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DESIDENTIFICAÇÃO

J. Outeiral
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(Material preliminar, não revisado, exclusivamente para circulação e discussão nos


Seminários; fevereiro, 2004)

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1)Apresentação da questão

O conceito de desidentificação é, a meu ver, pouco referido nos textos teóricos, em que
pese a grande importância que possui no desenvolvimento normal e na atividade clínica.
Acredito que o leitor, assim como eu, tem um conhecimento muito maior de material sobre
“identificação” do que sobre “desidentificação”.O objetivo deste pequeno texto é trazer
elementos para a discussão sobre o tema.

Nada melhor para começar que retomar a definição de identificação, processo psíquico
que, evidentemente, precede a desidentificação. O trabalho teórico e clínico de S. Freud, é
desnecessário lembrar, é perpassado, do seu início ao fim, por esse conceito.

Laplanche e Pontalis, em seu Vocabulário de Psicanálise, definem da seguinte maneira

Identificação .

Processo psicológico pelo qual um sujeito assimila um aspecto, uma propriedade, um


tributo do outro e se transforma total ou parcialmente, segundo o modelo desse outro. A
personalidade constitui-se e diferencia-se por uma série de identificações.

O termo desidentificação parece ter sido usado primeiro por Octave Mannoni, que
escreveu que “... a identificação é inconsciente... e a conscientização desidentifica...”
( Diefenthaler, 1996 ).

O texto que me parece esclarecer, de forma bastante concisa e clara, as questões da


desidentificação é Acerca de la Desidentificación, de autoria de Willy Baranger, Néstor
Goldstein e Raquel Zak de Goldstein, e publicado, inicialmente, na Revista de Psicoanálisis
( 1989) e, depois, como um capítulo do livro Artesanías Psicoanalíticas ( 1994 ). Alguns
poucos textos tratam desta questão, mas este mais parece o mais esclarecedor; poderei ter
esta opinião devido a “restos transferenciais”, o que nos remete, uma vez mais, a
importância das identificações...

As idéias centrais sobre desidentificação, expostas neste breve texto, nos remetem,
principalmente, a duas abordagens.
.a) A identificação como processo psíquico estruturante ou patogênico (alienante).

b)As desidentificações que se dão de forma espontânea ou através do processo


psicanalítico.

2) A identificação como processo estruturante ou patogênico

Os processos psíquicos que nos levam às identificações estruturantes são bem


conhecidos. Elas conduzem, seguindo a Donald Winnicott, à uma idéia de identidade, de
um sentido pessoal, de um self coeso que resulta da continuidade do self ( going-on-being ),
enfim, de um estado de mente capaz de espontaneidade e de um viver criativo. Este self
coeso e unitário ( espaço ) e o sentido de continuidade que deve acompanhá-lo ( tempo ) é
construído através de identificações ( social ). Este tripé espaço-tempo-social é o que L.eon
e Rebeca Grimberg referem como “os elementos básicos da identidade”.Nossas
identificações perpassam, entre outros aspectos, as questões derivadas da sexualidade, do
masculino e do feminino.Em minha opinião o mecanismo de defesa, sem dúvida, que
caracteriza a clínica de Donald Winnicott é a cisão; a identificação, entretanto, e em
particular as identificações cruzadas constituem, também, uma parte crucial em seu
pensamento.

As identificações patogênicas ou alienantes estão, entretanto, inevitavelmente em maior


ou menor grau, presentes no processo de desenvolvimento e nos elementos maturacionais.
Sigmund Freud em muitos momentos de sua monumental obra trata destas identificações
patogênicas (“... a sombra do objeto perdido se estende sobre o ego...”), como
compreendemos em sua explanação sobre os mecanismos da melancolia.A identificação
com o agressor, como descrito por Anna Freud, nos dá outra dimensão deste processo. A
identificação com a mãe morta, conceito elaborado por André Green, é mais uma maneira
de compreendermos estes movimentos psíquicos.

