfavoráveis à formação de grupos, e ilustra sua posição com a busca de
privacidade do casal, a sua autossuficiência enquanto enamorados e os sentimentos
de ciúme. Em outro trabalho conhecido, "O mal-estar na civilização", Freud
(1930/1969a) trata dos instintos agressivos, argumentando pela existência de
situações onde eles se manifestam de forma associada aos instintos eróticos.
Os casos de sadismo e masoquismo são ilustrativos. Os trabalhos de Bion,
entretanto, possuem um enfoque e interesses diferentes aos do pai da psicanálise.

17
Pressupostos Básicos
À medida que vai observando os grupos, Bion identifica três tipos de "padrões
de comportamento" próprios dos fenômenos de mentalidade de grupo. Ele
denominou-os como dependência, acasalamento e luta-fuga. Bléandonu (1993, p. 52)
destaca a semelhança entre estes três tipos e a teoria de um dos mestres de Bion, o
médico e psicólogo Hadfield.
Hadfield diferenciava uma tríade de pulsões, a saber: a libido-sexual, a
agressão ou afirmação de si mesmo, e a dependência. (notar-se-á, de passagem, a
semelhança com os três pressupostos básicos propostos por Bion).
Um dos primeiros fenômenos observados por Bion (1975) foi a demanda que
seus grupos apresentavam por um líder, capaz de satisfazer aos seus membros. “O
grupo é bastante incapaz de enfrentar as emoções dentro dele, sem acreditar que
possui alguma espécie de Deus que é inteiramente responsável por tudo o que
acontece" (p. 30).
Este pressuposto básico é o de que "existe um objeto externo cuja função é
fornecer segurança para o organismo imaturo". Este objeto pode ser uma pessoa,
uma ideia ou a história do grupo.
O líder que age segundo este pressuposto básico se comporta como se fosse
"onipotente" ou "onisciente", características próprias de uma divindade. Qualquer
pessoa que queira ocupar o lugar de líder, uma vez já ocupado (ou pelo menos
atribuído pelos membros do grupo), pode ser rechaçada, desdenhada ou
menosprezada. Quando o suposto líder se recusa a agir segundo o papel que se
espera dele, cria-se um mal-estar no grupo, que pode recorrer a explicações
fantasiosas para manter-se coeso.
Os membros do grupo, agindo segundo este padrão de comportamento,
disputam a atenção do líder e podem sentir "culpa pela voracidade" com que o fazem.
Eles frequentemente consideram suas experiências insatisfatórias e insuficientes para
lidar com a realidade, desconfiam da sua capacidade em aprender pela experiência.
Seus sentimentos mais frequentes são os de inadaptação (à vida, às suas
experiências etc., e não apenas ao grupo) e de frustração.
Bion (1975) acredita que as pessoas aceitam estar em um grupo de
dependência para "evitar experiências emocionais peculiares aos grupos de
acasalamento e de luta-fuga" (p. 72).

18
O segundo pressuposto básico identificado por Bion é que "está por vir um novo
grupo melhorado" ou que o grupo futuramente atenderá às necessidades pessoais de
seus membros e o autor às vezes se refere a este pressuposto como "esperança
messiânica", mas o denominou como "acasalamento" em uma clara acepção à origem
psicanalítica do termo.
O grupo de acasalamento foi inicialmente observado em pares que
conversavam assuntos diversos, à parte, sem que o grupo se incomodasse com eles
ou chamasse a sua atenção, aceitando-os. Eles pareciam-se com casais de
namorados, embora não tratassem de nenhum assunto de conteúdo explicitamente
sexual.
O líder do grupo, neste pressuposto básico, está por nascer, e pode ser uma
"pessoa ou ideia" que salvará o grupo. Bion entende que está "salvação" é, na
verdade, dos sentimentos de ódio, destrutividade e desespero com relação ao seu
próprio grupo ou a outro (daí a referência ao messias).
Os membros de um grupo que está agindo sob a influência deste pressuposto
básico, de forma geral, não estabelecem conversas com o "líder formal" ou chefe do
grupo. A emoção mais presente no grupo de acasalamento é a esperança, e a atenção
de seus membros, acha-se voltada ao tempo futuro.
O terceiro pressuposto básico é o de luta-fuga e pode ser exposto da seguinte
forma: "estamos reunidos para lutar com alguma coisa ou dela fugir".
Os membros do grupo discutem sobre pessoas ausentes (que são um perigo
para a coerência do grupo), estão tomados pela sensação de que a adesão do grupo
é um fim em si mesmo, eles ignoram outras atividades, que não sejam este debate
infrutífero, fogem delas. Eles acreditam, ou agem como se acreditassem, que o bem-
estar individual é menos importante que a continuidade do grupo.
O líder reconhecido como tal por este grupo é o que concede oportunidades
para a fuga (que é a mesma coisa que a luta das discussões infrutíferas em torno da
conservação do grupo). É ignorado quando não atua desta forma.

Pressupostos Básicos e Grandes Organizações


O psiquiatra inglês procura aplicar os conhecimentos obtidos no estudo de
pequenos grupos na análise do funcionamento de grandes grupos.

19
Assim como Freud, ele se atém à igreja, afirmando que se trata de um grupo
especializado de trabalho sujeita à interferência de fenômenos de grupo de
dependência. O segundo qual estaria sujeito a fenômenos de grupo de luta-fuga.
Ele considera a aristocracia como um grande grupo mobilizado por fenômenos
de acasalamento. Conclui-se, portanto, que neste momento de sua obra ele considera
válida a aplicação dos conceitos relacionados à dinâmica dos grupos de base às
grandes organizações, não estando muito atento aos problemas que se criam ao se
retirar conceitos do seu território de origem.

Cultura de Grupos
Como o grupo reage aos efeitos de uma mentalidade de grupos? Ele elabora
uma cultura característica sua.
Bion (1975) empregou o termo cultura de grupo de forma intencionalmente
vaga como mostra a citação abaixo:
Expressão que empreguei para descrever aqueles aspectos do comportamento do
grupo que pareciam nascer do conflito entre a mentalidade do grupo e os desejos do
indivíduo. (p. 47)
No início do seu trabalho ele emprega metáforas genéricas para descrever as
culturas de grupo, como "teocracia em miniatura" e "cultura de pátio de recreio". À
medida que ele vai desdobrando o conceito de mentalidade grupal nos seus três
padrões de comportamento ele associa a cultura a estes últimos, referindo-se a ela
como "cultura de luta-fuga" ou "cultura de grupo dependente".
Infelizmente o psiquiatra inglês se ateve pouco ao grupo de trabalho,
focalizando sua análise sobre cultura na mentalidade de grupos.
Ele crê que a intervenção nos grupos fortemente influenciados pela
mentalidade de grupo se dá através de uma prática clínica. O terapeuta de grupo vai
interpretando as manifestações da mentalidade de grupos à medida que elas se
manifestam, evitando ocupar o lugar de líder que seria desejado pelo grupo
influenciado por um padrão de comportamento. Ele deve lidar com emoções
desagradáveis, algumas vezes agressivas, que surgem.

20
5 A TEORIA DO CONHECIMENTO

Fonte:pt.slideshare.net

Bion em sua prática clínica chegou à conclusão de que os pensamentos não


existem sem as emoções, e que é necessário que exista na mente uma função que
construa o sentido das experiências emocionai. Essa função ele denominou de vinculo
K: o conhecimento. Uma criança pode tanto aprender a tolerar como modificar a
realidade com a atividade do pensar e do conhecer. No que se refere ao vinculo
mãe/bebê, Bion enfatiza a criação do vínculo primário que é a REBIERE materna.

No desenvolvimento do vínculo do conhecimento surgem três


possibilidades:
 Se a capacidade de RÊVERIE da mãe for adequada e suficiente, a
criança terá condições de fazer uma aprendizagem com as experiências
positivas e negativas vividas, impostas pelas privações e frustrações. A
criança, nesse caso, desenvolve uma função K que possibilita enfrentar
novos desafios em um círculo benéfico de aprender com a experiência,
à medida que introjeta a função K da mãe.
 Caso contrário, se a capacidade de RÊVERIE da mãe para conter a
angústia da criança não for suficiente, as projeções que tenta depositar

21
na mãe são obrigadas a retornar a ela sob a forma de um “terror sem
nome”, o qual gera mais angústia e mais ódio.
 No lugar de K forma-se um vínculo – K, ou um não K, que são os casos
mais extremos em que a mãe externa não contém e não dá significado,
sentido e nome às identificações projetivas do bebê.
 É importante salientar que a função K não se refere somente à posse de
um conhecimento ou saber, mas sim a um enfrentamento do “não
saber”. Assim, o saber será o resultado da tarefa do descobrimento e do
aprendizado com as experiências da vida: as boas e as más. A função
do conhecimento está intimamente ligada à da formação de símbolos,
sendo esses que permitem uma evolução da criança à condição de
poder conceituar, generalizar e abstrair, expandindo o seu pensar e o
seu conhecer.
 Para Bion, uma teoria é um produto de um processo de pensar e,
simultaneamente, é uma preconcepção que espera realizações que se
aproximem dela. A preconcepção é análoga ao pensamento vazio
kantiano. A concepção é a junção de uma preconcepção com uma
realização e o pensamento surge da união de uma preconcepção com
uma frustração. Os conceitos têm nome, são concepções ou
pensamentos firmados.
 O eixo central da formação do Conhecimento e do Pensamento é a
maior ou menor capacidade do ego da criança em tolerar as frustrações
decorrentes das privações. A criança tanto pode fugir dessas
frustrações, criando mecanismos que evitem conhecê-las (ela evita o
problema, mas não evita a angústia), como pode aprender a modificar a
realidade, através da atividade do pensar e do conhecer.
 O desenvolvimento cognitivo da criança será mais ou menos exitoso
dependendo de três fatores: de como a mãe real utiliza o seu próprio
pensar e conhecer e de como contêm as angústias do seu filho. Da
capacidade da criança quanto à formação de símbolos, do desejo de
conhecer a respeito dos conteúdos mentais como estando intimamente
relacionado com as emoções de amor e ódio.

