Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
2, 193-208 · 2019
Bion e Winnicott1
Um diálogo a posteriori
Adriana Salvitti2
Luciana Pires3
Resumo: Uma carta escrita por Winnicott a Bion em 1955 nos serviu de estímulo
para colocar os autores em diálogo sobre dois temas levantados por Winnicott. O
primeiro tema critica os efeitos do kleinismo nos analistas; o segundo discute o pa-
pel do ambiente e da interpretação no trabalho com psicóticos. Embora distintos,
esses temas compartilham uma mesma questão, tratada por ambos os autores: o
problema da comunicação na análise, e entre os analistas na transmissão da psica-
nálise. Considerando a questão da comunicação no contexto em que essa carta foi
escrita, realizamos o entrecruzamento de textos de Bion e Winnicott para expor
uma possibilidade de diálogo sobre o papel do grupo na transmissão psicanalítica
e seus efeitos na formação. Igualmente, evidenciamos como poderiam ter debati-
do a clínica da psicose na década de 1950. Não há registro de resposta de Bion a
Winnicott e eles pouco se mencionam. Porém, essa leitura nos permite mostrar
como eles teriam se contraposto e respondido um ao outro.
Palavras-chave: formação psicanalítica, kleinismo, grupo, identificação projetiva,
psicose, interpretação
4 O texto foi apresentado em 1955 e publicado em 1957. Não há registro da primeira versão
nos arquivos da Sociedade Britânica, mas consideramos que Winnicott estava familiarizado
com essas ideias. Parte delas foi discutida por Bion em “Desenvolvimento do pensamento
esquizofrênico”, no congresso da Associação Psicanalítica Internacional (ipa), em julho de 1955.
195
Bion e Winnicott
5 Figueiredo (2017) aponta que a tradição kleiniana não é suficiente para explicar as convergências
e divergências entre Winnicott e Bion. A herança de Ferenczi em Winnicott, mas não em Bion,
embasaria diferenças importantes em suas formas de compreender o adoecimento psíquico.
196
Adriana Salvitti e Luciana Pires
Aqueles que trabalham com grupos preocupam-se com essa relação do pacien-
te com a disposição ambiental. Em alguns casos, pode-se fazer uma comparação
valiosa entre o estado emocional do grupo, sobre o qual o paciente tem algum
controle, e o estado emocional de sua mãe, quando o paciente era um bebê e sobre
o qual ele não tinha controle algum; quando bebê, podia apenas aceitar a dispo-
sição materna e ser enredado pelas defesas contradepressivas. Em outros casos, o
estado emocional do grupo não pode ser adentrado por um de seus membros em
razão da forte necessidade de se defender ou lutar por sua própria individualidade.
(1948/1975e, p. 94)
197
Bion e Winnicott
Gostaria de dar continuidade ao que eu havia começado a lhe dizer quando to-
mei parte na discussão. Parece-me que o material que você descreveu clamava
por uma interpretação sobre comunicação. É verdade que as interpretações que
você fez muito provavelmente estavam corretas no momento, mas caso se viole
a cena relatada tomando-a em abstrato, algo que é sempre perigoso fazer, eu di-
ria que, se um paciente meu deitasse no divã, movendo-se de lá para cá, como o
seu, e então dissesse: “Eu deveria ter telefonado para minha mãe”, eu saberia que
ele estava falando sobre comunicação e sobre sua incapacidade em se comunicar.
(Rodman, 1987, p. 91)
200
Adriana Salvitti e Luciana Pires
“Eu devia ter telefonado para minha mãe” poderia significar que essa falha sua
estava sendo castigada, e a punição, o fato de ele ficar inteiramente incapacitado de
fazer análise. Também significava que a mãe, sim, saberia o que fazer – ela poderia
201
Bion e Winnicott
Muito embora exista uma observação comum dos autores sobre a co-
laboração que pode haver entre a personalidade psicótica e a não psicótica,
e entre um falso e um verdadeiro self, entendemos que essa convergência
guarda relevantes distanciamentos conceituais. A formação de um falso self e
de um verdadeiro self dependerá da qualidade primitiva da relação mãe-bebê,
sendo esta anterior a uma organização defensiva do ego contra impulsos do
id (Winnicott, 1960/1965b). Bion, por sua vez, examina a natureza da perso-
nalidade psicótica e da não psicótica com base em aspectos constitutivos da
esquizofrenia e nas diferentes qualidades da identificação projetiva.
As interpretações de Bion em “Diferenciação…” visavam dar notícia ao
paciente de uma vida de fantasia que se encontrava cindida e cristalizada em
dimensões de pura violência. Elas marcam toda uma diferença em relação à
concepção de Winnicott sobre a interpretação e seu alerta de que o analista
não deve ultrapassar o paciente. Para Winnicott, as interpretações kleinianas
corriam o risco de antecipar o que o paciente ainda não teria configurado
por conta própria, quebrando assim o necessário estado de ilusão no qual a
interpretação é encontrada/criada pelo paciente.
É digno de nota que a interpretação alternativa proposta na carta por
Winnicott, para o caso hipotético de ser ele, e não Bion, o analista na sessão,
tem um caráter deveras explicativo, o que não condiz, na forma, com o clima
203
Bion e Winnicott
sutil que ele entende ser necessário. Isso nos faz conjecturar que talvez essa in-
terpretação tenha em Bion seu interlocutor primeiro. Ou seja, para Winnicott,
uma mãe devotada seria capaz de entender os movimentos do paciente, e a
incapacidade do analista em assim o fazer, vivida transferencialmente ali na
sessão, traz à tona a falha original do ambiente. Como ressaltamos antes, Bion
e Winnicott discordavam quanto ao potencial clínico do conceito de identi-
ficação projetiva na ligação entre paciente e analista, e esse posicionamento
teria impedido Winnicott de validar os importantes resultados clínicos alcan-
çados por Bion.