3) As desidentificações

As desidentificações poderão se dar ao longo de todo o ciclo vital, havendo – entretanto –


ocasiões privilegiadas ( infância, adolescência, meia-idade, momentos de crises evolutivas )
nas quais este processo se possibilita mais intensamente, ou através do processo analítico.

a) Ao abordar o tema das desidentificações referidas ao processo evolutivo é interessante


ler o que Willy Baranger e o casal Raquel e Nestor Goldstein escrevem:

Um motor poderoso para as tentativas de desidentificação surge do caráter contraditório


dos processos identificatórios. A mais conspícua destas contradições reside na dualidade
sexual dos objetos primários. Esta situação se vê, além disso, complicada pelo fato de que
os modelos identificatórios ( principalmente os pais ) são produtos de identificações
diversas com ambos os sexos. Portanto, se não houvesse um trabalho espontâneo
constante sobre as identificações, o sujeito seria uma espécie de patchwork composto de
pedaços de identificação apenas alinhavados entre si... Entre as formas espontâneas de
desidentificação, devemos colocar os fenômenos que se produzem quando, por causas
externas ou internas, um sujeito perde um aspecto importante de seu ideal de ego posto,
por exemplo, em uma pessoa muito admirada, uma ideologia, um agrupamento humano
ou uma instituição ou um ideal de qualquer índole.

Estes autores dão o exemplo do que ocorre, referindo-se ao ideal de ego e as


desidentificações, quando morre um astro do cinema, das artes, dos esportes ou da política.
Ocorre uma turbulência que é o resultado da perda “encarnações” do ideal de ego. Sendo
um texto vindo da Argentina, o exemplo de Evita Perón, que todos conhecemos, faz um
sentido quanto aos sentimentos decorrentes da “desencarnação”, melhor, desidentificação
ocorre. Vejamos um pouco mais de suas idéias.

A história de um sujeito é, em parte, a história de suas desilusões. Citaremos primeiro as


desilusões universais: a descoberta de que os pais “todos poderosos”, herdeiros do ideal
de ego narcisista, dependem de outros adultos, tem que obedecer, gozam de um poder
sempre muito limitado, e, o que é pior, não cumprem com as normas e os mandamentos
que eles mesmos nos exigem. Além disso eles tem os mesmos defeitos que tratam de
corrigir em seus filhos, mentem descaradamente, tem relações sexuais ( “fazem
porcarias” ), sofrem, choram, adoecem, se deprimem e, inclusive, são mortais.

Ao estudar as desidentificações que devem ser obtidas de identificações patológicas,


estratificadas, arcaicas e cristalizadas, os autores referidos falam de três tipos: a
desidentificação do “objeto enlouqecedor” , a desidentificação por “desluto” ( utilizo a
tradução para “desduelo” proposta por Diefenthaler ) e a desidentificação por autonomia
narcisista. Estas identificações patológicas constituem “núcleos” cindidos, mantidos
inconscientes “ mais que qualquer outro fenômeno psíquico” . São relacionados aos
“momentos ou brotos psicóticos” em estruturas neuróticas.

Ao falar da desideintificação em relação ao “objeto enlouquecedor”, devemos lembrar o


texto de Winnicott, escrito vinte anos antes do trabalho ao qual faço referência, em 1969,
em que ele trata de A loucura da mãe tal como aparece no material clínico como fator
estranho ao ego. Neste trabalho ele apresenta um caso clínico que ilustra esse tema.

Quanto à desidentificação por desluto há todo um processo que transcende ao trabalho de


elaboração do luto, tal como descrito por S. Freud ( identificações no ego e no ideal de ego
com o objeto perdido, discriminação entre vivo e morto, etc. ) , e surge a necessidade de
trabalhar a discriminação entre o harmônico e o disharmônico em relação à personalidade
total ( entre o que pode permanecer e o que deve ser considerado como alheio e expulso ).
A evolução desse processo, segundo os autores citados, dá lugar a sentimentos de
renascimento e esperança..

A desidentificação por autonomia narcísica se processa através do reconhecimento do


aspecto patológico de certas identificações, ocorrendo um movimento de separação interna,
onde essas identificações são abandonadas, o que produz sentimentos de perda de
identidade.
Nos três casos o paciente deve analisar as experiências traumáticas que causaram tais
identificações através da reconstrução de tais vivências na situação analítica. ( Desamparo
e trauma, Outeiral& Godoy, Revinter, 2003 ) .