22
 O termo vínculo designa uma experiência emocional pela qual duas ou
mais pessoas, ou duas partes de uma mesma pessoa estão
relacionadas entre si.

5.1 Vínculos L, H, K

Vínculo do amor (L):


Até 1920 o trabalho psicanalítico estava praticamente reduzido a um enfoque
centralizado quase que exclusivamente nas pulsões libidinais. À medida que os
conhecimentos da teoria e prática da psicanálise foram evoluindo, tornou mais claro
que: as demandas por amor não são unicamente de natureza libidinal e sexual
(conforme formulação original de Freud), as manifestações de amor provenientes do
Instinto de Vida são inseparáveis do Instinto de Morte , as demandas por amor
procedem de uma fonte original muito anterior: na relação diádica com a mãe, e elas
estão representando uma necessidade de preenchimento de vazios afetivos, para
garantir a sobrevivência psíquica.
Vínculo do ódio (H):
Principalmente a partir das concepções da escola kleiniana, os psicanalistas
passaram a valorizar o vínculo do ódio como sendo um integrante fundamental de
toda e qualquer relação objetal, intra ou interpessoal.
Vinculo do conhecimento (K):
O vínculo K foi conceituado por Bion como sendo aquele que existe entre um
sujeito que busca conhecer um objeto e um objeto que se presta a ser conhecido.
Representa também um indivíduo que busca conhecer a verdade acerca de si
mesmo. Bion aprofundou-se nas particularidades do vínculo do Conhecimento,
correlacionando-o com: outras funções do ego, como a do pensamento, linguagem,
juízo crítico etc. Com os problemas relativos à verdade, falsidade e mentira, com
Ataque aos Vínculos, os quais permitiriam a percepção das intoleráveis verdades,
tanto as externas como as internas, a substituição do Conhecimento pela tríade:
Arrogância, Estupidificação e Curiosidade Maligna.
Em síntese, podemos afirmar que esses três tipos de vínculos são
indissociados entre si e dependem, diretamente, tanto da disposição hereditária da
criança como, e, principalmente, da capacidade de reverie da mãe.

23
Se a capacidade de reverie da mãe for suficiente a criança terá condições de
fazer uma aprendizagem com as experiências das realizações positivas e negativas
impostas pelas privações e frustrações e, neste caso, ela desenvolve uma função K.
Se a capacidade de reverie da mãe for insuficiente a criança desenvolve um
vínculo –K (a mãe é introjetada pela criança como uma pessoa que a destitui de seus
objetos bons e a obriga a ficar com os objetos maus), ou pode resultar num vínculo
“não K”.

6 MEMÓRIA E DESEJO

Bion traz a sua conhecida proposta de “sem memória sem desejo” ancorada
em vários pressupostos. Diz que como registradora dos fatos acontecidos, a memória
pode ser enganadora, pois é distorcida pela influência de forças inconscientes e os
desejos interferem na operação do julgar, pela ausência de mente onde ao mais
importante é a observação, já que os desejos distorcem o julgamento suprimindo o
material a ser julgado.
Para Bion a sessão de psicanálise não deve ter história nem futuro, a única
importância para ele na sessão é o desconhecido. Ainda traz como sugestão para o
psicanalista que não traga a memória às questões abordadas nas sessões anteriores
priorizando uma melhor concentração do que está acontecendo na sessão corrente.
Em relação ao desejo Bion, diz que o psicanalista não deve apresentar desejo
de fim da terapia, da semana ou do ano, assim como desejos de resultados, de “cura”
ou mesmo de compreensão. Agindo desta forma o psicanalista terá no início muita
ansiedade, mas que com o passar do tempo adquirirá a certeza de que cada sessão
se completa por si própria.
Bion em sua visão de tratamento pontua que não se deve polemizar com o
paciente e nem contrapor a sua verdade com a do analista e sim abrir novos caminhos
para visualizar um fato em comum, porque através disso ele possibilita o paciente a
refletir. Com relação ao setting analítico, ele nos dá a entender que não se refere
somente a horários, espaço físico e honorário, mas a um campo analítico, onde
analista e paciente vão interagir, influenciando e sendo influenciado um pelo outro.
Podendo assim a encontrar novas soluções.

24
Bion atribui importância relevante a dor psíquica, pois através do fato de sentir
dor e, é necessário sofrê-la, poderá crescer com a experiência. Todo processo de
mudança de um indivíduo no processo de análise, sempre virá acompanhada de dor
e sofrimento, sendo que o mesmo pode fugir da dor ou enfrentá-la, sendo que este
último caminho é o que traz a transformação.
Para Bion um paciente está em condições de terminar sua análise quando
adquiriu uma função psicanalítica, ou seja, longe fisicamente de seu analista
consegue dialogar com suas diversas partes. Segundo a psicanálise não deveria ficar
só nos consultórios, pois é uma prática de vida. Por isso que não existe uma crise da
psicanálise, pois a função analítica é inerente ao ser humano e enquanto existir o
homem existirá a psicanálise.

7 A FUNDAMENTAÇÃO PSICANALÍTICA DO PENSAMENTO DE BION

Não há questionamentos sobre a fidelidade de Bion ao método e ao


pensamento psicanalítico. A estranheza que suas contribuições provocam refere-se
aos desenvolvimentos teóricos e clínicos que trouxe, partindo das descobertas de
Freud e de Klein: Bion tem um olhar próprio, um outro vértice para pensar os
fenômenos psíquicos descritos por esses autores seminais, além de ter feito
acréscimos originais à compreensão psicanalítica da mente.
Para situarmo-nos nessas mudanças, vamos partir de uma inequívoca
manifestação de Freud: o nome "psicanálise" pode ser usado "para qualquer terapia
que reconheça a importância da resistência ao inconsciente, da transferência e das
raízes genéticas da neurose na infância" (Freud, 1914/1974a). Como Freud não
incluiu em sua afirmação que esses fenômenos teriam de necessariamente ser
pensados por meio das teorias que ele formulara, entendemos duas coisas:
 A primeira Freud tinha clareza da distinção entre as experiências vividas
na sessão analítica e as teorias criadas para descrevê-las ou explicá-
las. Ou seja, a distinção entre o que é essencial e o que é a
transformação do essencial e a segunda é que o selo da condição
psicanalítica é dado pela conjunção de uma teoria do funcionamento
mental baseada no reconhecimento da resistência ao inconsciente, de

25
uma teoria da relação analítica baseada na transferência e de uma teoria
do desenvolvimento mental baseada em Édipo.

Quanto à resistência ao contato com o inconsciente, Bion não só toma está


compreensão como seu ponto de partida, como também faz contribuições originais ao
entendimento das dificuldades da mente em integrar aspectos rejeitados ou
incompatíveis de si mesma.
Ficam dúvidas de que Bion está operando com a ideia de resistência quando
destaca a gama de elementos que podemos abrigar nas colunas 2 da Grade? Todas
as suas recomendações sobre o estado da mente do analista, que favorecem o
alcançar contato com o não simbolizado, não são indicações úteis para o contato com
o que é inconsciente? Sua conjectura, ao final da vida, sobre a cesura e a
discriminação entre estados de mente consciente/inconsciente e inacessível, não traz
esclarecimentos sobre formas diferentes de vivermos o inconsciente?
Quando nos elucida sobre seu pensamento não estar contemplando a
polarização consciente/inconsciente, mas sim a de finito/infinito, não está ele nos
apontando o fato de que, em dimensões fundantes da mente, o movimento útil é em
direção a um inconsciente infinito e não apenas a um inconsciente capaz de vir a ser
consciente (->finito)?
Sabemos como Freud explorou a mente tendo a transferência como
instrumento. Melanie Klein deu continuidade a esses esforços, tanto utilizando o
instrumental freudiano quanto o ampliando por meio da teoria da identificação
projetiva. Bion também se valeu da transferência e da identificação projetiva, assim
como criou outros instrumentos para explorar a relação analítica, como sua teoria do
pensar, e também as teorias da observação:
A grade e a teoria das transformações. Nesta última, para organizar as
experiências da sessão analítica Bion integra as teorias da transferência
(transformações em movimento rígido) e da identificação projetiva (transformações
projetivas) ao lado de outras formas de transformações que ele descreve, ao
discrimina
 Pensamento
 Alucinose
 Operações opostas ao conhecer

26
 As transformações em ser ou tornar-se a realidade (diferenciando,
assim, os movimentos para conhecer e ser daqueles próprios à gênese
do pensar). Temos aí uma teoria do funcionamento mental, mais
sofisticada e bem mais abrangente que as do funcionamento neurótico
e psicótico.
A teoria do conhecimento de Bion (1962/1966, 1963/2004 a 1965/2004b) é uma
teoria do desenvolvimento mental. Podemos mesmo afirmar tratar-se da mais
sofisticada teoria sobre o conhecer já surgida no campo psicanalítico.
E também percebê-la como uma teoria sobre fenômenos mentais ainda
anteriores aos edípicos como descritos por Freud e Klein; é igualmente fácil perceber
que no conceito de vínculos de amor, de ódio e de conhecimento (Bion, 1962/1966)
estão contemplados os três vínculos presentes na proposta freudiana do Complexo
de Édipo. De forma convergente, Bion também trouxe contribuições originais à nossa
compreensão do mito edípico e do Complexo de Édipo, como os conceitos de situação
edípica e de preconcepção edípica.