Nesse voo ficcional em que embarcamos, nessa reconstrução a poste-
riori de um trecho da história da psicanálise, imaginamos quais ressonâncias
foram produzidas quando Winnicott ouviu Bion dizer:
Considerações finais
Referências
Abram, J. & Hinshelwood, R. D. (2018). The clinical paradigms of Melanie Klein and Donald
Winnicott: comparisons and dialogues. London: Karnac.
Aguayo, J. (2002). Reassessing the clinical affinity between Melanie Klein and D. W. Winnicott
(1935-1951). The International Journal of Psychoanalysis, 83(5), 1133-1152.
Aguayo, J. & Lundgren, J. (2018). Introduction to a comparative assessment of W. R. Bion and
D. W. Winnicott’s clinical theories. British Journal of Psychotherapy, 34(2), 194-197.
Bion, W. R. (1948a). Experiences in groups: i. Human Relations, 1(3), 314-320.
Bion, W. R. (1948b). Experiences in groups: ii. Human Relations, 1(4), 487-496.
Bion, W. R. (1949). Experiences in groups: iv. Human Relations, 2(4), 295-303.
Bion, W. R. (1952). Group dynamics: a review. The International Journal of Psychoanalysis, 33,
235-247.
Bion, W. R. (1957). Differentiation of the psychotic from the non-psychotic personalities. The
International Journal of Psychoanalysis, 38, 266-275.
Bion, W. R. (1991). Learning from experience. London: Karnac. (Trabalho original publicado
em 1962)
Bion, W. R. (1993). Attacks on linking. In W. R. Bion, Second thoughts (pp. 93-109). London:
Karnac. (Trabalho original publicado em 1959)
Bion, W. R. (2000). Cogitações (E. H. Sandler & P. C. Sandler, Trads.). Rio de Janeiro: Imago.
Bion, W. R. (2004). Experiences in groups. London: Tavistock. (Trabalho original publicado
em 1961)
Bion, W. R. (2006). Atenção e interpretação (P. C. Sandler, Trad.). Rio de Janeiro: Imago.
(Trabalho original publicado em 1970)
Bion, W. R. (2014). Group methods of treatment. In W. R. Bion, The complete works of
W. R. Bion (Vol. 4, pp. 65-70). London: Karnac. (Trabalho original publicado em 1948)
Figueiredo, L. C. (2017). A matriz ferencziana de adoecimento psíquico e seus ecos: Balint e
Winnicott. Revista Brasileira de Psicanálise, 51(2), 153-165.
Hinshelwood, R. D. (2015). Winnicott and Bion: claiming alternate legacies. In M. B. Spelman
& F. Thomson-Salo (Orgs.), The Winnicott tradition: lines of development-evolution of
theory and practice over the decades (pp. 61-68). London: Karnac.
Hinshelwood, R. D. (2018). Intuition from beginning to end? Bion’s clinical approaches.
British Journal of Psychotherapy, 34(2), 198-213.
Pires, L. (2009). Superego e supervisão: resistências ao novo e imperfeito. Texto não publicado.
Rodman, F. (Ed.). (1987). The spontaneous gesture: selected letters of D. W. Winnicott. Cambridge;
London: Harvard University Press.
Salvitti, A. (2016). Escrita e transmissão em Bion: modelo de grupo, modelo pictórico e modelo
de transformação em O. Revista Brasileira de Psicanálise, 50(3), 155-167.
Sutherland, J. D. (1992). Bion revisited: group dynamics and group psychotherapy. In M. Pines
(Ed.), Bion and group psychotherapy (pp. 47-19). London; New York: Tavistock; Routledge.
Winnicott, D. W. (1953). Transitional objects and transitional phenomena: a study of the first
not-me possession. The International Journal of Psychoanalysis, 34, 89-97.
Winnicott, D. W. (1965a). Communicating and not communicating leading to a study of certain
opposites. In D. W. Winnicott, The maturational processes and the facilitating environment
(pp. 179-192). London: Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1963)
207
Bion e Winnicott
Winnicott, D. W. (1965b). Ego distortion in terms of true and false self. In D. W. Winnicott,
The maturational processes and the facilitating environment (pp. 140-152). London:
Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1960)
Winnicott, D. W. (1975a). Hate in the countertransference. In D. W. Winnicott, Through
paediatrics to psychoanalysis (pp. 194-203). New York: Basic Books. (Trabalho original
publicado em 1947)
Winnicott, D. W. (1975b). Metapsychological and clinical aspects of regression within the
psycho-analytical set-up. In D. W. Winnicott, Through paediatrics to psychoanalysis
(pp. 278-294). New York: Basic Books. (Trabalho original publicado em 1954)
Winnicott, D. W. (1975c). O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil.
In D. W. Winnicott, O brincar e a realidade (J. O. A. Abreu & V. Nobre, Trads., pp. 153-162).
Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1967)
Winnicott, D. W. (1975d). Primitive emotional development. In D. W. Winnicott, Through
paediatrics to psychoanalysis (pp. 145-156). New York: Basic Books. (Trabalho original
publicado em 1945)
Winnicott, D. W. (1975e). Reparation in respect of mother’s organized defence against
depression. In D. W. Winnicott, Through paediatrics to psychoanalysis (pp. 91-96).
New York: Basic Books. (Trabalho original publicado em 1948)
Adriana Salvitti
Rua Amadeu Amaral, 645
14020-050 Ribeirão Preto, sp
Tel.: 16 99736-9985
adrianasalvitti@gmail.com
Luciana Pires
Rua Mateus Grou, 566
05415-040 São Paulo, sp
Tel.: 11 3031-3082
luciana.pires@uol.com.br