4) Alguns comentários

É interessante retornar ao início do texto. Por quê não trabalhamos mais com o conceito de
“desidentificação”? Na verdade, escudado em Blanchot ( ... a pergunta é mais importante
que a resposta... ou a resposta pode ser a desgraça de uma boa pergunta... ), farei apenas
alguns breves comentários para convidar à discussão. Desidentificação significa lidar com
a perda de um objeto/identificação/total ou parcial que, bem ou mal, nos ajuda a constituir
nossa “identidade”. Nos leva, da mesma forma, a lidar com a desestruturação, próxima, em
determinados momentos e em certa intensidade, daquilo que habitualmente referimos como
“momentos psicóticos”, estados mentais primitivos de indiscriminação e confusão. A
adolescência, momento evolutivo privilegiado para esse movimento psíquico pode ter,
como um dos elementos que ocasionam suas flutuações progressivas e regressivas, as
desidentificações ligados ao processo de desenvolvimento e maturação ( é útil lembrar
Bion quando fala da turbulência emocional nesta etapa, em seu texto sobre “Borderline” ).
O conceito de “desconstrução” de J. Derrida me parece interessante nesse momento.
Ao pensar sobre esse tema me ocorre, também, a importância da situação ou provisão
ambiental ( ambiente facilitador ) como um continente adequado, um holding
“suficientemente bom”, para esses movimentos identificatórios e desidentificatórios na
infância, na adolescência e nos processos patológicos, e que mobilizam- transitóriamente -
estados de mente primitivos. Assim, o setting ( incluindo aí a presença e as intervenções do
analista, junto a diversos outros elementos ) deve oferecer não só um espaço confiável
como também um “analista para novas identificações”, analista conhecedor –
evidentemente – dos riscos envolvidos nesta configuração. Não falo do “analista real”, mas
chamo a atenção para discutirmos o “analista fóbico” ou o “analista esquizóide”, que mal
utilizando a expressão “neutralidade” ( já lhe ocorreu pensar se S. Freud, nunca escreveu a
palavra “neutralidade”? ), na verdade impede a intimidade e o interjogo transferência-
contratransferência, ou como escreveu Winnicott “a superposição da área de brincar do
paciente e do analista”; melhor dito, o analista que evita e foge do brincar. A presença do
analista, seja como “objeto subjetivamente concebido” ou como “objeto objetivamente
percebido” necessita ser compreendido na contratransferência. O analista para entrar nesse
“brinquedo” deve ter um insight suficiente para não incorrer em atuações
contratransferenciais que o localizem como perturbador ou intrusivo do “brincar”, dentro
daquela categoria de contratransferência, a primeira delas, quando Winnicott refere ser
necessário mais análise para o analista. Sei, antes que alguém lembre, que “a análise é
interminável”, mas acredito que estamos nos comunicando de maneira compreensível e que
todos sabemos como S. Freud recomendava a “reanálise” aos analistas... Não esqueçamos
que o analisando deverá também se desidentificar de muitos aspectos de seu analista, por
mais que isso perturbe a nós analistas, em nossos aspectos narcísicos. Ao escrever sobre a
adolescência Winnicott falou da necessidade do jovem “assassinar” os pais para reconstruí-
los; “desconstruir”, realizar desidentificações ou “destruir” o analista. Tal movimento
permitirá uma nova organização no self do analisando, sempre que ocorrer a sobrevivência
do objeto ( Winnicott, 1969 ). Esse “objeto sobrevivente” não é mais o “analista real”, mas
sim um constructo do próprio analisando. A desidentificação, acredito, é parte desse
processo.

Bibliografia

Baranger, W., Goldstein, N. e Goldstein, R. Acerca de la desidentificacion In; Baranger,


W. , Goldstein, N., & Goldestein, R. Artesanias psicanaliticas Kargieman. Buenos Aires,
1994

Diefenthaler, E. Desidentificação: a propósito de um caso clínico. Revista de Psicnálise,


Vol.VIII, n. 1, aabril 1996. Porto Alegre

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