8 TEORIA DO PENSAMENTO

Em “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental” (1911)


Freud afirma: “a decepção ante a ausência da satisfação esperada motivou o
abandono de sua tentativa de satisfação por meio de alucinações e para substituí-lo,
o aparelho psíquico teve que se decidir a representar intrapsiquicamente as
circunstâncias reais do mundo exterior, e tender à sua modificação real”.3
O pensamento, as emoções e o conhecimento são indissociados entre si,
sendo que o pensamento precede o conhecimento, porquanto o indivíduo necessita
pensar e criar o que não existe, ou o que ele não conhece.
Bion, nos trabalhos: “Uma Teoria do Pensamento” (1962) e “Elementos em
Psicanálise” (1963), introduziu as seguintes concepções: Da mesma forma como para
Freud, também a teoria do pensamento de Bion tem como ponto de partida a
frustração das necessidades básicas que são impostas ao lactante.
Para Bion o essencial é a maior ou menor capacidade do ego do lactante poder
tolerar o ódio resultante dessas frustrações. Ele considera fundamental se vai haver
uma fuga em relação à frustração ou uma modificação desta.

27
Bion introduz a noção de que é necessária uma distinção entre elementos do
pensamento e os pensamentos propriamente ditos. Para Bion, “o pensar é um
desenvolvimento forçado sobre o psiquismo, pela pressão dos elementos dos
pensamentos, e não o contrário”.
Na realização positiva há uma confirmação de que o objeto necessitado está
realmente presente e atende às suas necessidades. Na realização negativa, o lactante
não encontra um seio disponível para a satisfação e essa ausência é vivenciada como
a presença de um seio ausente e mau dentro dele.
Para Bion todo objeto necessitado, em princípio, é sentido como sendo mal
porque se ele o necessita é porque não tem posse dele; logo, esses objetos são maus
porque a sua privação provoca muito sofrimento.
Se a capacidade inata do ego para tolerar as frustrações for suficiente, a
experiência do “não seio” torna-se um elemento do pensamento (protopensamento) e
se desenvolve um aparelho psíquico para “pensá-lo”. Se a capacidade inata para
tolerar as frustrações for insuficiente, o “não seio” mau, deve ser evadido e expulso
pelo emprego de maciças identificações projetivas.
As experiências de realização negativa são inerentes e indispensáveis à vida
humana, e elas podem seguir dois modelos de desenvolvimento:
Se o ódio resultante da frustração não for excessivo à capacidade do ego do
lactante em suportá-lo, o resultado será uma sadia formação do pensamento, através
da “função α”, a qual integra as sensações e as emoções. A função α é a primeira que
existe no aparelho psíquico e é ela quem vai transformar as sensações e as primeiras
experiências emocionais em elementos α.
Os elementos α são processados pela função α, são utilizados pela mente para
a formação de sonhos, recordações e para as funções de simbolizar. Os elementos
α formam um conjunto denominado de “barreira de contato” que resulta do conjunto
formado pelos elementos α, demarca a fronteira de contato e de separação entre o
consciente e o inconsciente.
Se o ódio resultante da frustração for excessivo, os elementos do pensamento
que se formam, denominados “elementos β”, não se prestam para a função de serem
pensados e precisam ser imediatamente aliviados, portanto, descarregados pela
criança. Os elementos β são protopensamentos, ou seja, experiências emocionais e
sensoriais primitivas e que, portanto, não puderam ser pensadas até um nível de

28
conceituação ou de abstração, elas devem ser expulsas e evacuadas para fora. Os
elementos β formam um conjunto denominado de “pantalha ou tela β” a qual não
possibilita uma diferença entre o inconsciente e o consciente, entre a fantasia e a
realidade e nem a elaboração de sonhos.
A essência da formação dos pensamentos úteis depende não só da capacidade
de tolerância às frustrações, como também da capacidade em suportar as
depressões, ou seja, vai depender basicamente do modo da passagem da posição
esquizo-paranóide para a posição depressiva.
A relação entre o pensador e o pensamento, sob o modelo continente-
conteúdo, foi estudada por Bion e, segundo ele, adquire três formas:
A primeira é a forma parasitária: Na qual o pensador e o pensamento novo
se desvitalizam, se destroem entre si e se nutrem de mentiras que funcionam como
uma barreira contra a verdade.
A segunda é a forma comensal: Em que o pensador convive com o seu
pensamento sem grandes atritos e, se não impede a evolução, também não possibilita
grandes mudanças.
A terceira é a forma simbiótica: Pela qual o pensador e o pensamento se
harmonizam e se beneficiam mutuamente entre si.

9 FUNÇÃO-ALFA E ESTILO DE PENSAMENTO EM BION

O conceito de função-alfa foi formulado por Bion no início da década de 1960,


com base nas exigências de sua clínica, associadas a inadequações que, para ele,
existiam nas teorias de Freud e de Melanie Klein e pediam novas considerações e
abordagens epistemológicas. Seu desenvolvimento ocorreu por meio do atendimento
de pacientes considerados difíceis (como esquizofrênicos, neuróticos graves,
dependentes químicos) nos anos 50, combinado a um estilo característico, passível
de ser percebido desde suas investigações sobre o funcionamento mental de grupos
realizadas nos anos 40.
Apesar de o trabalho com grupos e o conceito de função-alfa não estarem
diretamente relacionados em termos teóricos; de o primeiro representar uma via de
abordagem psíquica diferente daquela do atendimento individual, é possível notar um

29
vínculo implícito entre essas atividades, dado por algo de essencial no modo de Bion
pensar e elaborar suas ideias.
Esse modo levará autores como Donald Meltzer a buscar, nas diferentes
facetas do estilo de Bion, uma linha de inteligibilidade para seu método de exposição
teórica e o objetivo subjacente a ele. Acredito que uma característica essencial dessa
faceta seja o modo como a alteridade se apresenta em seu pensamento.
Em linhas gerais, o conceito de função-alfa representa uma qualidade da
personalidade para lidar de modo criativo e pessoal com os dados de uma experiência
emocional que, sem essa função, permaneceriam presentes, mas não assimilados
pelo eu.
Os dados não trabalhados por essa função, nomeados de elementos beta, são
associados por Bion na forma de uma analogia à matéria não digerida e tóxica do
processo digestivo. Assim, a operatividade da função-alfa está diretamente
relacionada com esses dados e não pode ser pensada independentemente deles –
seja por sua existência, seja por características do processo de conversão da matéria
bruta em alimento, ou melhor, em uma abstração. Essa função age no início do
processo de sofisticação do pensamento, modificando o que há de concreto na
experiência com o mundo interno ou externo, em direção à formação do pensamento
simbólico.
Pode-se afirmar, então, que essa função pressupõe a presença de uma
alteridade, por vezes radical, e seu bom funcionamento implica admissão e
sustentação psíquica e emocional da mesma. Prosseguindo com associações
abstraídas do trato digestivo, a assimilação de dados de uma experiência não é, para
Bion, o mesmo que dissolver ou eliminar algo de sua alteridade, e representa os
primeiros passos para que esta venha a ser tratada como tal.
Guardadas as devidas proporções, as características da personalidade ligadas
à função-alfa estão relacionadas à maneira como Bion desenvolve e apresenta suas
próprias ideias. A observação da proximidade existente entre essas características,
seu estilo e suas elaborações mais abstratas pode facilitar a apreensão do conceito e
o contato com sua teoria. Para esse autor, há uma via de mão dupla constante entre
as abstrações teóricas e a prática, ainda que ela nem sempre esteja clara em suas
discussões.

30
Como diz Lansky, “em termos de formação de teoria, o trabalho de Bion
sempre lida com o concreto, não importa o quão abstrato e matemático pareça ser”.
Minha proposta será, portanto, destacar o que há de essencial no conceito de função-
alfa e formar uma ideia sobre aquilo que tornou necessária sua concepção.
O processo de criação desse conceito em particular e as teorizações de Bion
em geral estiveram intimamente ligados a um interesse filosófico pelos fundamentos
da Psicanálise e do processo analítico, assim como à caracterização de seus
elementos essenciais. Em sua teoria, são frequentes as reflexões sobre o método e
as condições de possibilidade para o acesso da personalidade à realidade de uma
experiência emocional, tanto do lado do paciente quanto do lado do analista.
O conceito de função-alfa procurou dar conta de descrever a maneira como a
realidade se tornaria psiquicamente disponível e, além de ser um dos principais
componentes de sua teoria do pensar, é um dos dispositivos que levaram à
elaboração dessa mesma teoria. Para desenvolver essa ideia proponho que, em vez
de entrarmos em um terreno mais característico da filosofia, realizemos uma
aproximação com algumas questões que a prática clínica colocava aos psicanalistas
naquela época.
Bion destacou a dimensão do desconforto, da incerteza e do desamparo do
analista, associada à dispersão e à fragmentação dos dados da experiência clínica.
Contudo, seus relatos de caso também evidenciam uma franca disposição para
suportar situações de intensa pressão emocional, por meio da qual podemos
apreender algo do lugar e do modo de ser analista.
Seu artigo “On arrogance”, de 1957, ilustra bastante bem a situação precária
vivida pela dupla analítica em um determinado momento da análise, quando as
interpretações conhecidas não serviam mais e o paciente mal podia articular-se
verbalmente. Aos poucos, apresenta a saída inusitada a que consegue chegar com a
ajuda do paciente, a partir da sensação de estar perdido, e ainda assim ser capaz de
sustentar (stand) a situação.
Vale a pena conferir no dicionário a riqueza de sentidos da palavra inglesa
stand, presente no texto original e utilizada por Bion para descrever seu estado mental
durante a sessão. Em trabalhos posteriores, serão amplamente desenvolvidas as
características das funções analíticas, como a capacidade de conter e de sonhar, na

31
sessão, experiências primárias como essa. Foi com base nesse tipo de situação que
o conceito de função- alfa foi desenvolvido.
Uma das principais inquietações de Bion diz respeito ao que é feito ou como se
reage ao novo e ao desconhecido, procurando, com isso, chamar a atenção dos
psicanalistas para a experiência de intolerância às emoções e ao estranhamento e
desconforto gerado pelo encontro com o outro e com o outro de si mesmo.
Desse modo, em vez de a dimensão do desconforto, da frustração e da
incerteza revelar uma dificuldade de ordem exclusivamente pessoal do analista ou um
problema do paciente e de suas psicopatologias, ela expressa algo da dinâmica
psíquica na relação analítica, compondo parte das reflexões de Bion sobre as
consequências de se investigar a vida mental, suas emoções e seus distúrbios.
É possível considerá-la uma presença ora silenciosa, ora ruidosa, que marca
grande parte das elaborações teóricas do autor, influencia as discussões
epistemológicas e metodológicas e, inclusive, transborda para o estilo de sua escrita
e de suas comunicações.
É desde seu trabalho com grupos que se pode notar um posicionamento clínico
e uma atitude mental de curiosidade e de abertura a certas particularidades dos
fenômenos, referentes a seus aspectos primitivos. Bion percebeu, nos grupos, uma
simultaneidade entre comunicações verbais e não-verbais, que o levou a sugerir a
existência de uma mentalidade grupal de origem protomental ou proto-somática, onde
o físico e o psíquico estariam indiferenciados.
Em cogitações, Bion cunha usa o termo “trabalho onírico alfa”, para representar
a atividade mental que armazena e que torna disponível ao conhecimento, à
recordação, ao pensamento inconsciente e ao trabalho onírico, tal como descrito por
Freud, os dados da experiência emocional. Do contrário, estes permaneceriam
presentes, porém desconhecidos e tóxicos.
O termo “alfa” é uma incógnita que serviu para enfatizar a elaboração de um
postulado, ou de uma hipótese teórica acerca de uma atividade mental em si mesma
desconhecida, e que, para Bion, exigia uma formulação conceitual.
O “trabalho onírico alfa” foi mais tarde nomeado de “função-alfa”, para que não
fosse confundida com o trabalho de sonho, tal como Freud o compreendia. Essa
função representou tanto uma estratégia do pensamento de Bion quanto uma função

32
da personalidade para lidar com eventos que pediam compreensão e que, portanto,
estariam dispersos e fragmentados (os elementos-beta).
As incógnitas alfa e beta indicam que os termos são, em si mesmos,
incognoscíveis, mas passíveis de adquirirem significado na experiência; eles foram
propostos com a intenção de evitar que os termos fossem associados a significados
definitivos e, desse modo, permanecem abertos ao desconhecido da experiência.
Segundo o autor, a cristalização do pensamento na psicose poderia ser análoga ao
risco que os analistas correm ao se apegarem, demasiadamente, a certos conceitos,
dando a eles uma concretude que dificulta a flexibilidade que precisariam ter em cada
situação.
Bion evidencia a existência da incógnita no pensamento analítico e, no caso da
função-alfa, na própria personalidade; ela representa, assim, a condição de abertura
ao impensado de si e do outro, ao desconhecido e ao que está para ser sonhado e
pensado.
Ela é mais do que uma função metodológica da personalidade para a
investigação e para observação da realidade; a função-alfa converte as impressões
em material onírico e estabelece ligações entre os elementos da experiência
emocional, de modo a suprir a mente de realidade, do que parece ser verdadeiro e de
existência.
A alteridade é uma presença constante no pensamento de Bion e está
entranhada nas peculiaridades do estilo, na teoria e na prática desse autor. Com o
conceito de função-alfa, ele encontrou um modo de se aproximar do mundo bizarro e
idiossincrático do psicótico e de elaborar as condições para essa aproximação com
base nessa mesma experiência, sem ignorar o que é desconhecido ou evitar o que é
intolerável, e admiti-lo enquanto tal.
Nós temos, como analistas, ao menos a possibilidade de encontrar na obra
desse autor intuições profundas sobre a importância e sobre o significado de sustentar
e de estar aberto ao desconhecido, e sobre o quanto essa atitude pode representar
para vida emocional de nossos pacientes.

33
10 BION E A CAPACIDADE DE PENSAR

Fonte:almapapel.com

Um dos principais temas do trabalho do psicanalista Wilfred Bion se


desenvolveu em torno da capacidade de pensar, cujo livro "Seconds Thoughts" reuniu
suas principais ideias sobre o assunto. Para o autor (Bion, 1994), o pensar é uma
atividade que depende do resultado satisfatório de dois desenvolvimentos mentais –
dos pensamentos e do aparelho que proporciona a atividade do pensamento. Os
pensamentos podem ser classificados conforme a natureza de sua história evolutiva,
como preconcepções, concepções ou pensamentos propriamente ditos, além de
conceitos.
Para a psicanálise, tal como Bion a compreende, a capacidade para pensar no
bebê se dá a partir da expectativa que ele tem em relação ao seio materno. Quando
o bebê entra em contato com o seio, o produto final da ação do seu pensamento é
uma "concepção" do seio, ou seja, uma expectativa inata de um seio que advém na
mente do bebê. Trata-se de um "a priori" ou pensamento vazio.
Mas se o bebê tem uma frustração relacionada à não apresentação do seio (ou
dito de outro modo, de um "não seio"), o que ele pode experimentar é uma realização
do seio em sua mente e uma frustração pela apresentação do "não seio".
Assim, ele empreende um esforço para fugir da frustração, modificando-a. Se
sua capacidade de tolerar a frustração for suficiente, o "não seio" se transforma em
34
pensamento e o bebê desenvolve um aparelho para poder pensar. Portanto, a
capacidade de tolerar a frustração oriunda da apresentação do "não seio" possibilita
que a psique do bebê desenvolva o pensamento como um meio de superar a
frustração vivida internamente. Por outro lado, a incapacidade de tolerar a frustração
pode ser prejudicial para o desenvolvimento do bebê, obstruindo o desenvolvimento
dos pensamentos e a sua capacidade de pensar.
A função-alfa, concebida por Bion, diz respeito a um instrumento de trabalho
na análise dos distúrbios de pensamento, com o qual o analista sustentará, por meio
da função de rêverie, a possibilidade que o paciente tem para conseguir pensar ou
sonhar. De acordo com Ogden (2010), Bion criou o termo "função-alfa" para se referir
ao processamento dos "elementos-beta" proveniente das impressões sensoriais
brutas, sob forma de pensamento e oriundas das experiências emocionais.
Os "elementos-beta" são impressões sensoriais não processadas, e não
podem ser ligados entre si nem utilizados em funções mentais tais como pensar,
sonhar ou armazenar memória. Os "elementos-alfa", por outro lado, são elementos da
experiência que podem ser ligados entre si no processo consciente e inconsciente de
funções mentais. Por exemplo, se houver uma falha na função-alfa, isto significa que
o paciente é incapaz de dormir e, consequentemente, sonhar, pois a função-alfa torna
as impressões sensoriais em experiências emocionais disponíveis para a ação do
pensamento. Se o paciente não é capaz de dormir, ele também não é capaz de
sonhar, e se ele não se recolhe ao sono, ele é incapaz de despertar.
Senão, vejamos:
Sonhar é um processo constante que ocorre tanto no sono quanto na vida de
vigília inconsciente. Se uma pessoa é incapaz de transformar impressões sensórias
brutas em elementos inconscientes da experiência que possam ser ligados, ela é
incapaz de gerar pensamentos-sonho inconscientes e, consequentemente, não pode
sonhar (seja durante o sono ou na vida de vigília inconsciente).
A experiência de impressões sensórias brutas (elementos-beta) no sono não é
diferente da experiência de elementos-beta na vida de vigília. Portanto, o indivíduo
não pode dormir e não pode despertar, ou seja, ele não é capaz de diferenciar estar
desperto e estar dormindo, percebendo e alucinando, a realidade externa e a
realidade interna (Ogden, 2010, p. 19).

35
Assim, no curso de uma análise, tudo o que o analista pode fazer é possibilitar
ao paciente "sonhar sonhos não sonhados e choros interrompidos" (Dream
undreamed dreams and interrupted cries) na acepção de Ogden (2010).
O analista precisa ter a capacidade e a responsabilidade de reinventar a
psicanálise para cada paciente e continuar a reinventá-la durante o curso da análise
e a cada nova sessão, pensando e sonhando, aprendendo e esquecendo (Thinking
and dreaming, learning and forgetting) (Ogden, 2009).
Com efeito, de acordo com André Green (1977), a análise não se constitui
meramente como um método de tornar consciente o inconsciente, de remover o
recalque e libertar o afeto daquilo que produziu o sintoma, pelo contrário. A análise
trata de uma intimidade a dois, por meio da qual o analista "cuida" (care) do seu
paciente e o sustenta (holding) durante o seu processo. O sentido dado a "cuidar"
(care), refere-se a bem mais do que isso.
Trata-se de um cuidado especializado, dar atenção, importar-se, inquietar-se
ou preocupar-se com o sujeito que tem diante de si. Isso é possível, quando o analista,
na sua prática clínica, ajuda o paciente a se constituir como sujeito, servindo-se, às
vezes, de ego auxiliar por meio da regressão em análise. O objetivo aqui não é apenas
o de promover a cura do paciente.
Lembremos, pois, que todo paciente é fiel ao seu sintoma. De acordo com o
próprio Winnicott, com certa frequência, temos que nos contentar em deixar o paciente
ter de manipular a sintomatologia, sem tentar curá-lo do seu adoecimento (Winnicott,
1994g). Essa afirmação também é compartilhada por Masud Khan (1989) quando ele
afirma que, no trabalho clínico, algumas vezes é mais importante sustentar (holding)
uma pessoa viva do que livrá-la da sua doença. Na maioria das vezes, uma análise
pode proporcionar ao indivíduo o desenvolvimento da capacidade de cuidar de si
mesmo. Em vez de rejeitar os pacientes cuja estrutura psíquica não consegue se
adaptar ao enquadramento, cabe ao enquadramento modificar-se em função da
estrutura do paciente. Os objetivos do tratamento serão também modificados. Não se
trata tanto de "curar" o paciente, mas de torná-lo apto a tratar de si mesmo, a
encarregar-se de si mesmo. O que equivale a dizer que o tratamento fornecerá ao
paciente o enquadramento que lhe falta para conter seus conflitos. Isso não quer dizer
reprimi-los, mas permitir-lhes o desaparecimento dos sintomas que o despertar e a
conservação da vitalidade psíquica (Green, 1977, p. 8).

36
Se o enquadre pode mudar em função do sofrimento do paciente, logo, o seu
silêncio pode ser compreendido em uma perspectiva diversa daquela da psicanálise
clássica. De acordo com Green (1977), em alguns casos é preciso que o analista
abandone a neutralidade típica com o objetivo de promover a verbalização do
paciente, para que este aceite a plasticidade do objeto de transferência sem que o
analista seja silencioso o que não significa promover a "tagarelice" do analista em sua
face mais ativa. O silêncio do analisando, no mais das vezes, permite que o analista
tenha acesso à sua dor e ao seu sofrimento psíquico, dando a medida exata do seu
desespero. Seu negativo não é a fala, mas o grito, e daí a importância da vitalidade
do analista em certos momentos da análise.
Assim, o analista pode proporcionar ao paciente a capacidade para poder
pensar e elaborar as experiências vividas dentro do seu mundo interno.

11 RELAÇÃO CONTINENTE-CONTEÚDO, FUNÇÃO Α, RÊVERIE

Realçando a importância das emoções e da primeira relação para a aquisição


dos fundamentos básicos da construção do psiquismo, Bion (1962-91) desenvolve o
modelo continente-conteúdo para compreender e expressar os acontecimentos
intrapsíquicos e intersubjetivos, referindo ser a relação de continente (♀) – conteúdo
(♂) que possibilita o bebê investigar os seus próprios sentimentos numa personalidade
forte e suficiente para os conter, considerando como continente o lugar onde o objeto
é projetado e conteúdo o objeto projetado.
Refere ser através da identificação projetiva que um conteúdo (elementos β) é
projetado para dentro de um continente que acolhe, contém temporariamente,
transforma pela função de rêverie e o devolve sob a forma de elementos α, passível
de ser nomeado, pensado e sonhado.
O autor distingue três tipos de relação continente-conteúdo: a parasitária, na
qual o conteúdo projetado é tão explosivo e malévolo que o continente destrói ambos,
passando a alimentarem-se de mentiras que funcionam como uma barreira contra a
verdade; a comensal, onde continente e conteúdo convivem sem grandes atritos,
desenvolvendo-se a capacidade de inventar formas de linguagem que posteriormente
contribuirão para o desenvolvimento emocional, e a simbiótica na qual, tal como numa

37
relação amorosa, continente e conteúdo se harmonizam e beneficiam mutuamente da
relação (Symington & Symington, 1999; Zimerman, 1995).
Para Bion as díades mãe-bebê que interagem desta maneira formam um par
pensante cuja atividade ♀ - ♂ é introjetada como aparelho para pensar, enquanto
parte integrante da função α, resultando no crescimento de ambos e na co-criação de
novos significados. Este ato de criação partilhada resulta da inseminação do
continente com experiências emocionais por processar, na expectativa que este as
pense, transforme e as devolva passíveis de serem pensadas e sonhadas.
Associações impulsionadoras do desenvolvimento (Bion, 1997, cit. por Brown, 2011).
Considerando a importância da interação mãe-bebê no desenvolvimento do
aparelho psíquico do bebê e o postulado que os pensamentos e as emoções são
indissociáveis então, de acordo com Bion, teria de haver na mente uma função que
concedesse sentido e significado às experiências. À elaboração da vivência emocional
que digere a experiência e nutre o pensamento, Bion designou de função α (Martins,
2005). No período inicial de vida, a experiência mental do bebê é regida por
impressões sensoriais desprovidas de sentido ou sensações sem nome que causam
frustração – elementos β.
Estes, não digeridos, são sentidos como corpos estranhos na mente, como a
coisa-em-si mesmo apenas adequadas para serem evacuadas para o exterior, por
meio da identificação projetiva, por não serem pensadas. Através da função α, os
elementos β são transformados em elementos α, elementos com significado psíquico
passíveis de serem pensados e sonhados. Devido à imaturidade do seu aparelho
mental, quando o bebê nasce ainda não possui a capacidade de transformar o
conteúdo do sistema protomental, a experiência emocional sensorial numa
representação conceptual, sendo através da intervenção da mãe que o bebê
desenvolve a sua própria função α (Symington & Symington, 1999).
Sendo um aspecto da personalidade responsável por compreender a realidade
emocional e dar significado afetivo às percepções, a função α desenvolve-se numa
coreografia única com o seu par, a mãe (Bino, 1962, cit. por Brown, 2011). Assim, e
de forma implícita, Bino atribui a função α a uma produção do ego responsável por
atribuir significado emocional à experiência, possibilitando o desenvolvimento do
pensamento (Brown, 2011).

38
A função α decorre da ação da mãe em receber a evacuação dos conteúdos
angustiantes projetados pelo seu bebê elementos β, contê-los, tolerá-los, processa-
los e por fim, devolvê-los transformados de modo a que a criança os possa tolerar
elementos α.
Se a capacidade de rêverie da mãe lhe permitir responder adequadamente às
identificações projetivas do seu bebê, este sentir-se-á compreendido e reconfortado,
recebendo a parte de si que foi evacuada numa versão melhorada, acompanhada da
experiência de um objeto que já é capaz de tolerar e de pensar sobre ele. O bebê
começa então a ser mais capaz de se tolerar a si mesmo, apreender-se a si e ao
mundo em termos de significado e a sua experiência emocional adquire sentido e
significado psíquico.
Introjetada a função α da mãe, os elementos, outrora intoleráveis dado o seu
carácter ambíguo e desconhecido, são dotados de significado psíquico e como tal,
passíveis de serem sonhados e pensados, permitindo ao bebê a possibilidade de
enfrentar novos desafios e de aprender com a experiência. Assim, o desenvolvimento
da capacidade do bebê de pensar encontra-se dependente não só a capacidade de
rêverie da mãe para colocar ordem na experiência caótica, mas também na sua
disponibilidade como objeto predisposto a ser internalizado.
A introjeção do objeto continente e da sua função α, habilita o bebê de ele
próprio, começar a elaborar a sua própria experiência emocional (Zimerman, 1995).
Assim, a relação continente-conteúdo tem um papel preponderante na organização
do espaço mental, não só através da relação precoce mãe-bebê, mas também pela
introjecção da função α., porém, se o ódio do bebê pela frustração for maior que a
capacidade do seu ego em suportá-la, assiste-se a um movimento de fuga à realidade
angustiante, com o bebê a recorrer a mecanismos que o impeçam modificar a
realidade a partir da aprendizagem com a experiência (Jardim, 2012).
Bion faz ainda referência a situações em que, apesar de já se ter iniciado o
desenvolvimento da função α, a dor psíquica é de tal forma intensa que se assiste
uma reversão da função α com a criação de objetos bizarros, i.e., de elementos β,
diferentes dos elementos β originais, compostos por fragmentos do ego e do superego
que são descarregados ou pela ação ou para dentro do corpo pelos órgãos dos
sentidos (Zimerman, 1995).

39
No caso de se verificar uma disfuncional idade na introjecção da função α, a
formação da barreira de contato pode ocorrer com falhas, comprometendo o
desenvolvimento de um espaço de troca e de comunicação no qual a constituição do
processo dialético continuo, essencial à criação do pensamento, entre
fantasia/realidade, Eu/não-Eu, símbolo/simbolizado, continente/conteúdo, em que
cada polo cria, dá forma e nega o seu oposto, fornecendo os alicerces e continentes
para a formação da identidade não se elabora.
O aparecimento da barreira de contato é crucial para o funcionamento psíquico.
É a sua tripla função de diferenciar e mediar o contato entre instâncias psíquicas, entre
o consciente e o inconsciente, entre o que pertence ao indivíduo e o que pertence ao
exterior e entre o que são as representações e as coisas em si, que possibilita a
criação de novos objetos internos e externos e a recriação do indivíduo e de objetos
com novas qualidade e novas características (Cabral, 1998, cit. por Soares &
Marques, 2009).
Para além da capacidade do bebê em suportar as frustrações, falhas na
introjecção da função α também podem decorrer da capacidade de rêverie da mãe
uma vez que, quando a mãe é incapaz de conter e dar significado, sentido ou nome
às identificações projetivas do bebê e as devolve acrescidas das suas próprias
frustrações, os conteúdos geradores de ódio e angústia permanecem na mente do
bebê, conteúdos esses para os quais o bebê ainda não desenvolveu a capacidade de
conter e nomear, resultando em dificuldades acrescidas no desenvolvimento do
aparelho de pensar, na simbolização e na comunicação, impossibilitando a
aprendizagem através da experiência.
Nos casos em que a capacidade de rêverie da mãe é insuficiente, i.e., em que
as angústias e as projeções, carregadas de elementos β, que o bebê evacua na mãe
são lhe devolvidas sob a forma de um “terror sem nome”, desenvolve-se um ego
fragilizado com enormes dificuldades em discernir entre o bom e o mau (Bion, 1962-
91). Por outro lado, quando é o estado mental da mãe que se encontra fechado para
albergar as identificações projetivas do seu bebê, reagindo de forma negativa às suas
projeções, verificar-se a inversão da rêverie cujo resultado é o desenvolvimento de
um tipo particular de superego patológico, em que a principal característica é o ódio
por qualquer desenvolvimento da personalidade (Ferro, 2002).

40
Assim, a rêverie reflete a capacidade de sonhar o Outro, um tipo especial de
sensibilidade ao outro. É a capacidade de permanecer numa atitude que permite
receber, acolher, descodificar, significar, nomear as angústias do outro e só as
devolver quando devidamente desintoxicadas (Zimerman, 1995). É um estado de
receptividade e ressonância emocional que permite à mãe receber quaisquer objetos
do seu objeto amado.
É a capacidade de acolher as identificações projetivas do bebê,
independentemente de estas serem sentidos por ele, como boas ou más (Bion, 1962,
cit. por Brown, 2011).
Sendo uma parte da função α da mãe, a rêverie é uma atitude mental da mãe
que, sem negar nada, tenta descobrir e acrescentar mais sentido e outros sentidos ao
conteúdo do seu bebê de maneira a que, quando devolvidos, haja uma catarse nela e
no bebê. São os pensamentos da mãe que vão proporcionar ao bebê o
desenvolvimento do seu aparelho para pensar e o fortalecimento do seu "Eu" uma vez
que, devido à intervenção materna, os maus conteúdos evacuados são transformados
em bons conteúdos, permitindo assim ao bebê aprender não só que as coisas podem
ser transformadas, mas que a mãe exerce um importantíssimo papel nessa
transformação.
A capacidade de rêverie da mãe é apropriada quando está cria as condições
adequadas para que o seu bebê faça uma aprendizagem com as suas experiências,
positivas e negativas, resultantes das privações e frustrações. Em contrapartida, é
insuficiente quando a mãe deixa o bebê sem capacidades de dar significado aos
conteúdos psíquicos e sensoriais provenientes da sua experiência, resultando num
colapso da criação mútua da intersubjetividade, subjacente a uma identificação
projetiva saudável (Bion, 1962-91).
Considerando a rêverie como o motor da vida mental e saúde psíquica através
da qual é possível aceitar, processar e transformar os estímulos da realidade externa,
Ferro (2006) apresenta três fontes de trauma decorrentes da relação com os objetos
primários que podem comprometer o desenvolvimento do funcionamento mental: um
defeito na função α do cuidador, incapacitando-o de transformar os elementos β do
bebê em elementos α, inabilitando a introjecção do bebê de ferramentas essenciais
para a gestão básica da vida psíquico e para o desenvolvimento da capacidade de
simbolizar e sonhar, um continente inadequado impedindo ao bebê a introjecção de

41
um continente para acolher e conter as emoções e os pensamentos, potenciando o
recurso a mecanismos de defesa como a clivagem e a letargia de estados emocionais
sentidos como intoleráveis; e um excesso de estímulos (elementos β) que se
acumulam como "factos não digeridos" que aguardam a sua transformação.
Nas palavras de Meltzer (1981), o desenvolvimento e saúde mental são
decorrentes das relações íntimas na medida em que os eventos primordiais destas,
as experiências emocionais, possibilitam imbuir os conflitos de significado emocional
que, ao serem pensados e compreendidos, contribuem para o crescimento e
desenvolvimento da mente. Como tal, a aquisição dos fundamentos básicos da vida
mental, tal como a função α, responsável pela elaboração da experiência emocional,
é resultante da intensa profundidade, intimidade e reciprocidade entre a díade mãe-
bebê vivenciada na experiência da primeira relação.
Assim, quando se verificam interferências na relação ♀ - ♂, seja por uma falha
da função de rêverie da mãe, por esta não ser um continente adequado aos conteúdo
do seu bebê, seja pelo ódio e inveja do bebê que impeçam a mãe de exercer a função
de continente, o vínculo mãe-bebê é quebrado, resultando numa grave perturbação
na pulsão epistemofílica da qual depende o desenvolvimento e a aprendizagem
(Ferro, 2002), evidenciando-se assim a intersubjetividade enquanto base estruturante
do mundo intrapsíquico, onde os vínculos que se estabelecem assumem um papel
preeminente na organização dos fenómenos psíquicos e processos mentais, e na
forma como estes se relacionam nas suas relações com o objetos, internos e externos
(Rezende, 1995).

12 TRANSFERÊNCIA E TRANSFORMAÇÕES

Freud (1905) define transferência como: “ São as novas edições, ou fac-símiles,


dos impulsos e fantasias que são criados e se tornam conscientes durante o
andamento da análise; possuem, entretanto, está particularidade, que é característica
de sua espécie: substituem uma figura anterior pela figura do médico.
Em outras palavras: é renovada toda uma série de experiências psicológicas,
não como pertencentes ao passado, mas aplicadas à pessoa do médico no momento
presente”. (p.113).

42
Em relação à contratransferência (1912) Freud diz:
“A contransferência se instala no médico, devido ao poder que o paciente exerce sobre
o seu inconsciente”. É necessário que o psicanalista possa detectá-la e dominá-la.
Cada psicanalista só chega até onde permitem seus próprios complexos e
resistências interior. A única maneira de controlar o fenômeno da contratransferência
é a análise de próprio analista”.
Melanie Klein (1946) amplia o conceito clássico de transferência ao introduzir a
noção de identificação projetiva. A identificação projetiva irá em Klein substituir este
conceito. Para a autora a transferência está enraizada nos estágios mais iniciais do
desenvolvimento e nas camadas profundas do inconsciente.
Sua concepção é mais abrangente e envolve uma técnica através da qual os
elementos inconscientes da transferência são deduzidos a partir da totalidade do
material apresentado. Com a noção de identificação projetiva e da transferência como
situação total, a psicanálise passa a se ocupar, não apenas com o conteúdo do que o
paciente diz, mas também, pela maneira como diz, para o uso da linguagem e para
as suas ações dentro do consultório. (p. 78)
Com Bion (1962 a), o conceito de identificação projetiva é também ampliado,
passando este a ser considerado como um método de comunicação primordial entre
mãe e bebê, do mesmo modo que seria a relação entre analista e analisando. Bion
passa a adotar a noção de continente-contido para se referir a este tipo de
configuração.
Bion ao longo de sua obra propõe diferentes modelos teóricos. Ele propõe
(1957) a presença de partes psicóticas e não psicóticas da personalidade, ponto de
partida para que outras partes pudessem também ser destacadas, como é o caso da
parte autística da personalidade introduzida por Tustin (1990, 1992). Bion sugere
(1962ª) que o campo de trabalho do analista na sessão é o do aprender com a
experiência emocional e a teoria de transformações (1965) uma teoria de observação
dos fenômenos mentais compartilhados pela dupla analítica na sessão.
Transformação implica em invariância, ou seja, para que haja a transformação
de uma experiência, alguns elementos da situação original não podem variar, devem
se manter invariantes; caso contrário não seria uma transformação, mas sim outra
situação.

43
Para Bion, o contato com a emoção em si, (O) não é acessível. Assim, as
apreensões do analista, como as comunicações do paciente são consideradas
transformações pessoais das emoções em curso de cada um deles.
Entendo que com Bion o conceito da transferência clássica se modifica. A partir
de Transformações passa a ser englobado no campo analítico, também os
movimentos da mente do analista, o que significa que o fenômeno observado irá se
alterar pelo próprio ato de observação. Abandona-se a ideia de uma visão absoluta
do fenômeno, passando a abordagem do analista a ser apenas uma das
possibilidades a serem consideradas.
Quanto à contratransferência, Bion (1979) diz que está se refere à sentimentos
inconscientes do analista, portanto não disponíveis à função analítica. A
contratransferência seria a transferência não analisada do analista em relação ao seu
paciente.
Bion em Transformações propõe diferentes grupos de transformações:
transformações em movimento rígido, projetivas, em alucinose, em K, -K e em O. Bion
expande o campo analítico de conhecer a realidade; K, para “ser” a realidade, O. As
transformações em movimento rígido abarcam o campo da transferência clássica de
Freud. Nas transformações projetivas predominam o mecanismo de spliting e
identificação projetiva.
Cabe ao analista acolher as projeções de partes indesejáveis do self do
paciente, projetadas sobre a sua mente, transformá-las em algum significado de modo
a possibilitar que seu conteúdo passe a ser mantido na mente e não mais expelido.
Nas transformações em alucinose, a experiência emocional vivenciada com a
figura do analista como um objeto real, é substituída por uma outra figura criada pelo
analisando, independente da sua existência real. Bion (1965) diz: “rivalidade, inveja,
avidez, roubo, juntamente com o seu sentido de ser inocente, são consideradas como
invariantes sob alucinose (p.157).
Para Bion a alucinose é um mecanismo bastante frequente em pacientes
neuróticos, os quais quando submetidos à forte pressão operam com transformações
psicóticas (projetivas e em alucinose). Ele menciona que o conceito de alucinose
necessita ser ampliado para englobar um número de configurações que não são
reconhecidas como pertencentes a ele.

44
13 O FENÔMENO AUTÍSTICO

Fonte: br.depositphotos.com

Alguns pacientes, como já foi mencionado, nos quais predominam um


funcionamento mental neurótico, conservam em sua personalidade uma parte
autística (Tustin, 1990,1992). Nesta parte autística, predominam manifestações que
se caracterizam por um estado de recolhimento no interior de uma “concha protetora”,
autogerada de modo a permitir que o indivíduo evite vivências insuportáveis de
vulnerabilidade. Esses indivíduos apresentam uma sensibilidade extrema e uma auto
sensualidade exacerbada.
Neles a consciência da separação corporal do objeto deu-se de maneira
abrupta, sem que tivessem meios para suportá-la. Eles a vivenciam como se partes
do próprio corpo tivessem sido arrancadas, acarretando a experiência de
aniquilamento. A relação entre eu e não eu dá-se por meio de “objetos/sensação”;
“objetos e formas autísticas” (Tustin,1981,1986,1990). O contato sensorial com o
objeto é essencial, não por representar outro objeto ou pela fantasia que ele
desencadeia, mas por se tornar o próprio objeto.
A falta do objeto é tampada por objetos e formas autísticas, de modo que os
sentimentos de terror advindos da sua ausência, sejam suprimidos. Frente a vivências
aterrorizadoras eles tendem a aderir às superfícies em contiguidade, às superfícies
que se tocam evitando o surgimento de qualquer espaço. A comunicação entre eu e
45
não-eu, desse modo irá ocorrer, não por identificação projetiva como nos casos em
que há a presença de um objeto separado, mas por identificação adesiva
(Bick,1968,1986 e Meltzer, 1975).
Bion com a sua abordagem de uma mente multidimensional abre a
possibilidade de outros tipos de transformações, lado a lado com as transformações
neuróticas (em movimento rígido) e as psicóticas (transformações projetivas e em
alucinose). (Braga, J.C. 2009, comunicação pessoal).
As transformações autísticas se desenvolvem em um meio autístico, o que
implica na ausência da noção de objeto. As relações entre eu e não-eu, são
dominadas por sensações e ocorrem por meio de objetos/ sensação, objetos e formas
autísticas que não adquirem representação na mente. Algumas das suas invariantes
se relacionam à experiência de ausência de vida afetiva, à experiência de vazio
afetivo, e à presença de atividades auto sensuais.

14 O UNIVERSO AUTÍSTICO

Com a introdução das transformações autísticas na teoria das transformações


o campo de observação na sessão passa a ser ampliado para a área dominada por
sensações, uma área não mentalizada. O universo autistico; como sabemos, é um
universo à parte organizado por leis específicas, diferentes daquelas do campo da
neurose e psicose. Vale a pena mencionar algumas das diferenças entre esses
universos:
 Nas áreas neuróticas e psicóticas os vínculos emocionais L, H, K e seus
negativos (Bion, 1959) perpassam qualquer relação conectando os
objetos. Na área autística, entretanto, como não existe a noção de objeto
interno nem externo, não encontramos nela vínculos emocionais; esta
seria uma área em que há a ausência de vínculos.
 A dimensão da mente preponderante nas transformações das áreas
neuróticas e psicóticas pertence ao campo do conhecer e não conhecer
(K e –K) enquanto nas transformações autísticas elas pertencem ao
campo do existir e não existir.
Os fenômenos autísticos e os elementos beta embora guardem alguma
semelhança, eles apresentam diferenças de qualidade importantes. Elementos beta,
46
são elementos sensoriais que não foram transformados pela função alfa em
elementos psíquicos e, portanto, não podem ser utilizados para pensamento. São
elementos não digeridos que devem ser expelidos para livrar o aparelho psíquico do
acúmulo de tensão. Os elementos betas (Bion,1962a) agrupados formam uma
barreira de contato, a Tela beta3, a qual tem o poder de provocar emoções no analista,
afetando a sua condição de pensamento e potência analítica. O fenômeno autístico,
por outro lado, é caracterizado pela sua natureza estática e por pertencer ao mundo
inanimado. Assim como os elementos alfa e beta quando agrupados constituem
respectivamente a barreira de contato e a Tela beta, também os elementos autísticos
ao serem agrupados formam uma barreira; a barreira autística. O indivíduo procura
proteção por meio desta barreira. (Tustin, 1984,1986). Diferentemente dos elementos
beta, os elementos autísticos não têm a função de descarga ou alívio, mas de
proteção, principalmente em situações de terror diante da ameaça de não existência
psíquica

15 AS DIFERENÇAS ENTRE A ANÁLISE E A PSICOTERAPIA PSICANALÍTICA

A psicoterapia psicanalítica nasceu para aliar a psicanálise com a psicologia, a


medicina e a psiquiatria, enriquecendo a pesquisa e a produção de conhecimento. Os
objetivos da psicoterapia de orientação analítica são, entretanto, mais circunscritos e,
consequentemente, menos ambiciosos do que aqueles de um tratamento por análise,
sendo relevante apresentá-los separadamente.
Parece necessário, portanto, fazer a ressalva de que o objetivo da psicoterapia
psicanalítica seria o tratamento focado no conflito atual do paciente. Mesmo
considerando que há relação entre o conflito primário e o conflito atual, na psicoterapia
psicanalítica os conflitos são tratados com algum grau de independência. Neste caso,
o objetivo seria possibilitar ao indivíduo a ampliação do entendimento sobre seu
funcionamento, a que, por sua vez, acarretaria o uso de defesas mais maduras e a
melhoria do padrão das relações objetais; a psicanálise, ao contrário, tem por objetivo
a elaboração do conflito primário.
Segundo Kernberg, o objetivo da psicanálise seriam as alterações da estrutura
a integração dos conflitos inconscientes recalcados ou dissociados no ego consciente

47
enquanto o objetivo das psicoterapias psicanalíticas seria a reorganização parcial da
estrutura psíquica num contexto de mudanças sintomáticas significativas.
A literatura a respeito dos objetivos terapêuticos para a psicoterapia
psicanalítica é escassa e desatualizada, ao passo que a literatura sobre esse tema
em análise é abundante. Assim, o psicoterapeuta psicanalítico pode se beneficiar da
literatura disponível sobre análise para formular objetivos terapêuticos para a sua
prática. Para justificar a validade da importação dos conceitos da técnica analítica para
a prática psicoterápica, recorre-se a Green:
Vemos bem que o polimorfismo da população de pacientes que estão em
psicoterapia com psicanalistas e que não se contentam em receber ajuda de outros,
a não ser de analistas, constitui uma população original e única em que um autêntico
trabalho psicanalítico pode, às vezes, se dar. Pode-se concluir que o aprendizado da
psicoterapia exercida por um psicanalista é uma necessidade nova na formação do
mesmo.
Nas diferenciações entre a análise propriamente dita e a psicoterapia
psicanalítica, sabe-se que a primeira se caracteriza por ser um processo mais longo
e profundo de autoconhecimento, o qual promove mudanças estruturais para a vida
toda. Já a psicoterapia psicanalítica trata de pontos de urgência, é mais breve e
promove mudanças circunstanciais.
De qualquer maneira, como o próprio Green mencionou acima, mesmo em uma
psicoterapia, um trabalho autenticamente psicanalítico pode às vezes se dar. Para
ele, a psicoterapia nasce essencialmente da impossibilidade de se pôr em prática uma
situação que respeite as exigências do modelo. E isso pode ocorrer por diagnóstico,
problemas financeiros, ou pelo simples desejo do contratante. Pesquisas de
resultados têm demonstrado a efetividade de ambas as formas de tratamento para os
distúrbios emocionais.
A separação conceitual entre o que seria uma psicanálise "propriamente dita"
e uma psicoterapia de orientação analítica vem sendo tratada de forma cada vez
menos radical nos meios psicanalíticos. Os critérios externos utilizados para definir a
psicanálise (uso compulsório do divã, mínimo de quatro sessões semanais, emprego
sistemático de interpretações transferenciais...) estão cedendo lugar a critérios
intrínsecos (acessibilidade do paciente a seu inconsciente e capacidade de processar
mudanças psíquicas, por exemplo).

48
Embora existam diferenças óbvias entre psicanálise e psicoterapia a zona de
interseção entre ambas vem se ampliando notoriamente. Sendo assim, não parece
haver motivo suficiente para que um psicoterapeuta psicanalítico não possa se munir
de postulados teóricos da psicanálise e de suas recomendações, embora fique a
ressalva de que não se trata de tratamentos indiferenciados.

16 OBJETIVOS TERAPÊUTICOS PARA PSICANÁLISE E PSICOTERAPIA


PSICANALÍTICA: BION

Bion considerava o objetivo de um tratamento a obtenção de crescimento


mental, o qual não deve ser confundido com o conceito de cura que se costuma utilizar
nas outras áreas da saúde. Dessa forma, sua proposta para um tratamento não se
baseava no propósito de diminuir sintomas e angústias, mas na oportunidade criada
pela dupla paciente-terapeuta de promover espaços mentais com cada vez mais
verdade, criatividade e complexidade. Para ele, o desejo de curar era algo que se
prestava mais a atrapalhar o processo terapêutico do que a ajudar. A ansiedade
própria da vontade de acabar com as dores emocionais e com a sintomatologia
tomaria o lugar da busca pela verdade. A difícil tarefa de sustentar a abertura de
espaço psíquico que promove crescimento mental poderia ser substituída pela fácil
tarefa de tornar a pessoa mais adaptada ao seu meio social.
Bion acreditava que havia duas maneiras pelas quais um sujeito poderia
escapar da dor mental: ou canalizando seus máximos esforços para fugir dela, ou
enfrentando, experimentando, sentindo e aprendendo com ela. Esta última seria a
única maneira de transformar ou modificar as frustrações. A propósito, as frustrações
são experiências extremamente importantes para a formação dos pensamentos
dentro da teoria bioniana.
É a partir do encontro entre preconcepção (como uma expectativa de algo,
inata) e frustração (não realização dessa expectativa) que nasce um pensamento,
quando o sujeito não opta pela fuga. No tratamento psicanalítico, o trabalho deve
centrar-se na formação ou estimulação de uma mente capaz de tolerar e manejar as
dores emocionais e as frustrações, o que permitirá a expansão de uma mente criativa,
cada vez mais capaz de suportar a vida.

49
O aprender com a experiência desenvolve justamente essa capacidade
criadora de pensamentos, bem como o aparelho capacitado para pensá-los,
propiciando a aquisição de um estilo de vida promotor de saúde emocional.
Bion entende que as relações se passam não em termos de simples amor
versus ódio, mas entre emoção e ante emoção, ou seja, entre a normalidade e a
patologia do amor, do ódio e do conhecimento. Esses vínculos estão presentes o
tempo todo e em todas as relações, sendo eles os marcadores do tipo de
funcionamento mental e psicológico de cada pessoa em cada momento. As
transformações seriam o objetivo principal de todo o tratamento emocional, devendo-
se buscar a evolução dos diversos estágios da capacidade de pensar.
As principais transformações propostas se referem a: transformar
conhecimento (K) em O, que seria a origem, a coisa em si mesma, e, nesse
movimento, haver sempre a possibilidade da inversão de sentido - O em K ,
transformar elementos chamados beta (ideias coisificadas, protopensamentos
destinados à evacuação) em elementos alfa (que permitem sonhos, criam capacidade
para pensar e instauram a barreira consciente/inconsciente), transformar quantidade
em qualidade, não objetivando liquidar a dor, mas aumentar a capacidade do paciente
para sofrer. Para Bion, uma identificação bem-sucedida com a pessoa real do analista
é de fundamental importância para o bom andamento do tratamento e para que os
resultados alcançados adquiram o status de crescimento mental.
A expressão "função psicanalítica da personalidade" remete ao aprender com
a experiência, no caso, com a experiência terapêutica. O grau de sucesso de um
tratamento depende de algo ter se criado e seguido em andamento, em construção e
em expansão na mente do paciente mesmo depois que a terapia/análise esteja
encerrada.

50
17 BIBLIOGRAFIA

BION, W. R. (1948). Experiences in groups, Human Relations. London: Tavistock


Publications.

BION, W. R. (1952). Group dynamics: a review. International Journal of Psycho-


Analysis, 33.

BION, W. R. (1961). Experiences in groups and other papers. London: Tavistock


Publications.

BION, W. R. (1963). Elements of psychoanalysis. London: Karnac Books

BION, W. R. (1967). Second Thoughts. London: W. Heinemann.

BION, W. R. (1988). Uma teoria sobre o processo de pensar. In: Estudos


psicanalíticos revisados (trad. Wellington M. de Melo Dantas). Rio de Janeiro, RJ:
Imago. (Trabalho original publicado em 1962)

BION, W. R. (1994). Clinical seminars and fous papers. London: Karnac Books.

BION, W. R. (2000). Cogitações. Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original


publicado em 1992)

Instituto WILFRED BION, fundado em 1992


Formação em Psicoterapia Psicanalista.
Jardim Botânico. Porto Alegre.

Fundamentos psicanalíticos: Teoria, técnica e clínica – Uma abordagem didática.


(pp. 41-74). Porto Alegre: ArtMed.

REZENDE, A. M. (1995). Wilfred R. Bion: Uma psicanálise do pensamento.


Campinas: Papirus.

REZENDE, A. M. (1997). Psicanálise: Evolução e ruptura: o paradoxo da


psicanálise. In: M. O. A. F. França. (org.). Bion em São Paulo: Ressonâncias. (pp.
325-333). São Paulo: Casa do Psicólogo.

REZENDE, A. M. (2003). Depois de Freud, Bion nos ajuda a trabalhar com Édipo.
Revista Brasileira de Psicanálise, 37(2/3), 539-546.
51
SANDLER, P. C. (2009). Uma obra em metáfora. Viver Mente & Cérebro: Memória
da Psicanálise, 6,18-27.

SAPIENZA, A. (1992). Uma leitura psicanalítica de Bion: Cinco tópicos clínicos.


Revista Brasileira de Psicanálise, 26(3), 301-312.

SAPIENZA, A. (2009). O arqueólogo da mente. Viver Mente & Cérebro: Memória da


Psicanálise, 6, 36-41.

WOLF, A. C. (2011). Bion e a parte psicótica da mente. Monografia


(Especialização). Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Psicologia.
Maringá. Zimerman, D. E. (1999). As sete escolas de psicanálise. In: D. E. Zimerman.

ZIMERMAN, D. E. (2004a). Bion da teoria à prática: Uma leitura didática. 2. ed.


Porto Alegre: ArtMed.

ZIMERMAN, D. E. (2004b). Psicoses. Pacientes borderline. A parte psicótica da


personalidade. In: D. E. Zimerman. Manual de técnica psicanalítica: uma re-visão.
(pp. 243- 252). Porto Alegre.

ZIMERMAN, D. E. (2004). Bion: Da Teoria à Prática (2. ed.). Porto Alegre, RS:
Artmed.

52

Você também pode gostar